Este artigo pretende analisar o embate argumentativo entre as comunidades ribeirinhas do Vale do Jequitinhonha e a Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) no caso da construção da Usina de Irapé. Busca-se identificar os agentes sociais envolvidos no processo de construção da usina, os discursos e as ações comunicativas e o contexto dos conflitos socioambientais. Pretende-se, também, abordar o papel da sociedade civil e da esfera pública em fazer com que as demandas sociais sejam inseridas nas agendas políticas e que os interesses dos cidadãos comuns ganhem publicidade a ponto de vencerem as barreiras das “comportas” do governo, dos parlamentos, da administração e do sistema político em geral. Diante da tensão entre os sujeitos concernidos no processo de construção da hidrelétrica, pensar a importância da deliberação pública torna-se fundamental. Para além das discussões que buscam avaliar os impactos ambientais e sociais e conflitos resultantes da implantação de hidrelétricas, este estudo busca examinar a relação entre os sujeitos interlocutores presentes nesse quadro relacional, através de um olhar comunicativo que entende a comunicação como lócus para a construção de sentidos em conjunto, a negociação de interesses e a ação política.
deliberação, esfera pública, identidade e Hidrelétrica de Irapé.
A usina de Irapé será a barragem mais alta do Brasil e a segunda da América Latina. Trata-se de um empreendimento de grande porte que produzirá um impacto ambiental e social enorme, uma vez que, segundo Andréa Zhouri (2005), a construção do reservatório de 137,16 Km² atingirá sete municípios e desalojará, aproximadamente, 1.124 famílias.
É em contextos de divergências semelhantes a esse que surgem a maioria dos conflitos entre, de um lado, empresas e Estado que visam o desenvolvimento econômico e, de outro lado, as comunidades que se sentem ameaçadas pela chegada de um empreendimento que causará impactos graves na tessitura das relações cotidianas.
Em tal cenário de embate discursivo, os parceiros de debate buscam dar legitimidade aos seus discursos e defender seus objetivos por meio de bons argumentos, que irão substanciá-los e fortalecê-los (CHAMBERS, 1996). De um lado, os "Engenheiros" - leia-se empresas produtoras de energia elétrica - constróem seus discursos baseando-se nas vantagens econômicas do empreendimento e entendem "os problemas ambientais e sociais (...) como meros problemas técnicos e administrativos, passíveis, portanto de medidas mitigadoras e compensatórias" (ZHOURI, 2005, p. 12). Já a construção argumentativa das comunidades rurais busca valorizar o território, a memória coletiva, os símbolos e principalmente o que entendem como bem-viver.
Na medida em que um assunto é tematizado e ganha publicidade, os atores sociais envolvidos no processo, seja por interesses diretos ou indiretos, são convocados a construírem seus discursos por meio de razões que possam vir a ser defendidas publicamente, do contrário, o sujeito comunicante perde a legitimidade daquilo que diz perante os demais agentes envolvidos na problemática (Bohman, 2000). O engajamento dos envolvidos nesse processo de explicitação pública de razões e premissas em busca de um entendimento comum acerca de questões de interesse coletivo constitui a principal característica do processo deliberativo (Habermas, 1997).
Todavia, diante da dificuldade de se observar o processo deliberativo e de como apreendê-lo, escolheu-se, para a realização deste trabalho, o estudo de caso, por se revelar como método capaz de evidenciar as diferentes nuances de um problema específico, bem como de evidenciar as tensões entre diferentes pontos de vista. Com esse objetivo, optou-se por atrelar os processos comunicativos da Cemig às práticas sociais das comunidades ribeirinhas, a fim de compreendermos a forma como se efetuam as relações discursivas que se inauguram quando há a presença do eu e do outro, portadores de objetivos divergentes.
A situação que se busca analisar criticamente consiste na relação que a Cemig vem estabelecendo, principalmente, com os municípios atingidos pela construção da Usina Presidente Juscelino Kubitscheck, a hidrelétrica de Irapé, e com os diversos atores sociais envolvidos no processo de negociação e construção da barragem, por meio do plano de ações comunicacionais traçado pela empresa para dialogar com tais sujeitos. Por outro lado, pretende-se entender a maneira como a sociedade civil responde às estratégias da empresa e de que modo a deliberação pública pode contribuir para a construção conjunta de sentidos e o entendimento.
Este artigo encontra-se dividido em três partes. Na primeira parte exploramos o conceito de esfera pública como uma rede adequada para as praticas comunicativas e ações políticas. Na segunda parte evidencia-se como o espaço de visibilidade midiática pode contribuir para politizar e ampliar discussões deliberativas, bem como a participação e inclusão dos cidadãos comuns. Na terceira parte investiga-se o embate argumentativo entre empresas privadas e moradores atingidos pela construção da hidrelétrica. Por fim, são apontados alguns pressupostos teóricos para que a sociedade civil consiga iniciar um "diálogo público e vencer a barreira da invisibilidade", a fim de alcançar um espaço na cena midiática e a publicidade de suas lutas sociais (Maia, 2004).
A chegada da Hidrelétrica ao povoado de Irapé implicará na desconstrução de um espaço repleto de sentidos, significados e personalidade presentes na praça, na religiosidade popular, nas festividades realizadas às margens do Rio Jequitinhonha, nas formas de vivencia comunitária, na lavoura, no garimpo e tantas outras expressões materiais e imateriais, que fazem do local um legítimo espaço de sociabilidade. Sendo assim, a comunidade ribeirinha se sente lesada não apenas no que diz respeito à perda do espaço material mas, também, quanto ao seu espaço simbólico. Por sua vez, as empresas, apesar da virtuosidade técnica e econômica, são convocadas a dialogarem com os diversos atores sociais presentes na esfera pública por meio de estratégias que favoreçam a legitimidade de suas ações.
É certo que empresas privadas e comunidades de seu entorno social operam em lógicas divergentes, fazendo emergir discursos que visam a legitimidade das causas defendidas e a justaposição de uma identidade por outra. Com intuito de alcançar a legitimação pública e movidos pelo desejo de reconhecimento de suas identidades, os moradores atingidos pela construção da barragem buscam a possibilidade de participação na discussão de decisões, a partir da negociação com os envolvidos no processo de implementação, originando-se o que, segundo Sérgio Costa (1997), seria denominado de Esferas Públicas Locais. Nesse lócus de argumentação o debate passaria “pela via da justificação pública e do convencimento argumentativo” (COSTA, p.126, 1997). As afirmações de Costa trazem subjacentes a teoria de Jürgen Habermas sobre esferas públicas que se constituem quando um grupo de atores procura discutir, de forma cooperativa, questões de interesse coletivo visando um melhor entendimento dessas questões e/ou suas possíveis soluções.
O grande esforço de Habermas (2003), encontra-se na tentativa de desenvolver uma teoria que seja capaz de fazer com que os interesses de cidadãos comuns sejam inseridos nos processos de tomada de decisão. Nesse intuito, o autor aponta o papel central do Estado na tomada de decisões, e ao mesmo tempo questiona a idéia de um sistema fechado pontuado de vários obstáculos à ação dos cidadãos. Para Habermas, os aparatos burocráticos e suas decisões devem estar ancorados no mundo da vida. Ele também indica que o sentido e a orientação do fluxo do poder dependem em grande parte da habilidade da sociedade civil de incluir suas demandas e temas em esferas públicas de discussão, transportando para os centros decisórios e para as agendas políticas os conflitos latentes na periferia.
A esfera pública é entendida como um procedimento e não como uma instituição localizada espacial e temporalmente. Trata-se de “uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões (...)” (HABERMAS, 2003, v. II, p.92). A esfera pública é marcada pela presença de uma sociedade civil que se organiza para fazer com que as demandas do povoado sejam problematizadas a ponto de ultrapassarem as barreiras impostas pelo Governo, pelos parlamentos, pela administração e pelo sistema político em geral.
Para Habermas, em casos de impasses, "os atores não sentirão a coerção tênue de pretensões normativas como violência imposta a partir de fora se apropriarem-se dela como coerção moral, isto é, se a traduzirem para motivos próprios" (1997,v. I, p. 95). No entanto, vale perguntar se, de fato, a Cemig, ao pensar suas ações, assume os interesses dos moradores do Vale como "motivos próprios" ou, simplesmente, busca diminuir as resistências sociais a fim de garantir a preservação de sua imagem institucional? Será que o plano estratégico da empresa visa, por meio da comunicação, fomentar a sociabilidade no novo espaço bem como a construção de sentidos junto aos interlocutores? Por outro lado, será que a população internaliza essas "pretensões normativas" de que fala Habermas e legitima o discurso salvacionista assumido pela Cemig? Tais questões irão nortear o desenvolvimento deste trabalho.
Nas sociedades contemporâneas não é possível pensar os processos de disputas políticas sem considerar a esfera midiática como uma instância fundamental na reconfiguração dos discursos e na relação entre os sujeitos. Rousiley Maia aponta que cada vez mais “as práticas sociais são interpenetradas pelos meios de comunicação”, transformando até mesmo a noção de política (2006, p. 15). Assim, atores envolvidos em um debate sobre questões específicas encontram na mídia o lugar apropriado para que as divergências e os desacordos sejam encampados, problematizados e “publicizados”.
A concepção política da democracia deliberativa apresenta como princípio fundamental a necessidade de que os processos decisórios referentes ao bem-estar social devam ser conseqüências das atividades cooperativas de trocas argumentativas entre sujeitos livres e moralmente iguais. A deliberação como procedimento democrático é entendida por diversos autores (Cohen, 1997; J. Habermas, 2003; Bohman, 2000) como o processo de construção da vontade política e não necessariamente como a produção final de de soluções e decisões. Nessa perspectiva, o processo deliberativo precisa ser uma atividade coletiva marcada pelo interesse dos participantes em desconstruirem os argumentos meramente individuais em prol do interesse público.
Ainda que a deliberação seja apresentada como uma dinâmica colaborativa isso não significa que a esfera de discussão não seja uma arena de disputa de entendimentos, competição de argumentos e posições diversas. Em situações problemáticas, assim como a construção da Usina de Irapé, o debate é muitas vezes a busca estratégica de derrubar, convencer e legitimar os próprios argumentos em contraposição aos de outros.
A pluralidade e complexidade das sociedades contemporâneas levam os teóricos da deliberação a pensarem o processo discursivo sem que haja, necesariamente, a participação ativa e presencial do público em geral (Maia, 2004). Nesse contexto, o sistema da mídia favorece a promoção da deliberação pública, a troca de informações, a participação e argumentação em redes comunicativas marcadas pela ampla possibilidade de interação, com dimensões de espaço / temporal em grandes escalas.
O espaço de visibilidade midiática pode ser entendido como o lugar onde as questões do mundo da vida podem ser vistas, é onde as coisas ganham publicidade, tornan-se disponíveis e conhecidas. Rousiley Maia elucida o conceito da cena midiática definindo-a como “um ambiente em que embates ideológicos se desdobram, colocando em movimento interações diversas dentre e entre os atores políticos e os próprios cidadãos” (2006; p. 26-27).
Ademais, a publicidade, característica própria do sistema dos media, é fundamental para governar o processo deliberativo. A publicidade pode ser entendida de duas maneiras: em um sentido mais fraco, refere-se ao caráter público, visível, ou ao o que Wilson Gomes chamaria de “proscenio social” (1999). Por outro lado, a publicidade diz respeito também “às normas que regulam o diálogo e a negociação dos entendimentos em público” (Maia, 2004 p.12). Em outras palavras, o princípio da publicidade impõe aos sujeitos do debate a necessidade de apresentarem argumentos que sejam racionais e aceitáveis publicamente, além de tornarem responsáveis pelos seus próprios proferimentos.
No caso da Usina de Irapé, o espaço de visibilidade midiática condensou diversos discursos e fomentou as conversações cívicas, além de promover a pré-estruturação de uma esfera pública política. Para melhor compreendermos o embate argumentativo em torno da implementação da Hidrelétrica, optamos por analisar o material veiculado na mídia impressa entre os anos de 2002 e 2006, do Jornal Estado de Minas. O material coletado evidencia o intercâmbio de razões públicas entre diferentes agentes sociais. Surgem, então, argumentos distintos, como o econômico e o de reconhecimento cultural.
O apelo para argumentos que sejam de conhecimento público têm maior poder de convencimento e probabilidade de obter a validade dos discursos em uma dimensão mais ampla. No caso da usina de Irapé, um dos argumentos utilizado pelos engenheiros remete "à redenção do Vale da Miséria", comunicando que a construção da barragem irá favorecer as regiões do Vale bem como fomentar a economia, gerar empregos, atrair novos investimentos sociais devido ao aumento e à qualidade da energia elétrica na região. Isso nos revela que, para os engenheiros, o espaço existe para ser explorado enquanto uma mercadoria adquirida monetariamente.
Nesse contexto, a remoção de famílias continua sendo o ponto mais polêmico no processo de construção de uma barragem, impondo limites às empresas de transformarem a capacidade econômica em poder de político.
No material jornalístico selecionado, o argumento do desenvolvimento apareceu reafirmando o caráter salvacionista da construção da hidrelétrica, como por exemplo no discurso a seguir:
Depois da construção de Irapé não haverá nada impossível de se concretizar no Brasil. Podemos seguramente superar e vencer quaisquer óbices que se anteponham ao desenvolvimento e ao progresso em beneficio do homem. (Murilo Badaró – Presidente da Academia Mineira de letras)
Paralelo ao argumento citado acima, surgem também proferimentos que buscam responder e justificar os atrasos na produção de energia elétrica, a dificuldade na remoção das famílias atingidas e no que diz respeito à qualidade das terras oferecidas pela Cemig. Nesse intuito, um dos engenheiros afirmou que a empresa estava “(...) fazendo compensações que não estavam previstas, como pavimentação de ruas, construção de praças e estação de tratamento de esgoto em Lelivéldia” (Marcionilio Ferreira Pacheco, engenheiro da Cemig). Em seguida, ao ser questionado sobre o potencial produtivo das terras oferecidas aos moradores atingidos, Pacheco afirma que “quem ainda não plantou é porque tem preguiça, tem muita fazenda já plantada”. Discursos como este, em grande medida, não conseguem passar no “teste” da publicidade, pois não são aceitáveis e não contribuem para o processo deliberativo. E não contribuem porque desvalorizam os interlocutores como agentes moralmente capazes ao caracterizá-los como “preguiçosos”. Tal atitude, ao invés de contribuir para que sempre existam possibilidades de retomada da discussão, fecham as possibilidades de sua continuidade.
Ao contrário dos engenheiros que buscam dar veracidade ao seu discurso demonstrando as vantagens do empreendimento, os grupos com interesses opostos constroem seus discursos baseando-se nas desvantagens, nos impactos sociais advindos da presença da hidrelétrica, na crítica aos apelos incessantes do futuro e do progresso. Ademais, ao se sentirem repentinamente “ameaçados de extinção”, os moradores da comunidade decidem ir à luta e articular seus direitos por meio da construção e da preservação de suas histórias. Em contextos semelhantes a esse, de acordo com Zhouri (2005), a luta pela defesa do território torna-se um elemento unificador da comunidade levando-os à uma construção discursiva que se apresenta por meio da "construção do nós". Tal construção é percebida em vários depoimentos dos moradores ameaçados pela construção de barragens, como por exemplo o depoimento de uma moradora atingida pela usina de Murta:
Nossas terras são produtivas, nossas baixas, nossos rios (...). Nossa comunidade são cinqüenta famílias e todas elas vivem independente, não temos nenhuma necessidade de sair corrido por causa de barragem. (Depoimento de uma moradora atingida pela UHE- Murta). Zhouri, p. 60, 2005.
Diante da notícia de que o vilarejo deverá desaparecer inundado pelas águas de uma grande hidréletrica, surgem diversas "vozes" que se contrapõem a todo momento. Esse jogo político torna-se público a partir do momento em que os atores afetados de alguma maneira posicionam-se na esfera pública para alcançarem um entendimento. De acordo com Habernas, quando os interlocutores iniciam o processo de deliberação pública, não necessariamente esses agentes conseguirão chegar a um acordo no qual os envolvidos se sentirão satisfeitos com os resultados.
Porém, na visão habermasiana é possível que em algum momento da discussão, apesar das diferenças e discordâncias, existam pontos que se convergem e sejam de interesse comum. Esse terreno de premissas compartilhadas no campo dos conflitos irá definir as estratégias e ações que contemplam os interesses colocados em cena, ainda que não atenda fielmente às demandas apresentadas.
A luta dos cidadãos comuns pelo reconhecimento de suas demandas, e mais especificamente, desses cidadãos organizados em movimentos sociais, na sociedade contemporânea, passa a ser uma luta por visibilidade, uma luta para tornar públicas as razões e mobilizar os sujeitos sociais.
Diante desse quadro, percebe-se que os elementos estéticos, a coesão do discurso e a coerência com as ações, bem como a utilização dos instrumentos e veículos disponíveis, são fundamentais para vencer a barreira da invisibilidade pública e conseguir transportar as demandas de um grupo para os centros políticos de decisão e para a pauta midiática.
Em Irapé, diversas falas foram encampadas pelo sistema da mídia impressa, o que invariavelmente fortalece e legitima as lutas dos atingidos por barragens. Os argumentos dos moradores, especialistas, Ministério Público, etc, são, em sua maioria, perpassados pela questão da memória, da identidade, do lugar do pertencimento e dos vínculos de solidariedade. A representação da região ribeirinha do Vale do Jequitinhonha que privilegia a lógica da miséria e da estagnação atribui ao local uma identidade verticalizada e unilateral. Tal identidade não se trata, necessariamente, da concepção dos moradores da comunidade que será atingida pela barragem, uma vez que essa construção de sentidos ocorre através das relações que os sujeitos têm com o lugar onde vivem. Enfatizando esse quadro, Giddens (1991) afirma que "nas culturas tradicionais, o passado é honrado e os símbolos valorizados porque contêm e perpetuam a experiência de gerações" (p.44).
Para dar resposta aos engenheiros que defendiam o potencial emancipatório da hidrelétrica, Andréa Zouhri afirmou que “Irapé será a barragem mais alta do Brasil. Seu custo deve ser superior a R$ 600 milhões (...), no entanto, apesar de investimentos tão altos, a usina será apenas de médio porte. Questionamos a sua viabilidade” (professora do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG). Contrapondo ao discurso de redenção do “Vale da Miséria”, moradores dos municípios que serão submersos pela construção da hidrelétrica, constroem suas falas na busca da valorização das regiões, destacando a concepção do “Vale da Riqueza”. Nos argumentos acionados pelos moradores, a riqueza não se encontra na potencialidade material do Vale, mas sim nos laços de solidariedade e na identidade coletiva. Nesse sentido, a identidade de um grupo passa a ser compreendida através dos diversos contextos sociais com os quais os sujeitos interagem, ou seja, “a identidade de alguém no local onde mora, entre vizinhos, amigos, parentes ou pessoas estranhas é apenas um dos contextos sociais, e talvez nem seja o mais importante na formação de uma identidade” (MARCUS, 1991, p. 205). A problemática surge a partir do momento em que os interlocutores envolvidos na implementação do empreendimento possuem atributos valorativos distintos para configurar suas identidades. Em oposição aos engenheiros, os moradores enfatizam a necessidade de preservar suas raízes:
Deixamos nossas raízes, que ficaram lá (no antigo povoado). Agora, vamos ter que formar outras raízes aqui. (Moradora – Maria das Dores de Assis, 53 anos)
Por outro lado, alguns moradores, apesar das inseguranças advindas da presença da barragem, comungam dos argumentos do desenvolvimento econômico além de terem expectativas positivas para a região. Tais mensagens ganham destaque nos espaços de visibilidade midiática:
O bom da represa é que emprega várias pessoas. Esperamos ainda que o turismo aumente e, conseqüentemente, que as vendas também cresçam. (Comerciante, morador de Berilo)
Em última analise, aparece o discurso de preservação de um quilombo ameaçado de extinção devido a chegada da usina. Dentre os argumentos sustentados pelos engenheiros, uma das falas acusa os participantes que portam interesses distintos de inventarem a existência de uma comunidade de origem de quilombos. Em contrapartida, especialistas afirmam que a comunidade de Porto de Coris está na região há mais de 200 anos e é a única reconhecida oficialmente pela Fundação Palmares como remanescentes de quilombos em Minas Gerais. Enfatizando esse quadro, o laudo solicitado pelo Ministério Público Federal revelou que “a construção da usina traz riscos graves para as comunidades, que desenvolveram uma maneira peculiar de interação com o meio ambiente”.
Todavia, o argumento abaixo contrapõe-se ao discurso dos moradores de Porto Coris bem como às falas de especialistas que reivindicam o reconhecimento e a preservação de uma comunidade remanescente de quilombos.
Convém notar que até hoje ainda não foram definitivamente solucionadas as pendências para superar inexplicáveis resistências ambientalistas, articuladas em favor de interesses subalternos numa extensão de área praticamente desabitada e para a qual conseguiram o milagre de inventar a existência de um falso quilombo. Uma verdadeira corrida de obstáculos sendo vencida para tornar irreversíveis os passos dados. (Murilo Badaró – Presidente da Academia Mineira de Letras)
Diante desse debate mediado, percebe-se uma pluralidade de interesses e razões que buscam legitimar as práticas dos sujeitos envolvidos no processo deliberativo. Essa divergência de interesses impõe às organizações toda uma problemática de fazer valer as vontades próprias em detrimento dos desejos de outros, por meio de estratégias que visem a legitimidade de suas ações, resguardando, a todo momento, a imagem institucional. Assim, engenheiros e moradores têm que elaborar suas perspectivas e pontos de vista diante das possibilidades de entendimento e dos constrangimentos dispostos pelo próprio embate discursivo.
De acordo com os conceitos de espaço público e democracia deliberativa de Jurgen Habermas, em situações de desacordos é possível se chegar, por meio do uso público da razão, a um entendimento que não significa necessariamente o bem comum, mas sim um terreno comum de interesses. Para o autor supracitado, "quando há o desacordo, os que desejam prosseguir a conversação deveriam escolher um terreno neutro, na esperança de resolver ou de contornar as diferenças" (HABERMAS, 2003, p.37). Nesse sentido, ainda que os moradores do Vale do Jequitinhonha continuem insatisfeitos com a construção da barragem, é possível estabelecer acordos que garantam melhores condições de moradia, escolas, centros de saúde, indenizações, programas de remanejamento da população, entre outros benefícios que possam ser negociados através da participação de todos os envolvidos.
Entretanto, na maioria dos casos, as empresas produtoras de energia elétrica, através de suas estratégias não visam fomentar a sociabilidade no novo espaço e muito menos a construção de sentidos junto aos interlocutores. Nesse sentido, argumentamos que os "engenheiros" deveriam estabelecer "lugares'' específicos para a produção de consensos através do diálogo, marcados pela razão comunicativa, na qual empresa e comunidade pudessem deliberar sobre os assuntos em questão de modo que as tomadas de decisões sejam baseadas nos melhores argumentos (Bohman, 2000).
Dessa forma, a deliberação pública, através de troca de argumentos entre cidadãos com direitos iguais, seria capaz de tornar os processos decisórios mais democráticos uma vez que para Habermas (2003), os que agem comunicativamente “encontram-se numa situação que eles mesmos ajudam a constituir através de suas interpretações negociadas cooperativamente, distinguindo-se dos atores que visam o sucesso e que se observam mutuamente como algo que aparece no mundo objetivo (p.93)”.
Este trabalho revelou que a deliberação ocorrida no espaço de visibilidade midiática contribui para fomentar as conversações cívicas bem como para influenciar as tomadas de decisões políticas. Os debates internos à cena midiática demonstram a importância de outros lugares de argumentação, uma vez que a deliberação deve ser concebida e analisada como processo que agrega diferentes discursos que se processam em diferentes espaços a longo prazo (Maia, 2006). Os debates constituídos nos espaços de conversação cotidiana, por exemplo, permite que os sujeitos se preparem para o momento em que são convocados a defenderem publicamente suas causas. Por sua vez e como evidenciado neste trabalho, os debates travados nos espaços de visibilidade midiática permitem que o uso público da razão e o intercâmbio de argumentos sejam praticados.
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