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atualizado: 02 de fevereiro de 2010

 

VI. O Espírito

B – O Espírito Alienado de Si Mesmo. A Cultura

 1. O mundo do espírito alienado de si.

aA cultura e o seu reino de efetividade

(PhG, 43 parágrafos;  FE, parágrafos 484 a 526)

Linhas gerais das experiências da consciência desde o primeiro capítulo (Certeza Sensível) até o sexto capítulo (O Espírito) – ou desde a seção (A) Consciência até a seção (C) (BB) O Espírito  [Clique para ler o texto]

Texto original francês de Diderot, O sobrinho de Rameau. Clique aqui.

O texto original francês pode também ser obtido na Gallica, Bibliotheque nationale de France digital library.

Tradução para o português: Didertot. Obras III. O sobrinho de Rameau. Organização, tradução e notas de J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2006.

 

Par.  484

 

Diferentemente do que ocorreu na eticidade grega, há, agora, uma oposição entre a individualidade, o absolutamente discreto, de um lado, e o ser, o mundo como o negativo da consciência-de-si, de outro.

O estado de direito, momento final da eticidade grega, já evidenciava o surgimento do Si a partir do seio da compacta substância ética grega. Agora, em um movimento por Hegel denominado cultura (Bildung, no sentido de cultura intelectual, política, econômica e social), que se estende desde a Idade Média até o século XVIII,  veremos o movimento do Si para recuperar sua substância ético-espiritual.

A individualidade não se reconhece mais no mundo que está diante dela, embora ele seja obra da extrusão (Entaüsserung) e desessenciamento (Entwesung) da própria individualidade. Portanto, a consciência-de-si realiza a obra de construção do mundo mediante sua alienação (Entfremdung), mas não o considera como sua obra (Werk). A consciência-de-si aliena seu ser natural, sua certeza imediata sobre si mesma e, com isso, anima a vida espiritual coletiva. A cultura é, portanto, obra da alienação.

 

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Par. 485

 

Embora haja uma unidade entre o Si e a essência, o mundo ou o ser –  unidade que é o espírito (Geist) – cada um desses elementos formadores da unidade se engaja em uma relação de recíproca alienação. Esta situação em que o que, de fato, ocorre não é assimilado pelos membros da relação origina a oposição entre o aquém – oposição entre a pessoa e o mundo objetivo, a consciência efetiva – e o além – unidade entre o Si e a essência, a consciência pura.

Assim sendo, a unidade e a oposição, consciência pura e consciência efetiva, são, para nós, os lados de um mesmo movimento – da substância à consciência-de-si e desta àquela: o espírito como unidade consciente-de-si entre o Si e a essência. Para as consciências imersas na experiência, há, contudo, dois movimentos de duas realidades estranhas uma à outra: a alienação.

 

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Par. 486

 

Este parágrafo é aquele em que Hegel completa a explicação do que está em jogo no sexto capítulo da Fenomenologia do Espírito e descreve, em linhas gerais, as etapas a percorrer pela consciência nesta seção.

A efetividade objetiva presente diante da consciência não é, portanto, a vida verdadeira da consciência. Sua verdadeira vida está no além. Sua essência e sua efetividade (sua realidade) não mais coincidem. Mas, como dito acima, o todo em cujo seio a consciência desenvolve sua experiência também está cindido: eles formarão os momentos do conflito entre iluminismo (Aufklärung) e (Glauben).  O resultado desse conflito será o retorno ao Si (Selbst), o qual não mais reconhecerá uma cisão entre ele e a efetividade objetiva, o mundo subjetivo e o objetivo. Prova disso é a Revolução Francesa, apesar também dos excessos da liberdade absoluta e do terror, cujo pressuposto é o fato de que a realidade objetiva é posta, reposta e transposta pela consciência mesma. Prova disso também o é a crítica à fé, ao mundo do além por ela propugnado. Todas formas de “em-si-mesmo” são jogadas por terra em favor do “para-si”, e os objetos se tornam aquilo que é útil à consciência,  que está a seu bel prazer e dispor.

Vencida a alienação está, mas não eliminados os problemas estão.  Pois o “Si que se apreende a si mesmo” como a realidade objetiva, e a realidade objetiva como a si mesmo não conhecerá limites e produzirá uma liberdade irrefreada, ilimitada, absoluta, enfim.

Completada a formação (Bildung) da consciência na França, ela, agora, entra na terra da consciência moral na Alemanha, já que, aqui, a experiência do Si ciente de sua verdade ganhará uma tonalidade ética.

 

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I. O mundo do espírito alienado de si, par. 487

 

O mundo do espírito é duplo: 1) o mundo da consciência efetiva em que ela está alienada da efetividade objetiva; 2) o mundo da consciência pura em que a consciência está em dois mundos, o mundo do além e o do aquém. São, na verdade, duas formas de alienação.

O mundo da consciência pura é o mundo da fé. Não se trata, aqui, portanto, de uma investigação sobre a essência da fé ou mesmo da religião, pois o que está em jogo é “a fuga do mundo efetivo” que toma neste contexto a forma da fé.  Pois, há também uma outra “fuga do mundo efetivo”, a saber, o conceito, o puro pensar, o pensamento afastado da efetividade, embora conceito e fé venham travar uma oposição.

O Si não pode estar certo de si mesmo em ambas fugas, pois, nelas, ele não encontra a si mesmo, não está presente para si mesmo. Onde ele está, ele não se encontra, onde ele se encontra, ele não está.

 

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a. A cultura e seu reino de efetividade, par. 488

 

Apesar de que a consciência e seu mundo ou sua substância se considerem como entidades autônomas, a existência do mundo e a efetividade da consciência têm como base o movimento de alienação da personalidade. Trata-se da renúncia ao ser-aí natural, ou em termos de contrato social, da renúncia de seus direitos à comunidade. Hegel, no entanto, não opera neste contexto com a teoria do contrato social, pois, nela, a parte tem prioridade sobre o todo. Não é o caso também da universalidade retratada no capítulo imediatamente anterior, a universalidade abstrata do império romano na qual o indivíduo ainda mantém seu ser-aí natural. A universalidade aqui efetivada é aquela obtida pelo vir-a-ser, o devir da consciência, capaz, então, de construir o mundo da cultura como obra do indivíduo mediante a renúncia ao ser-aí natural por parte deste mesmo indivíduo, assim como o indivíduo é obra da cultura, mesmo que ele não se reconheça nela.

 

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Par. 489

 

A cultura (Bildung), como obra da alienação ou extrusão do ser natural, é a vigência e efetividade do indivíduo. A extrusão é, então, a meta do indivíduo, bem como a mediação que permite o movimento da consciência para a substância e desta para aquela. Portanto, sem cultura, o indivíduo não tem poder e efetividade. Portanto, manter sua particularidade – sua “espèce” (Diderot, O Sobrinho de Rameau, p. 107 e 127, tradução para o português) – é não ter efetividade e poder. A contradição em que a espèce se encontra consiste em querer dar efetividade ao particular, ao individual. A individualidade “específica” é, na verdade, uma individualidade tão ridícula quanto desprezível.

Nota: espèce: “Trata-se de um neologismo que aparece no século XVIII, com um significado derrisório específico, pois caracteriza o indivíduo de certa consideração social que não faz jus ao mérito desta e presta-se a reforçar o seu aviltamento” (Diderot, O Sobrinho de Rameau, nota de pé de página no. 142, p. 107, tradução para o português).

 

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Par. 490

 

Neste parágrafo Hegel ressalta o movimento que tanto efetiva e instaura o poder da individualidade quanto descreve a efetivação da substância. Este é o movimento que expressa o espírito como unidade consciente-de-si entre o Si e a essência (par. 485). Portanto, do ponto de vista do espírito, O Si e seu mundo se interpenetram e se formam positivamente, ao passo que a alienação é a realização do espírito negativamente, pois o Si e seu mundo são estranhos um ao outro.

 

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Par. 491

 

Para ela, e isto deve ser levado em consideração, não há unidade entre a consciência-de-si e seu objeto, gerando, com isso, uma rigidez entre estes momentos. O pensamento que cai vítima desta rigidez rotula os opostos como bem e mal, aprofundando, portanto, a rigidez e a oposição. Para nós, contudo, há uma espiritualização (Begeistung) entre ela e seu objeto, o individual e o coletivo, a parte e o todo.

Cada um é através de um outro, passando ao seu oposto, e, com isso, se livrando não da moralidade, mas daquela simplista e superficial que fixa o bem e o mal em figuras rigidamente opostas. Uma ontologia equivocada gera uma péssima moral. A recíproca é também verdadeira?

 

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Par. 492

 

O movimento da natureza é uma antecipação da vida do espírito: trata-se de uma mesma substância que se apresenta em suas formas internas diferenciadas: ar, água, fogo e terra. O espírito, por sua vez, é ser-em-si, ser-para-si e ser-em-si-e-para-si, mas, aqui no reino do espírito, ele se torna consciente de seu movimento e, portanto, do que ele é.

 

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Par. 493

 

O movimento do espírito será considerado, de acordo com a proposta da alienação aqui investigada, na consciência pura, isto é, como essente em-si e pensamento, e na consciência efetiva, como essência objetiva. Primeiramente, a atenção será concentrada na consciência pura e, portanto, na sua separação entre o bem, pois ele é o em-si, e o mal, pois ele é o ser para-si. De um lado, a glorificação do bem universal, existindo independentemente de quaisquer circunstâncias particulares, ao passo que, de outro lado, a singularidade encarna o egoísmo do ser para-si que se volta para si e negligencia o universal.

 

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Par. 494

 

O mundo moderno não está mais dividido nas esferas da família, vila e do Estado, como ainda era o caso na eticidade grega. Ele introduziu o mercado entre a família e o Estado. O espírito teve sua fase sem o mercado, mas, agora, no mundo moderno, ele se apresenta também na concorrência entre os indivíduos no mercado. Neste sentido, ele é tão indispensável quanto o Estado e não pode ser negligenciado pela consciência efetiva como a esfera do mal, ao passo que o Estado recebe o atributo do bem, pois representa o universal.

O indivíduo singular busca seus interesses egoístas e, com isso, produz a riqueza universal. Portanto, o indivíduo dedicado à riqueza tem uma vida universal e espiritual, já que ele conjuga o singular e o universal, ao passo que também o Estado articula-os, porque ele representa a igualdade de todos indivíduos e, enquanto tal, não é apenas ser em-si, mas também ser para outro. Ele, como obra dos indivíduos, não se esgota em si mesmo, mas se abre aos indivíduos que dele participam.

Enfim, Estado e riqueza gozam de uma vida espiritual, são tanto o ser em-si quanto o ser para-si, e o rótulo de bem e mal respectiva e unilateralmente a eles atribuído não se justifica mais.

 

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Par. 495

 

O movimento operado pela consciência é unilateral, pois os rótulos de bem e mal são atribuídos respectivamente ao Estado e à riqueza. Hegel lança mão do juízo (Urteil) para expressar a unilateralidade da consciência pura. O Juízo, Ur = origem + Teil = parte, partição, especulativamente interpretado, é a divisão interna de uma mesma e única totalidade, de tal forma que suas partes, sujeito e predicado, são manifestações distintas de uma mesma totalidade.

Neste sentido, portanto, o Estado e a riqueza são manifestações de um só e mesmo espírito, de tal modo que eles são corporificações da vida do espírito. Assim sendo, é absurdo afirmar que apenas o Estado seja a realização da vida espiritual, ao passo que a riqueza é uma realidade desprovida de vida espiritual, daí, sua classificação como reino do mal.

O segundo movimento da vida da consciência, a consciência efetiva, joga por terra a interpretação simplista e ingênua da consciência pura e apresenta o Estado e a riqueza como atividades do espírito.

O terceiro movimento, a ser visto no próximo parágrafo, contempla a dupla relação da consciência com o em-si e o para-si.

 

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Par. 496

 

O em-si e o para-si tornam-se, de fato, um “ser espiritual efetivo”, já que eles são o que são graças ao poder do espírito: o em-si, o bem, e o para-si, o mal, são postos pela consciência-de-si, que, ora, estabelece sua igualdade com a realidade objetiva (o bem), ora, estabelece sua desigualdade com ela (o mal). O critério da verdade é ser para-si da consciência-de-si.

Com isso,  o em-si, o bem, e o para-si, o mal, e suas figurações na consciência-de-si efetiva perdem o caráter imediato e estático iniciais e são “reflexão em si mesmas”, ser espiritual em que as determinações opostas passam uma na outra: o ser-em-si no para-si, o bem no mal, a “mediação do espírito movimenta ... a determinidade imediata e faz dela algo outro”.

 

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Par. 497

 

Primeiramente, Hegel relata a experiência da consciência-de-si que se relaciona com o Estado. O Estado é a encarnação do bem, pois ele significa a igualdade da consciência-de-si com a realidade objetiva. Mas, como o agir singular é negado no poder do Estado, surge, então, a desigualdade entre a consciência-de-si e o Estado. Este passa a ser, aos seus olhos, o mal.

A riqueza representa o bem, por sua vez. Aqui, no entanto, Hegel não afirma ainda que ela passa a ser a encarnação do mal. Mas, ele chama atenção para a desigualdade na produção universal da riqueza, resultado de uma contingência, deixando entrever uma conjunção da desigual e contingente distribuição da riqueza com o lado maligno da riqueza. Mas, parece que Hegel se recusa, especificamente neste parágrafo, a fazer esta associação do gozo universal da riqueza com o benefício negado a uma parte dos membros da sociedade e com as carências não supridas, interpretando tal associação como o lado mau da riqueza.

Na Filosofia do Direito (par. 200), são citadas as circunstâncias que favorecem ou desfavorecem a participação na riqueza da sociedade por parte de seus membros: capital, habilidade em fazer negócio, talentos físicos e intelectuais, etc.

Tanto na Fenomenologia do Espírito quanto na Filosofia do Direito a desigualdade na distribuição da riqueza é sublinhada. Nesta última, o enfrentamento da pobreza é considerado como “a questão importante ... a questão que, de forma precípua, tortura e movimenta as sociedades modernas” (par. 244, adendo). O tema da pobreza e sua persistência terão uma fortuna agitada não só na realidade social do mundo ocidental, mas também nas posições teóricas contemporâneas e sucessoras àquela de Hegel. Basta, p. ex., lembrar o pensamento de Marx a respeito deste tema.

 

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Par. 498

 

Agora, assistiremos à passagem dos opostos um no outro. A consciência-de-si não é somente ser para-si, mas também ser em-si, e este último aspecto deve ser também levado em consideração, pois ambos constituem a vida espiritual da consciência. Com isso, as qualificações do Estado e da riqueza sofrerão uma alteração.

O Estado, antes caracterizado como sendo mau, agora recebe o atributo de bom, já que a consciência-de-si reconhece nele sua essência e, portanto, sua igualdade com ele.

A riqueza, por sua vez,  até então interpretada como sendo o bom, passa ao atributo oposto do mau, visto que a experiência da riqueza traz consigo a consciência passageira e a fruição da própria consciência como singularidade essente para si e, deste modo, em desigualdade com sua essência universal. O lado negativo da riqueza reside, portanto, no afastamento de uma vida universal, pois, nela, o indivíduo se volta para a particularidade de seus bens.

 

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Par. 499

 

Hegel comenta as experiências dos parágrafos 497 e 498. Em ambas, constatamos uma dupla igualdade e uma dupla desigualdade. Os dois juízos, todavia, são vistos pela consciência-de-si alienada como separados ou de forma abstrata, de tal forma que ela não os interpreta como suas diferentes figuras, manifestações de uma só consciência, mas como duas consciências qualitativamente heterogêneas.

 

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Par. 500

 

A obra de alienação da consciência-de-si continua. A igualdade com o Estado e a riqueza, portanto, é assumida pela consciência na forma de uma consciência nobre. O Estado, ela o vê como sua essência e se vê obrigada a servi-lo.

Se no Estado ela vê a realização do ser em-si, na riqueza, por seu turno, ela encontra seu ser para-si, sem que isto perturbe sua realização universal no Estado.

 

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Par. 501

 

O outro lado, o lado da desigualdade com o Estado e a riqueza, também se faz presente e assuma a figura da consciência vil. Desconfia do Estado, goza a riqueza, mas reconhece seu caráter efêmero e sua desigualdade com sua essência. Portanto, a consciência vil parece aqui estar longe tanto de seu ser em-si quanto do seu ser para-si.

No entanto, como ela representa o lado da desigualdade, é de se esperar que a dinâmica do processo da consciência-de-si alienada tenha a consciência vil como seu motor, já que sua insatisfação é o elemento que deve introduzir movimento em uma realidade que a consciência nobre que ver imóvel, estática.

 

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Par. 502

 

O movimento que agora presenciaremos é, em termos lógicos, a passagem do juízo para o silogismo. Assim como o silogismo é formado pelos juízos, no sentido da lógica dialética hegeliana, enquanto eles são divisões internas e imanentes da totalidade do silogismo, assim também a relação de exterioridade dos momentos anteriores – os pensamentos do bem e do mal e a existência do Estado e da riqueza, os juízos ainda não espiritualizados das experiências descritas acima –  tem de se elevar à unidade interna do silogismo. Nele, os momentos anteriores são vistos como estações de uma totalidade dinâmica, em movimento, de tal modo que a deficiência de cada um destes momentos se torna evidente quando contraposta ao todo no qual cada um dos momentos está inserido.

Neste sentido, portanto, cada momento tem seu lado de verdade e inverdade e não pode reivindicar a posse absoluta da verdade.

 

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Par. 503

A consciência nobre, como sujeito, está diante do poder do Estado, como predicado, de acordo com o juízo espiritual. Mediante o heroísmo do serviço, a virtude, o sujeito, o singular, se eleva ao universal do Estado, e este, por sua vez, desce ao ser-ai ou à existência (Dasein) efetiva. A consciência nobre nega seus fins privados para viver de acordo com o serviço ao Estado. A pessoa é, portanto, a consciência nobre efetiva.

 

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Par. 504

A virtude torna a consciência nobre respeitada diante de si e dos outros, bem como o Estado, como universal inicialmente meramente pensado, passa a ser um universal essente, poder efetivo. Um tal movimento faz da consciência-de-si nobre efetividade verdadeira, e do poder do Estado, o verdadeiro que tem vigência.

 

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Par. 505

A consciência nobre não realiza, entretanto, uma alienação integral de si, mas uma parcial, já que ela reserva a si “seu puro Si”, sua vontade. Com isso, o poder do Estado é privado de um caráter pessoal, não tem vontade, e aquele que ocupa este poder não se sabe ainda como consciência-de-si que se sabe como poder do Estado. Por isso, então, para o ocupante de tal poder sua singularidade não está imediatamente ligada ao universal, pois vale seu arbítrio, em que a individualidade não se vê restringida pela lei.

O vassalo orgulhoso representa a consciência nobre parcialmente alienada de si mesma, pois, como vassalo, serve ao poder do Estado, e, como orgulhoso, vive da honra a ele concedida pela opinião universal, pois a honra significa a perfeita sintonia entre a consciência nobre e o que é a verdade para a opinião universal. Por isso, então, sua linguagem, diante de uma eventual vontade do poder do Estado, seria o conselho. Tanto mais legitimado, porque a consciência nobre depende desta vontade e não pode lhe impor a sua, já que, como vassalo, não está à altura do ocupante do poder do Estado.

 

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Par.  506

Como o poder do Estado ainda não é uma vontade individual regida pelo universal, ele permanece indeciso diante dos vários conselhos a ele dirigidos, não consolida, de fato, um governo, pois não decide entre os diversos conselhos e é vítima do arbítrio do ocupante do poder do Estado, e, com isso, não é também um poder efetivo. Portanto, não se efetiva a passagem, comentada no parágrafo 504, do universal pensado ao universal essente.

Pelo lado da singularidade, da consciência que se quer como nobre, resta um resíduo de ser para-si, porque sua alienação não foi integral. Ela só aceita o Estado, na medida em que este não é a encarnação de uma vontade singular.  Com isso, seu conselho torna-se suspeito e ambíguo, já que ele pode ser dado em favor dos interesses privados da consciência nobre e não em favor do bem universal. Surge, então, uma desigualdade entre ela e o Estado. Ora, uma tal desigualdade é típica da consciência vil, sempre pronta para a revolta.

Assim sendo, as deficiências do poder do Estado não fazem dele um poder efetivo, mas, ao contrário, abstrato, meramente pensado, ao passo que a consciência nobre adquire determinação própria à consciência vil. O movimento do juízo espiritual descrito no parágrafo 503 não alcança, portanto, efetividade.

 

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Par. 507

A extrusão promovida pela consciência nobre, aquela que é a mais completa e perfeita como sacrifício do ser para-si – por ocasião da morte  –  tem lugar, contudo, no âmbito do essente, portanto, do imediato e natural, e não naquele da consciência, portanto, do mediado e reflexivo. Assim sendo, a verdadeira extrusão tem de combinar a perfeição do sacrifício, tal como ele acontece na morte, com o retorno da consciência para si mesma, tal como ele não acontece na morte, retirando, assim, da extrusão seu caráter natural e essente: “unidade idêntica de si mesmo (do ser para-si) e de si como o oposto”. Com isso, então, “o espírito interior separatista dos estamentos”, o Si por excelência, descrito no parágrafo 506, por um lado, tem de alienar-se, negando o resíduo de ser para-si a ele ainda atrelado, e, por outro, o poder do Estado tem de elevar-se ao Si, recebendo o que lhe faltava, a fim de que o Si se torne efetivo, e o Estado, por sua vez,  se torne vontade decisória que se afasta do arbítrio.

 

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Par. 508

 

A linguagem tem, agora, por tarefa realizar o movimento descrito no parágrafo imediatamente anterior. Em experiências passadas, ela era uma forma ou meio de expressão do conteúdo. No mundo da eticidade, ela expressava lei e mandamento, no mundo da efetividade, visto anteriormente, conselho.  Na experiência em questão, a linguagem tem a si mesma como objeto, expressa a si mesma. Ela possui a força do falar (Kraft des Sprechens), a qual leva a efeito o que tem de ser feito.

A força da linguagem consiste em elevar o Si de sua condição singular à universalidade. Ao falar, o Si expressa tanto sua singularidade quanto sua universalidade, lembrando a dialética da certeza sensível, na qual o falar desmascarava a verdade puramente imediata defendida pela certeza sensível, já que o falar expressava a singularidade e a universalidade do ser: o “desvanecer (desvanecer do Si singular e imediato) é ..., ele mesmo, imediatamente seu permanecer” (permanecer do Si como singular e universal).

 

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Par. 509

Para a consciência alienada, os extremos do Si, da consciência nobre, e do universal, do poder do Estado, subsistem em si mesmos independentemente da totalidade espiritual que os envolve, assim como esta é independente daqueles.

O oposto deste movimento consiste naquela reciprocidade em que o espírito se cinde nos extremos e, neste sentido, “faz” os extremos, bem como os extremos fazem a totalidade espiritual.

 

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Par. 510

O presente parágrafo explicita a dilaceração dos extremos do poder do estado e da consciência nobre por esta última, bem como o papel da linguagem nesta dilaceração.

Um dos extremos é constituído pelo poder do Estado dilacerado entre o universal a ser obedecido e a vontade essente para si mesma, ao passo que a consciência nobre está cindida entre a obediência ao universal, o heroísmo do serviço, e o resíduo de ser para-si da vontade individual.

Em ambos casos, temos uma oposição entre o universal e o puro Si, os quais são também momentos da linguagem, pois ela vincula o singular e o universal. Neste trânsito entre eles atuará aquela força da linguagem acima mencionada. Mas como ambos estão aqui na figura da abstração, falta ao Si elevar-se ao universal, de tal modo que o poder do Estado seja respeitado como honra e consciência-de-si. Falta ao poder do Estado descer à singularidade e receber o Si tornando-se uma vontade decisória.

 

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Par. 511

 

O movimento para superar a dilaceração através da linguagem começa com a consciência nobre, pois ela representa o extremo do Si.

A linguagem, cumprindo seu papel através do heroísmo da adulação, eleva a singularidade ao ápice da universalidade, transformando o monarca em um poder ilimitado: L’État c’ est moi de Luís XIV é a ilustração desta figura . O nome que lhe é dado o distingue das outras consciências-de-si singulares, ao mesmo tempo que o poder do Estado, mediante a “força do falar”, recebe o Si, mas um Si ilimitado, que tem os nobres em torno de si como adornos.

 

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Par. 512

 

Com o recebimento do Si por parte do poder do Estado, a consciência nobre recebe, por seu turno, a universalidade efetiva. Mas, no momento em que ele recebe o Si, ele se torna realidade efetivamente espiritual, a saber, momento da consciência-de-si. Como momento, o poder do Estado não pode reivindicar o âmbito integral da consciência-de-si, também ocupado, como já vimos, pela riqueza. O Si, portanto, não pode se restringir ao momento do poder do Estado. Sendo uma realidade efetivamente espiritual, o Si passa do Estado à riqueza. Mas, com isso, o Si se torna contingente, pois ele tem de extrusar sua universalidade ao passar do Estado à riqueza.

Pode também ser dito que a consciência nobre leva para o poder do Estado a alienação parcial de si mesma, de tal forma que a vida universal dedicada ao Estado, o heroísmo do serviço, é substituída por interesses privados.

 

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Par. 513

A diferença entre a consciência nobre e a consciência vil ou baixa desaparece. Vêm à tona a (a) desigualdade da consciência nobre consigo mesma, pois mantém sua vontade própria ao prestar sua honra ao Estado e ao alienar sua própria interioridade, (b) a desigualdade dela com o Estado, pois ela não o serve mais, mas o submete aos seus interesses.

 

Arquivo mp3: 39  

Par. 514

A consciência nobre encontra, portanto, seu Si, sua identidade em uma realidade objetiva: os bens materiais, a riqueza constituem sua verdade. Como este é o seu caso, agora, não lhe resta outra alternativa a não ser agradecer ao benfeitor, ao monarca absoluto, por lhe dar o que ela agora pensa que ela é.

 

Arquivo mp3: 40  

Par. 515

A riqueza assinala a vida do indivíduo centrada nele mesmo, negligenciando o universal, a essência ou Estado como encarnação do universal. Trata-se, portanto, daquele momento em que o indivíduo mergulha em sua singularidade e faz desta sua essência. O Estado como essência universal desaparece do horizonte de suas metas. Ele só lhe serve como meio para seus interesses próprios.

 

Arquivo mp3: 41 

Par. 516

O objeto é a essência da consciência nobre, além do fato de que esta essência objetiva lhe é alheia, estranha. Mas, se esta essência é a realidade objetiva alheia e estranha, isto significa que ela está sujeita ao poder de outras consciências, que podem lhe privar de sua identidade. Sua essência objetiva é contingente e depende do poder de ação de outras consciências sobre ela.

 

Arquivo mp3: 42 

 Par. 517

A consciência não está “coisificada”, reificada como condição eterna e imutável. Esta é uma condição passageira, segundo nosso ponto de vista. Mas, para ela, sua verdade são uma coisa e as circunstâncias, contingências e arbítrios a ela associados. A personalidade se transforma em impessoalidade, e cresce o sentimento de abjeção e revolta contra a reificação de si mesma. A dilaceração enseja a destruição da distinção entre o bem e o mal, o justo e o injusto. A alienação da consciência em um mundo de coisas traz consigo a decadência moral.

 

Arquivo mp3: 43 

Par. 518

A consciência é uma “elasticidade absoluta”: se dirige ao outro, mas retorna a si mesma, sem se perder no outro. Neste momento de sua experiência, ela, por assim dizer, imagina que não tem mais esta elasticidade e mergulha nos objetos, sem retornar a si mesma. Mas, a revolta do cliente contra esta alienação da pessoa na impessoalidade é prova da inevitabilidade desta elasticidade, já que a revolta mostra o esforço da consciência de não se deixar identificar com a coisa.

 

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Par. 519

O rico (consciência benfeitora) e o cliente (consciência receptora da riqueza) são consciências alienadas no mundo da coisa. O rico, no entanto, se vê em uma melhor situação, pois ele doa a riqueza, ou seja, aquilo que ambas consciências acreditam ser a verdadeira identidade de ambas. Cresce no rico, pois, a arrogância, pois ele é o doador da identidade das consciências, ao passo que no cliente se desenvolve a revolta por ver a si mesmo como coisa e receber seu Si de um outro.

O rico não vê, pois, diante dele mesmo o vulcão prestes a explodir, a revolta que dilacera todo critério de verdade e zomba do mundo do rico que tem uma aparência tão sólida, mas que, na verdade, está à beira de seu desmoronamento.

 

Arquivo mp3: 4546 

Par. 520

A revolta do cliente se expressa como linguagem da lisonja ignóbil, a adulação que corrói o sistema de crenças existentes.  A consciência revoltada é caracterizada por Hegel, primeiramente, como juízo idêntico (A é A): o sujeito e o predicado são a própria personalidade. Mas, a personalidade, neste caso, está transformada em coisa. Portanto, a melhor caracterização da consciência é o juízo infinito: A é nãoA, a pessoa é não-pessoa, a pessoa é a coisa.

 

Arquivo mp3: 47 

Par. 521

O parágrafo comenta o fim dos critérios que separavam a consciência nobre e a vil, o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, o Estado e a riqueza.  A consciência honesta se espanta diante deste fim, porque ela quer uma “essencialidade permanente”. A consistência dos valores da cultura até então existente, no entanto, não se sustenta mais.

 

Arquivo mp3: 48 

Par. 522

A consciência dilacerada não só comete a fraude, mas também não tem a mínima vergonha de dizê-la. Neste sentido, há uma coerência entre  prática e  discurso. É, no entanto, uma “coerência incoerente”, já que prática e discurso não pretendem deixar nada de pé, nenhuma verdade a não ser a absoluta igualdade da consciência dilacerada consigo mesma.

A melodia de uma nota só agradável aos ouvidos da consciência tranqüila, a consciência honesta do filósofo do parágrafo anterior, não consegue combater a melodia polissilábica da consciência dilacerada, representada pelo sobrinho de Rameau. Esta passagem do livro de Diderot ilustra a força da consciência dilacerada diante daquela que se considera como portadora da verdade.

 

Arquivo mp3: 49 

Par. 523

A consciência simples e reta, novas expressões para a consciência honesta e tranqüila, não consegue fixar um critério necessário da verdade e do bem para se contrapor à consciência dilacerada, pois esta transforma o bem em mal e este, naquele. A inversão de todas determinidades atropela a essencialidade permanente.

 

Arquivo mp3: 50 

Par. 524

 

A consciência simples exige, no entanto, a saída desta cultura decadente e de inversão de todas as determinidades. A solução estaria no retorno ao coração natural, à natureza e à inocência anteriores ao mundo sem sentido da consciência dilacerada.

Um tal retorno, contudo, nos aproxima mais da condição animal do que nos revela a condição humana. A volta à natureza não está à altura do grau de cultura e racionalidade alcançado pela consciência. Seria uma solução muito simples, infantil e ingênua para uma consciência tão complexa. A solução está no mundo do espírito, de seu retorno a si mesmo a partir de alienação no mundo das coisas.

 

Arquivo mp3: 51 

Par. 525

O retorno do espírito a si mesmo já começou enquanto a consciência dilacerada é o riso sarcástico direcionado à existência, a si mesma e à confusão que reina na coletividade. O Si é a verdade que permanece diante de todos objetos que perdem sua verdade e consistência. E, de fato, o Si em dupla feição: o Si voltado  para o mundo do aquém como sua finalidade e conteúdo imediato e o Si ligado ao mundo do além como seu objeto e sua verdade. São, portanto, as próximas figuras da consciência, respectivamente: a pura inteligência e a fé.

 

Arquivo mp3: 52 

Par. 526

Visto na perspectiva  do Si que se volta para o mundo do aquém, tudo se torna vão e o próprio Si também. Além disto, todos os critérios de valores são revolvidos e refutados. A linguagem da dilaceração expressa a vaidade de tudo e a dissolução de toda verdade.

Neste sentido, a alienação da consciência parece fadada a ser o destino do Si. A elasticidade absoluta do Si se faz, no entanto, presente para poder retirar a consciência de sua extrusão nas coisas. Pois, ao negar tudo, resta apenas o sujeito que tudo nega. Com isso, tem início a retirada da consciência de sua alienação nas coisas, já que o Si como Si, e não mais o Si como coisa, se percebe como a verdade.

 

Arquivo mp3: 53

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