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- Memória e
História na História da Psicologia:
- Dois
Exemplos de Produção de Documentos
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- Memory and
History in the History of Psychology: Two Examples of Document’s
Production
-
- Marina
Massimi
Universidade de São
Paulo
Brasil
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Resumo
O
trabalho aborda a discussão das relações entre memória e
história na área da história da psicologia. Num primeiro
momento, aprofunda-se o estudo destas relações nas diversas
perspectivas epistemológicas da historiografia moderna –
sobretudo no que diz respeito à questão da produção do
documento histórico. Num segundo momento, mostra-se a
existência das referidas relações por meio de exemplos
inerentes a trabalhos de pesquisa desenvolvidos pela autora.
Evidencia-se que a prática e a experiência quotidiana encurtam
as distâncias entre os campos da história e da memória. Com
efeito, a determinação explícita dos sujeitos históricos de
preservar a memória das experiências vividas, permite a
constituição de acervos importantes para a pesquisa
historiográfica.
Palavras-chave:
história da psicologia, história e memória, história da
psicologia brasileira.
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Abstract
This
study examines the relationship between memory and history in
the history of psychology and in the history of science. In the
first part, we consider the relationships between memory and
history in the light of epistemological views of modern
historiography - specially in what concerns the production of
historical documents. In the second part, the relationships
between memory and history are presented through examples drawn
from some of the author´s research works. It is concluded that
practice and everyday experience shorten the distance the areas
of history and memory. Indeed, the explicit decision of the
historical subjects to preserve memory of the lived experiences,
allows for the constitution of important archives for
historiographical investigation.
Keywords:
history of Psychology, history
and memory, history of Brazilian Psychology.
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- "A memória a
que estão inerentes as palavras,
revolvendo-as, faz vir ao espírito as
próprias coisas, de
que as palavras são sinais"
- Agostinho, O
Mestre
-
- À Miguel Rolando Covian
- In memoriam
Introdução
Um dos esforços mais
consistentes da historiografia definida como História Nova foi
buscar apreender as relações existentes entre a história
vivida das comunidades e gerações humanas e o esforço científico
para descrever, pensar e explicar esta evolução, ou seja, a ciência
histórica. De fato, o que sobrevive no tempo não é o conjunto daquilo
que ocorreu e foi produzido no passado, mas o fruto da escolha realizada
por indivíduos, grupos, sociedades e pelos homens dedicados ao estudo
da história. A memória disponibiliza, portanto, o material para o
trabalho da história: por meio da própria memória, os atores do
processo histórico buscam salvar o passado para servir a edificação
do presente e do futuro. Neste sentido, ela é também constitutiva de
identidade.
No que diz respeito à
história da psicologia e à história das ciências na cultura
brasileira, a urgência de reatar as relações entre memória e
história é evidente. Com efeito, nesse domínio, a perda da memória
constitui-se num aspecto especialmente grave, pois, por exemplo, o
esquecimento das próprias raízes culturais e da própria história
dificultou à psicologia brasileira o reconhecimento de seus traços
originais e a elaboração, a partir desses, de um projeto cultural e
científico autônomo.
Por outro lado, se é verdade
que no âmbito da cultura brasileira, a preservação da memória
histórica constitui-se numa tarefa urgente e árdua devido à falta de
consciência histórica que acarretou o descuido ou, em muitos casos, a
destruição sistemática de documentos, arquivos e bibliotecas, fica
clara a importância de - ao mesmo tempo em que se empreende esta tarefa
–, valorizar todas aquelas realidades e iniciativas promovidas por
pessoas ou comunidades, onde as relações entre história e memória
são bem presentes e marcantes como expressões de uma experiência
culturalmente significativa. No presente trabalho, apresentaremos uma
discussão epistemológica sobre as relações entre memória e
história e dois exemplos a respeito de iniciativas destinadas à
preservação da memória e à promoção da pesquisa histórica.
Relações entre história e
memória no que diz respeito à produção do documento histórico:
diversas posições epistemológicas
Abordaremos a discussão das
relações entre memória e história, no que diz respeito a uma etapa
essencial do trabalho historiográfico: a produção do documento
histórico.
Nesse âmbito, a definição
das relações entre memória e história implica numa definição
não-positivista, não-naturalista do que é o documento, o dado da
história, em sua dúplice significação ativa (alguém que dá)
e passiva (alguém que recebe). O documento é a peça
fundamental do conhecimento histórico: os documentos são vestígios,
ou seja "marcas, perceptíveis pelos sentidos, deixadas por um
fenômeno impossível de captar em si mesmo" (Bloch, 1987, p. 52).
A historiografia moderna assume
posições contrastantes acerca do processo de constituição do
documento histórico e da contribuição que a este processo dão por um
lado o trabalho da memória – pessoal e coletiva – e, por outro, a
metodologia dos historiadores.
A historiadora francesa Règine
Pernoud parte da afirmação de que a história é vida. A história é
"procura do vivido, esse vivido a partir do qual nós vivemos a
nossa própria vida". Ora, "tudo o que é vida, é dado, é
transmitido" (Pernoud, 1978, p. 152). "A história é vida,
precisamente porque ela comporta um dado, qualquer coisa que preexiste
nos nossos conceitos, nos nossos preconceitos, nos nossos sistemas"
(Pernoud, 1978, p. 153).
O
dado da história está lá, mas é preciso certamente, durante muito
tempo, trabalho e respeito, para o explorar e expor em seguida a sua
substância. Compreende-se perfeitamente que alguns prefiram escapar
disso pelo desdém; é infinitamente mais fácil desenvolver idéias;
ora a ignorância do documento permite apenas desenvolver idéias com
toda a serenidade, para tirar delas sistemas histórico-sociológicos
satisfatórios para o espírito. O que é fecundo na pesquisa histórica
é pelo contrário, esse obstáculo, ou, antes, esses obstáculos
perpetuamente encontrados, que se opõem aos nossos preconceitos e nos
conduzem a modificar as nossas idéias preconcebidas (Pernoud, 1978, p.
155).
O dado enquanto algo
transmitido pressupõe assim a intencionalidade do sujeito –
individual ou comunitário – da memória.
Na perspectiva da
historiografia positivista, o papel do historiador na produção do
documento é determinante, pois depende dele avaliar a credibilidade do
testemunho que o documento oferece. Por sua vez, somente a convergência
de diversos testemunhos autorizados, possibilita alcançar a verdade
histórica. Nessa ótica, ao documento é reservada uma função
meramente passiva, pois sua verdade histórica depende exclusivamente da
avaliação crítica do historiador, sendo assim exclusivo fruto da
decisão desse. Restringe-se assim a atuação da memória, enquanto
intencionalidade humana criadora do vestígio objeto da investigação
historiográfica.
A produção do documento por
meio de uma operação de deslocamento é enfatizada na abordagem da operação
histórica, proposta por Michel De Certeau. (2000). Para ele, o
historiador produz o documento, por meio do "gesto de
separar, de reunir, de transformar em documentos certos objetos
distribuídos de outra maneira", criando assim "uma nova
distribuição cultural" (2000, p. 81). A seu ver, o historiador
"longe de aceitar os dados, os constitui" (Certeau, 2000, p.
81) por meio de uma operação técnica. Certeau considera a criação
dos Arquivos modernos como frutos desta atitude, cuja instituição
deve-se à combinação de um grupo de eruditos, de lugares
– as bibliotecas – e de práticas (cópia, impressão,
comunicação, classificação etc.). Nestes Arquivos, a distribuição
dos documentos responde a necessidades novas e adquire sentidos
diferentes dos originários. De fato, esses documentos são utilizados
de outra maneira, como por exemplo no caso em que um arquivo familiar ou
religioso torna-se disponível ao historiador; ou quando objetos como
utensílios, composições culinárias, cantos, imagens populares,
tornam-se documentos históricos. Tal processo, segundo Certeau, implica
em "transformar alguma coisa, que tinha sua posição e seu papel,
em alguma outra coisa que funciona independentemente"
(Certeau, 2000, p. 83). Por outro lado – Certeau admite –, o
trabalho histórico é inseparável de sua origem e desta depende: o
discurso do passado é o discurso de alguém ausente, feito ausente pela
morte. Todavia, ao articular uma troca entre vivos, a prática
histórica contradiz seu próprio postulado: "Esta é a história
– afirma Certeau –. Um jogo da vida e da morte prossegue no calmo
desdobramento de um relato, ressurgência e denegação da origem,
desvelamento de um passado morto e resultado de uma prática
presente" (Certeau, 2000, p. 57).
Talvez a contradição
assinalada no fazer história assim como concebido por Certeau,
dependa da desconsideração do papel da memória. A crítica
recentemente feita por Paul Ricoeur (2000) à concepção das relações
entre memória e história proposta pela Historiografia dos Anais (vide
Jacques Le Goff, 1992) parece referir-se a esta questão. Segundo tal
concepção, a memória seria objeto da história, mas não sujeito; a
história cessaria de ser parte da memória e a memória tornar-se-ia
parte da história. Desse modo, porém, observa Ricoeur, toma corpo a
"tentação de despojar a memória de sua função matriz da
história." (Ricoeur, 2000, p. 504, tradução nossa). Com efeito,
a história não visa apenas o ausente, mas também o vivente de outros
tempos, o ator da história que já aconteceu. Por este motivo, não
podemos – segundo Ricoeur- dissolver o papel da memória no campo da
história.
Retomando uma sugestão de
Pomian (1998), Ricoeur sugere que as relações entre história e
memória devam ser abordadas numa perspectiva histórica. As posições
historiográficas acima descritas, que desqualificam o papel da memória
no trabalho histórico, têm uma origem comum, que reside na ruptura
operada pela historiografia moderna com a concepção da memória
acontecimental própria da tradição judaica e medieval; essa
ruptura possibilitou a desvinculação entre conhecimento histórico com
relação à memória. Com efeito, estas tradições postulam a
coincidência entre memória e acontecimento histórico: a memória
carrega a presença do acontecimento ao qual ela se refere. E por causa
disto, na perspectiva do judaísmo, por exemplo, há uma resistência da
memória a ser processada pela historiografia, recusando-se uma
historiografia separada da memória coletiva. Por outro lado, a
coincidência entre o desenvolvimento da historiografia e o processo de
secularização próprio da modernidade culmina na proposta da crítica
histórica elaborada pela historiografia positivista do século XX,
em que a noção de fonte ou documento histórico acaba tornando-se
independente da noção de testemunha no sentido intencional do termo.
Tal ruptura entre história e memória seria também responsável pela
crise da memória ao longo do século XIX. Entre as conseqüências
antropológicas e culturais mais difundidas desta ruptura encontra-se a
perda do sentido do passado pelo esquecimento sistemático ou pela
destruição de seus sinais, e a solidão produzida pela interrupção
do diálogo entre o passado e o presente próprio da memória
compartilhada.
Ricoeur refere-se à tentativa
realizada por Maurice Halbwachs (no livro Mémoire collective)
para reintegrar a história à memória individual e coletiva. Por um
lado, na perspectiva halbwachiana, a história se anima pela
consideração da experiência humana que a originou, e a memória
pessoal e coletiva se enriquece pelo passado histórico, o qual torna-se
progressivamente nosso. A descoberta dos documentos do passado
torna-se ocasião para descobrir as ilhotas de passado conservadas no
presente, pois "não há solução de continuidade entre a
sociedade que lê a história e os grupos testemunhas ou atores dos
acontecimentos relatados" (citado em Ricoeur, 2000, p. 516). Desse
modo, aos poucos, a memória histórica reintegra-se à memória vivente
em direção à reconstituição de uma memória integral que agrupe
memória individual e coletiva e memória histórica. Todavia Halbwachs,
ao considerar o trabalho dos historiadores contemporâneos a ele, Marc
Bloch e Lucien Febvre, aponta dois traços que lhe parecem separar, de
modo irremediável, o domínio da história e o da memória: à
continuidade da memória vivente opõe-se a descontinuidade induzida
pelo trabalho de periodização realizado pelo historiador, o qual se
interessa de modo prevalente pelas diferenças e descontinuidades; à
pluralidade de memórias coletivas opõe-se a busca de universalidade
própria do conhecimento histórico.
Por outro lado, podemos
observar que estes mesmos historiadores, citados por Halbwachs, vêm a
reconhecer a importância da memória e a presença de uma certa
intencionalidade dos atores, no que diz respeito à produção e a
disponibilização dos documentos históricos. Segundo Bloch,
os
documentos não surgem aqui ou acolá por artes mágicas. A sua
presença ou a sua ausência, em determinado fundo de arquivo, em
determinada biblioteca, em determinado terreno, depende de causas
humanas que de maneira alguma escapam à análise; e os problemas que a
sua transmissão levanta, longe de se encontrarem somente ao alcance dos
exercícios de técnicos, respeitam, eles mesmos, o mais íntimo da vida
do passado, porque aquilo que se encontra afinal em jogo não é nem
mais nem menos do que a passagem da memória das coisas através das
gerações (1987, p. 66).
Com efeito, a existência da
fonte histórica depende da disposição de sociedades e comunidades
para "organizar racionalmente, com as suas memórias, o
conhecimento de si mesma" (Bloch, 1987, p. 69), atacando a
negligência do esquecimento e a censura.
Em suma, a prática e a
experiência cotidiana parecem encurtar as distâncias entre os campos
da memória e da história.
Apresentaremos a seguir alguns
exemplos de atividades de preservação e apresentação do dado
histórico possibilitadas por escolhas realizadas pela memória dos
atores do processo histórico. A determinação explícita dos sujeitos
históricos em questão de preservar a memória das experiências
vividas permitiu a constituição de acervos importantes para a pesquisa
historiográfica. Buscaremos aprofundar as características desta
intencionalidade que motiva em sujeitos individuais e comunitários o
esforço e interesse pela preservação dos sinais do passado vivido.
Relações entre história e
memória no que diz respeito à produção do documento histórico: o
exemplo dos Jesuítas
O primeiro caso refere-se à
história do período colonial: trata-se do Arquivo da Companhia de
Jesus em Roma, que contém correspondências, textos, documentos,
referentes à presença da mesma no Brasil.
Desde as origens, a
preservação da memória e o conhecimento da própria história, são
encarados como atividades essenciais para a edificação e a
estabilidade do corpo místico da Companhia. Na quarta parte das Constituições,
capítulo 1, é recomendado atualizar a memória dos fundadores dos
colégios e dos benfeitores da Companhia por meio de vários gestos,
tais como a celebração de uma missa mensal, a oferta de um círio e de
outros objetos simbólicos, as orações constantes. Na oitava parte das
Constituições, em que se trata dos Meios de unir com a
cabeça e entre si aqueles que estão dispersos, indica-se, entre
outros, o valor da correspondência epistolar entre súditos e
superiores com intercâmbio freqüente de informações entre uns e
outros e o conhecimento das notícias vindas das diversas partes. Na
medida do possível, recomenda-se que as cartas aos superiores sejam
escritas com freqüência – variável de uma vez por semana a uma vez
por mês (conforme a distância geográfica) – e os superiores, por
sua vez, devem se empenhar em escrever cartas mensais aos seus súditos.
Além disto, para melhor informação, cada casa e colégio deverá
enviar ao Provincial a cada quatro meses uma breve lista de todos os que
vivem na casa e também dos mortos, mencionando as qualidades de cada
um. Por sua vez, cada Provincial enviará, a cada quatro meses, cópia
destas listas ao Padre Geral da Companhia. "Assim, conclui-se,
será possível ter maior conhecimento das pessoas e dirigir melhor todo
o corpo da Companhia" (Loyola, 1997, p. 212). As cópias originais
e reproduções desses documentos são enviadas e guardadas no Arquivo
Geral da Cúria jesuítica, em Roma, onde reside o Padre Geral, o qual
"deverá estar ao corrente de tudo, a fim de melhor poder olhar por
tudo" (idem, p. 242). Tratam-se de cartas, catálogos, listas e
outras espécies de documentos que atualmente representam fontes
importantes de nossas pesquisas em história das idéias psicológicas
no Brasil dos séculos XVI ao XVIII.
Por sua vez, a memória é uma
qualidade importante para o Superior – enquanto cabeça – poder
garantir a unidade do corpo da Companhia. Não se trata, porém, de um
esforço meramente individual. O Padre Geral deverá ser acompanhado por
colaboradores que ajudem "a recordar-lhe o dever de atender as
múltiplas tarefas de seu ofício", pois, "um homem só não
poderia ter memória suficiente para se lembrar de tantas coisas"
(Loyola, 1997, pp. 242-3). Deverá ter um secretário, homem "que o
acompanhe habitualmente e seja a sua memória, o seu braço para tudo o
que tem de escrever e fazer" (idem, p. 244).
A própria identidade da
Companhia baseia-se na memória de sua tradição, na qual são
definidos os parâmetros fundamentais de sua maneira de ser:
Por
Instituto da Companhia entende-se tanto nossa forma de viver e atuar
como os documentos escritos em que se propõe essa forma autêntica e
legitimamente. Alguns desses documentos são verdadeiras leis, outros
inspiram e iluminam nossa espiritualidade ou nosso modo de proceder ou
exprimem as sãs tradições da Companhia (Constituições, 1997, p.
259).
Exemplos de tais documentos
são os Exercícios espirituais, a Fórmula do Instituto,
as Constituições, o Exame Geral. Os parâmetros
essenciais da identidade da Ordem definidos por esses documentos não
podem ser mudados devendo ser adaptados às necessidades de cada época.
Por causa disso, o conhecimento da própria história e das tradições
é elemento fundamental da formação de cada jesuíta, bem como a
preservação da memória dos referidos documentos, seja enquanto
memória viva e atualizada na existência de cada membro, seja enquanto
memória histórica a ser conservada no Arquivo da Companhia.
Todas estas razões explicam o
cuidado com a conservação dos documentos no âmbito da Companhia de
Jesus e com a disponibilização dos mesmos aos pesquisadores. No que
diz respeito à acessibilidade dos documentos da Ordem, cabe-nos
corrigir aqui o juízo formulado por M. Bloch, quando lastima que a
Companhia de Jesus não consinta ao profano o acesso às suas
coleções, o que a seu ver condenaria a permanecer
"desesperadamente obscuros tantos problemas da história
moderna" (1987 p. 69). Este juízo deve ser contextualizado e
limitado às específicas circunstâncias do momento histórico
vivenciado por Bloch, pois é preciso reconhecer que atualmente o
Arquivo da Cúria Geral de Roma, é aberto a todos os pesquisadores;
além disto permite e favorece a reprodução de seus documentos por
meio das mais modernas e avançadas tecnologias.
Relações entre história e
memória no que diz respeito à produção do documento histórico: o
Arquivo do Professor Miguel Rolando Covian
Outro exemplo mais recente diz
respeito a pesquisas e atividades de preservação de documentos
históricos realizadas por nosso grupo de pesquisa junto ao Arquivo do
Professor Dr. Miguel Rolando Covian, importante cientista argentino que
teve atuação significativa no âmbito da neurofisiologia brasileira,
especialmente junto à Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Covian,
falecido há dez anos, deixou à Faculdade um importante acervo composto
por uma biblioteca e um arquivo pessoal muito significativo.
Entre os documentos do Arquivo
constam algumas coleções importantes de correspondência epistolar
(dentre as quais cartas – em alguns períodos, diárias – enviadas e
recebidas de seu mestre, o cientista argentino que fora o primeiro
Prêmio Nobel latino-americano em Fisiologia, Bernardo Houssay),
esboços de aulas, conferências e artigos, apontamentos de vária
natureza, organizados e classificados pelo próprio autor. Dentre eles,
ressaltamos dois documentos como especialmente significativos para a
compreensão da estrutura dinâmica das relações entre memória e
história. O primeiro documento é uma carta enviada por Covian a um
padre franciscano argentino (Padre Pio), com o qual ele travava intensa
correspondência. Nesta carta, entre outras coisas, Covian relata a
experiência vivenciada ao reencontrar, entre seus papéis, antigas
cartas recebidas por parentes e colegas (entre as quais as de Houssay).
O professor narra que após ter pensado, num primeiro momento, em jogar
fora estes papéis, passou a reler algumas cartas, o que lhe
proporcionou um exercício de memória e modificou radicalmente sua
atitude. Eis o relato do próprio Covian:
Andaba
un poco tristón por un hecho curioso. Aqui, en mi sala de la Faculdad,
comencé a arreglar antigua correspondencia oficial. Mi primera
reacción fué la de tirar todo a canasto. Pero comencé a leer las
cartas de mi madre, cariñosas como solo una madre puede ser, las bien
redactas de Roberto de Francia (estuvo 3 años en Paris), Buenos Aires,
Panamá, Campinas, etc. (sic), las de Houssay, sorprendentemente intimas
y cariñosas, las afectuosas y no siempre entendibles del padre
Montanchez (le voy a enviar copia). El hecho es que como en una tela de
cine, reví mi vida con gente muy amada que ha formado parte de mi vida,
hoy todos desaparecidos. Con la muerte de cada uno de ellos un poco de
mi vida se fue yendo. Reorganicé las cartas, no leí todas, las iré
leyendo poco a poco. De allí mi estado de ánimo, no del todo alegre
(24 de agosto de 1988, de Claraval. Carta n.° 10: correspondência com
Padre Pio).
Já em carta anterior, Covian
coloca a atividade de redigir cartas num ambiente contemplativo como o
era o mosteiro de Claraval, que ele costumara freqüentar, como
atividade essencial para cultivar a "amizade com os outros e
consigo mesmo":
Dice
usted con toda sinceridad y humildad que tiene cierta resistencia para
escribir por falta de habito. A mi me sucede lo contrario, por una
simples razón: si a los 33 años de vida en el Brasil agrego los que
viví fuera de latino- america, ellos suman mas de la mitad de mi vida.
Por consiguiente la comunicación con los míos, contando los amigos, ha
sido por carta y en estilo familiar, coloquial. (...) Otra razón para
escribir: escribo para acompañarme. Hoy domingo, estoy completamente
solo en casa. (...) Usted preguntará: porque no va a la casa de un
amigo? (...) Bueno, la respuesta seria: porque me gusta estar solo y me
acompaño escribiendo. En este momento es usted el compañero de
dialogo. Cuando termine, mi dialogante, será mi hermano Carlos, o la
señora de Tito, o Mozart en un disco o el autor de alguno libro. Si,
soy un bicho raro, pero, lo importante es ser coherente con el modo de
ser que Dios nos ha dado. Esto evita deformaciones, tan comunes en el
mundo de hoy, y lleva a un desarrollo armónico de la personalidad, base
de unión con Dios y por consigüinte de felicidad (20 de março de
1988, de Claraval (1). Destinatário: Padre
Pio. Carta n.° 6: correspondência com Padre Pio).
A partir de então, Covian
passa a guardar e organizar seus papéis. É expressivo desta nova
atitude um segundo documento por nós encontrado. Trata-se de uma
verdadeira reconstrução de sua própria história, científica e
pessoal, organizada por ele mesmo, na qual refere-se inclusive outros
documentos (fotos, cartas, rascunhos) reproduzidos em forma de slides. O
texto é focalizado a partir de uma experiência, resumida numa frase
que fornece a chave interpretativa da reconstrução histórica,
intencionalmente colocada por Covian. A frase, escrita num papel avulso,
comparece inicialmente no conjunto das folhas, e é depois transcrita
novamente no final do texto (a repetição evidencia a relevância da
mesma), referindo-se à relação mestre-discípulo:
A
relação Mestre-Discípulo não admite passado: não se foi discípulo,
se é sempre discípulo de alguém. A relação Mestre-Discípulo
é uma profunda relação humana de ordem espiritual, por cujo
intermédio o Maestro (sic) imprime um caráter na alma de seu
discípulo que lhe acompanha durante toda sua vida, pois esta relação
transcende o temporal para permanecer num contínuo presente (DOC
Arquivo Covian - Pasta: Educação. Apontamentos de palestra ministrada
a convite dos professores José Alberto de Souza Freitas e Antonio
Gabriel Atta Ortega y Gasset).
Após iniciar os apontamentos
com a afirmação de que "Toda Filosofia deve respirar uma
atmosfera jovial e desportiva, se quer seriamente ser filosofia e não
pedantismo", Covian reconstrói a história de
seu "Mestre" Bernardo Houssay por
tópicos e utilizando-se de recursos audiovisuais: Metas de
Universidade; Houssay (diapositivos), Maestro C. Bernard (diapositivo),
Barus Menendez, Meu conhecimento de Houssay, Morte de Houssay. Coloca
inclusive alguns trechos citados por Houssay.
"... pois esta relação
transcende o temporal para permanecer num contínuo presente":
a descoberta de que na experiência histórica individual existem
dimensões que possuem o teor da eternidade, é possivelmente o que
levara Covian a formular sua proposta de elaboração e transmissão de
uma vivência pessoal, reconhecida como paradigmática e pedagógica
para si e para outros.
Parece-nos este ser um caso exemplar do
processo pelo qual um sujeito histórico torna-se capaz de valorizar a
experiência guardada na memória e de elaborá-la até criar um
documento histórico disponível para os leitores do presente e do
futuro. É assim que hoje olhamos surpresos e um tanto comovidos, estes
papéis guardados numa pequena sala do mesmo prédio onde Miguel Rolando
Covian viveu, pesquisou, lecionou, sofreu, mas, sobretudo, amou sua
vida, sua história e todos os encontros que o marcavam de modo
indelével e que alimentavam nele a gratidão pela vida. E talvez seja
esta gratidão o núcleo mais secreto e vital da memória.
Referências Bibliográficas
Bloch,
M. (1987). Introdução à história. (M. C. Santos, Trad.).
Lisboa: Publicações Europa-América. (Original publicado em 1974).
Certeau,
M. de (2000). A Escrita da História. (M. L. Menezes, Trad.).
São Paulo: Forense Universitária. (Original publicado em 1975).
Halbwachs,
M. (1950). La Mémoire Collective. Paris, PUF.
Le
Goff, J. (1992). História e Memória.(I. Ferreira, B. Leitão, e
S. Ferreira Borges, Trad.) Campinas: Editora Unicamp.
Loyola,
I. (1997). Constituições da Companhia de Jesus e normas
complementares. São Paulo: Loyola.
Marrou,
H.-I. (1978). Sobre o conhecimento histórico. (R. C. de Lacerda,
Trad.). Rio de Janeiro: Zahar Editora. (Original publicado em 1954).
Pernoud,
R. (1978). O mito da Idade Media. (M. de C. Santos, Trad.). Lisboa:
Edições Europa-América. (Original publicado em 1977).
Pinheiro.
A. S. (org.) (1991). Opúsculos Selectos da Filosofia Medieval.
Braga: Faculdade de Filosofia.
Ricoeur,
P. (2000). La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Seuil.
Documentos
Arquivo Covian - Pasta: Educação, apontamentos de palestra ministrada a
convite dos professores José Alberto de Souza Freitas e Antonio Gabriel
Atta Ortega y Gasset. Faculdade de Medicina, Campus USP, Ribeirão Preto.
Documentos
Arquivo Covian – Correspondência com Houssay - Faculdade de Medicina,
Campus USP, Ribeirão Preto.
Notas
(1)
carta de 17 de abril de 1987 : descreve Claraval. "Le escribo desde
este monasterio cisterciense situado a unos 100 kms de Ribeirão Preto,
adonde vine el marte a pasar la Semana santa. (...). Son muy simples y muy
buenos. Me dan un aposento "cardinalicio" donde instalo mi
máquina de escribir y aparato de música a base de cassettes que yo mismo
grabo. Por la ventana veo un paisaje donde las colinas imitan curvas,
donde la blancura no existe mas que en las nubes y el dia se verte
suavemente, pues es au muy temprano". (voltar)
Nota sobre a autora
Marina
Massimi é Livre Docente e trabalha junto ao Departamento de Psicologia e
Educação na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de
São Paulo, Campus de Ribeirão Preto, Brasil. Especialista na área de
História das Idéias Psicológicas na Cultura Luso-Brasileira.
Contatos:
Avenida Bandeirantes, 3900 - 14040-901 - Ribeirão Preto (SP) /
Brasil. - e-mail: mmarina@ffclrp.usp.br.
- Fone: (55) (16) 6023802 - Fone: (55) (16) 6308738.
- Data de
recebimento: 14/12/2001
- Data de aceite:
26/02/2002
-
- Memorandum, Abr/2002
- Belo Horizonte:
UFMG; Ribeirão Preto: USP.
- http://www.fafich.
ufmg.br/~memorandum/artigos02/massimi02.htm
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