Massimi, M. (2002) Memória e História na História da Psicologia: Dois Exemplos de Produção de Documentos. Memorandum, 2, 2-12. Retirado em   /  /  , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/ ~memorandum/ artigos02/massimi02.htm.

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Memória e História na História da Psicologia:
Dois Exemplos de Produção de Documentos
 
Memory and History in the History of Psychology: Two Examples of Document’s Production
 
Marina Massimi
Universidade de São Paulo
Brasil
 
 

Resumo

O trabalho aborda a discussão das relações entre memória e história na área da história da psicologia. Num primeiro momento, aprofunda-se o estudo destas relações nas diversas perspectivas epistemológicas da historiografia moderna – sobretudo no que diz respeito à questão da produção do documento histórico. Num segundo momento, mostra-se a existência das referidas relações por meio de exemplos inerentes a trabalhos de pesquisa desenvolvidos pela autora. Evidencia-se que a prática e a experiência quotidiana encurtam as distâncias entre os campos da história e da memória. Com efeito, a determinação explícita dos sujeitos históricos de preservar a memória das experiências vividas, permite a constituição de acervos importantes para a pesquisa historiográfica.

Palavras-chave: história da psicologia, história e memória, história da psicologia brasileira.

Abstract

This study examines the relationship between memory and history in the history of psychology and in the history of science. In the first part, we consider the relationships between memory and history in the light of epistemological views of modern historiography - specially in what concerns the production of historical documents. In the second part, the relationships between memory and history are presented through examples drawn from some of the author´s research works. It is concluded that practice and everyday experience shorten the distance the areas of history and memory. Indeed, the explicit decision of the historical subjects to preserve memory of the lived experiences, allows for the constitution of important archives for historiographical investigation.

Keywords: history of Psychology, history and memory, history of Brazilian Psychology.

 
"A memória a que estão inerentes as palavras, revolvendo-as, faz vir ao espírito as próprias coisas, de que as palavras são sinais"
Agostinho, O Mestre
 
À Miguel Rolando Covian
In memoriam

Introdução

Um dos esforços mais consistentes da historiografia definida como História Nova foi buscar apreender as relações existentes entre a história vivida das comunidades e gerações humanas e o esforço científico para descrever, pensar e explicar esta evolução, ou seja, a ciência histórica. De fato, o que sobrevive no tempo não é o conjunto daquilo que ocorreu e foi produzido no passado, mas o fruto da escolha realizada por indivíduos, grupos, sociedades e pelos homens dedicados ao estudo da história. A memória disponibiliza, portanto, o material para o trabalho da história: por meio da própria memória, os atores do processo histórico buscam salvar o passado para servir a edificação do presente e do futuro. Neste sentido, ela é também constitutiva de identidade.

No que diz respeito à história da psicologia e à história das ciências na cultura brasileira, a urgência de reatar as relações entre memória e história é evidente. Com efeito, nesse domínio, a perda da memória constitui-se num aspecto especialmente grave, pois, por exemplo, o esquecimento das próprias raízes culturais e da própria história dificultou à psicologia brasileira o reconhecimento de seus traços originais e a elaboração, a partir desses, de um projeto cultural e científico autônomo.

Por outro lado, se é verdade que no âmbito da cultura brasileira, a preservação da memória histórica constitui-se numa tarefa urgente e árdua devido à falta de consciência histórica que acarretou o descuido ou, em muitos casos, a destruição sistemática de documentos, arquivos e bibliotecas, fica clara a importância de - ao mesmo tempo em que se empreende esta tarefa –, valorizar todas aquelas realidades e iniciativas promovidas por pessoas ou comunidades, onde as relações entre história e memória são bem presentes e marcantes como expressões de uma experiência culturalmente significativa. No presente trabalho, apresentaremos uma discussão epistemológica sobre as relações entre memória e história e dois exemplos a respeito de iniciativas destinadas à preservação da memória e à promoção da pesquisa histórica.

Relações entre história e memória no que diz respeito à produção do documento histórico: diversas posições epistemológicas

Abordaremos a discussão das relações entre memória e história, no que diz respeito a uma etapa essencial do trabalho historiográfico: a produção do documento histórico.

Nesse âmbito, a definição das relações entre memória e história implica numa definição não-positivista, não-naturalista do que é o documento, o dado da história, em sua dúplice significação ativa (alguém que dá) e passiva (alguém que recebe). O documento é a peça fundamental do conhecimento histórico: os documentos são vestígios, ou seja "marcas, perceptíveis pelos sentidos, deixadas por um fenômeno impossível de captar em si mesmo" (Bloch, 1987, p. 52).

A historiografia moderna assume posições contrastantes acerca do processo de constituição do documento histórico e da contribuição que a este processo dão por um lado o trabalho da memória – pessoal e coletiva – e, por outro, a metodologia dos historiadores.

A historiadora francesa Règine Pernoud parte da afirmação de que a história é vida. A história é "procura do vivido, esse vivido a partir do qual nós vivemos a nossa própria vida". Ora, "tudo o que é vida, é dado, é transmitido" (Pernoud, 1978, p. 152). "A história é vida, precisamente porque ela comporta um dado, qualquer coisa que preexiste nos nossos conceitos, nos nossos preconceitos, nos nossos sistemas" (Pernoud, 1978, p. 153).

O dado da história está lá, mas é preciso certamente, durante muito tempo, trabalho e respeito, para o explorar e expor em seguida a sua substância. Compreende-se perfeitamente que alguns prefiram escapar disso pelo desdém; é infinitamente mais fácil desenvolver idéias; ora a ignorância do documento permite apenas desenvolver idéias com toda a serenidade, para tirar delas sistemas histórico-sociológicos satisfatórios para o espírito. O que é fecundo na pesquisa histórica é pelo contrário, esse obstáculo, ou, antes, esses obstáculos perpetuamente encontrados, que se opõem aos nossos preconceitos e nos conduzem a modificar as nossas idéias preconcebidas (Pernoud, 1978, p. 155).

O dado enquanto algo transmitido pressupõe assim a intencionalidade do sujeito – individual ou comunitário – da memória.

Na perspectiva da historiografia positivista, o papel do historiador na produção do documento é determinante, pois depende dele avaliar a credibilidade do testemunho que o documento oferece. Por sua vez, somente a convergência de diversos testemunhos autorizados, possibilita alcançar a verdade histórica. Nessa ótica, ao documento é reservada uma função meramente passiva, pois sua verdade histórica depende exclusivamente da avaliação crítica do historiador, sendo assim exclusivo fruto da decisão desse. Restringe-se assim a atuação da memória, enquanto intencionalidade humana criadora do vestígio objeto da investigação historiográfica.

A produção do documento por meio de uma operação de deslocamento é enfatizada na abordagem da operação histórica, proposta por Michel De Certeau. (2000). Para ele, o historiador produz o documento, por meio do "gesto de separar, de reunir, de transformar em documentos certos objetos distribuídos de outra maneira", criando assim "uma nova distribuição cultural" (2000, p. 81). A seu ver, o historiador "longe de aceitar os dados, os constitui" (Certeau, 2000, p. 81) por meio de uma operação técnica. Certeau considera a criação dos Arquivos modernos como frutos desta atitude, cuja instituição deve-se à combinação de um grupo de eruditos, de lugares – as bibliotecas – e de práticas (cópia, impressão, comunicação, classificação etc.). Nestes Arquivos, a distribuição dos documentos responde a necessidades novas e adquire sentidos diferentes dos originários. De fato, esses documentos são utilizados de outra maneira, como por exemplo no caso em que um arquivo familiar ou religioso torna-se disponível ao historiador; ou quando objetos como utensílios, composições culinárias, cantos, imagens populares, tornam-se documentos históricos. Tal processo, segundo Certeau, implica em "transformar alguma coisa, que tinha sua posição e seu papel, em alguma outra coisa que funciona independentemente" (Certeau, 2000, p. 83). Por outro lado – Certeau admite –, o trabalho histórico é inseparável de sua origem e desta depende: o discurso do passado é o discurso de alguém ausente, feito ausente pela morte. Todavia, ao articular uma troca entre vivos, a prática histórica contradiz seu próprio postulado: "Esta é a história – afirma Certeau –. Um jogo da vida e da morte prossegue no calmo desdobramento de um relato, ressurgência e denegação da origem, desvelamento de um passado morto e resultado de uma prática presente" (Certeau, 2000, p. 57).

Talvez a contradição assinalada no fazer história assim como concebido por Certeau, dependa da desconsideração do papel da memória. A crítica recentemente feita por Paul Ricoeur (2000) à concepção das relações entre memória e história proposta pela Historiografia dos Anais (vide Jacques Le Goff, 1992) parece referir-se a esta questão. Segundo tal concepção, a memória seria objeto da história, mas não sujeito; a história cessaria de ser parte da memória e a memória tornar-se-ia parte da história. Desse modo, porém, observa Ricoeur, toma corpo a "tentação de despojar a memória de sua função matriz da história." (Ricoeur, 2000, p. 504, tradução nossa). Com efeito, a história não visa apenas o ausente, mas também o vivente de outros tempos, o ator da história que já aconteceu. Por este motivo, não podemos – segundo Ricoeur- dissolver o papel da memória no campo da história.

Retomando uma sugestão de Pomian (1998), Ricoeur sugere que as relações entre história e memória devam ser abordadas numa perspectiva histórica. As posições historiográficas acima descritas, que desqualificam o papel da memória no trabalho histórico, têm uma origem comum, que reside na ruptura operada pela historiografia moderna com a concepção da memória acontecimental própria da tradição judaica e medieval; essa ruptura possibilitou a desvinculação entre conhecimento histórico com relação à memória. Com efeito, estas tradições postulam a coincidência entre memória e acontecimento histórico: a memória carrega a presença do acontecimento ao qual ela se refere. E por causa disto, na perspectiva do judaísmo, por exemplo, há uma resistência da memória a ser processada pela historiografia, recusando-se uma historiografia separada da memória coletiva. Por outro lado, a coincidência entre o desenvolvimento da historiografia e o processo de secularização próprio da modernidade culmina na proposta da crítica histórica elaborada pela historiografia positivista do século XX, em que a noção de fonte ou documento histórico acaba tornando-se independente da noção de testemunha no sentido intencional do termo. Tal ruptura entre história e memória seria também responsável pela crise da memória ao longo do século XIX. Entre as conseqüências antropológicas e culturais mais difundidas desta ruptura encontra-se a perda do sentido do passado pelo esquecimento sistemático ou pela destruição de seus sinais, e a solidão produzida pela interrupção do diálogo entre o passado e o presente próprio da memória compartilhada.

Ricoeur refere-se à tentativa realizada por Maurice Halbwachs (no livro Mémoire collective) para reintegrar a história à memória individual e coletiva. Por um lado, na perspectiva halbwachiana, a história se anima pela consideração da experiência humana que a originou, e a memória pessoal e coletiva se enriquece pelo passado histórico, o qual torna-se progressivamente nosso. A descoberta dos documentos do passado torna-se ocasião para descobrir as ilhotas de passado conservadas no presente, pois "não há solução de continuidade entre a sociedade que lê a história e os grupos testemunhas ou atores dos acontecimentos relatados" (citado em Ricoeur, 2000, p. 516). Desse modo, aos poucos, a memória histórica reintegra-se à memória vivente em direção à reconstituição de uma memória integral que agrupe memória individual e coletiva e memória histórica. Todavia Halbwachs, ao considerar o trabalho dos historiadores contemporâneos a ele, Marc Bloch e Lucien Febvre, aponta dois traços que lhe parecem separar, de modo irremediável, o domínio da história e o da memória: à continuidade da memória vivente opõe-se a descontinuidade induzida pelo trabalho de periodização realizado pelo historiador, o qual se interessa de modo prevalente pelas diferenças e descontinuidades; à pluralidade de memórias coletivas opõe-se a busca de universalidade própria do conhecimento histórico.

Por outro lado, podemos observar que estes mesmos historiadores, citados por Halbwachs, vêm a reconhecer a importância da memória e a presença de uma certa intencionalidade dos atores, no que diz respeito à produção e a disponibilização dos documentos históricos. Segundo Bloch,

os documentos não surgem aqui ou acolá por artes mágicas. A sua presença ou a sua ausência, em determinado fundo de arquivo, em determinada biblioteca, em determinado terreno, depende de causas humanas que de maneira alguma escapam à análise; e os problemas que a sua transmissão levanta, longe de se encontrarem somente ao alcance dos exercícios de técnicos, respeitam, eles mesmos, o mais íntimo da vida do passado, porque aquilo que se encontra afinal em jogo não é nem mais nem menos do que a passagem da memória das coisas através das gerações (1987, p. 66).

Com efeito, a existência da fonte histórica depende da disposição de sociedades e comunidades para "organizar racionalmente, com as suas memórias, o conhecimento de si mesma" (Bloch, 1987, p. 69), atacando a negligência do esquecimento e a censura.

Em suma, a prática e a experiência cotidiana parecem encurtar as distâncias entre os campos da memória e da história.

Apresentaremos a seguir alguns exemplos de atividades de preservação e apresentação do dado histórico possibilitadas por escolhas realizadas pela memória dos atores do processo histórico. A determinação explícita dos sujeitos históricos em questão de preservar a memória das experiências vividas permitiu a constituição de acervos importantes para a pesquisa historiográfica. Buscaremos aprofundar as características desta intencionalidade que motiva em sujeitos individuais e comunitários o esforço e interesse pela preservação dos sinais do passado vivido.

Relações entre história e memória no que diz respeito à produção do documento histórico: o exemplo dos Jesuítas

O primeiro caso refere-se à história do período colonial: trata-se do Arquivo da Companhia de Jesus em Roma, que contém correspondências, textos, documentos, referentes à presença da mesma no Brasil.

Desde as origens, a preservação da memória e o conhecimento da própria história, são encarados como atividades essenciais para a edificação e a estabilidade do corpo místico da Companhia. Na quarta parte das Constituições, capítulo 1, é recomendado atualizar a memória dos fundadores dos colégios e dos benfeitores da Companhia por meio de vários gestos, tais como a celebração de uma missa mensal, a oferta de um círio e de outros objetos simbólicos, as orações constantes. Na oitava parte das Constituições, em que se trata dos Meios de unir com a cabeça e entre si aqueles que estão dispersos, indica-se, entre outros, o valor da correspondência epistolar entre súditos e superiores com intercâmbio freqüente de informações entre uns e outros e o conhecimento das notícias vindas das diversas partes. Na medida do possível, recomenda-se que as cartas aos superiores sejam escritas com freqüência – variável de uma vez por semana a uma vez por mês (conforme a distância geográfica) – e os superiores, por sua vez, devem se empenhar em escrever cartas mensais aos seus súditos. Além disto, para melhor informação, cada casa e colégio deverá enviar ao Provincial a cada quatro meses uma breve lista de todos os que vivem na casa e também dos mortos, mencionando as qualidades de cada um. Por sua vez, cada Provincial enviará, a cada quatro meses, cópia destas listas ao Padre Geral da Companhia. "Assim, conclui-se, será possível ter maior conhecimento das pessoas e dirigir melhor todo o corpo da Companhia" (Loyola, 1997, p. 212). As cópias originais e reproduções desses documentos são enviadas e guardadas no Arquivo Geral da Cúria jesuítica, em Roma, onde reside o Padre Geral, o qual "deverá estar ao corrente de tudo, a fim de melhor poder olhar por tudo" (idem, p. 242). Tratam-se de cartas, catálogos, listas e outras espécies de documentos que atualmente representam fontes importantes de nossas pesquisas em história das idéias psicológicas no Brasil dos séculos XVI ao XVIII.

Por sua vez, a memória é uma qualidade importante para o Superior – enquanto cabeça – poder garantir a unidade do corpo da Companhia. Não se trata, porém, de um esforço meramente individual. O Padre Geral deverá ser acompanhado por colaboradores que ajudem "a recordar-lhe o dever de atender as múltiplas tarefas de seu ofício", pois, "um homem só não poderia ter memória suficiente para se lembrar de tantas coisas" (Loyola, 1997, pp. 242-3). Deverá ter um secretário, homem "que o acompanhe habitualmente e seja a sua memória, o seu braço para tudo o que tem de escrever e fazer" (idem, p. 244).

A própria identidade da Companhia baseia-se na memória de sua tradição, na qual são definidos os parâmetros fundamentais de sua maneira de ser:

Por Instituto da Companhia entende-se tanto nossa forma de viver e atuar como os documentos escritos em que se propõe essa forma autêntica e legitimamente. Alguns desses documentos são verdadeiras leis, outros inspiram e iluminam nossa espiritualidade ou nosso modo de proceder ou exprimem as sãs tradições da Companhia (Constituições, 1997, p. 259).

Exemplos de tais documentos são os Exercícios espirituais, a Fórmula do Instituto, as Constituições, o Exame Geral. Os parâmetros essenciais da identidade da Ordem definidos por esses documentos não podem ser mudados devendo ser adaptados às necessidades de cada época. Por causa disso, o conhecimento da própria história e das tradições é elemento fundamental da formação de cada jesuíta, bem como a preservação da memória dos referidos documentos, seja enquanto memória viva e atualizada na existência de cada membro, seja enquanto memória histórica a ser conservada no Arquivo da Companhia.

Todas estas razões explicam o cuidado com a conservação dos documentos no âmbito da Companhia de Jesus e com a disponibilização dos mesmos aos pesquisadores. No que diz respeito à acessibilidade dos documentos da Ordem, cabe-nos corrigir aqui o juízo formulado por M. Bloch, quando lastima que a Companhia de Jesus não consinta ao profano o acesso às suas coleções, o que a seu ver condenaria a permanecer "desesperadamente obscuros tantos problemas da história moderna" (1987 p. 69). Este juízo deve ser contextualizado e limitado às específicas circunstâncias do momento histórico vivenciado por Bloch, pois é preciso reconhecer que atualmente o Arquivo da Cúria Geral de Roma, é aberto a todos os pesquisadores; além disto permite e favorece a reprodução de seus documentos por meio das mais modernas e avançadas tecnologias.

Relações entre história e memória no que diz respeito à produção do documento histórico: o Arquivo do Professor Miguel Rolando Covian

Outro exemplo mais recente diz respeito a pesquisas e atividades de preservação de documentos históricos realizadas por nosso grupo de pesquisa junto ao Arquivo do Professor Dr. Miguel Rolando Covian, importante cientista argentino que teve atuação significativa no âmbito da neurofisiologia brasileira, especialmente junto à Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Covian, falecido há dez anos, deixou à Faculdade um importante acervo composto por uma biblioteca e um arquivo pessoal muito significativo.

Entre os documentos do Arquivo constam algumas coleções importantes de correspondência epistolar (dentre as quais cartas – em alguns períodos, diárias – enviadas e recebidas de seu mestre, o cientista argentino que fora o primeiro Prêmio Nobel latino-americano em Fisiologia, Bernardo Houssay), esboços de aulas, conferências e artigos, apontamentos de vária natureza, organizados e classificados pelo próprio autor. Dentre eles, ressaltamos dois documentos como especialmente significativos para a compreensão da estrutura dinâmica das relações entre memória e história. O primeiro documento é uma carta enviada por Covian a um padre franciscano argentino (Padre Pio), com o qual ele travava intensa correspondência. Nesta carta, entre outras coisas, Covian relata a experiência vivenciada ao reencontrar, entre seus papéis, antigas cartas recebidas por parentes e colegas (entre as quais as de Houssay). O professor narra que após ter pensado, num primeiro momento, em jogar fora estes papéis, passou a reler algumas cartas, o que lhe proporcionou um exercício de memória e modificou radicalmente sua atitude. Eis o relato do próprio Covian:

Andaba un poco tristón por un hecho curioso. Aqui, en mi sala de la Faculdad, comencé a arreglar antigua correspondencia oficial. Mi primera reacción fué la de tirar todo a canasto. Pero comencé a leer las cartas de mi madre, cariñosas como solo una madre puede ser, las bien redactas de Roberto de Francia (estuvo 3 años en Paris), Buenos Aires, Panamá, Campinas, etc. (sic), las de Houssay, sorprendentemente intimas y cariñosas, las afectuosas y no siempre entendibles del padre Montanchez (le voy a enviar copia). El hecho es que como en una tela de cine, reví mi vida con gente muy amada que ha formado parte de mi vida, hoy todos desaparecidos. Con la muerte de cada uno de ellos un poco de mi vida se fue yendo. Reorganicé las cartas, no leí todas, las iré leyendo poco a poco. De allí mi estado de ánimo, no del todo alegre (24 de agosto de 1988, de Claraval. Carta n.° 10: correspondência com Padre Pio).

Já em carta anterior, Covian coloca a atividade de redigir cartas num ambiente contemplativo como o era o mosteiro de Claraval, que ele costumara freqüentar, como atividade essencial para cultivar a "amizade com os outros e consigo mesmo":

Dice usted con toda sinceridad y humildad que tiene cierta resistencia para escribir por falta de habito. A mi me sucede lo contrario, por una simples razón: si a los 33 años de vida en el Brasil agrego los que viví fuera de latino- america, ellos suman mas de la mitad de mi vida. Por consiguiente la comunicación con los míos, contando los amigos, ha sido por carta y en estilo familiar, coloquial. (...) Otra razón para escribir: escribo para acompañarme. Hoy domingo, estoy completamente solo en casa. (...) Usted preguntará: porque no va a la casa de un amigo? (...) Bueno, la respuesta seria: porque me gusta estar solo y me acompaño escribiendo. En este momento es usted el compañero de dialogo. Cuando termine, mi dialogante, será mi hermano Carlos, o la señora de Tito, o Mozart en un disco o el autor de alguno libro. Si, soy un bicho raro, pero, lo importante es ser coherente con el modo de ser que Dios nos ha dado. Esto evita deformaciones, tan comunes en el mundo de hoy, y lleva a un desarrollo armónico de la personalidad, base de unión con Dios y por consigüinte de felicidad (20 de março de 1988, de Claraval (1). Destinatário: Padre Pio. Carta n.° 6: correspondência com Padre Pio).

A partir de então, Covian passa a guardar e organizar seus papéis. É expressivo desta nova atitude um segundo documento por nós encontrado. Trata-se de uma verdadeira reconstrução de sua própria história, científica e pessoal, organizada por ele mesmo, na qual refere-se inclusive outros documentos (fotos, cartas, rascunhos) reproduzidos em forma de slides. O texto é focalizado a partir de uma experiência, resumida numa frase que fornece a chave interpretativa da reconstrução histórica, intencionalmente colocada por Covian. A frase, escrita num papel avulso, comparece inicialmente no conjunto das folhas, e é depois transcrita novamente no final do texto (a repetição evidencia a relevância da mesma), referindo-se à relação mestre-discípulo:

A relação Mestre-Discípulo não admite passado: não se foi discípulo, se é sempre discípulo de alguém. A relação Mestre-Discípulo é uma profunda relação humana de ordem espiritual, por cujo intermédio o Maestro (sic) imprime um caráter na alma de seu discípulo que lhe acompanha durante toda sua vida, pois esta relação transcende o temporal para permanecer num contínuo presente (DOC Arquivo Covian - Pasta: Educação. Apontamentos de palestra ministrada a convite dos professores José Alberto de Souza Freitas e Antonio Gabriel Atta Ortega y Gasset).

Após iniciar os apontamentos com a afirmação de que "Toda Filosofia deve respirar uma atmosfera jovial e desportiva, se quer seriamente ser filosofia e não pedantismo", Covian reconstrói a história de seu "Mestre" Bernardo Houssay por tópicos e utilizando-se de recursos audiovisuais: Metas de Universidade; Houssay (diapositivos), Maestro C. Bernard (diapositivo), Barus Menendez, Meu conhecimento de Houssay, Morte de Houssay. Coloca inclusive alguns trechos citados por Houssay.

"... pois esta relação transcende o temporal para permanecer num contínuo presente": a descoberta de que na experiência histórica individual existem dimensões que possuem o teor da eternidade, é possivelmente o que levara Covian a formular sua proposta de elaboração e transmissão de uma vivência pessoal, reconhecida como paradigmática e pedagógica para si e para outros.

Parece-nos este ser um caso exemplar do processo pelo qual um sujeito histórico torna-se capaz de valorizar a experiência guardada na memória e de elaborá-la até criar um documento histórico disponível para os leitores do presente e do futuro. É assim que hoje olhamos surpresos e um tanto comovidos, estes papéis guardados numa pequena sala do mesmo prédio onde Miguel Rolando Covian viveu, pesquisou, lecionou, sofreu, mas, sobretudo, amou sua vida, sua história e todos os encontros que o marcavam de modo indelével e que alimentavam nele a gratidão pela vida. E talvez seja esta gratidão o núcleo mais secreto e vital da memória.

Referências Bibliográficas

Bloch, M. (1987). Introdução à história. (M. C. Santos, Trad.). Lisboa: Publicações Europa-América. (Original publicado em 1974).

Certeau, M. de (2000). A Escrita da História. (M. L. Menezes, Trad.). São Paulo: Forense Universitária. (Original publicado em 1975).

Halbwachs, M. (1950). La Mémoire Collective. Paris, PUF.

Le Goff, J. (1992). História e Memória.(I. Ferreira, B. Leitão, e S. Ferreira Borges, Trad.) Campinas: Editora Unicamp.

Loyola, I. (1997). Constituições da Companhia de Jesus e normas complementares. São Paulo: Loyola.

Marrou, H.-I. (1978). Sobre o conhecimento histórico. (R. C. de Lacerda, Trad.). Rio de Janeiro: Zahar Editora. (Original publicado em 1954).

Pernoud, R. (1978). O mito da Idade Media. (M. de C. Santos, Trad.). Lisboa: Edições Europa-América. (Original publicado em 1977).

Pinheiro. A. S. (org.) (1991). Opúsculos Selectos da Filosofia Medieval. Braga: Faculdade de Filosofia.

Ricoeur, P. (2000). La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Seuil.

Documentos Arquivo Covian - Pasta: Educação, apontamentos de palestra ministrada a convite dos professores José Alberto de Souza Freitas e Antonio Gabriel Atta Ortega y Gasset. Faculdade de Medicina, Campus USP, Ribeirão Preto.

Documentos Arquivo Covian – Correspondência com Houssay - Faculdade de Medicina, Campus USP, Ribeirão Preto.

Notas

(1) carta de 17 de abril de 1987 : descreve Claraval. "Le escribo desde este monasterio cisterciense situado a unos 100 kms de Ribeirão Preto, adonde vine el marte a pasar la Semana santa. (...). Son muy simples y muy buenos. Me dan un aposento "cardinalicio" donde instalo mi máquina de escribir y aparato de música a base de cassettes que yo mismo grabo. Por la ventana veo un paisaje donde las colinas imitan curvas, donde la blancura no existe mas que en las nubes y el dia se verte suavemente, pues es au muy temprano". (voltar)

Nota sobre a autora
Marina Massimi é Livre Docente e trabalha junto ao Departamento de Psicologia e Educação na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Campus de Ribeirão Preto, Brasil. Especialista na área de História das Idéias Psicológicas na Cultura Luso-Brasileira. 

Contatos: Avenida Bandeirantes, 3900 - 14040-901 - Ribeirão Preto (SP) / Brasil. - e-mail: mmarina@ffclrp.usp.br. - Fone: (55) (16) 6023802 - Fone: (55) (16) 6308738.

 

Data de recebimento: 14/12/2001
Data de aceite: 26/02/2002
 
Memorandum, Abr/2002
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. 
http://www.fafich. ufmg.br/~memorandum/artigos02/massimi02.htm

 

 

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