Assis, R.M. (2005). A importância da educação e da tradição: lições do jornal religioso Selecta Catholica (1846 – 1847) sobre o cultivo das faculdades da alma e do espírito humano. Memoranum, 8,  106-115. Retirado em       /       /      , do World Wide Web:
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos08/assis01.htm.

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A importância da educação e da tradição: lições do jornal religioso Selecta Catholica (1846 – 1847) sobre o cultivo das faculdades da alma e do espírito humano

 The importance of education and tradition: lessons from the religious newspaper Selecta Catholica (1846 – 1847) on the development of the faculties of the soul and the human spirit

 Raquel Martins de Assis
Universidade Federal de Minas Gerais

Brasil
 

Resumo
Esse artigo discute as idéias sobre educação encontradas no jornal religioso Selecta Catholica (1846 – 1847), pretendendo contribuir para um maior entendimento de modelos educacionais do século XIX. Neste jornal, a educação é entendida como cultivo da inteligência e de virtudes, promovendo uma educação integral que compreende a vigilância sobre os costumes e o cuidado com o adequado desenvolvimento das faculdades da alma. Conclui-se que tal proposta educativa tem seus fundamentos na tradição cristã e em seus saberes, tais como os escritos de São Paulo, as filosofias aristotélico-tomista e agostiniana e os preceitos do Concílio de Trento que culminam na presença de uma concepção de ser humano como pessoa e da educação como percurso evolutivo.

Palavras-chave: história da psicologia no Brasil; educação; tradição; psicologia filosófica.

Abstract
The aim of the present paper is to discuss the ideas on education available in the religious journal Selecta Catholica (1846 – 1847), expecting to contribute to a better understanding of the educational patterns of the nineteenth century. On the pages of the mentioned journal, education is understood as the development of virtues, building up integral education wich includes customs surveillance and the reassurance of the adequate development of the faculties of the soul. The fundaments of such an educational approach are based on the Christian tradition and its sources of knowledgement such as Saint Paul’s writings, the Aristotle-Thomas philosophies and the precepts of the Council of Trent which lead to a conception of the human nature as person and of education as an evolutive way.

 Keywords: history of psychology in Brazil; education; tradition; philosophical psychology.

 

Introdução

A palavra “tradição” foi empregada por diversos autores como Fernando de Azevedo (1996) e Lourenço Filho (2002) para caracterizar concepções e práticas em educação que eram calcadas na psicologia das faculdades da alma e na escolástica e que haviam existido no Brasil na época colonial e imperial.

Mas o que era a educação tradicional? Quais eram as idéias sobre a natureza humana e os fundamentos filosóficos subjacentes às práticas e propostas desse tipo de educação?

Para contribuir com algumas informações sobre essas questões, vamos nos voltar para o ideário educacional veiculado no periódico Selecta Catholica (1846 – 1847), publicado por um grupo de religiosos ligados a D Antônio Ferreira Viçoso, bispo  de Mariana, Minas Gerais, de 1844 a 1875.

O objetivo desse estudo é demonstrar que para entendermos os aspectos centrais da educação que vigorou antes da República, precisamos nos voltar para a psicologia filosófica e saberes anteriores ao advento da psicologia e da pedagogia científicas.

 

D. Antônio Ferreira Viçoso e a educação

D. Antônio Ferreira Viçoso
(1), bispo de Mariana de 1844 a 1875, foi particularmente preocupado com a educação em Minas Gerais, sendo um dos responsáveis pela fundação do Colégio do Caraça em 1821 (2). Tornando-se bispo, veio para Mariana, onde esteve à frente de reformas no Seminário da mesma cidade (3), da abertura do Colégio da Providência para educação feminina e da construção de orfanatos e de instituições de educação para moças pobres e órfãs. Além disso, um dos maiores projetos educacionais do religioso foi sua luta pela reforma dos costumes do clero e da população mineira.

O projeto de reforma dos costumes compreendia uma série de esforços cuja finalidade era a formação de uma sociedade cada vez mais cristã. Entre esses esforços, estava a atenção com o tipo de educação que seria oferecida aos jovens pelos Colégios da diocese, o cuidado com as famílias em sua responsabilidade com a educação da primeira infância, da criança e dos filhos mais velhos, o acompanhamento mais próximo dos padres, principalmente aqueles que se encontravam isolados em fazendas ou lugarejos distantes e a observação dos costumes da população em geral, a fim de corrigi-los e educá-los quando necessário.

Para que a reforma dos costumes se efetivasse, o bispo lazarista lançou mão de diversas estratégias. Uma de suas iniciativas foi a montagem de um parque gráfico, ou seja, de uma tipografia pertencente à Diocese de Mariana com a finalidade de imprimir, vender e veicular impressos que ajudassem na educação e formação das pessoas e dos religiosos mineiros.

Um desses impressos publicados foi o jornal religioso Selecta Catholica, publicado nos anos de 1846 e 1847. O editor desse jornal era o Padre João Antônio dos Santos que, mais tarde tornou-se bispo de Diamantina, e que, nessa época, era reitor do Seminário de Mariana e um dos braços direitos do bispo.

Os exemplares do jornal eram quinzenais e foram impressos com a intenção de educar os mineiros, aconselhando-os em diversos aspectos de suas vidas, de maneira que eles melhorassem nas virtudes, podendo contribuir de forma mais eficaz para a construção de uma sociedade justa.

Assim, o jornal preocupa-se em discutir assuntos como o papel do pai e da mãe no cuidado com os filhos pequenos, aspectos do desenvolvimento de crianças e jovens, a responsabilidade dos pais na escolha dos mestres e métodos de ensino para seus filhos, a importância das condutas virtuosas para a vida em sociedade, a educação formal, o perigo de idéias deístas (4), racionalistas e materialistas para as concepções de ser humano e da maneira pela qual se deve educá-lo, entre outros. Um dos temas abordado nas páginas desse jornal é a discussão sobre a finalidade da educação, chamando a atenção para o fato de que a educação não deve apenas instruir, lapidando uma inteligência brilhante, mas formar homens e mulheres de hábitos virtuosos capazes serem útil aos seus semelhantes.

De acordo com a Selecta Catholica, para a boa formação das pessoas que representam a sociedade, é preciso que haja uma cultura educacional adequada, capaz de transformar uma criança pequena e instintiva em um adulto de hábitos e costumes retos. Mas o que é, para esses educadores, uma cultura educacional adequada? E como se dá o processo de transformação da criança instintiva para o adulto maduro moralmente?

 

Educação: a formação de inteligências polidas e hábitos virtuosos

Pimenta (1920) faz o seguinte comentário a propósito da conduta de D. Viçoso em relação aos jovens que educava:

Desvelo summo por aproveitarem no estudo, vigilância activa e sempre desperta sobre seos costumes, olho aberto sobre cada um, como se ele só estivesse a seo cargo, empenho extremado em que não sahissem menos feitos nas virtudes, do que adiantados nas letras, esquivanças ao rigor, mas não poupando a correção corporal nos casos em que a tinham por indispensável (p. 32).

A descrição do autor sobre o bispo de Mariana expressa a idéia de que a adequada atitude educativa envolvia um empenho para que os jovens fossem bem formados tanto nas letras quanto nas virtudes (5), demonstrando a preocupação de promover uma educação integral que utilizasse a vigilância ativa sobre os costumes dos alunos e quando necessário, aplicasse a correção corporal.

O Concílio de Trento, entre as tantas recomendações sobre as responsabilidades educacionais dos bispos, preconizava que a atitude educativa deveria ser de benevolência, mas de firmeza, quando se fizesse necessário. De acordo com esses ideais, a benevolência, a paciência, a exortação e a caridade eram mais capazes de educar do que a severidade e o exercício de poder (Fliche e Martin, 1976).

Ao seguir as recomendações tridentinas, D. Viçoso, os padres e leigos que formavam o grupo ao seu redor, acreditavam que a educação deveria formar a pessoa em sua integralidade física, intelectual, moral e espiritual, buscando promover a saúde do indivíduo e da sociedade.

Partindo desta perspectiva, a formação da pessoa compreenderia o desenvolvimento dos aspectos cognitivos e a atuação sobre a moralidade. Assim, longe do objetivo de apenas polir a inteligência do jovem, a educação serviria, antes de tudo, para que o homem soubesse ser feliz, respeitando a si e ao próximo e sendo útil à sociedade.

Para a felicidade da pessoa e saúde da sociedade, as inteligências polidas não seriam suficientes, pois nem sempre uma grande capacidade intelectual encontrava-se aliada às virtudes, já que a conduta virtuosa não é conseqüência necessária de uma inteligência brilhante.

Fugindo de uma excessiva valorização do racionalismo, a Selecta Catholica, afirmava a possibilidade de encontrar muitos homens ilustrados e virtuosos, mas comumente vê-se ilustrados e viciosos, como também homens sem instrução de vida reta e justa:

Quantos homens parecem ter adquirido huma superioridade de vistas, de espirito e de conhecimento, só para dar resplandor aos seos vícios ou ao menos para defende-los de huma maneira brilhante! Em opposição a isto, a ignorância occulta muitas vezes hum coração nobre; e huma verdadeira piedade pode ligar-se com a falta de intelligencia e com ideas curtas. [...] Resulta d’aqui, que o nobre caracter he independente das faculdades e dos dons do espírito. (Selecta Catholica, 15 de outubro de 1846, p. 238).

 

É clara portanto a proposta educativa que não privilegia apenas os aspectos cognitivos e a formação de uma razão capaz de brilhantes exercícios de raciocino. Embora a cognição e a capacidade crítica fossem importantes, a finalidade da educação é a formação do caráter, que deve iniciar-se desde a infância por meio do relacionamento familiar.

Sendo independente das faculdades e dons do espírito, o caráter não obedece nenhuma determinação seja fisiológica, seja por algum dom inato, mas é formado, cultivado e independe da capacidade intelectual ou do nível de instrução.

Sendo assim, a ênfase educacional deveria estar no desenvolvimento do caráter, pois do mesmo modo que a planta necessita de cuidados em seu cultivo para que possa fornecer bons frutos, também o homem precisa ser cultivado a fim de tornar-se ética e moralmente maduro: “O espirito he hum campo que depressa se cobre de más hervas, quando se deixa sem cultura” (Selecta Catholica,15 de novembro de 1846).

Desse modo, o problema central da educação era que se soubesse propor a melhor cultura para o tipo de “solo” que a natureza humana representava. Uma cultura capaz de atingir da mesma maneira tanto os homens mais rústicos quanto os mais polidos, tanto os de classes populares quanto abastadas, já que, para os editores da Selecta Catholica, todos os homens são iguais. Os pobres, os ricos, os negros, os órfãos, os brancos, todos deveriam ser educados pelos métodos e com a mesma finalidade.

A cultura educacional proposta por esses religiosos tinha alguns aspectos principais: o respeito pela tradição da Igreja, que era vista como depositária dos saberes fundamentais; o relacionamento virtuoso entre mestre e aluno, baseado na autoridade do professor e o empenho para o bom desenvolvimento das faculdades da alma, formando pessoas virtuosas capazes de integrar a sociedade.

Por um lado, era essencial que o educador soubesse oferecer instrumentos capazes de formar o ser humano, promovendo uma educação capaz de levá-lo à realização como ser e como utilidade para a sociedade. Por outro lado, encontrava-se a liberdade da pessoa que aderia à proposta, confiava, obedecia e acreditava naquilo que lhe era ofertado. A cultura educacional, portanto, teria dois pólos igualmente ativos que deveriam se complementar: o educador, que sabe o que propor para o adequado cultivo do espírito de seus alunos, e o educando, que deseja e aposta livremente na sua formação.

Mas, no que o educador deveria se fundamentar para saber que tipo de cultura educacional propor?

Para a Selecta Catholica, as bases da adequada proposta educativa encontravam-se na tradição.

 

Os saberes da tradição como fundamento da educação

Na história da tradição cristã, a concepção da educação como cultivo e principal instrumento para a formação do homem virtuoso parece ser muito antiga. Podemos remetê-la à corrente aristotélico-tomista adotada a partir da Segunda Escolástica, que vai ser amplamente utilizada entre os jesuítas (Pécora, 1994; Massimi, 2003) e outras ordens e congregações da Igreja Católica.

Mas também na Antigüidade, encontramos Platão, no Convite, afirmando a importância de que o jovem fosse educado dentro dos parâmetros da filosofia como única forma de aproximar-se da Verdade e do Bem. Na República, Platão afirma que as mais importantes prescrições para a cidade são a instrução e a educação.

Assim a concepção de homem que dava subsídios para a proposta educativa encontrada na Selecta Catholica tinha origem na tradição da Igreja construída desde a época dos primeiros cristãos e nas sínteses entre os fundamentos do cristianismo e as filosofias clássicas, como é o caso da filosofia tomista e agostiniana.

O referencial aristotélico-tomista que foi o mais utilizado após o Concílio de Trento, contribuiu para a idéia da educação como cultivo, pois considerava que o ser humano deveria desenvolver um percurso evolutivo, passando de uma primeira natureza imperfeita para uma segunda natureza mais perfeita (Hourdakis, 2001). Esse processo acontecia por meio da aquisição de hábitos.

Para Tomás de Aquino, hábito era uma disposição firmada no tempo de responder de forma virtuosa ou viciosa às circunstâncias externas que afetavam a pessoa (ASSIS, 1998), culminando em uma ação que se tornava freqüente e costumeira por ter sido realizada muitas vezes (Boehner e Gilson, 1995). Para o filósofo, uma inicial disposição da alma transformava-se em hábito como a criança transformava-se em adulto.

Desse modo, o cultivo da alma, por meio da educação, tinha o objetivo de constituir a moralidade e os hábitos virtuosos. Para a educação do jovem, a formação do hábito era fundamental porque fazia com que uma prática que inicialmente não fosse naturalmente agradável se tornasse prazerosa devido ao costume (Assis, 1998). O hábito do estudo, por exemplo, se bem formado, poderia fazer com que um menino que inicialmente não gostasse de estudar, ao realizar este ato inúmeras vezes começasse a se dar conta da importância e do prazer dessa atividade.

Lauand (2003) explica a relação entre a formação moral do homem, os hábitos e a educação:

Neste quadro, podemos compreender a doutrina de Tomás sobre a virtude. A virtude – como também seu oposto: o vício – é um hábito (naturalmente, a virtude é hábito bom; e o vício, mau). O nosso tempo anda tão desorientado no que diz respeito à Educação Moral que a própria palavra hábito nos causa aversão: associamos hábito a condicionamento, domesticação, etc. Porém, o verdadeiro sentido do hábito, o que lhe dá Tomás, nada tem que ver com essas deformações. Hábito é pura e simplesmente uma qualidade adquirida (auto-adquirida e livremente desenvolvida) que facilita e aperfeiçoa a ação e aperfeiçoa também o próprio homem (s.p.).

A constante repetição de atos ou conteúdos, na concepção aristotélico-tomista, tem um sentido bastante ativo, já que a repetição fazia com que algo se imprimisse de forma mais duradoura na alma humana, transformando-se em hábito. Mas apenas a repetição mecânica não bastava, já que adquirir hábitos bons ou maus dependia exclusivamente do julgamento e da liberdade da pessoa.

Assim, o processo de aprendizado passava pela repetição e pela memória, mas dependia do juízo dado sobre as circunstâncias, bem como da livre e ativa adesão do educando ao conteúdo ou à conduta ensinada.

Também na perspectiva agostiniana o que era aprendido ficava retido na memória, tornando-se um saber duradouro quanto mais fosse possível ruminá-lo por meio da recordação (Boehner e Gilson, 1995).

O hábito, como afirma Lauand (2003), não significava domesticação, condicionamento, ou seja, uma obediência passiva a algum agente externo, pois implicava na escolha e liberdade de um sujeito em aderir a ações, normas, regras ou leis que incrementavam o seu ser. Se, como descreve Lauand (2003), um jovem entende que evitar x e aprender sobre y leva-o para o caminho de sua realização, ele adquire o hábito de y, tornando-se virtuoso e cada vez mais perfeito. Mas para chegar a y é preciso primeiro a escolha livre desse passo e depois um certo esforço durante o caminho.

Para falar desse percurso em que deve haver o cultivo da alma cujo objetivo é incrementar o ser humano, a Selecta Catholica utiliza a metáfora do crescimento e desenvolvimento da árvore, afirmando que as flores da mocidade culminam nos frutos da idade madura. Há, portanto, um caminho a ser percorrido da infância e da juventude até a idade adulta. Como uma árvore frutífera passa pelas estações do ano, a pessoa passa por mudanças:
 

Se reflecto hum instante sobre mim mesmo, eu direi: “Meos bellos dias vão-se obscurecer, e o resplendor que me cerca em breve desaparecerá com as folhas das árvores. Nossa sorte neste mundo terá também suas estações? Neste caso, eu recorrerei no inverno da minha vida às provisões que eu tiver feito nos dias da minha prosperidade, e procurarei fazer uso dos fructos da minha educação e de minha experiência (Selecta Catholica, 1 de agosto de 1846, p. 89).

Massimi (2001) comenta que na Companhia de Jesus, houve a elaboração de um método de formação do homem que tinha como um de seus instrumentos o “percurso evolutivo da infância até a maturidade pela educação” (Idem, p. 2). Para a eficácia desse método se fazia necessário o conhecimento da subjetividade e da dinâmica das relações sociais.

Na tradição cristã, construída desde os primeiros cristãos, encontramos a idéia da necessidade de uma transformação do homem do seu nascimento até a vida adulta, dando-nos a imagem de um percurso a ser realizado. São Paulo, em suas Cartas, afirma que o homem nasce em um estado de carnalidade que deveria se transformar num estado espiritual ao longo do tempo. O primeiro estado, o de carne, é o do homem que concebe sua vida fora do relacionamento com Deus. A segunda natureza a que o homem deveria aspirar, a condição espiritual, definia o homem como Filho de Deus e correspondia ao estado de plena realização (Massimi,1986).

Podendo haver uma certa oposição entre carne e espírito, um dos mecanismos que viabilizava o percurso do homem da vida carnal para a espiritualidade era o controle das paixões. Nesse sentido, o equilíbrio entre as faculdades intelectivas e as faculdades sensitivas da alma era um ponto nevrálgico da moralidade humana e conseqüentemente deveria ser levado em consideração na educação.

O bom uso da inteligência e a moderação das paixões da alma eram aspectos fundamentais da educação bem dirigida capaz de colocar o jovem no caminho que o leva ao alcance da maturidade:

Se diz que veio trazer a guerra, elle falla da guerra que devemos fazer as nossa paixões, e da opposição que deve haver entre a carne e o espirito, para vivermos huma vida espiritual. (Selecta Catholica, 1 de junho de 1847, p. 332).

 Assim, no que se refere aos filósofos clássicos e aos autores cristãos, principalmente os humanistas, a educação era vista como tendo um papel primordial no que se refere ao desenvolvimento das faculdades da alma e à formação de hábitos capazes de conduzir o homem para o caminho de encontro com o Ser, a Verdade, a Justiça, a Felicidade, o Belo e também consigo mesmo.

A filosofia clássica sempre afirmara a idéia da necessidade de um percurso educativo que conduzisse a evolução do homem de uma primeira natureza para uma segunda natureza mais perfeita que se expressava no cultivo da alma e no cuidado de si. A novidade da perspectiva pedagógica cristã era que esse percurso tivesse como finalidade a imitação do comportamento de Cristo (Cambi, 1999). Desse modo, para Cambi (1999), o cristianismo operou uma revolução cultural quando colocou um novo modelo antropológico, cujo centro é Cristo, que modelou toda a visão de sociedade e reinventou o papel da família, da educação, do trabalho e o da política.

Uma segunda diferença entre a tradição grega e a cristã, que caracterizava a proposta educacional encontrada na Selecta Catholica, é a concepção de vontade (Reale e Antiseri, 1990). Para os filósofos gregos, a vontade era uma  faculdade da alma ligada ao intelecto que indicava uma meta a ser alcançada. Para os cristãos, porém, além de indicar a direção a ser tomada, a vontade é uma força que determina autonomamente a vida e que é intimamente ligada e determinada pelo sentimento religioso. Essa noção de vontade, ao mesmo tempo que traz em si a idéia de liberdade, que é a característica humana mais perfeita, implica também em uma dramaticidade da vida do homem que se debate na contradição do querer humano que ora volta-se para Deus e ora para o mundo:
 

Deos e mundo, o mais amável dos pais e o mais cruel dos tyrannos, eis-aqui entre quem nós temos que optar. [...] Ainda porem que o mundo assim não fosse, ainda que não fossem suas venturas tão apparentes, suas promessas tão enganadoras, tão capciosos, tão falsos seos sorrisos, quem ousaria preferir sua belleza á belleza celeste, sua amabilidade á amabilidade de Deos? (Selecta Catholica, 1 de outubro de 1846, p. 210).

A vontade é o princípio de atividade da alma relacionado ao querer e conseqüentemente à liberdade. De acordo com Boehner e Gilson (1995), a vontade, desse modo entendida, não é apenas uma parte do homem, como as outras potências da alma, mas ela está na raiz daquilo que o homem é. Assim, a vontade praticamente se identifica com o homem (Boehner e Gilson, 1995), já que as principais características do ser humano seriam seu movimento para Deus e seu desejo de Deus.

Sendo que o homem tende para o sumo bem, como o ar tende para cima, a educação deveria ter como seu aspecto fundamental o cultivo da alma e o cuidado com suas faculdades em seu caminho de tendência para o bem e para as virtudes.

Assim, a educação bem dirigida, segundo a Selecta Catholica, deve ser capaz de formar o adulto virtuoso e autenticamente cristão, ou seja, homens instruídos, caridosos e úteis aos semelhantes.

 

A idade madura: a educação como instrumento essencial para o desenvolvimento das faculdades da alma

A valorização de uma educação calcada em princípios da tradição cristã viria da crença de que ela é o instrumento essencial para a formação de membros do corpo social cujas vontades estejam orientadas para Deus.

Desse modo, cuidar da educação dos órfãos, de muitos meninos, de filhos de famílias abastadas, de meninas e jovens moças seria cuidar de um dos mais eficazes instrumentos de salvação para a sociedade. Essa idéia vai fazer com que a educação infanto-juvenil seja bastante valorizada nas páginas da Selecta Catholica, existindo inúmeras prescrições sobre a infância e a juventude e sua singular importância no percurso evolutivo do homem.

Cambi (1999) coloca a dignidade da infância com uma das principais contribuições do modelo antropológico e social inaugurado pelo cristianismo. Para o periódico mineiro, a valorização desse período da vida humana aparecia nas narrações da Escrituras sobre o nascimento e os acontecimentos específicos da infância de Cristo e de seus ensinamentos quando diz que deixasse vir a ele os pequeninos e que os homens deveriam tornar-se como criança para ganhar o reino dos céus.

Sendo, portanto, a infância um importante período da vida humana, a comunicação dos preceitos e verdades reveladas pela tradição da Igreja deveria ser a finalidade da educação dada pelas famílias às suas crianças. Também os órfãos, em vez de serem deixados à marginalidade, abandono e morte, deveriam ser batizados, recolhidos e educados na mesma perspectiva cristã que as famílias instruíam seus filhos, incluindo-se, desse modo, no corpo social e tornando-se instrumentos de salvação do próximo.

De fato, na Selecta Catholica, encontramos a idéia de que o fruto da idade madura é a utilidade aos semelhantes. Tal utilidade seria a prova de uma educação bem dirigida que foi capaz de desenvolver adequadamente as faculdades da alma e de cultivar bons hábitos em crianças e jovens que, com o passar do tempo, tornaram-se homens maduros.

Em alguns fragmentos do jornal, aparece a palavra desenvolvimento indicando o período de emergência das faculdades entre a infância, quando as faculdades estão ocultas, como os autores mesmo dizem, e a idade madura, quando todas as faculdades da alma já progrediram. Junto do desenvolvimento das faculdades da alma está o desenvolvimento físico:
 

Por quantas revoluções meo corpo não tem passado desde a sua formação? Em cada anno perde alguma cousa do que lhe faz parte; em cada anno tambem adquire novas partes, tiradas dos differentes reinos da natureza. (Selecta Catholica, 1 de dezembro de 1846, p. 345)

O percurso evolutivo da infância até a maturidade parece obedecer a etapas em que o desenvolvimento das faculdades da alma é acompanhado do desenvolvimento do corpo.

A tradição agostiniana, muito recorrente no discurso do periódico mineiro, parte do pressuposto de que o homem terreno passa por seis etapas de desenvolvimento: na primeira, as energias da criança estão a serviço das funções nutritivas. Na segunda fase, a infância, acontece o despertar da memória. Em seguida, viria a adolescência, marcada pela possibilidade de procriação; e a seguir a juventude madura, em que se inicia a participação do jovem nos ofícios públicos e a sujeição às leis. A quinta etapa é a idade adulta e a sexta, a velhice, época em que as doenças e limitações começam a aparecer, indicando a proximidade da morte. A vida espiritual se desenvolve como o corpo, porém o seu tempo é diferente do tempo fisiológico, pois não se conta pelos anos, mas pelos progressos realizados (Boehner e Gilson, 1995).

Da mesma maneira que há o corpo infantil, existe a infância da alma, quando as faculdades da alma humana (entendimento, vontade, inteligência, sensibilidade) ainda não se desenvolveram plenamente.

Se o homem é como uma árvore, aparecendo a analogia com a concepção platônica de homem colocada no Timeu, quando é criança é como um broto, que traz em si a promessa da árvore madura a qual, sendo bem cultivada, produz bons frutos. O desenvolvimento é um devir, um percurso evolutivo de algo que se encontra em potência:
 

Bem se parece comigo este tenro renovo; e aquelles á quem o céo confiou o cuidado da minha infância, esperando então pelo meo desenvolvimento não poupando nem despeza, nem trabalho para formar-me e instruir-me. Esmerão-se com o mais tenro desvelo na minha educação: aspirão ao ditoso momento, em que as flores da mocidade hão de succeder os fructos da idade madura. (Selecta Catholica, 1 de julho de 1846, p. 23).

O desenvolvimento das faculdades da alma e consequentemente o da pessoa seguem o mesmo caminho das árvores em seu processo natural: do botão da infância, tenro renovo, para a flor da mocidade, da flor da mocidade para os frutos da idade madura.

Assim, quando a Selecta trata da infância, a fase do broto, ressalta-se a importância da instrução dada pela família, das tarefas das mães e do cuidado paterno na escolha dos mestres. Quando trata da mocidade, o periódico descreve principalmente o cuidado com as paixões e o cultivo do hábito da virtude. E a idade madura é o fim a que o homem deve almejar, como se vê no seguinte trecho:
 

Terna mãi, pagarte-hei com usura o amor, de que tão eternecidas mostras  prodigalisais comigo; e tu, ó meo virtuoso pai, verás satisfeitos teos desejos, vendo-me esforçar por ajudar os teos esforços, corresponder ás graças do ceo, e fazer-me cada dia mais sisudo, mais instruído, mais pio e mais amavel. Fecharei cuidadosamente meo coração ás fogosas paixões da mocidade, tão infaustas para a innocencia (Selecta Catholica, 1 de julho de 1846, p. 23).

Este trecho sintetiza a segunda natureza que o homem deveria alcançar, pois o homem maduro deve ser sisudo, pio, amável e instruído. Esse homem é o fim de uma educação bem cultivada que reúne, como diz o trecho, os cuidados e esforços dos pais nesse processo e o empenho do filho que deve ter passado pelas etapas do desenvolvimento que, entre outras coisas, exigem o cuidado com o arrebatamento das paixões que é próprio da mocidade.

 

Conclusão

Tendo como ponto de partida os saberes veiculados pela tradição cristã que havia se apropriado da filosofia clássica, principalmente de cunho aristotélico e platônico, a concepção da educação como meio fundamental de construção do hábito virtuoso que constitui os homens maduros era o fundamento de modelos educacionais vigentes no século XIX e em períodos anteriores.

Na Selecta Catholica a preocupação com a formação de homens capazes de protagonismo diante da realidade é um aspecto central das propostas educativas. De fato, o próprio conceito de vida virtuosa traz em si a idéia de que a verdadeira virtude é aquela que se expressa em ações concretas no mundo, havendo uma relação muito estreita entre os campos da moral e da política.

Para a formação de homens virtuosos, os religiosos responsáveis pela organização da Selecta Catholica acreditavam ser fundamental que a educação soubesse discernir os seus fins e oferecesse os meios adequados para que o trajeto do desenvolvimento humano fosse percorrido. Nesse percurso haveria o florescimento das faculdades da alma  e junto disso o desenvolvimento dos hábitos e virtudes necessárias para o ser humano e para a sociedade na qual estava inserido.

Assim, partindo do pressuposto de que é essencial para a vida do ser humano o cuidado com o cultivo da alma e com a formação de hábitos virtuosos, existe, na tradição educacional aqui investigada, uma noção de um percurso evolutivo que tem um modelo ideal de homem como meta.

Nessa proposta educativa fundamentada nos saberes filosóficos relacionados à tradição escolástica, portanto, a educação é vista como formadora da pessoa, entendendo-a como algo a mais do que apenas a dimensão intelectual ou natural do homem. De fato, pessoa, segundo Massimi (1999), é a constituição do  homem segundo suas dimensões corporal, social e espiritual, cuja característica seria a possibilidade de uma certa liberdade e autonomia diante do determinismo das leis biológicas e do ambiente.

Pensar a educação dessa determinada maneira fez com os editores da Selecta Catholica propusessem a educação como cultura e cultivo, colocando-a como centro e ponto fundamental da vida humana entendida como percurso e possível peregrinação.
 

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Selecta Catholica jornal religioso (1846 – 1847). Mariana: Typographia Episcopal de Mariana.

 

Notas

(1) Antônio Ferreira Viçoso nasceu em Portugal no ano de 1787. Em 1811, entrou para a Congregação da Missão, fundada por São Vicente de Paulo. Em 1819, ao formar-se padre, foi enviado para o Brasil em missão catequética, devendo seguir para o Mato Grosso junto com o Padre. Leandro Rebelo Peixoto. Entretanto, o religioso foi mandado para Minas Gerais, onde ficou como um dos responsáveis pelo funcionamento e educação oferecida pelo Colégio do Caraça. (volta).

(2) O Colégio do Caraça foi um dos mais importantes estabelecimentos educacionais de Minas Gerais no século XIX. Foi idealizado, pela primeira vez, por Irmão Lourenço, um eremita que já tendo construído na Serra do Caraça, uma igreja e um eremitério, desejava que naquelas terras, fosse erguido também um Colégio. Logo depois da morte do Irmão Lourenço, D. João VI enviou os missionários da Congregação da Missão para a edificação do Colégio que funcionou até 1912. (volta).

(3) Em termos históricos, o Seminário de Mariana constitui-se em uma das mais importantes instituições educacionais de Minas Gerais, não apenas por ter sido uma das primeiras fundadas neste estado, como pelo valor histórico-social que adquiriu.
O Seminário foi fundado em 1750 pelo bispo de Mariana, D. Frei Manoel da Cruz, com a intenção de dar início à formação de um clero nativo, de dar educação aos filhos das famílias mineiras e colaborar na melhoria dos costumes.
(volta).

(4) O deísmo é uma atitude filosófica iluminista, que entre outros aspectos, afirma que Deus é o autor da ordem do Universo, podendo ser reconhecido pela razão por meio das leis da natureza. Apesar de ordenar as leis da natureza, Deus seria estranho aos acontecimentos da vida humana e da sociedade como um todo (Reali e Antiseri, 1990). Adeptos do deísmo seriam d’Alembert, Diderot, Rousseau e Spinoza no início de sua obra. O deísmo de Diderot desenvolveu-se abrindo espaço para as hipóteses materialistas. (volta).

(5) Na concepção aristotélico-tomista, as virtudes morais relacionam-se às paixões e às ações e são muitas: prodigalidade, humildade, castidade, entre outras. Entre as comuns virtudes morais, existem quatro delas denominadas de cardeais: justiça, temperança, fortaleza e prudência. Essas virtudes são centrais na vida do homem porque são as que mais regulam a convivência com o próximo. Além das cardeais, existem as virtudes teologais que dizem respeito ao relacionamento do homem com Deus: fé, esperança e caridade. (volta).

Nota sobre a autora

Raquel Martins de Assis
, mestre em Psicologia pela USP e doutora em Educação pela UFMG, é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e trabalha com pesquisas em História da Psicologia e História da Psicologia da Educação no Brasil. Contato: raamart@yahoo.com.br

Data de recebimento: 18/11/2004
Data de aceite: 29/04/2005

Memorandum 8, abr/2005
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos08/assis01.htm.

 

 

 

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