Introdução
A palavra “tradição” foi empregada por diversos autores como
Fernando de Azevedo (1996) e Lourenço Filho (2002) para caracterizar
concepções e práticas em educação que eram calcadas na psicologia das
faculdades da alma e na escolástica e que haviam existido no Brasil
na época colonial e imperial.
Mas o que era a educação tradicional? Quais eram as idéias sobre a
natureza humana e os fundamentos filosóficos subjacentes às práticas e
propostas desse tipo de educação?
Para contribuir com algumas informações sobre essas questões, vamos nos
voltar para o ideário educacional veiculado no periódico
Selecta Catholica
(1846 – 1847),
publicado por um grupo de religiosos ligados a D Antônio Ferreira Viçoso,
bispo de Mariana, Minas Gerais, de 1844 a 1875.
O objetivo desse estudo é demonstrar que para entendermos os aspectos
centrais da educação que vigorou antes da República, precisamos nos voltar
para a psicologia filosófica e saberes anteriores ao advento da psicologia
e da pedagogia científicas.
D. Antônio Ferreira Viçoso e a
educação
D. Antônio Ferreira Viçoso
(1),
bispo de Mariana de 1844 a 1875, foi particularmente preocupado com a
educação em Minas Gerais, sendo um dos responsáveis pela fundação do
Colégio do Caraça em 1821
(2).
Tornando-se bispo, veio para Mariana, onde esteve à frente de reformas
no Seminário da mesma cidade
(3), da
abertura do Colégio da Providência para educação feminina e da construção
de orfanatos e de instituições de educação para moças pobres e órfãs. Além
disso, um dos maiores projetos educacionais do religioso foi sua luta pela
reforma dos costumes do clero e da população mineira.
O projeto de reforma dos costumes compreendia uma série de
esforços cuja finalidade era a formação de uma sociedade cada vez mais
cristã. Entre esses esforços, estava a atenção com o tipo de educação que
seria oferecida aos jovens pelos Colégios da diocese, o cuidado com as
famílias em sua responsabilidade com a educação da primeira infância, da
criança e dos filhos mais velhos, o acompanhamento mais próximo dos
padres, principalmente aqueles que se encontravam isolados em fazendas ou
lugarejos distantes e a observação dos costumes da população em geral, a
fim de corrigi-los e educá-los quando necessário.
Para que a reforma dos costumes se efetivasse, o bispo
lazarista lançou mão de diversas estratégias. Uma de suas iniciativas foi
a montagem de um parque gráfico, ou seja, de uma tipografia pertencente à
Diocese de Mariana com a finalidade de imprimir, vender e veicular
impressos que ajudassem na educação e formação das pessoas e dos
religiosos mineiros.
Um desses impressos publicados foi o jornal religioso
Selecta Catholica, publicado nos anos de 1846 e 1847. O editor
desse jornal era o Padre João Antônio dos Santos que, mais tarde tornou-se
bispo de Diamantina, e que, nessa época, era reitor do Seminário de
Mariana e um dos braços direitos do bispo.
Os exemplares do jornal eram quinzenais e foram impressos com a intenção
de educar os mineiros, aconselhando-os em diversos aspectos de suas vidas,
de maneira que eles melhorassem nas virtudes, podendo contribuir de forma
mais eficaz para a construção de uma sociedade justa.
Assim, o jornal preocupa-se em discutir assuntos como o papel do pai e da
mãe no cuidado com os filhos pequenos, aspectos do desenvolvimento de
crianças e jovens, a responsabilidade dos pais na escolha dos mestres e
métodos de ensino para seus filhos, a importância das condutas virtuosas
para a vida em sociedade, a educação formal, o perigo de idéias deístas
(4),
racionalistas e materialistas para as concepções de ser humano e da
maneira pela qual se deve educá-lo, entre outros. Um dos temas abordado
nas páginas desse jornal é a discussão sobre a finalidade da educação,
chamando a atenção para o fato de que a educação não deve apenas instruir,
lapidando uma inteligência brilhante, mas formar homens e mulheres de
hábitos virtuosos capazes serem útil aos seus semelhantes.
De acordo com a Selecta Catholica, para a boa formação das pessoas
que representam a sociedade, é preciso que haja uma cultura educacional
adequada, capaz de transformar uma criança pequena e instintiva em um
adulto de hábitos e costumes retos. Mas o que é, para esses educadores,
uma cultura educacional adequada? E como se dá o processo de transformação
da criança instintiva para o adulto maduro moralmente?
Educação: a formação de inteligências polidas e hábitos
virtuosos
Pimenta (1920)
faz o seguinte comentário a propósito da conduta de D. Viçoso em relação
aos jovens que educava:
Desvelo summo por aproveitarem no estudo, vigilância activa e sempre
desperta sobre seos costumes, olho aberto sobre cada um, como se ele só
estivesse a seo cargo, empenho extremado em que não sahissem menos feitos
nas virtudes, do que adiantados nas letras, esquivanças ao rigor, mas não
poupando a correção corporal nos casos em que a tinham por indispensável
(p. 32).
A descrição do autor sobre o bispo de
Mariana expressa a
idéia de que a adequada atitude educativa envolvia um empenho para que os
jovens fossem bem formados tanto nas letras quanto nas virtudes
(5), demonstrando a preocupação de
promover uma educação integral que utilizasse a vigilância ativa sobre os
costumes dos alunos e quando necessário, aplicasse a correção corporal.
O
Concílio de Trento, entre as tantas recomendações sobre as
responsabilidades educacionais dos bispos, preconizava que a atitude
educativa deveria ser de benevolência, mas de firmeza, quando se fizesse
necessário. De acordo com esses ideais, a benevolência, a paciência, a
exortação e a caridade eram mais capazes de educar do que a severidade e o
exercício de poder (Fliche e Martin, 1976).
Ao seguir as
recomendações tridentinas, D. Viçoso, os padres e leigos que formavam o
grupo ao seu redor, acreditavam que a educação deveria formar a pessoa em
sua integralidade física, intelectual, moral e espiritual, buscando
promover a saúde do indivíduo e da sociedade.
Partindo desta perspectiva, a formação da pessoa compreenderia o
desenvolvimento dos aspectos cognitivos e a atuação sobre a moralidade.
Assim, longe do objetivo de apenas polir a inteligência do jovem, a
educação serviria, antes de tudo, para que o homem soubesse ser feliz,
respeitando a si e ao próximo e sendo útil à sociedade.
Para a felicidade da pessoa e saúde da sociedade, as inteligências polidas
não seriam suficientes, pois nem sempre uma grande capacidade intelectual
encontrava-se aliada às virtudes, já que a conduta virtuosa não é
conseqüência necessária de uma inteligência brilhante.
Fugindo de uma excessiva valorização do racionalismo, a Selecta
Catholica, afirmava a possibilidade de encontrar muitos homens
ilustrados e virtuosos, mas comumente vê-se ilustrados e viciosos,
como também homens sem instrução de vida reta e justa:
Quantos homens parecem ter adquirido huma superioridade de vistas, de
espirito e de conhecimento, só para dar resplandor aos seos vícios ou ao
menos para defende-los de huma maneira brilhante! Em opposição a isto, a
ignorância occulta muitas vezes hum coração nobre; e huma verdadeira
piedade pode ligar-se com a falta de intelligencia e com ideas curtas.
[...] Resulta d’aqui, que o nobre caracter he independente das faculdades
e dos dons do espírito. (Selecta Catholica, 15 de outubro de 1846,
p. 238).
É clara portanto a
proposta educativa que não privilegia apenas os aspectos cognitivos e a
formação de uma razão capaz de brilhantes exercícios de raciocino. Embora
a cognição e a capacidade crítica fossem importantes, a finalidade da
educação é a formação do caráter, que deve iniciar-se desde a infância por
meio do relacionamento familiar.
Sendo independente das
faculdades e dons do espírito, o caráter não obedece nenhuma determinação
seja fisiológica, seja por algum dom inato, mas é formado, cultivado e
independe da capacidade intelectual ou do nível de instrução.
Sendo assim, a
ênfase educacional deveria estar no desenvolvimento do caráter, pois do
mesmo modo que a planta necessita de cuidados em seu cultivo para que
possa fornecer bons frutos, também o homem precisa ser cultivado a fim de
tornar-se ética e moralmente maduro: “O espirito he hum campo que depressa
se cobre de más hervas, quando se deixa sem cultura” (Selecta Catholica,15
de novembro de 1846).
Desse modo, o problema central da educação era que se soubesse propor a
melhor cultura para o tipo de “solo” que a natureza humana
representava. Uma cultura capaz de atingir da mesma maneira
tanto os homens mais rústicos quanto os mais polidos, tanto os de classes
populares quanto abastadas, já que, para os editores da Selecta
Catholica, todos os homens são iguais. Os pobres, os ricos, os negros,
os órfãos, os brancos, todos deveriam ser educados pelos métodos e com a
mesma finalidade.
A cultura educacional proposta por esses religiosos tinha
alguns aspectos principais: o respeito pela tradição da Igreja, que era
vista como depositária dos saberes fundamentais; o relacionamento virtuoso
entre mestre e aluno, baseado na autoridade do professor e o empenho para
o bom desenvolvimento das faculdades da alma, formando pessoas virtuosas
capazes de integrar a sociedade.
Por um lado, era essencial que o educador soubesse oferecer
instrumentos capazes de formar o ser humano, promovendo uma educação capaz
de levá-lo à realização como ser e como utilidade para a sociedade. Por
outro lado, encontrava-se a liberdade da pessoa que aderia à proposta,
confiava, obedecia e acreditava naquilo que lhe era ofertado. A cultura
educacional, portanto, teria dois pólos igualmente ativos que deveriam
se complementar: o educador, que sabe o que propor para o adequado cultivo
do espírito de seus alunos, e o educando, que deseja e aposta livremente
na sua formação.
Mas, no que o educador deveria se fundamentar para saber
que tipo de cultura educacional propor?
Para a Selecta Catholica, as bases da adequada
proposta educativa encontravam-se na tradição.
Os saberes da tradição
como fundamento da educação
Na história
da tradição cristã, a concepção da educação como cultivo e principal
instrumento para a formação do homem virtuoso parece ser muito antiga.
Podemos remetê-la à corrente aristotélico-tomista adotada a partir da
Segunda Escolástica, que vai ser amplamente utilizada entre os jesuítas (Pécora,
1994; Massimi, 2003) e outras ordens e congregações da Igreja Católica.
Mas também na Antigüidade, encontramos Platão, no Convite,
afirmando a importância de que o jovem fosse educado dentro dos parâmetros
da filosofia como única forma de aproximar-se da Verdade e do Bem. Na
República, Platão afirma que as mais importantes prescrições para a
cidade são a instrução e a educação.
Assim a concepção de homem que dava subsídios para a proposta educativa
encontrada na Selecta Catholica tinha origem na tradição da Igreja
construída desde a época dos primeiros cristãos e nas sínteses entre os
fundamentos do cristianismo e as filosofias clássicas, como é o caso da
filosofia tomista e agostiniana.
O
referencial aristotélico-tomista que foi o mais utilizado após o Concílio
de Trento, contribuiu para a idéia da educação como cultivo, pois
considerava que o ser humano deveria desenvolver um percurso evolutivo,
passando de uma primeira natureza imperfeita para uma segunda natureza
mais perfeita (Hourdakis, 2001). Esse processo acontecia por meio da
aquisição de hábitos.
Para Tomás de Aquino, hábito era uma disposição firmada no tempo de
responder de forma virtuosa ou viciosa às circunstâncias externas que
afetavam a pessoa (ASSIS, 1998), culminando em uma ação que se tornava
freqüente e costumeira por ter sido realizada muitas vezes (Boehner e
Gilson, 1995). Para o filósofo, uma inicial disposição da alma
transformava-se em hábito como a criança transformava-se em adulto.
Desse modo, o cultivo da alma, por meio da educação, tinha o objetivo de
constituir a moralidade e os hábitos virtuosos. Para a educação do jovem,
a formação do hábito era fundamental porque fazia com que uma prática que
inicialmente não fosse naturalmente agradável se tornasse prazerosa devido
ao costume (Assis, 1998). O hábito do estudo, por exemplo, se bem formado,
poderia fazer com que um menino que inicialmente não gostasse de estudar,
ao realizar este ato inúmeras vezes começasse a se dar conta da
importância e do prazer dessa atividade.
Lauand (2003) explica a relação entre a formação moral do homem, os
hábitos e a educação:
Neste quadro, podemos compreender a doutrina de Tomás sobre a virtude. A
virtude – como também seu oposto: o vício – é um hábito (naturalmente, a
virtude é hábito bom; e o vício, mau). O nosso tempo anda tão desorientado
no que diz respeito à Educação Moral que a própria palavra hábito nos
causa aversão: associamos hábito a condicionamento, domesticação, etc.
Porém, o verdadeiro sentido do hábito, o que lhe dá Tomás, nada tem que
ver com essas deformações. Hábito é pura e simplesmente uma qualidade
adquirida (auto-adquirida e livremente desenvolvida) que facilita e
aperfeiçoa a ação e aperfeiçoa também o próprio homem (s.p.).
A
constante repetição de atos ou conteúdos, na concepção
aristotélico-tomista, tem um sentido bastante ativo, já que a repetição
fazia com que algo se imprimisse de forma mais duradoura na alma humana,
transformando-se em hábito. Mas apenas a repetição mecânica não bastava,
já que adquirir hábitos bons ou maus dependia exclusivamente do julgamento
e da liberdade da pessoa.
Assim, o processo de aprendizado passava pela repetição e pela memória,
mas dependia do juízo dado sobre as circunstâncias, bem como da livre e
ativa adesão do educando ao conteúdo ou à conduta ensinada.
Também na perspectiva
agostiniana o que era aprendido ficava retido na memória, tornando-se um
saber duradouro quanto mais fosse possível ruminá-lo por meio da
recordação (Boehner e Gilson, 1995).
O hábito, como afirma
Lauand (2003), não significava domesticação, condicionamento, ou seja, uma
obediência passiva a algum agente externo, pois implicava na escolha e
liberdade de um sujeito em aderir a ações, normas, regras ou leis que
incrementavam o seu ser. Se, como descreve Lauand (2003), um jovem entende
que evitar x e aprender sobre y leva-o para o caminho de sua
realização, ele adquire o hábito de y, tornando-se virtuoso e cada
vez mais perfeito. Mas para chegar a y é preciso primeiro a escolha
livre desse passo e depois um certo esforço durante o caminho.
Para falar desse
percurso em que deve haver o cultivo da alma cujo objetivo é incrementar o
ser humano, a Selecta Catholica utiliza a metáfora do
crescimento e desenvolvimento da árvore, afirmando que as flores da
mocidade culminam nos frutos da idade madura. Há, portanto, um
caminho a ser percorrido da infância e da juventude até a idade adulta.
Como uma árvore frutífera passa pelas estações do ano, a pessoa passa
por mudanças:
Se reflecto hum instante sobre mim mesmo, eu direi: “Meos bellos dias
vão-se obscurecer, e o resplendor que me cerca em breve desaparecerá com
as folhas das árvores. Nossa sorte neste mundo terá também suas estações?
Neste caso, eu recorrerei no inverno da minha vida às provisões que eu
tiver feito nos dias da minha prosperidade, e procurarei fazer uso dos
fructos da minha educação e de minha experiência (Selecta Catholica,
1 de agosto de 1846, p. 89).
Massimi (2001) comenta
que na Companhia de Jesus, houve a elaboração de um método de formação do
homem que tinha como um de seus instrumentos o “percurso evolutivo da
infância até a maturidade pela educação” (Idem, p. 2). Para a
eficácia desse método se fazia necessário o conhecimento da subjetividade
e da dinâmica das relações sociais.
Na tradição cristã, construída desde os primeiros cristãos, encontramos a
idéia da necessidade de uma transformação do homem do seu nascimento até a
vida adulta, dando-nos a imagem de um percurso a ser realizado. São Paulo,
em suas Cartas, afirma que o homem nasce em um estado de
carnalidade que deveria se transformar num estado espiritual ao longo do
tempo. O primeiro estado, o de carne, é o do homem que concebe sua vida
fora do relacionamento com Deus. A segunda natureza a que o homem deveria
aspirar, a condição espiritual, definia o homem como Filho de Deus e
correspondia ao estado de plena realização (Massimi,1986).
Podendo haver uma certa oposição entre carne e espírito, um
dos mecanismos que viabilizava o percurso do homem da vida carnal para a
espiritualidade era o controle das paixões. Nesse sentido, o equilíbrio
entre as faculdades intelectivas e as faculdades sensitivas da alma era um
ponto nevrálgico da moralidade humana e conseqüentemente deveria ser
levado em consideração na educação.
O bom uso da inteligência e a moderação das paixões da alma
eram aspectos fundamentais da educação bem dirigida capaz de colocar o
jovem no caminho que o leva ao alcance da maturidade:
Se diz que veio trazer a guerra, elle falla da guerra que devemos fazer as
nossa paixões, e da opposição que deve haver entre a carne e o espirito,
para vivermos huma vida espiritual. (Selecta Catholica, 1 de junho
de 1847, p. 332).
Assim, no que se refere aos filósofos clássicos e aos
autores cristãos, principalmente os humanistas, a educação era vista como
tendo um papel primordial no que se refere ao desenvolvimento das
faculdades da alma e à formação de hábitos capazes de conduzir o homem
para o caminho de encontro com o Ser, a Verdade, a Justiça, a Felicidade,
o Belo e também consigo mesmo.
A filosofia clássica
sempre afirmara a idéia da necessidade de um percurso educativo que
conduzisse a evolução do homem de uma primeira natureza para uma segunda
natureza mais perfeita que se expressava no cultivo da alma e no cuidado
de si. A novidade da perspectiva pedagógica cristã era que esse percurso
tivesse como finalidade a imitação do comportamento de Cristo (Cambi,
1999). Desse modo, para Cambi (1999), o cristianismo operou uma revolução
cultural quando colocou um novo modelo antropológico, cujo centro é
Cristo, que modelou toda a visão de sociedade e reinventou o papel da
família, da educação, do trabalho e o da política.
Uma segunda diferença
entre a tradição grega e a cristã, que caracterizava a proposta
educacional encontrada na Selecta Catholica, é a concepção
de vontade (Reale e Antiseri, 1990). Para os filósofos gregos, a
vontade era uma faculdade da alma ligada ao intelecto que indicava
uma meta a ser alcançada. Para os cristãos, porém, além de indicar a
direção a ser tomada, a vontade é uma força que determina
autonomamente a vida e que é intimamente ligada e determinada pelo
sentimento religioso. Essa noção de vontade, ao mesmo tempo que
traz em si a idéia de liberdade, que é a característica humana mais
perfeita, implica também em uma dramaticidade da vida do homem que se
debate na contradição do querer humano que ora volta-se para Deus e ora
para o mundo:
Deos e mundo, o mais amável dos pais e o mais cruel dos tyrannos, eis-aqui
entre quem nós temos que optar. [...] Ainda porem que o mundo assim não
fosse, ainda que não fossem suas venturas tão apparentes, suas promessas
tão enganadoras, tão capciosos, tão falsos seos sorrisos, quem ousaria
preferir sua belleza á belleza celeste, sua amabilidade á amabilidade de
Deos? (Selecta Catholica, 1 de outubro de 1846, p. 210).
A vontade é o
princípio de atividade da alma relacionado ao querer e
conseqüentemente à liberdade. De acordo com Boehner e Gilson (1995), a
vontade, desse modo entendida, não é apenas uma parte do homem, como
as outras potências da alma, mas ela está na raiz daquilo que o homem é.
Assim, a vontade praticamente se identifica com o homem (Boehner e
Gilson, 1995), já que as principais características do ser humano seriam
seu movimento para Deus e seu desejo de Deus.
Sendo que o homem tende
para o sumo bem, como o ar tende para cima, a educação deveria ter como
seu aspecto fundamental o cultivo da alma e o cuidado com suas faculdades
em seu caminho de tendência para o bem e para as virtudes.
Assim, a educação bem
dirigida, segundo a Selecta Catholica, deve ser capaz de
formar o adulto virtuoso e autenticamente cristão, ou seja, homens
instruídos, caridosos e úteis aos semelhantes.
A idade madura: a
educação como instrumento essencial para o desenvolvimento das faculdades
da alma
A
valorização de uma educação calcada em princípios da tradição cristã viria
da crença de que ela é o instrumento essencial para a formação de membros
do corpo social cujas vontades estejam orientadas para Deus.
Desse modo, cuidar da educação dos órfãos, de muitos meninos, de filhos de
famílias abastadas, de meninas e jovens moças seria cuidar de um dos mais
eficazes instrumentos de salvação para a sociedade. Essa idéia vai fazer
com que a educação infanto-juvenil seja bastante valorizada nas páginas da
Selecta Catholica, existindo inúmeras prescrições sobre a infância
e a juventude e sua singular importância no percurso evolutivo do homem.
Cambi (1999) coloca a
dignidade da infância com uma das principais contribuições do modelo
antropológico e social inaugurado pelo cristianismo. Para o periódico
mineiro, a valorização desse período da vida humana aparecia nas narrações
da Escrituras sobre o nascimento e os acontecimentos
específicos da infância de Cristo e de seus ensinamentos quando diz que
deixasse vir a ele os pequeninos e que os homens deveriam tornar-se como
criança para ganhar o reino dos céus.
Sendo, portanto, a
infância um importante período da vida humana, a comunicação dos preceitos
e verdades reveladas pela tradição da Igreja deveria ser a finalidade da
educação dada pelas famílias às suas crianças. Também os órfãos, em vez de
serem deixados à marginalidade, abandono e morte, deveriam ser batizados,
recolhidos e educados na mesma perspectiva cristã que as famílias
instruíam seus filhos, incluindo-se, desse modo, no corpo social e
tornando-se instrumentos de salvação do próximo.
De fato, na Selecta
Catholica, encontramos a idéia de que o fruto da idade madura é a
utilidade aos semelhantes. Tal utilidade seria a prova de uma educação bem
dirigida que foi capaz de desenvolver adequadamente as faculdades da alma
e de cultivar bons hábitos em crianças e jovens que, com o passar do
tempo, tornaram-se homens maduros.
Em alguns fragmentos do
jornal, aparece a palavra desenvolvimento indicando o período de
emergência das faculdades entre a infância, quando as faculdades estão
ocultas, como os autores mesmo dizem, e a idade madura, quando todas as
faculdades da alma já progrediram. Junto do desenvolvimento das faculdades
da alma está o desenvolvimento físico:
Por quantas revoluções meo corpo não tem passado desde a sua formação? Em
cada anno perde alguma cousa do que lhe faz parte; em cada anno tambem
adquire novas partes, tiradas dos differentes reinos da natureza. (Selecta
Catholica, 1 de dezembro de 1846, p. 345)
O percurso evolutivo da
infância até a maturidade parece obedecer a etapas em que o
desenvolvimento das faculdades da alma é acompanhado do desenvolvimento do
corpo.
A tradição agostiniana,
muito recorrente no discurso do periódico mineiro, parte do pressuposto de
que o homem terreno passa por seis etapas de desenvolvimento: na
primeira, as energias da criança estão a serviço das funções nutritivas.
Na segunda fase, a infância, acontece o despertar da memória. Em seguida,
viria a adolescência, marcada pela possibilidade de procriação; e a seguir
a juventude madura, em que se inicia a participação do jovem nos ofícios
públicos e a sujeição às leis. A quinta etapa é a idade adulta e a sexta,
a velhice, época em que as doenças e limitações começam a aparecer,
indicando a proximidade da morte. A vida espiritual se desenvolve como o
corpo, porém o seu tempo é diferente do tempo fisiológico, pois não se
conta pelos anos, mas pelos progressos realizados (Boehner e Gilson,
1995).
Da mesma maneira que há o corpo infantil, existe a
infância da alma, quando as faculdades da alma humana (entendimento,
vontade, inteligência, sensibilidade) ainda não se desenvolveram
plenamente.
Se o homem é como uma
árvore, aparecendo a analogia com a concepção platônica de homem colocada
no Timeu, quando é criança é como um broto, que traz em si a
promessa da árvore madura a qual, sendo bem cultivada, produz bons frutos.
O desenvolvimento é um devir, um percurso evolutivo de algo que se
encontra em potência:
Bem se parece comigo este tenro renovo; e aquelles á quem o céo confiou o
cuidado da minha infância, esperando então pelo meo desenvolvimento não
poupando nem despeza, nem trabalho para formar-me e instruir-me.
Esmerão-se com o mais tenro desvelo na minha educação: aspirão ao ditoso
momento, em que as flores da mocidade hão de succeder os fructos da idade
madura. (Selecta Catholica, 1 de julho de 1846, p. 23).
O desenvolvimento das faculdades da alma e consequentemente
o da pessoa seguem o mesmo caminho das árvores em seu processo natural: do
botão da infância, tenro renovo, para a flor da mocidade, da flor da
mocidade para os frutos da idade madura.
Assim, quando a
Selecta trata da infância, a fase do broto, ressalta-se a importância
da instrução dada pela família, das tarefas das mães e do cuidado paterno
na escolha dos mestres. Quando trata da mocidade, o periódico descreve
principalmente o cuidado com as paixões e o cultivo do hábito da virtude.
E a idade madura é o fim a que o homem deve almejar, como se vê no
seguinte trecho:
Terna mãi, pagarte-hei com usura o amor, de que tão eternecidas mostras
prodigalisais comigo; e tu, ó meo virtuoso pai, verás satisfeitos teos
desejos, vendo-me esforçar por ajudar os teos esforços, corresponder ás
graças do ceo, e fazer-me cada dia mais sisudo, mais instruído, mais pio e
mais amavel. Fecharei cuidadosamente meo coração ás fogosas paixões da
mocidade, tão infaustas para a innocencia (Selecta Catholica, 1 de
julho de 1846, p. 23).
Este trecho sintetiza a
segunda natureza que o homem deveria alcançar, pois o homem maduro deve
ser sisudo, pio, amável e instruído. Esse homem é o fim de uma educação
bem cultivada que reúne, como diz o trecho, os cuidados e esforços dos
pais nesse processo e o empenho do filho que deve ter passado pelas etapas
do desenvolvimento que, entre outras coisas, exigem o cuidado com o
arrebatamento das paixões que é próprio da mocidade.
Conclusão
Tendo como
ponto de partida os saberes veiculados pela tradição cristã que havia se
apropriado da filosofia clássica, principalmente de cunho aristotélico e
platônico, a concepção da educação como meio fundamental de construção do
hábito virtuoso que constitui os homens maduros era o fundamento de
modelos educacionais vigentes no século XIX e em períodos anteriores.
Na Selecta Catholica a preocupação com a formação de homens
capazes de protagonismo diante da realidade é um aspecto central das
propostas educativas. De fato, o próprio conceito de vida virtuosa traz em
si a idéia de que a verdadeira virtude é aquela que se expressa em ações
concretas no mundo, havendo uma relação muito estreita entre os campos da
moral e da política.
Para a formação de homens virtuosos, os religiosos responsáveis pela
organização da Selecta Catholica acreditavam ser fundamental
que a educação soubesse discernir os seus fins e oferecesse os meios
adequados para que o trajeto do desenvolvimento humano fosse percorrido.
Nesse percurso haveria o florescimento das faculdades da alma e junto
disso o desenvolvimento dos hábitos e virtudes necessárias para o ser
humano e para a sociedade na qual estava inserido.
Assim, partindo do pressuposto de que é essencial para a vida do ser
humano o cuidado com o cultivo da alma e com a formação de hábitos
virtuosos, existe, na tradição educacional aqui investigada, uma noção de
um percurso evolutivo que tem um modelo ideal de homem como meta.
Nessa proposta educativa fundamentada nos saberes filosóficos relacionados
à tradição escolástica, portanto, a educação é vista como formadora da
pessoa, entendendo-a como algo a mais do que apenas a dimensão intelectual
ou natural do homem. De fato, pessoa, segundo Massimi (1999), é a
constituição do homem segundo suas dimensões corporal, social e
espiritual, cuja característica seria a possibilidade de uma certa
liberdade e autonomia diante do determinismo das leis biológicas e do
ambiente.
Pensar a educação
dessa determinada maneira fez com os editores da Selecta Catholica
propusessem a educação como cultura e cultivo, colocando-a como centro e
ponto fundamental da vida humana entendida como percurso e possível
peregrinação.
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