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Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Contestado e Canudos:
algumas reflexões sobre a religiosidade
Landless
Workers Movement, Contestado and Canudos: some reflections on
religiosity
Eliane
Domingues
Universidade Estadual de Maringá
Brasil
Resumo
Os movimentos sociais no
campo, de acordo com Martins (1993), em sua quase-totalidade,
são marcados pela religiosidade. Partindo desta premissa,
propõe-se neste artigo estabelecer algumas comparações entre o
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Contestado
e Canudos. Recorreu-se a um breve levantamento histórico, à
sociologia e à psicanálise como referenciais teóricos
norteadores das reflexões. Em Marx e Freud as idéias religiosas
são identificadas a ilusões. Para Marx, a origem social da
ilusão estava nas relações de classe, enquanto a origem
subjetiva estava no desconhecimento. Para Freud, a origem da
religião está no sentimento de desamparo e impotência humana, e
a mesma cultura que produz sofrimento é a que disponibiliza as
representações religiosas para aliviá-lo. Estas idéias são
discutidas, assim como seus limites para compreensão do papel
desempenhado pela religião no MST.
Palavras-chave:
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; Canudos;
Contestado; religião; psicanálise. |
Abstract
According to Martins (1993) almost all social movements that
occur in the field are marked by religiosity. The purpose of
this article is to establish comparisons between two Landless
Workers Movements (MST), that is, Contestado and
Canudos. A historical survey was done, and both sociology
and psychoanalysis were used as theoretical references to guide
the reflections. In Marx and Freud, religious ideas are related
to illusions. In accordance to Marx, the social origin of
illusion can be found in social class relations, while the
subjective one can be found in ignorance; for Freud the origin
of religion is the human’s feeling of abandonment and impotence,
and the same culture that produces suffering is the one that
make the religious representations available to relieve it. Such
ideas are discussed, as well as their limitations in what
concerns the understanding of the role performed by religion in
MST.
Keywords:
Landless Workers Movements; Canudos; Contestado; religion;
psychoanalysis. |
A Lei de
Terras de 1850 e a Proclamação da República
Quando ainda havia terras livres e sem
impedimentos à ocupação, não era necessário lutar por sua posse. A luta
começa a ser necessária quando o camponês se vê, de alguma forma, impedido
de ter acesso à terra, de tirar dela o seu sustento e o de sua família e
de manter sua condição de camponês.(1)
Enquanto
vigorou a escravidão no Brasil, não era difícil ao camponês ocupar seu
espaço, pois havia longas extensões de terras devolutas
(2), e a própria terra pouco valia, pois o que valia eram os
escravos (Martins, 1981). Ter muitos escravos, mais do que ter muita
terra, era sinônimo de poder. Mas esta situação começou a mudar com a
extinção do tráfico negreiro, em 1850; já era previsto o fim da escravidão
e com ele a necessidade de impedir a livre ocupação das terras devolutas.
De acordo com Martins (1981), “(...) num regime de terras livres, o
trabalho tinha que ser cativo, num regime de trabalho livre a terra tinha
que ser cativa”. (p.32).
No mesmo
ano de 1850, foram tomadas as primeiras medidas em relação à vinda de
imigrantes, os substitutos dos escravos nas lavouras de café (Martins,
1981). Para que os imigrantes não ocupassem as terras livres, era
necessária a existência de uma lei que os impedisse de ter acesso a elas;
do contrário, eles se recusariam a trabalhar nas fazendas e não seriam a
solução para a substituição do trabalho escravo. Assim, a Lei de Terras de
1850 veio a constituir-se em impedimento ao acesso à terra aos negros e
imigrantes.
Com a Proclamação da
República, as terras devolutas se tornaram propriedade dos Estados. Estes
eram controlados pelas oligarquias regionais e passaram a conceder estas
terras a grandes fazendeiros e empresas de colonização, principalmente nas
regiões Sul e Sudeste. Muitas vezes as áreas já estavam ocupadas por
posseiros que não possuíam título de propriedade e, de acordo com a Lei de
Terras de 1850
(3), eles poderiam ser expulsos (Martins, 1986).
Esta
mudança do controle das terras devolutas do governo central para os
Estados foi estabelecida pela Constituição de 1891, que, além de
determinar o controle das terras devolutas pelos Estados, reforçou a
liberdade destes e concedeu-lhes a competência exclusiva de decretar
impostos sobre exportações de mercadorias de sua própria produção, imóveis
rurais e urbanos. Tais mudanças - convém ressaltar - não tiveram a
participação popular nem trouxeram benefícios à população. Os camponeses,
certamente, também não foram beneficiados com terras devolutas e impostos.
De acordo com Villa (1995),
os
grandes temas nacionais (República, federação e outros) somente
interessavam à elite, pois passavam ao largo das questões essenciais à
sobrevivência dos sertanejos. O novo regime, na medida em que aprofundou
os conflitos entre os dominantes e dominados pelo controle da res
publica, representou para a sofrida população rural uma intensificação
da exploração econômica. A República passou a ser sinônimo de miséria,
opressão, imposto, fome e morte. (p.77)
As guerras de Canudos (1896-1897) e do
Contestado (1912-1916)
Canudos e Contestado representaram de certa forma movimentos de reação à
República. Não propriamente ao regime político republicano, mas ao
significado que lhe foi atribuído pelo sertanejo: de uma nova ordem que
favoreceu os poderosos e só instaurou mais opressão. Em contraposição à
República, estes movimentos defendiam a idéia de monarquia, que
significava uma nova ordem sem opressão, e não a restituição do poder
monárquico.
Ambos
podem ser identificados como movimentos milenarista-messiânicos
(4). Para Negrão (2001), o messianismo caracteriza-se pela crença
na vinda do “messias” ou do seu emissário para acabar com uma ordem de
opressão e instaurar uma nova ordem. O movimento messiânico implica uma
atuação coletiva no sentido de instaurar esta nova ordem, sob a direção de
um líder carismático. Se for associado ao movimento messiânico um
escathon final, temos um movimento milenarista-messiânico; entretanto
um movimento também pode ser só milenário, sem ser messiânico.
Tanto
Canudos como Contestado foram organizados ao redor de líderes
carismáticos, figuras míticas centrais, os profetas: em Canudos, Antônio
Conselheiro, e no Contestado, João Maria e José Maria. De acordo com Gallo
(1999), o profeta é um elemento central ao milenarismo-messianismo; é
aquele que explica aquilo que os homens se julgam impotentes para explicar
e dá esperança àqueles que estão desesperados.
O
primeiro profeta citado, Antônio Conselheiro, vagueou pelo Nordeste do
Brasil durante muitos anos. Usava barba e cabelos compridos, túnica azul e
um cajado. Em suas andanças, não aceitava esmola mais do que o suficiente
para aquele momento: comia pouco, fazia jejuns e não aceitava leito,
sempre dormia numa tábua dura. Percorreu o Sul do Ceará, a Bahia,
Pernambuco e Sergipe, sendo solicitado a dar conselhos e acompanhado por
pessoas, as quais não convidava a acompanhá-lo (Cunha, 1902/2000).
Apenas depois de proclamada
a República Conselheiro começou a incomodar as autoridades, quando, além
de fazer suas pregações, passou a opor-se à República. Segundo
Cunha(1902/2000), Conselheiro assumiu, a partir de 1893, uma feição
combatente inteiramente nova. Esta feição combatente caracterizou o
episódio em que ele reuniu o povo em um dia de feira e mandou queimar as
tábuas de cobrança de impostos afixadas pela Câmara de Bom Conselho, na
Bahia, quando foi decretada a autonomia dos municípios. Esta atitude o
levou a fugir com seus seguidores para Canudos
(5), perseguidos pela polícia.
Com a chegada de Conselheiro, Canudos – que passou a ser
chamada de Belo Monte – cresceu rapidamente e casas foram construídas. As
cidades e lugarejos da região começaram a ser saqueados
(Cunha,
1902/2000).
De
acordo com Villa (1995), por não se sujeitar ao novo regime e não pagar
impostos, Canudos passou a representar, na visão do governo republicano,
um mau exemplo para a população, que já se revoltava com a cobrança de
impostos e via em Canudos um modelo a seguir.
Assim,
as condições para uma guerra estavam postas. O estopim para que ela
estourasse foi a não-entrega da madeira comprada por Conselheiro para a
construção de uma igreja e sua ameaça de arrancá-la à força – o que levou
o governador do Estado a solicitar força policial para detê-lo (Cunha,
1902/2000).
Quatro
expedições foram necessárias para derrotar Canudos. Não se sabe ao certo
de quantos habitantes chegou a ser a população de Canudos. Villa (1995),
acredita que houve um certo exagero quanto ao número divulgado pelo
exército para justificar a longevidade da campanha. Para ele, o número não
deve ter sido superior a 10.000 habitantes. Sobre as baixas do exército,
também não existem números exatos, mas as baixas das quatro expedições não
foram inferiores a 5.000 homens.
Quanto a
Canudos ter sido ou não um movimento milenarista-messiânico, há
divergências. Para Villa (1995), Canudos não foi um movimento
milenarista-messiânico, mas sim, uma comunidade religiosa liderada por um
beato. Um dos argumentos utilizados pelo autor para defender sua posição é
que não há referência à liderança messiânica de Conselheiro nos jornais e
documentos oficiais da época. Já Cunha (1902/2000) via em Canudos um
movimento milenarista-messiânico, como mostra a passagem abaixo, sobre os
sertanejos de Canudos:
(...) o
que neles vibra, em todas as linhas é a mesma religiosidade difusa e
incon-gruente, bem pouca significação política permitindo emprestar-se às
tendências expostas. O rebelado arremetia com a ordem constituída porque
se lhe afigurava iminente o reino de delícias prometido. Prenunciava-o a
República — pecado mortal de um povo — heresia suprema indicadora do
triunfo efêmero do Anti-Cristo (p.171).
Sobre a
Guerra do Contestado, convém destacar que em 1908, em plena região
contestada
(6), foi montado o escritório central da Companhia Brazil Railway,
encarregada da construção da estrada de ferro São Paulo - Rio Grande. Em
1911, a construção desta ferrovia expulsou os posseiros que ocupavam as
terras devolutas situadas às margens da linha férrea, pois estas terras
foram concedidas à companhia pelo governo, como pagamento pela construção
desta estrada.
À
expulsão dos posseiros somou-se a violência da Companhia Brazil Railway
contra os trabalhadores por ela contratados. Foram trazidos de 4 a 8 mil
homens do Rio de Janeiro e Pernambuco para a construção da estrada de
ferro, com a promessa de que seriam, após a construção, levados de volta
aos seus estados de origem; mas esses trabalhadores foram enganados e
abandonados à própria sorte e, uma vez que lei estava na mão dos
opressores, não tinham a quem recorrer.
Em meio
à insatisfação geral e como ressonância desta, insere-se João Maria
(7), figura mítica que desde os fins do século XIX perambulava do
Rio Grande do Sul a Mato Grosso, exercendo funções de curandeiro e
sacerdote – organizava rezas, batizava, casava - além de fazer profecias.
Os camponeses da região chegavam mesmo a atribuir-lhe poderes mágicos e
lhe tinham grande devoção, pois, mais do que curandeiro, sacerdote e
profeta, João Maria era intérprete dos desejos daqueles que não
encontravam escuta. Assim como os camponeses expropriados, identificava a
República com o regime dos coronéis e almejava um regime que não fosse
regido pelos desmandos destes, regime ao qual chamava monarquia (Queiroz,
1977).
Segundo
Gallo (1999), João Maria inspirava-se no Apocalipse de São João e fazia
previsões apocalípticas sobre o fim dos tempos, por isso recomendava que
todos fizessem penitência. Identificava a República à ordem do Demônio e a
Monarquia à ordem de Deus. Preconizou a Guerra do Contestado e partiu
misteriosamente por volta de 1908.
Em 1912
apareceu José Maria, o novo messias esperado. Enquanto João Maria previu
o conflito, foi em torno da figura de José Maria que ele eclodiu. A José
Maria, assim como a seu antecessor, eram atribuídas idéias monarquistas.
Ao redor de sua figura aglomerou-se muita gente: os expulsos de suas
terras e os que ali ficaram após a construção da ferrovia. Isto causou
temor às autoridades locais e levou José Maria a fugir de Santa Catarina
para o Paraná, temendo um ataque. Cerca de 40 homens o acompanharam. Porém
ele não foi bem-vindo ao Paraná (sua chegada foi interpretada como invasão
do Estado por catarinenses); expulso novamente, morreu em combate em Irani
- PR (Queiroz, 1977).
Após a
morte de José Maria, seus fiéis passaram a acreditar na sua ressurreição e
alguns deles começaram a ter visões. De forma semelhante a Canudos,
começaram a se organizar em redutos e atacar cidades e fazendas da região.
Uma estação da ferrovia São Paulo - Rio Grande foi queimada, assim como a
serralharia da Lumber (Companhia Colonizadora pertencente à Brazil
Railway). Cidades e fazendas também foram queimadas, pessoas foram mortas,
somente mulheres e crianças eram poupadas. No auge do Movimento, chegaram
a ocupar um território de 28.000km2, área correspondente ao
Estado de Alagoas (Queiroz, 1977).
Para
vencê-los, as tropas federais foram chamadas a intervir, já que as
estaduais não conseguiriam derrotá-los. Foram cerca de 7.000 homens, que
utilizaram como estratégia o cerco. Impediram a chegada de alimentos e
munição aos redutos, o que levou muitos à rendição, principalmente velhos,
mulheres e crianças. Os que se rendiam, se considerados inofensivos, eram
libertados; se não, mortos. Quando os militares chegavam aos redutos
queimando tudo, muitos fugiam e escondiam-se nas matas; porém, quando os
militares proclamaram vitória, eles voltaram a se organizar. Construíram
novos redutos, que foram novamente atacados e finalmente destruídos
(Queiroz, 1977).
Queiroz
(1977) e Gallo (1999) caracterizaram o Contestado como um movimento
milenarista-messiânico. Para Queiroz (1977), o messianismo leva à recusa e
alienação do mundo e à criação de uma nova comunidade que acredita na
transformação sobrenatural do mundo e na identificação do passado como a
"idade de ouro". "No Contestado, a recusa do mundo assumiu o caráter de
idealização de um reino de paz, justiça e fraternidade, expresso no
conceito sertanejo de monarquia" (p.254). Gallo (1999), por sua vez,
argumenta:
(...)
discorrer sobre a gênese do movimento do Contestado significa
caracterizar, também, a gênese de outros movimentos
milenaristas-messiânicos. Isto é, as insurreições milenaristas-messiânicas
constituem-se como fenômenos que, apesar de eclodirem subitamente, vão-se
gestando durante anos e, embora nem sempre tenham uma configuração
idêntica, reproduzem, na sua repetição no tempo, certos temas, como a
figura do taumaturgo, a reunião de gente, as profecias, com relação ao
tempo presente e a promessa com relação ao tempo futuro (p.25).
Em Rebeldes Primitivos, Hobsbwan (1959/1970), ao
abordar movimentos semelhantes a Canudos e Contestado na Europa, como o Lazzarettismo na Itália, destaca que movimentos deste tipo não são
marginais, tampouco sem importância, e que o grande problema por eles
enfrentado é como se adaptar à nova sociedade. Para o autor, aqueles que
compõem movimentos deste tipo não nasceram no capitalismo, mas
introduziram-se nele como imigrantes de primeira geração ou, o que é ainda
mais catastrófico, o mundo capitalista penetrou neles de fora,
insidiosamente, pela atuação de forças econômicas que eles não
compreendiam e que não podiam controlar, ou impruden-temente
pela conquista, revoluções e modificações funda-mentais
da lei cujas conseqüên-cias eles não podiam
compre-ender mesmo quando tinham ajudado a
realizá-las. (p.13).
A Igreja Católica e o surgimento do MST
Com o início da ditadura militar, a Igreja Católica, que tinha chegado a
opor-se veementemente à luta pela terra e pregado a submissão dos
camponeses – como aconteceu em Canudos e Contestado
(8) – passou a ter, em seu interior, setores extremamente
comprometidos, os quais exerceram importante papel na luta pela terra. O
surgimento dentro da Igreja de grupos comprometidos com os camponeses foi
resultante, de acordo com Martins (1989), da influência da sociedade e das
próprias mudanças internas por que vinha passando a Igreja.
O
comunismo que chegava aos campos e as seitas que proliferavam a partir da
década de 1950 também influenciaram a mudança da Igreja, que, temerosa de
perder adeptos, entrou na questão agrária. No entanto, a Igreja entrou na
questão agrária sem romper com os latifundiários, fazendo uma “opção
pela ordem”. Para manter sua posição junto aos camponeses e fazer
frente aos comunistas, identificados como desordeiros, manteve-se como
aliada dos latifundiários. A ruptura com os latifundiários veio
depois, quando a Igreja fez a “opção pelo progresso”. Para que o
desenvolvimento chegasse aos campos e pudesse beneficiar os camponeses,
era necessário superar o atraso no campo, que significava substituir os
latifúndios pela empresa capitalista. Em face da ruptura com os
latifundiários, alguns grupos dentro da Igreja passaram a denunciar a
“indústria da seca”
(9), combater o clientelismo e as formas de sujeição pessoal e a
defender os direitos dos camponeses. Baseados nesta nova orientação,
também passaram a envolver-se com o sindicalismo, disputando território
com os comunistas (Martins, 1989).
Convém
destacar que a questão agrária para a Igreja sempre teve um significado
diferente do atribuído pelos marxistas. Para estes, a propriedade agrária
significava um empecilho ao capitalismo, era uma “questão econômica”,
enquanto para a Igreja significava um empecilho para o desenvolvimento do
homem, porque “brutaliza, marginaliza e empobrece o ser humano”; era uma
“questão moral”. Por assim conceber a questão agrária e por acreditar que
a ditadura militar possibilitaria o desenvolvimento do homem, entre outras
razões, a Igreja apoiou o golpe de 1964 (Martins, 1989).
Não
obstante, o apoio à ditadura militar não se manteve e, a partir de 1968,
os membros da Igreja contrários ao regime passaram a ser vítimas da
repressão. Logo se percebeu que a ditadura não possibilitava o
desenvolvimento do homem, pois quanto mais se desenvolvia o capitalismo,
maior era sua voracidade acumulativa ( Martins, 1989).
Sem
perder de vista todas as mudanças por que passava a sociedade e que
exerciam influência na Igreja, convém lembrar que esta última estava
passando por um processo de mudanças internas. Havia ocorrido, na década
de 1960, o Concílio Vaticano II, que recomendou a criação de uma doutrina
socialmente orientada – a Teologia da Libertação – e a opção preferencial
pelos pobres
(10) (Martins, 1989).
Tendo
como orientação a Teologia da Libertação e a opção preferencial pelos
pobres, começaram a formar-se, na década de 1960, as Comunidades Eclesiais
de Base (CEBs), que foram pequenos grupos de pessoas da periferia ou da
zona rural, organizados por padres e leigos, em torno de uma paróquia
(urbana) ou capela (rural). De acordo com Frei Beto (1981),
dois
fatores correlatos marcam os membros das comunidades rurais e urbanas: a
expropriação da terra e a exploração do trabalho. Migrantes e oprimidos,
os membros das comunidades, se outrora buscavam na religião um sedativo
para os sofrimentos, encontram agora um espaço de discernimento crítico
frente à ideologia dominante e de organização popular capaz de resistir à
opressão (p.20).
Num
momento em que a esquerda tinha sido desmobilizada pelo golpe de 1964 e
sofria com a repressão, as CEBs foram espaço importante de escuta dos
expropriados da terra e explorados pelas relações desiguais de trabalho.
Nelas os camponeses encontraram um lugar para discutir seus problemas
comuns e refletir sobre as ações que seriam tomadas para solucioná-los,
tendo como base uma leitura político-religiosa da Bíblia.
Além das
CEBs, a Igreja passou a contar, a partir do ano de 1975, também com a
Comissão Pastoral da Terra (CPT)– criada com “(...) o objetivo de
interligar, assessorar e dinamizar os que trabalhavam na
pastoral popular junto aos camponeses”, sem a intenção de substituir
sindicatos, partidos políticos ou organizações camponesas. A CPT tornou-se
importante espaço de denúncia e registro dos conflitos no campo; numa
época em que as informações eram controladas, era ela que fornecia à
imprensa dados sobre a violência no campo (Moreira, 1994).
No
interior das CEBs e da CPT formaram-se muitos dos líderes e militantes do
MST. João Pedro Stédile, por exemplo, afirmou, em entrevista à Revista
Caros Amigos
(1997),
ter-se vinculado à CPT no momento em que essa Comissão estava apenas
iniciando suas atividades. Inclusive, a ocupação de Ronda Alta – um dos
marcos históricos do surgimento do MST –, em 6 de setembro de 1979, teve a
participação de um membro da CPT.
Assim, é
possível dizer que a Igreja – especificamente seus setores comprometidos
com a Teologia da Libertação e os camponeses – teve importante papel no
surgimento do MST, não somente pela escuta e pelo espaço de reflexão e
conscientização que propiciou aos camponeses, mas sobretudo por estar
sintonizada com uma prévia dimensão religiosa já presente na luta pela
terra, que é anterior a qualquer aproximação da Igreja com os camponeses
(como nos mostram Canudos e Contestado). Certamente, o trabalho
desenvolvido nas CEBs e pela CPT, orientado pela Teologia da Libertação,
trouxe modificações a esta dimensão religiosa, mas não a criou.
Sobre a
dimensão religiosa presente na luta pela terra e sobre a importância de
estudá-la, Martins (1993) escreve:
Quase
todos os movimentos sociais que conheço, no campo, são também religiosos.
Disso não se fala, particularmente se o pesquisador é ligado a um partido
político de esquerda. Ele prefere deixar esse aspecto de lado. Pois a
religião ‘atrapalha’ a interpretação e questiona os pressupostos
racionalistas do seu trabalho. O que é uma bobagem, pois desse modo
perde-se o conjunto dos componentes (p.105).
A religião em Marx e Freud: pensando
sobre Canudos e Contestado
Sem a pretensão de esgotar ou abranger
tudo o que foi dito por Marx e Freud sobre a religião - o que fugiria ao
objetivo deste artigo -, pretendo apresentar algumas idéias destes autores
que nos ajudam a pensar sobre o tema, lembrando que suas formulações foram
construídas em uma época e contexto distintos; e ao trazer suas idéias
para pensar os movimentos que aqui nos interessam, certamente aparecem
questões que não foram pensadas por esses autores.
Inicialmente, é possível dizer que Marx
e Freud se aproximam em três pontos. O primeiro é que, por compartilharem
uma certa visão negativa da religião, nenhum dos dois vê nesta a
possibilidade de estar associada à resistência de indivíduos diante de uma
ordem estabelecida desfavorável. O segundo ponto se liga ao comum
entendimento da religião como uma forma de ilusão. O terceiro ponto se
refere à atribuição de uma dupla origem à religião – a social e a
subjetiva -, embora Marx privilegie a social e Freud a subjetiva e ambos
tenham claras divergências no que concebem como social e subjetivo.
Para Marx, de acordo com Bertrand
(1989), a raiz social da ilusão é a relação de classe, enquanto a
subjetiva é o desconhecimento (ignorância). A crítica à ilusão deveria
visar ao mundo real, que cria situações nas quais o homem necessita de
ilusões. Esta explicação, que privilegia a origem social da ilusão, para
Bertrand (1989), não pode prescindir da explicação psicológica. Se a
ilusão, por um lado, tem origem num real exterior que produz sofrimentos,
por outro, os homens só conseguem encontrar soluções imaginárias para o
fim desta situação. Estas soluções imaginárias remetem a uma dimensão
subjetiva que não deve ser esquecida nem se reduz ao desconhecimento.
Diante disso, podemos pensar, a partir
de Marx, que os movimentos de Canudos e do Contestado são resultantes,
principalmente, de condições extremas de miséria e exploração (sociais),
que, somadas ao desconhecimento (ignorância), levaram aquelas pessoas a se
organizar em torno da idéia de mundo melhor (monarquia), que seria a
solução imaginária de que fala Bertrand (1989).
Interessante observar que, atualmente,
os movimentos milenarista-messiânicos tendem a escassear, mas não a
desaparecer. As reivindicações de ordem econômica daqueles que se
encontram de certa forma excluídos encontraram outros canais de expressão,
a exemplo de movimentos massivos e políticos como o MST (Negrão, 2001).
Entretanto,
nas
sociedades contemporâneas, há outras clivagens além da de classe social
produtora de carências, necessidades e insatisfações. No fundo, os
problemas da teodicéia e da busca de salvação permanecem, mesmo que outras
alternativas não religiosas com eles disputem o apanágio das soluções. Em
função mesmo dessa concorrência entre o sacral e o secular, com este
oferecendo soluções ‘racionais’ para os males da vida, a busca de soluções
do primeiro tipo tende a diminuir. Mas mesmo entre indivíduos de alto
nível de escolarização e afeitos à utilização das mais modernas
tecnologias, cidadãos dos mais modernos países, como vimos nos exemplos
dos EUA, a solução mágico-milenarista ainda permanece. Neste país há
jovens extremamente afeitos à cultura tecnológica que se suicidam na
certeza de serem levados, ressurretos, por discos voadores.
Logo,
reduzir a dimensão subjetiva da religião ao desconhecimento (ignorância)
não é suficiente. Vamos, então, ver o que Freud pensa sobre a religião.
É de
todos conhecida a idéia de Freud de que "a religião seria a neurose
obsessiva da coletividade humana" (1927/1996a, p.2985)
(11)
e sua aproximação das
idéias religiosas às idéias delirantes, a qual mais interessaria aqui
discutir. Para ele a idéia de que o “messias” vai chegar e instaurar uma
idade de ouro é ao mesmo tempo uma ilusão e uma idéia delirante. Em
1930/1996b, Freud diz:
Particular importância adquire o caso no qual numerosos indivíduos
empreendem juntos a tentativa de procurar uma segurança de felicidade e
proteção contra dor por meio de transformação delirante da realidade.
Também as religiões da Humanidade devem ser consideradas, como semelhantes
delírios coletivos. (p.3028).
Aqui, de
certo modo, as idéias de Freud se aproximam das de Cunha (1902/2000) sobre
Conselheiro e a Guerra de Canudos. Cunha diz que o líder de Canudos, da
mesma forma que entrou para história, poderia ter entrado para o hospício.
Considerava que Conselheiro tinha uma modalidade de "psicose progressiva"
e idéias delirantes, e que entre suas idéias e a coletividade existia uma
espécie de mutualidade, e para entendê-lo era necessário entender a
psicologia da sociedade que o criou.
Não
obstante, ao mesmo tempo em que aproxima as idéias delirantes das
religiosas, Freud (1927/1996b) esclarece que existem diferenças entre
ambas. As primeiras são mais complexas e apresentam contradição com o
real. Já as ilusões não são necessariamente irrealizáveis ou contrárias ao
real, embora prescindam de toda garantia de realização no real. E
ilusórias, para Freud, não são apenas as idéias religiosas, mas até mesmo
os fundamentos das instituições e das relações entre os sexos podem estar
pautados em ilusões. Além disso, Freud (1939/1996c) destacará que a idéia
delirante contém, em parte, a verdade, mas uma verdade que foi submetida a
confusões e deformações, podendo o mesmo ser dito das crenças escritos e
escritos religiosos, que conteriam uma verdade histórica deformada.
Neste caso, qual a origem da religião
em Freud? Assim como Marx, ele atribui à religião uma origem social e
subjetiva. A origem social é representada pela cultura que impõe
sofrimento e uma série de restrições à satisfação das pulsões; e a
subjetiva – que ele privilegia – tem como base o "sentimento de
impotência humana" e a "nostalgia do pai".
A civilização (cultura), para Freud
(1927/1996b), compreende todo esforço e saber humano empregado para
dominar a natureza e extrair dela o necessário para suprir
as necessidades humanas, assim como as
organizações necessárias para regular as relações entre os homens e
distribuir os bens produzidos. É
a existência da cultura que possibilita o domínio da natureza e a vida em
comum - entretanto, à custa da repressão e coerção das pulsões, gerando
entre os homens uma natural hostilidade a ela. Porém, estas restrições
impostas pela cultura não atingem a todos em igual medida, mas existem
restrições que afetam apenas determinadas classes sociais, as quais, em
conseqüência disto, podem almejar destruí-la.
A
civilização que impõe restrições e é fonte de sofrimento disponibiliza
para seus membros representações religiosas, cuja origem é a mesma das
demais conquistas da cultura: a necessidade de dominar a natureza, à qual
se agregou posteriormente a necessidade de corrigir as imperfeições da
própria cultura (Freud 1927/1996a).
Na
origem subjetiva da religião estariam a “nostalgia do pai” e o “sentimento
de impotência humana”, que, para Freud (1927/1996a), são a mesma coisa. Se
na infância a criança sentia-se desprotegida e necessitava de um pai que a
amparasse, com a idade adulta tal sentimento persiste e o homem necessita
criar deuses que protejam (nostalgia do pai), diante do sentimento de
impotência e desproteção imposto pela cultura e pela natureza. Ou seja, a
religião, enquanto criação da cultura, não só se constitui enquanto “o
elemento mais importante do inventário psiquismo de uma civilização”, mas
também remete às necessidades mais profundas inscritas nos psiquismo
humano - de ser amado, acolhido, protegido.
De acordo com Figueiredo (2000), a
cultura, pelo que promete e pelo que frustra, engendra uma ânsia de
suplemento, um apelo à figura do “pai”, grande homem, salvador da pátria.
Mesmo
que este movimento regressivo não possa jamais consumar no encontro do
‘pai’ primordial – que por definição está aquém da história – os grupos e
‘massas’ tendem a se organizar em torno de uma figura paterna de destaque
que ocupe um lugar semelhante. (Figueiredo, 2000, p.155).
Os grandes homens, ideais e a religião:
Canudos, Contestado e o MST
Em Canudos e no Contestado, Antônio Conselheiro e José Maria vêm ao
encontro deste anseio do “pai”. Eles representam o que Freud (1939/1996c)
define como grande homem: aquele especificamente dotado de características
que são valorizadas, não físicas, mas espirituais, psíquicas e
intelectuais. O grande homem não é aquele que se destaca em uma
determinada área, mas alguém que comete um grande feito. Por isso, chefes
militares, governantes e conquistadores são os que mais recebem este
qualificativo. No entanto, mais do que uma definição única do que seria
grande homem ou de quais seriam suas características, o que mais interessa
a Freud são os meios que lhe permitem exercer influência sobre os demais.
Estes meios são dois: a personalidade e a idéia que sustenta. Cito Freud
(1939/1996c):
Aceitamos, pois, que o grande homem influi de diversas maneiras sobre seus
semelhantes: por causa da sua personalidade e por meio da idéia que
sustenta. Essa idéia bem pode acentuar um antigo desejo das massas, ou
designar uma nova orientação dos seus desejos, ou bem aprisiona-las ainda
em outra forma. Às vezes – e este seguramente é o caso mais primitivo -
atua somente a personalidade e a idéia desempenha um papel muito
insignificante. (p.3306-07)
Sobre
Conselheiro e José Maria, convém acrescentar que ambos tinham
qualificações acima da média dos seus liderados: sabiam ler e escrever,
além de conhecerem a cultura religiosa tradicional. Conselheiro era
advogado provisionado, escrevia em latim e deixou muitos escritos
políticos e religiosos (Martins, 1993). José Maria era curandeiro e
carregava sempre consigo um caderno onde anotava as propriedades
medicinais das plantas de acordo com o conhecimento popular (Queiroz,
1997).
A idéia
que ambos defendiam – a Monarquia como o reino de Deus, em oposição à
República, que representava um governo ilegítimo – vem ao encontro da
insatisfação geral com as reais condições de vida, para aqueles aos quais
foram impostas mais restrições com a mudança de regime. O governo dos
homens fazia leis injustas (Conselheiro queima as tábuas de cobrança de
impostos afixadas na Câmara de Bom Conselho), era arbitrário e contrário à
justiça de Deus; por isto, devia ser combatido. Conselheiro e José Maria
rejeitam submeter-se a esse governo e atraem seguidores; por isto são
perseguidos e formam as comunidades de Belo Monte e os redutos. Nos dois
casos, mais do que a figura do “pai”, os seguidores de Conselheiro e José
Maria encontram neles intérpretes dos seus desejos e o amparo das
comunidades. A idéia que sustentavam ao mesmo tempo remetia ao antigo
desejo de proteção (nostalgia do pai) e dava uma nova orientação aos
desejos dos seguidores: a revolta.
Caracterizar Canudos e Contestado como movimentos milenaristas ou
messiânicos não retira a dimensão política destes movimentos, pois, como
diz Iani (1972),
A
atividade religiosa é também uma forma de protesto. Por trás da aparente
resignação que acompanha a reza, a procissão, a romaria e o movimento
mes-siânico, está o desencantamento face às condições presentes de vida. E
esse descontentamento tende a manifestar-se de modo mais ou menos
inesperado e insólito quanto mais difíceis ou críticas se tornam as
condições sociais e econômicas de existência. Isto é, provavelmente o
messianismo é a primeira ma-nifestação coletiva desesperada diante de uma
situação de carência extrema. (p.191)
Hobsbawm
(1959/1970), por sua vez, destaca o caráter revolucionário dos movimentos
milenaristas
(12). Tal caráter reside na esperança de uma completa e radical
transformação do mundo, que recairá no milênio e irá livrar o mundo de
todas as deficiências – característica que os aproximaria dos movimentos
revolucionários modernos.
Os
movimentos revolucionários modernos têm – implícita ou explicitamente –
certas idéias bastante definidas sobre como a velha sociedade deverá ser
substituída por uma nova, sendo que a mais crucial delas consiste no que
poderíamos chamar de ‘transferência do poder’. As velhas regras devem ser
derrubadas. O “povo” (ou a classe ou grupo revolucionário) deve “assumir”
e adotar certas medidas – a redistribuição das terras, a nacionalização
dos meios de produção ou qualquer coisa do gênero. Para tudo isso, o
esforço organizado dos revolucionários é decisivo e para ajudá-los no
cumprimento das tarefas que lhes cabem inventam-se doutrinas sobre
organização, estratégias e táticas etc., às vezes bastante elaboradas
(pp.78-79).
Logo,
para Hosbawn (1959/1970), qualquer movimento revolucionário que tenha um
ideal apresenta características milenaristas, ainda que não no sentido
estrito do termo. Um movimento milenáriista pode ser modernizado se se
incutirem nele certas idéias sobre organização, estratégias, programas;
mas, caso se mantenha isolado, pode apenas sobreviver como uma seita
religiosa clandestina, produzir revoltas periódicas, e certamente será
derrotado, como aconteceu com Canudos e Contestado.
Se
compararmos Canudos e Contestado ao MST, vemos que este movimento já
possui uma organização, estratégias e programas bastante elaborados. Além
disso, não está centralizado na figura do líder, do Um, como os
movimentos que os antecederam. No MST, embora tenham existido e existam
líderes que se destacam, não existe esta figura do grande homem, do Um.
Freud (1921/1973) destaca a necessidade de se estudarem as condições da
formação e dissolução das massas e, principalmente, as diferenças entre
massas que possuem ou não um diretor:
Assim
investigaríamos se as primeiras não são as mais primitivas e perfeitas, se
nas segundas não podem encontrar-se substituído o diretor por uma
abstração (as massas religiosas, obedecem a uma cabeça invi-sível,
constituiriam o tipo de transição), e também se uma tendência ou um desejo
compar-tilhado por um grande número de pessoas não poderiam constituir tal
subs-tituição. A abstração poderia, por sua vez, encarnar mais ou menos
perfeitamente na pessoa de um diretor secundário, e então se estabeleceria
entre o chefe e a idéia relações muito diversas e interessantes. (...)
Assim mesmo haveríamos de perguntarmo-nos se o diretor é realmente
indis-pensável para a essência da massa, etc. (p.2582)
A partir
do que diz Freud (1921/1973), é possível pensar numa maior ou menor
estabilidade das massas de acordo com as características que elas
apresentem: se têm um diretor, se o líder é o representante de uma idéia
abstrata, se não têm um diretor. Enquanto a primeira seria a menos
estável, as últimas teriam maiores possibilidades de ser duradouras.
Quando a figura de um líder é o que possibilita os vínculos libidinais
(13)
na massa, se ele morre ou é assassinado, provavelmente estes vínculos se
rompem e a massa se dissolve. Se o líder tem papel secundário, é apenas o
representante de uma idéia; na sua falta, ele pode ser substituído por
outro, já que é a idéia que possibilita os vínculos entre os membros. Se
não existe um diretor, mas diretores e funções, é possível que os vínculos
entre os indivíduos sejam estabelecidos por outras vias.
O MST se
enquadra neste último caso. Nele existe um sistema de direção coletiva,
não existe a figura de um diretor ou presidente
(14). No entanto, o MST não estaria totalmente livre do anseio
regressivo pela figura de um pai que proteja, sentimento inerente à
condição humana e que está no centro da religião. Assim sendo, que papel a
religião desempenhou no MST, já que este não é
propriamente um
movimento religioso (milenarista-messiâninico)?
Para
Stédile e Fernandes (1999), foi a religião, especificamente a prática da
Teologia da Libertação (nos espaços das CEBs e na orientação da CPT) que
propiciou a mudança da perspectiva da espera da terra nos céus, para a
organização da luta pela terra e conscientização dos camponeses. Ao propor
a terra como bem natural concedido a todos os homens e não apenas a
alguns, as CEBs e a CPT desempenharam um papel fundamental no
questionamento da propriedade privada da terra e reivindicação do acesso a
ela para aqueles que dele eram excluídos (Tarelho,1988).
Além
disso, a leitura da Bíblia realizada nas CEBs, que buscava relacionar o
cotidiano dos camponeses aos textos bíblicos, destacando principalmente a
relação entre a história de Moisés, dos hebreus e da terra prometida com
as histórias pessoais daqueles indivíduos, possibilitou a conscientização
da comum situação de opressão e a identificação como grupo (Tarelho,1988).
Logo, é possível pensar a religião (quando ela aparece de forma não
fanática) como detentora também de um potencial subversivo, de crítica e
questionamento, que pode fortalecer ação de indivíduos ou grupos contra a
ideologia dominante. Como diz Enriquez (1994),
se, em
certos casos (eu penso na Teologia da Libertação, na América do Sul), a
religião pode levar os grupos sociais a se darem conta da situação de
dominação na qual eles vivem, ela lhes permite tomar iniciativas, ter uma
outra visão do mundo e conceber ações coletivas. Ela assume então o papel
de desalienação
(15), habitualmente reservado à Sociologia e à Filosofia (p.82).
A partir de Tarelho (1988), e também de Enriquez (1997),
podemos, em
desacordo com as proposições de Marx e
Freud, atribuir à
religião um papel significativo no processo de fortalecimento das ações
coletivas, principalmente quanto o MST estava se constituindo e
construindo um espaço de “desalienação” dos sujeitos que viriam a integrar
o movimento. Isto não
invalidaria as proposições destes últimos autores sobre as origens social
e subjetiva da religião, mas mostra que o mundo real deve constantemente
inquietar as teorias com suas contradições e que ainda há muito que se
pesquisar.
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(1995) Canudos: o povo da terra. São Paulo: Ática.
Notas
(1) Algumas idéias
deste artigo foram apresentadas na dissertação de Mestrado intitulada A
luta pela terra e o movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST):contribuições
da psicanálise, orientada pelo Prof. Dr. Raul Albino Pacheco Filho, no
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.(volta).
(12) O milenarismo, segundo Hobsbawm (1959/1970), em sua essência
remete à idéia da transformação completa e radical do mundo que
recaíra no milênio. Apresenta as seguintes características: primeira,
rejeição do mundo presente e uma nostalgia de um outro melhor;
segunda, uma ideologia padronizada do tipo quiliasta (tal como
o messianismo judaico-cristão) e terceira, uma incerteza fundamental
no que diz respeito a como a nova sociedade seria moldada. Para
Hobsbawm (1959/1970), “o que faz de uma pessoa um milenário é
a idéia de que o mundo como é agora deve – e assim acontecerá
– acabar um dia para ser totalmente refeito depois (...)” (p.78).(volta).
Data de
recebimento: 16/10/2004
Data de
aceite: 28/04/2005
Memorandum 8,
abr/2005
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos08/domingues01.htm
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