Domingues, E. (2005). Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Contestado e Canudos: algumas reflexões sobre a religiosidade. Memoranum, 8,  38-51. Retirado em   /  / , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos08/domingues01.htm.

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Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Contestado e Canudos: algumas reflexões sobre a religiosidade

 Landless Workers Movement, Contestado and Canudos: some reflections on religiosity

 Eliane Domingues
Universidade Estadual de Maringá

Brasil
 

Resumo
Os movimentos sociais no campo, de acordo com Martins (1993), em sua quase-totalidade, são marcados pela religiosidade. Partindo desta premissa, propõe-se neste artigo estabelecer algumas comparações entre o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Contestado e Canudos. Recorreu-se a um breve levantamento histórico, à sociologia e à psicanálise como referenciais teóricos norteadores das reflexões. Em Marx e Freud as idéias religiosas são identificadas a ilusões. Para Marx, a origem social da ilusão estava nas relações de classe, enquanto a origem subjetiva estava no desconhecimento. Para Freud, a origem da religião está no sentimento de desamparo e impotência humana, e a mesma cultura que produz sofrimento é a que disponibiliza as representações religiosas para aliviá-lo. Estas idéias são discutidas, assim como seus limites para compreensão do papel desempenhado pela religião no MST.

Palavras-chave: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra; Canudos; Contestado; religião; psicanálise.

Abstract
According to Martins (1993) almost all social movements that occur in the field are marked by religiosity. The purpose of this article is to establish comparisons between two Landless Workers Movements (MST), that is, Contestado and Canudos. A historical survey was done, and both sociology and psychoanalysis were used as theoretical references to guide the reflections. In Marx and Freud, religious ideas are related to illusions. In accordance to Marx, the social origin of illusion can be found in social class relations, while the subjective one can be found in ignorance; for Freud the origin of religion is the human’s feeling of abandonment and impotence, and the same culture that produces suffering is the one that make the religious representations available to relieve it. Such ideas are discussed, as well as their limitations in what concerns the understanding of the role performed by religion in MST.

 Keywords: Landless Workers Movements; Canudos; Contestado; religion; psychoanalysis.

 

A Lei de Terras de 1850 e a Proclamação da República


Quando ainda havia terras livres e sem impedimentos à ocupação, não era necessário lutar por sua posse. A luta começa a ser necessária quando o camponês se vê, de alguma forma, impedido de ter acesso à terra, de tirar dela o seu sustento e o de sua família e de manter sua condição de camponês.
(1)

Enquanto vigorou a escravidão no Brasil, não era difícil ao camponês ocupar seu espaço, pois havia longas extensões de terras devolutas (2), e a própria terra pouco valia, pois o que valia eram os escravos (Martins, 1981). Ter muitos escravos, mais do que ter muita terra, era sinônimo de poder. Mas esta situação começou a mudar com a extinção do tráfico negreiro, em 1850; já era previsto o fim da escravidão e com ele a necessidade de impedir a livre ocupação das terras devolutas. De acordo com Martins (1981), “(...) num regime de terras livres, o trabalho tinha que ser cativo, num regime de trabalho livre a terra tinha que ser cativa”. (p.32).

No mesmo ano de 1850, foram tomadas as primeiras medidas em relação à vinda de imigrantes, os substitutos dos escravos nas lavouras de café (Martins, 1981). Para que os imigrantes não ocupassem as terras livres, era necessária a existência de uma lei que os impedisse de ter acesso a elas; do contrário, eles se recusariam a trabalhar nas fazendas e não seriam a solução para a substituição do trabalho escravo. Assim, a Lei de Terras de 1850 veio a constituir-se em impedimento ao acesso à terra aos negros e imigrantes.

Com a Proclamação da República, as terras devolutas se tornaram propriedade dos Estados. Estes eram controlados pelas oligarquias regionais e passaram a conceder estas terras a grandes fazendeiros e empresas de colonização, principalmente nas regiões Sul e Sudeste. Muitas vezes as áreas já estavam ocupadas por posseiros que não possuíam título de propriedade e, de acordo com a Lei de Terras de 1850 (3), eles poderiam ser expulsos (Martins, 1986).

Esta mudança do controle das terras devolutas do governo central para os Estados foi estabelecida pela Constituição de 1891, que, além de determinar o controle das terras devolutas pelos Estados, reforçou a liberdade destes e concedeu-lhes a competência exclusiva de decretar impostos sobre exportações de mercadorias de sua própria produção, imóveis rurais e urbanos. Tais mudanças - convém ressaltar - não tiveram a participação popular nem trouxeram benefícios à população. Os camponeses, certamente, também não foram beneficiados com terras devolutas e impostos. De acordo com Villa (1995),

os grandes temas nacionais (República, federação e outros) somente interessavam à elite, pois passavam ao largo das questões essenciais  à sobrevivência dos sertanejos. O novo regime, na medida em que aprofundou os conflitos entre os dominantes e dominados pelo controle da res publica, representou para a sofrida população rural uma intensificação da exploração econômica. A República passou a ser sinônimo de miséria, opressão, imposto, fome e morte. (p.77)

 

As guerras de Canudos (1896-1897) e do Contestado (1912-1916)

Canudos e Contestado representaram de certa forma movimentos de reação à República. Não propriamente ao regime político republicano, mas ao significado que lhe foi atribuído pelo sertanejo: de uma nova ordem que favoreceu os poderosos e só instaurou mais opressão. Em contraposição à República, estes movimentos defendiam a idéia de monarquia, que significava uma nova ordem sem opressão, e não a restituição do poder monárquico.

Ambos podem ser identificados como movimentos milenarista-messiânicos (4). Para Negrão (2001), o messianismo caracteriza-se pela crença na vinda do “messias” ou do seu emissário para acabar com uma ordem de opressão e instaurar uma nova ordem. O movimento messiânico implica uma atuação coletiva no sentido de instaurar esta nova ordem, sob a direção de um líder carismático. Se for associado ao movimento messiânico um escathon final, temos um movimento milenarista-messiânico; entretanto um movimento também pode ser só milenário, sem ser messiânico.

Tanto Canudos como Contestado foram organizados ao redor de líderes carismáticos, figuras míticas centrais, os profetas: em Canudos, Antônio Conselheiro, e no Contestado, João Maria e José Maria. De acordo com Gallo (1999), o profeta é um elemento central ao milenarismo-messianismo; é aquele que explica aquilo que os homens se julgam impotentes para explicar e dá esperança  àqueles que estão desesperados.

O primeiro profeta citado, Antônio Conselheiro, vagueou pelo Nordeste do Brasil durante muitos anos. Usava barba e cabelos compridos, túnica azul e um cajado. Em suas andanças, não aceitava esmola mais do que o suficiente para aquele momento: comia pouco, fazia jejuns e não aceitava leito, sempre dormia numa tábua dura. Percorreu o Sul do Ceará, a Bahia, Pernambuco e Sergipe, sendo solicitado a dar conselhos e acompanhado por pessoas, as quais não convidava a acompanhá-lo (Cunha, 1902/2000).

Apenas depois de proclamada a República Conselheiro começou a incomodar as autoridades, quando, além de fazer suas pregações, passou a opor-se à República. Segundo Cunha(1902/2000), Conselheiro assumiu, a partir de 1893, uma feição combatente inteiramente nova. Esta feição combatente caracterizou o episódio em que ele reuniu o povo em um dia de feira e mandou queimar as tábuas de cobrança de impostos afixadas pela Câmara de Bom Conselho, na Bahia, quando foi decretada a autonomia dos municípios. Esta atitude o levou a fugir com seus seguidores para Canudos (5), perseguidos pela polícia.

Com a chegada de Conselheiro, Canudos – que passou a ser chamada de Belo Monte –  cresceu rapidamente e casas foram construídas. As cidades e lugarejos da região começaram a ser saqueados (Cunha, 1902/2000).

De acordo com Villa (1995), por não se sujeitar ao novo regime e não pagar impostos, Canudos passou a representar, na visão do governo republicano, um mau exemplo para a população, que já se revoltava com a cobrança de impostos e via  em Canudos um modelo a seguir.

Assim, as condições para  uma guerra estavam postas. O estopim para que ela estourasse foi a não-entrega da madeira comprada por Conselheiro para a construção de uma igreja e sua ameaça de arrancá-la à força – o que levou o governador do Estado a solicitar força policial para detê-lo (Cunha, 1902/2000).

Quatro expedições foram necessárias para derrotar Canudos. Não se sabe ao certo de quantos habitantes chegou a ser a população de Canudos. Villa (1995), acredita que houve um certo exagero quanto ao número divulgado pelo exército para justificar a longevidade da campanha. Para ele, o número não deve ter sido superior a 10.000 habitantes. Sobre as baixas do exército, também não existem números exatos, mas as baixas das quatro expedições não foram inferiores a 5.000 homens.

Quanto a  Canudos ter sido ou não um movimento milenarista-messiânico, há divergências. Para Villa (1995), Canudos não foi um movimento milenarista-messiânico, mas sim, uma comunidade religiosa liderada por um beato. Um dos argumentos utilizados pelo autor para defender sua posição é que não há referência à liderança messiânica de Conselheiro nos jornais e documentos oficiais da época. Já Cunha (1902/2000) via em Canudos um movimento milenarista-messiânico, como mostra  a passagem abaixo, sobre os sertanejos de Canudos:

(...) o que neles vibra, em todas as linhas é a mesma religiosidade difusa e incon-gruente, bem pouca significação política permitindo emprestar-se às tendências expostas. O rebelado arremetia com a ordem constituída porque se lhe afigurava iminente o reino de delícias prometido. Prenunciava-o a República — pecado mortal de um povo — heresia suprema indicadora do triunfo efêmero do Anti-Cristo (p.171).

Sobre a Guerra do Contestado, convém destacar que em 1908, em plena região contestada (6), foi montado o escritório central da Companhia Brazil Railway, encarregada da construção da estrada de ferro São Paulo - Rio Grande. Em 1911, a construção desta ferrovia expulsou os posseiros que ocupavam as terras devolutas situadas às margens da linha férrea, pois estas terras foram concedidas à companhia pelo governo, como pagamento pela construção desta estrada.

À expulsão dos posseiros somou-se a violência da Companhia Brazil Railway contra os trabalhadores por ela contratados. Foram trazidos de 4 a 8 mil homens do Rio de Janeiro e Pernambuco para a construção da estrada de ferro, com a promessa de que seriam, após a construção, levados de volta aos seus estados de origem; mas esses trabalhadores foram enganados e abandonados à própria sorte e, uma vez que lei estava na mão dos opressores, não tinham a quem recorrer.

Em meio à insatisfação geral e como ressonância  desta, insere-se João Maria (7), figura mítica que desde os fins do século XIX perambulava do Rio Grande do Sul a Mato Grosso, exercendo funções de curandeiro e sacerdote – organizava rezas, batizava, casava - além de fazer profecias. Os camponeses da região chegavam mesmo a atribuir-lhe poderes mágicos e lhe tinham grande devoção, pois, mais do que curandeiro, sacerdote e profeta, João Maria era intérprete dos desejos daqueles que não encontravam escuta. Assim como os camponeses expropriados, identificava a República com o regime dos coronéis e almejava um regime que não fosse regido pelos desmandos destes, regime  ao qual chamava monarquia (Queiroz, 1977).

Segundo Gallo (1999), João Maria inspirava-se no Apocalipse de São João e fazia previsões apocalípticas sobre o fim dos tempos, por isso recomendava que todos fizessem penitência. Identificava a República à ordem do Demônio e a Monarquia à ordem de Deus. Preconizou a Guerra do Contestado e partiu misteriosamente por volta de 1908.

Em 1912 apareceu José Maria, o  novo messias  esperado. Enquanto João Maria previu o conflito, foi em torno da figura de José Maria que ele eclodiu. A José Maria, assim como a seu antecessor, eram atribuídas idéias monarquistas. Ao redor de sua figura aglomerou-se muita gente: os expulsos de suas terras e os que ali ficaram após a construção da ferrovia. Isto causou temor às autoridades locais e levou José Maria a fugir de Santa Catarina para o Paraná, temendo um ataque. Cerca de 40 homens o acompanharam. Porém ele não foi bem-vindo ao Paraná (sua chegada foi interpretada como invasão do Estado por catarinenses); expulso novamente, morreu em combate em Irani - PR (Queiroz, 1977).

Após a morte de José Maria, seus fiéis passaram a acreditar na sua ressurreição e alguns deles começaram a ter visões. De forma semelhante a Canudos, começaram a se organizar em redutos e atacar cidades e fazendas da região. Uma estação da ferrovia São Paulo - Rio Grande foi queimada, assim como a  serralharia da Lumber (Companhia Colonizadora pertencente à Brazil Railway). Cidades e fazendas também foram queimadas, pessoas foram mortas, somente mulheres e crianças eram poupadas. No auge do Movimento, chegaram a ocupar um território de 28.000km2, área correspondente ao Estado de Alagoas (Queiroz, 1977).

Para vencê-los, as tropas federais foram chamadas a intervir, já que as  estaduais não conseguiriam derrotá-los. Foram cerca de 7.000 homens, que utilizaram como estratégia o cerco. Impediram a chegada de alimentos e munição aos redutos, o que levou muitos à rendição, principalmente velhos, mulheres e crianças. Os que se rendiam, se considerados inofensivos, eram libertados; se não, mortos. Quando os militares chegavam aos redutos queimando tudo, muitos fugiam e escondiam-se nas matas; porém, quando os militares proclamaram vitória, eles voltaram a se organizar. Construíram novos redutos, que foram novamente atacados e finalmente destruídos (Queiroz, 1977).

Queiroz (1977) e Gallo (1999) caracterizaram o Contestado como um movimento milenarista-messiânico. Para Queiroz (1977), o messianismo leva à recusa e alienação do mundo e à criação de uma nova comunidade que acredita na transformação sobrenatural do mundo e na identificação do passado como a "idade de ouro". "No Contestado, a recusa do mundo assumiu o caráter de idealização de um reino de paz, justiça e fraternidade, expresso no conceito sertanejo de monarquia" (p.254). Gallo (1999), por sua vez, argumenta:

(...) discorrer sobre a gênese do movimento do Contestado significa caracterizar, também, a gênese de outros movimentos milenaristas-messiânicos. Isto é, as insurreições milenaristas-messiânicas constituem-se como fenômenos que, apesar de eclodirem subitamente, vão-se gestando durante anos e, embora nem sempre tenham uma configuração idêntica, reproduzem, na sua repetição no tempo, certos temas, como a figura do taumaturgo, a reunião de gente, as profecias, com relação ao tempo presente e a promessa com relação ao tempo futuro (p.25).

Em Rebeldes Primitivos, Hobsbwan        (1959/1970), ao abordar movimentos semelhantes a Canudos e Contestado na Europa, como o Lazzarettismo na Itália, destaca que movimentos deste tipo não são marginais, tampouco sem importância, e que o grande problema por eles  enfrentado é como se adaptar à nova sociedade. Para o autor, aqueles que compõem movimentos deste tipo não nasceram no capitalismo, mas

introduziram-se nele como imigrantes de primeira geração ou, o que é ainda mais catastrófico, o mundo capitalista penetrou neles de fora, insidiosamente, pela atuação de forças econômicas que eles não compreendiam e que não podiam controlar, ou impruden-temente pela conquista, revoluções e modificações funda-mentais da lei cujas conseqüên-cias eles não podiam compre-ender mesmo quando tinham ajudado a realizá-las. (p.13).

 

A Igreja Católica e o surgimento do MST

Com o início da ditadura militar, a Igreja Católica, que tinha chegado a opor-se veementemente à luta pela terra e pregado a submissão dos camponeses – como aconteceu em Canudos e Contestado
(8) – passou a ter, em seu interior, setores extremamente comprometidos, os quais exerceram importante papel na luta pela terra. O surgimento dentro da Igreja de grupos comprometidos com os camponeses foi resultante, de acordo com Martins (1989), da influência da sociedade e das próprias mudanças internas por que vinha passando a Igreja.

O comunismo que chegava aos campos e as seitas que proliferavam a partir da década de 1950 também influenciaram a mudança da Igreja, que, temerosa de perder adeptos, entrou na questão agrária. No entanto, a Igreja entrou na questão agrária sem romper com os latifundiários, fazendo uma “opção pela ordem”. Para manter sua posição junto aos camponeses e fazer frente aos comunistas, identificados como desordeiros, manteve-se como aliada dos latifundiários. A ruptura com os latifundiários veio depois, quando a Igreja fez a “opção pelo progresso”. Para que o desenvolvimento chegasse aos campos e pudesse beneficiar os camponeses, era necessário  superar o atraso no campo, que significava substituir os latifúndios pela empresa capitalista. Em face da ruptura com os latifundiários, alguns grupos dentro da Igreja passaram a denunciar a “indústria da seca” (9), combater o clientelismo e as formas de sujeição pessoal  e a defender os direitos dos camponeses. Baseados nesta nova orientação, também passaram a envolver-se com o sindicalismo, disputando território com os comunistas (Martins, 1989).

Convém destacar que a questão agrária para a Igreja sempre teve um significado diferente do atribuído pelos marxistas. Para estes, a propriedade agrária significava um empecilho ao capitalismo, era uma “questão econômica”, enquanto para a Igreja significava um empecilho para o desenvolvimento do homem, porque “brutaliza, marginaliza e empobrece o ser humano”; era uma “questão moral”. Por assim conceber a questão agrária e por acreditar que a ditadura militar possibilitaria o desenvolvimento do homem, entre outras razões, a Igreja apoiou o golpe de 1964 (Martins, 1989).

Não obstante, o apoio à ditadura militar não se manteve e, a partir de 1968, os membros da Igreja contrários ao regime passaram a ser vítimas da repressão. Logo se percebeu que a ditadura não possibilitava o desenvolvimento do homem, pois quanto mais se desenvolvia o capitalismo, maior era sua voracidade acumulativa ( Martins, 1989).

Sem perder de vista todas as  mudanças por que passava a sociedade e que exerciam influência na Igreja, convém lembrar que esta última estava passando por um processo de mudanças internas. Havia ocorrido, na década de 1960, o Concílio Vaticano II, que recomendou a criação de uma doutrina socialmente orientada – a Teologia da Libertação – e a opção preferencial pelos pobres (10) (Martins, 1989).

Tendo como orientação a Teologia da Libertação e a opção preferencial pelos pobres, começaram a formar-se, na década de 1960, as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), que foram pequenos grupos de pessoas da periferia ou da zona rural, organizados por padres e leigos, em torno de uma paróquia (urbana) ou capela (rural). De acordo com Frei Beto (1981),

dois fatores correlatos marcam os membros das comunidades rurais e urbanas: a expropriação da terra e a exploração do trabalho. Migrantes e oprimidos, os membros das comunidades, se outrora buscavam na religião um sedativo para os sofrimentos, encontram agora um espaço de discernimento crítico frente à ideologia dominante e de organização popular capaz de resistir à opressão (p.20).

Num momento em que a esquerda tinha sido desmobilizada pelo golpe de 1964 e sofria com a repressão, as CEBs foram  espaço importante de escuta dos expropriados da terra e explorados pelas relações desiguais de trabalho. Nelas os camponeses encontraram um lugar para discutir seus problemas comuns e refletir sobre as ações que seriam tomadas para solucioná-los, tendo como base uma leitura político-religiosa da Bíblia.

Além das CEBs, a Igreja passou a contar, a partir do ano de 1975, também com a Comissão Pastoral da Terra (CPT)– criada com “(...) o objetivo de interligar, assessorar e dinamizar os que trabalhavam na pastoral popular junto aos camponeses”, sem a intenção de substituir sindicatos, partidos políticos ou organizações camponesas. A CPT tornou-se importante espaço de denúncia e registro dos conflitos no campo; numa época em que as informações eram controladas, era  ela que fornecia à imprensa dados sobre a violência no campo (Moreira, 1994).

No interior das CEBs e da CPT  formaram-se muitos dos líderes e militantes do MST. João Pedro Stédile, por exemplo, afirmou, em entrevista à Revista Caros Amigos (1997), ter-se vinculado à CPT no momento em que essa Comissão estava apenas iniciando suas atividades. Inclusive, a ocupação de Ronda Alta – um dos marcos históricos do surgimento do MST –, em 6 de setembro de 1979, teve a participação de um membro da CPT.

Assim, é possível dizer que a Igreja – especificamente seus setores comprometidos com a Teologia da Libertação e os camponeses – teve importante papel no surgimento do MST, não somente pela escuta e pelo espaço de reflexão e conscientização que propiciou aos camponeses, mas sobretudo por estar sintonizada com uma prévia dimensão religiosa já presente na luta pela terra, que é anterior a qualquer aproximação da Igreja com os camponeses (como nos mostram Canudos e Contestado). Certamente, o trabalho desenvolvido nas CEBs e pela CPT, orientado pela Teologia da Libertação, trouxe modificações a esta dimensão religiosa, mas não a criou.

Sobre a dimensão religiosa presente na luta pela terra e sobre a importância de estudá-la, Martins (1993) escreve:

Quase todos os movimentos sociais que conheço, no campo, são também religiosos. Disso não se fala, particularmente se o pesquisador é ligado a um partido político de esquerda. Ele prefere deixar esse aspecto de lado. Pois a religião ‘atrapalha’ a interpretação e questiona os pressupostos racionalistas do seu trabalho. O que é uma bobagem, pois desse modo perde-se o conjunto dos componentes (p.105).

 

A religião em Marx e Freud: pensando sobre Canudos e Contestado

Sem a pretensão de esgotar ou abranger tudo o que foi dito por Marx e Freud sobre a religião - o que fugiria ao objetivo deste artigo -, pretendo apresentar algumas idéias destes autores que nos ajudam a pensar sobre o tema, lembrando que suas formulações foram construídas em uma época e contexto distintos; e ao trazer suas idéias para pensar os movimentos que aqui nos interessam, certamente aparecem questões que não foram pensadas por esses autores.

Inicialmente, é possível dizer que Marx e Freud se aproximam em três pontos. O primeiro é que, por compartilharem uma certa visão negativa da religião, nenhum dos dois vê nesta a possibilidade de estar associada à resistência de indivíduos diante de uma ordem estabelecida desfavorável. O segundo ponto se liga ao comum entendimento  da religião como uma forma de ilusão. O terceiro ponto se refere à atribuição de uma dupla origem à religião – a  social e a subjetiva -, embora Marx privilegie a social e Freud a subjetiva e ambos tenham claras divergências no que concebem como social e subjetivo.

Para Marx, de acordo com Bertrand (1989), a raiz social da ilusão é a relação de classe, enquanto a subjetiva é o desconhecimento (ignorância). A crítica à ilusão deveria visar ao mundo real, que cria situações nas quais o homem necessita de ilusões. Esta explicação, que privilegia a origem social da ilusão, para Bertrand (1989), não pode prescindir da explicação psicológica. Se a ilusão, por um lado, tem origem num real exterior que produz sofrimentos, por outro, os homens só conseguem encontrar soluções imaginárias para o fim desta situação. Estas soluções imaginárias remetem a uma dimensão subjetiva que não deve ser esquecida nem se reduz ao desconhecimento.

Diante disso, podemos pensar, a partir de Marx, que os movimentos de Canudos e do Contestado são resultantes, principalmente, de condições extremas de miséria e exploração (sociais), que, somadas ao desconhecimento (ignorância), levaram aquelas pessoas a se organizar em torno da idéia de mundo melhor (monarquia), que seria a solução imaginária de que fala Bertrand (1989).

Interessante observar que, atualmente, os movimentos milenarista-messiânicos tendem a escassear, mas não a desaparecer. As reivindicações de ordem econômica daqueles que se encontram de certa forma excluídos encontraram outros canais de expressão, a exemplo de movimentos massivos e políticos como o MST (Negrão, 2001). Entretanto,

nas sociedades contemporâneas, há outras clivagens além da de classe social produtora de carências, necessidades e insatisfações. No fundo, os problemas da teodicéia e da busca de salvação permanecem, mesmo que outras alternativas não religiosas com eles disputem o apanágio das soluções. Em função mesmo dessa concorrência entre o sacral e o secular, com este oferecendo soluções ‘racionais’ para os males da vida, a busca de soluções do primeiro tipo tende a diminuir. Mas mesmo entre indivíduos de alto nível de escolarização e afeitos à utilização das mais modernas tecnologias, cidadãos dos mais modernos países, como vimos nos exemplos dos EUA, a solução mágico-milenarista ainda permanece. Neste país há jovens extremamente afeitos à cultura tecnológica que se suicidam na certeza de serem levados, ressurretos, por discos voadores.

Logo, reduzir a dimensão subjetiva da religião ao desconhecimento (ignorância) não é suficiente. Vamos, então, ver o que Freud pensa sobre a religião.

É de todos conhecida a idéia de Freud de que "a religião seria a neurose obsessiva da coletividade humana" (1927/1996a, p.2985) (11) e sua aproximação das idéias religiosas às idéias delirantes, a qual mais interessaria aqui discutir. Para ele a idéia de que o “messias” vai chegar e instaurar uma idade de ouro é ao mesmo tempo uma ilusão e uma idéia delirante. Em 1930/1996b, Freud diz:

Particular importância adquire o caso no qual numerosos indivíduos empreendem juntos a tentativa de procurar uma segurança de felicidade e proteção contra dor por meio de transformação delirante da realidade. Também as religiões da Humanidade devem ser consideradas, como semelhantes delírios coletivos. (p.3028).

Aqui, de certo modo, as idéias de Freud se aproximam das de Cunha (1902/2000) sobre Conselheiro e a Guerra de Canudos. Cunha diz que o líder de Canudos, da mesma forma que entrou para história, poderia ter entrado para o hospício. Considerava que Conselheiro tinha uma modalidade de "psicose progressiva" e idéias delirantes, e que entre suas idéias e a coletividade existia uma espécie de mutualidade, e para entendê-lo era necessário entender a psicologia da sociedade que o criou.

Não obstante, ao mesmo tempo em que aproxima as idéias delirantes das religiosas, Freud (1927/1996b) esclarece que existem diferenças entre ambas. As primeiras são mais complexas e apresentam contradição com o real. Já as ilusões não são necessariamente irrealizáveis ou contrárias ao real, embora prescindam de toda garantia de realização no real. E ilusórias, para Freud, não são apenas as idéias religiosas, mas até mesmo os fundamentos das instituições e das relações entre os sexos podem estar pautados em ilusões. Além disso, Freud (1939/1996c) destacará que a idéia delirante contém, em parte, a verdade, mas uma verdade que foi submetida a confusões e deformações, podendo o mesmo ser dito das crenças escritos e escritos religiosos, que conteriam uma verdade histórica deformada.

Neste caso, qual a origem da religião em Freud? Assim como Marx, ele atribui à religião uma origem social e subjetiva. A origem social é representada  pela cultura que impõe sofrimento e uma série de restrições à satisfação das pulsões; e a subjetiva – que ele  privilegia – tem como base o "sentimento de impotência humana" e a "nostalgia do pai".

A civilização (cultura), para Freud (1927/1996b), compreende todo esforço e saber humano empregado para dominar a natureza e extrair dela o necessário para suprir as necessidades humanas, assim como as organizações necessárias para regular as relações entre os homens e distribuir os bens produzidos. É a existência da cultura que possibilita o domínio da natureza e a vida em comum - entretanto, à custa da repressão e coerção das pulsões, gerando entre os homens uma natural hostilidade a ela. Porém, estas restrições impostas pela cultura não atingem a todos em igual medida, mas existem restrições que afetam apenas determinadas classes sociais, as quais, em conseqüência disto, podem almejar destruí-la.

A civilização que impõe restrições e é fonte de sofrimento disponibiliza para seus membros representações religiosas, cuja origem é a mesma das demais conquistas da cultura: a necessidade de dominar a natureza, à qual se agregou posteriormente a necessidade de corrigir as imperfeições da própria cultura (Freud 1927/1996a).

Na origem subjetiva da religião estariam a “nostalgia do pai” e o “sentimento de impotência humana”, que, para Freud (1927/1996a), são a mesma coisa. Se na infância a criança sentia-se desprotegida e necessitava de um pai que a amparasse, com a idade adulta tal sentimento persiste e o homem necessita criar deuses que protejam (nostalgia do pai), diante do sentimento de impotência e desproteção imposto pela cultura e pela natureza. Ou seja, a religião, enquanto criação da cultura, não só se constitui enquanto “o elemento mais importante do inventário psiquismo de uma civilização”, mas também remete às necessidades mais profundas inscritas nos psiquismo humano - de ser amado, acolhido, protegido.

De acordo com Figueiredo (2000), a cultura, pelo que promete e pelo que frustra, engendra uma ânsia de suplemento, um apelo à figura do “pai”, grande homem, salvador da pátria.

Mesmo que este movimento regressivo não possa jamais consumar no encontro do ‘pai’ primordial – que por definição está aquém da história – os grupos e ‘massas’ tendem a se organizar em torno de uma figura paterna de destaque que ocupe um lugar semelhante. (Figueiredo, 2000, p.155).

 

Os grandes homens, ideais e a religião: Canudos, Contestado e o MST

Em Canudos e no Contestado, Antônio Conselheiro e José Maria vêm ao encontro deste anseio do “pai”. Eles representam o que Freud (1939/1996c) define como grande homem: aquele especificamente dotado de características que são valorizadas, não físicas, mas espirituais, psíquicas e intelectuais. O grande homem não é aquele que se destaca em uma determinada área, mas alguém que comete um grande feito. Por isso, chefes militares, governantes e conquistadores são os que mais recebem este qualificativo. No entanto, mais do que uma definição única do que seria grande homem ou de quais seriam suas características, o que mais interessa a Freud são os meios que lhe permitem exercer influência sobre os demais. Estes meios são dois: a personalidade e a idéia que sustenta. Cito Freud (1939/1996c):

Aceitamos, pois, que o grande homem influi de diversas maneiras sobre seus semelhantes: por causa da sua personalidade e por meio da idéia que sustenta. Essa idéia bem pode acentuar um antigo desejo das massas, ou designar uma nova orientação dos seus desejos, ou bem aprisiona-las ainda em outra forma. Às vezes – e este seguramente é o caso mais primitivo - atua somente a personalidade e a idéia desempenha um papel muito insignificante. (p.3306-07)

Sobre Conselheiro e José Maria, convém acrescentar que ambos tinham qualificações acima da média dos seus liderados: sabiam ler e escrever, além de conhecerem a cultura religiosa tradicional. Conselheiro era advogado provisionado, escrevia em latim e deixou muitos escritos políticos e religiosos (Martins, 1993). José Maria era curandeiro e carregava sempre consigo um caderno onde anotava as propriedades medicinais das plantas de acordo com o conhecimento popular (Queiroz, 1997).

A idéia que ambos defendiam – a Monarquia como o reino de Deus, em oposição à República, que representava um governo ilegítimo – vem ao encontro da insatisfação geral com as reais condições de vida, para aqueles aos quais foram impostas mais restrições com a mudança de regime. O governo dos homens fazia leis injustas (Conselheiro queima as tábuas de cobrança de impostos afixadas na Câmara de Bom Conselho), era arbitrário e contrário à justiça de Deus; por isto, devia ser combatido. Conselheiro e José Maria rejeitam submeter-se a esse governo e atraem seguidores; por isto são perseguidos e formam as comunidades de Belo Monte e os redutos. Nos dois casos, mais do que a figura do “pai”, os seguidores de Conselheiro e José Maria encontram neles intérpretes dos seus desejos e o amparo das comunidades. A idéia que sustentavam ao mesmo tempo remetia ao antigo desejo de proteção (nostalgia do pai) e dava uma nova orientação aos desejos dos seguidores: a revolta.

Caracterizar Canudos e Contestado como movimentos milenaristas ou messiânicos não retira a dimensão política destes movimentos, pois, como diz Iani (1972),

A atividade religiosa é também uma forma de protesto. Por trás da aparente resignação que acompanha a reza, a procissão, a romaria e o movimento mes-siânico, está o desencantamento face às condições presentes de vida. E esse descontentamento tende a manifestar-se de modo mais ou menos inesperado e insólito quanto mais difíceis ou críticas se tornam as condições sociais e econômicas de existência. Isto é, provavelmente o messianismo é a primeira ma-nifestação coletiva desesperada diante de uma situação de carência extrema. (p.191)

Hobsbawm (1959/1970), por sua vez, destaca o caráter revolucionário dos movimentos milenaristas (12). Tal caráter reside na esperança de uma completa e radical transformação do mundo, que recairá no milênio e irá livrar o mundo de todas as deficiências – característica que os aproximaria dos movimentos revolucionários modernos.

Os movimentos revolucionários modernos têm – implícita ou explicitamente – certas idéias bastante definidas sobre como a velha sociedade deverá ser substituída por uma nova, sendo que a mais crucial delas consiste no que poderíamos chamar de ‘transferência do poder’. As velhas regras devem ser derrubadas. O “povo” (ou a classe ou grupo revolucionário) deve “assumir” e adotar certas medidas – a redistribuição das terras, a nacionalização dos meios de produção ou qualquer coisa do gênero. Para tudo isso, o esforço organizado dos revolucionários é decisivo e para ajudá-los no cumprimento das tarefas que lhes cabem inventam-se doutrinas sobre organização, estratégias e táticas etc., às vezes bastante elaboradas (pp.78-79).

Logo, para Hosbawn (1959/1970), qualquer movimento revolucionário que tenha um ideal apresenta características milenaristas, ainda que não no sentido estrito do termo. Um movimento milenáriista pode ser modernizado se se incutirem nele certas idéias sobre organização, estratégias, programas; mas, caso se mantenha isolado, pode apenas sobreviver como uma seita religiosa clandestina, produzir revoltas periódicas, e certamente será derrotado, como aconteceu com Canudos e Contestado.

Se compararmos Canudos e Contestado ao MST, vemos que este movimento já possui uma organização, estratégias e programas bastante elaborados. Além disso, não está  centralizado na figura do líder, do Um, como os movimentos que os antecederam. No  MST, embora tenham existido e existam líderes que se destacam, não existe esta figura do grande homem, do Um. Freud (1921/1973) destaca a necessidade de se estudarem as condições da formação e dissolução das massas e, principalmente, as diferenças entre massas que possuem ou não um diretor:

Assim investigaríamos se as primeiras não são as mais primitivas e perfeitas, se nas segundas não podem encontrar-se substituído o diretor por uma abstração (as massas religiosas, obedecem a uma cabeça invi-sível, constituiriam o tipo de transição), e também se uma tendência ou um desejo compar-tilhado por um grande número de pessoas não poderiam constituir  tal subs-tituição. A abstração poderia, por sua vez, encarnar mais ou menos perfeitamente na pessoa de um diretor secundário, e então se estabeleceria entre o chefe e a idéia relações muito diversas e interessantes. (...) Assim mesmo haveríamos de perguntarmo-nos se o diretor é realmente indis-pensável para a essência da massa, etc. (p.2582)

A partir do que diz Freud (1921/1973), é possível pensar numa maior ou menor estabilidade das massas de acordo com as características que elas apresentem: se têm um diretor, se o líder é o representante de uma idéia abstrata, se não têm um diretor. Enquanto a primeira seria a menos estável, as últimas teriam maiores possibilidades de ser  duradouras. Quando a figura de um líder é o que possibilita os vínculos libidinais (13) na massa, se ele morre ou é assassinado, provavelmente estes vínculos se rompem e a massa se dissolve. Se o líder tem papel secundário, é apenas o representante de uma idéia; na sua falta, ele pode ser substituído por outro, já que é a idéia que possibilita os vínculos entre os membros. Se não existe um diretor, mas diretores e funções, é possível que os vínculos entre os indivíduos sejam estabelecidos por outras vias.

O MST se enquadra neste último caso. Nele existe um sistema de direção coletiva, não existe a figura de um diretor ou presidente (14). No entanto, o MST não estaria totalmente livre do anseio regressivo pela figura de um pai que proteja, sentimento inerente à condição humana e que está no centro da religião. Assim sendo, que papel a religião desempenhou no MST, já que este não é propriamente um movimento religioso (milenarista-messiâninico)?

Para Stédile e Fernandes (1999), foi a religião, especificamente a prática da  Teologia da Libertação (nos espaços das CEBs e na orientação da CPT) que propiciou a mudança da perspectiva da espera da terra nos céus, para  a organização da luta pela terra e conscientização dos camponeses. Ao propor a terra como bem natural concedido a todos os homens e não apenas a alguns, as CEBs e a CPT desempenharam um papel  fundamental no questionamento da propriedade privada da terra e reivindicação do acesso a ela para aqueles que dele eram excluídos (Tarelho,1988).

Além disso, a leitura da Bíblia realizada nas CEBs, que buscava relacionar o cotidiano dos camponeses aos textos bíblicos, destacando principalmente a relação entre a história de Moisés, dos hebreus e da terra prometida com as histórias pessoais daqueles indivíduos, possibilitou a conscientização da comum situação de opressão e a identificação como grupo (Tarelho,1988). Logo, é possível pensar a religião (quando ela aparece de forma não fanática) como detentora também de um potencial subversivo, de crítica e questionamento, que pode fortalecer ação de indivíduos ou grupos contra a ideologia dominante. Como diz Enriquez (1994),

se, em certos casos (eu penso na Teologia da Libertação, na América do Sul), a religião pode levar os grupos sociais a se darem conta da situação de dominação na qual eles vivem, ela lhes permite tomar iniciativas, ter uma outra visão do mundo e conceber ações coletivas. Ela assume então o papel de desalienação (15), habitualmente reservado à Sociologia e à Filosofia (p.82).

A partir de Tarelho (1988), e também de Enriquez (1997), podemos, em desacordo com as proposições de Marx e Freud, atribuir à religião um papel significativo no processo de fortalecimento das ações coletivas, principalmente quanto o MST estava se constituindo e construindo um espaço de “desalienação” dos sujeitos que viriam a integrar o movimento. Isto não invalidaria as proposições destes últimos autores sobre as origens social e subjetiva da religião, mas mostra que o mundo real deve constantemente inquietar as teorias com suas contradições e que ainda há muito que se pesquisar.

 

Referências bibliográficas

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Notas
(1) Algumas idéias deste artigo foram apresentadas na dissertação de Mestrado intitulada A luta pela terra e o movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST):contribuições da psicanálise, orientada pelo Prof. Dr. Raul Albino Pacheco Filho, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.(volta).

(2) De acordo com Silva (1997), o sentido original do termo terra devoluta é “terra concedida não aproveitada que retorna ao doador”. Este sentido remonta ao período colonial, quando no Brasil vigorou o regime de sesmarias, que consistia na doação  de terras, pela Coroa Portuguesa, a quem tivesse meios para cultivá-las, porém se a terra doada não fosse cultivada, retornaria ao doador. O regime de sesmarias vigorou no Brasil até 1822. E o termo terra devoluta passou a ser “usado como sinônimo de terra vaga, não apropriada, patrimônio público”. (p.16)(volta).

(3) Esta lei vigorou até a revolução de 1930, porém na ausência de uma outra lei que a substituísse recorria-se a ela, mesmo após a revolução de 30. (Silva, 1997)(volta).

(4) Entre os estudiosos não são todos que estão de acordo com esta posição, ver Giumbelli (1997)(volta).

(5) Canudos – povoado próximo à região do Vaza-Barris, na Bahia –  já existia antes da chegada de Conselheiro, segundo testemunho de um sacerdote do ano de 1876. Lá vivia uma “(...) população suspeita e ociosa, ‘armada até os dentes’  e ‘cuja ocupação quase exclusiva, consistia em beber aguardente e pitar uns esquisitos cachimbos de barro em canudos de metro de extensão’ ” (...). (Cunha,1902/2000, p.153)(volta).

(6) Região disputada pelos Estados de Paraná e Santa Catarina, segundo Gallo (1999), por causa das riquezas naturais.(volta).

(7) De acordo com Queiroz (1977), e Gallo (1999), antes deste existiu um outro João Maria, com características semelhantes.(volta).

(8) Segundo Görgen (1997), tanto em Canudos como em Contestado, quando explodiu o conflito social, foram frades da igreja católica os encarregados de fazer com que o “povo voltasse ao bom caminho” e se submetesse Às autoridades locais, tarefa na qual nenhum dos designados obteve êxito.(volta).

(9) “Esse foi o nome que se deu, na época, aos procedimentos das oligarquias regionais, que aproveitavam o drama da seca periódica para obter sempre mais recursos do governo federal e que serviam basicamente para a manutenção do clientelismo político, nunca para atender as necessidades reais das vítimas.” (Martins, 1989, p.44).(volta).

(10) "O cuidado com os pobres é uma tradição milenar da Igreja, remontando até as fontes evangélicas do cristianismo. Os teólogos latino-americanos se situam na continuidade desta tradição que lhes serve constantemente de referência e de inspiração. Mas eles se situam em ruptura profunda com o passado em um ponto capital: para eles, os pobres não são mais, essencialmente, objetos de caridade, mas os mestres de sua própria libertação. A ajuda ou assistência paternalista cede lugar a uma atitude de solidariedade com a luta dos pobres pela sua auto-emancipação." (Löwy, 2002)(volta).

(11) As traduções dos textos de Freud são da autora.(volta).

(12) O milenarismo, segundo Hobsbawm (1959/1970), em sua essência remete à idéia da transformação completa e radical do mundo que recaíra no milênio. Apresenta as seguintes características: primeira, rejeição do mundo presente e uma nostalgia de um outro melhor; segunda, uma ideologia padronizada do tipo quiliasta (tal como o messianismo judaico-cristão) e terceira, uma incerteza fundamental no que diz respeito a como a nova sociedade seria moldada. Para Hobsbawm (1959/1970), “o que faz de uma pessoa um milenário é a idéia de que o mundo como é agora deve – e assim  acontecerá – acabar um dia para ser totalmente refeito depois (...)” (p.78).(volta).

(13) Esta é uma idéia de Freud (1921/1973), apresentada em Psicologia de massas e análise do eu. Neste texto ele sustenta a idéia de que os indivíduos se mantém unidos nos grupos pelos vínculos libidinais. Estes vínculos teriam uma dupla natureza: líder (ideais/vínculo vertical) e semelhantes (identificação/vínculo horizontal), mesmo a identificação se daria pelo fato de os indivíduos terem substituído seu ideal do eu pela figura do líder. No entanto, ideais fortemente investidas e mesmo desejos comuns também poderiam ocupar o lugar do líder neste estabelecimento deste vínculo vertical. Em minha dissertação de mestrado apresento a idéia de que a terra como ideal (base) e os ideais revolucionários (lideranças) no MST e não a figura de um líder que possibilitariam o vínculo vertical entre os indivíduos e a base para o estabelecimento do horizontal (identificação).(volta).

(14) O que, segundo Stédile & Fernandes (1999), foi uma estratégia política, para evitar que o diretor pudesse ser assassinado ou cooptado.(volta).

(15) De acordo com Codo (1985) na alienação, "(...) o outro se apresenta a mim como um ser estranho, independente, irreconhecivel" (p.33) e o sujeito não se reconhece como ser histórico e social. A desalienação implicaria o reconhecimento do outro e de si mesmo enquanto estando submetidos às mesmas determinações históricas e sociais. Para Lane (1997), "o indivíduo consciente de si, necessariamente, tem consciência de sua pertinência a uma classe social; enquanto indivíduo, esta consciência se processa transformando tanto suas ações a ele mesmo; porém, para uma atuação enquanto classe, ele necessariamente deve estar inserido em um grupo que age enquanto tal (...)" (p.42).(volta).

 

Nota sobre a autora

Eliane Domingues
é Mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e docente da Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Psicologia. Contato: Av. Colombo, 5790, CEP:87020-900, fone/fax:32614291. E-mail: elianedomingues@brturbo.com.br

Data de recebimento: 16/10/2004
Data de aceite: 28/04/2005

Memorandum 8, abr/2005
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos08/domingues01.htm

 

 

 

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