Nassif, L.F., A. (2005). Origens e desenvolvimento da Psicopatologia do Trabalho na França (século XX): uma abordagem histórica. Memorandum, 8, 79-87.  Retirado em   /  /  , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos08/nassif01.htm

  PDF FILE

Origens e desenvolvimento da Psicopatologia do Trabalho na França (século XX): uma abordagem histórica

 Origins and development of Psychopatology of Work in France durint the twentieth century: a historical approach

 Lilian Erichsen Nassif
Universidade Federal de Minas Gerais

Brasil

 

Resumo
Com o objetivo de melhor delinearmos a origem da Psicopatologia do Trabalho na França e alguns dos seus desdobramentos, são apresentados determinados fatos sócio-históricos ocorridos naquele país no século XX. Tais desdobramentos possibilitaram a formação das modernas vertentes de pesquisas na área, como por exemplo os estudos de Paul Sivadon, Louis Le Guillant e Christophe Dejours. Também são feitas referências a algumas contribuições atuais em Saúde Mental e Trabalho para a proposta téorico-metodológica de Le Guillant. Assim, pretende-se apresentar uma visão genealógica da disciplina para uma maior compreensão da sua ressonância sobre os aspectos teóricos e metodológicos que norteiam atualmente algumas linhas de pesquisas sobre a saúde mental dos trabalhadores.

Palavras-chave: história da psicologia, psicopatologia do trabalho, saúde mental e trabalho.

Abstract
In order to put in context the origin of Psychopathology of Work in France and some of its unfoldings, a few social-historical facts that happened in this country during the 20th century are presented. These unfoldings made the modern researches in this area possible, such as the studies of Paul Sivadon, Louis Le Guillant and Christophe Dejours. Also there are references to some contemporary studies about Mental Health and Work based on Le Guillant's theoretic-methodological proposal. Thus, it is intended to show a genealogical view of Psychopathology of Work for a better understanding about its impacts on the theoretic-methodological aspects that currently guide some lines of research on mental health of workers.

 Keywords: history of psychology, psychopathology of work, mental health and work

 

I- Introdução

(...) as operações fisiológicas que denominamos por mente derivam desse conjunto estrutural e funcional e não apenas do cérebro: os fenômenos mentais só podem ser cabalmente compreendidos no contexto de um organismo em interação com o ambiente que o rodeia. O fato de o ambiente ser, em parte, um produto da atividade do próprio organismo apenas coloca ainda mais em destaque a complexidade das interações que devemos ter em conta. (Damásio, 1996, p.17)

Em geral, a psiquiatria tradicional tende a reduzir o sofrimento mental aos fatores orgânicos e individuais, desconsiderando a influência das condições sociais sobre a saúde mental. Uma das instâncias sociais muitas vezes negligenciada pela psiquiatria é o trabalho.

Sabe-se, entretanto, o quanto este último pode contribuir para o desenvolvimento psíquico, fortalecendo a saúde mental dos trabalhadores, ou, ao contrário, favorecendo a formação de distúrbios que se expressam coletivamente e/ou individualmente através de transtornos psicossomáticos e psiquiátricos. Transformações da identidade, mediadas pelas experiências do trabalho podem ser extremamente positivas, fazendo-se no sentido do enriquecimento dos potenciais do indivíduo. No entanto, podem também conduzi-lo ao sentido oposto, ou seja, provocando perdas ao nível da identidade que implicarão o empobrecimento da personalidade e da sociabilidade.

Ao longo da história, é possível observarmos algumas modificações das linhas de pesquisas e referenciais teóricos no que diz respeito à saúde do trabalhador, passando de um enfoque causalista e voltado para a produção até chegar às atuais teorias e metodologias como algumas que abordaremos aqui: a proposta de Paul Sivadon, Le Guillant, Christophe Dejours, ou dos pesquisadores mais recentes na área de Saúde Mental e Trabalho. Modificações essas que não desqualifica nenhuma das abordagens ou as torna mais ou menos ultrapassadas, mas nos dá um panorama dos diferentes enfoques sobre o adoecimento psíquico no trabalho.  

O objetivo desse artigo, portanto, é traçar as origens da Psicopatologia do Trabalho na França, no século XX, dentro de um contexto sócio-histórico específico. O intuito disso é proporcionar uma visão genealógica da disciplina para uma maior compreensão da sua ressonância sobre os aspectos teóricos e metodológicos que norteiam atualmente algumas linhas de pesquisas sobre a saúde mental dos trabalhadores.

 

II- Aspectos sócio-históricos que influenciaram o Desenvolvimento da Psicopatologia do Trabalho na França no século XX

Segundo Billiard (1996), corroborada por Lima (1998), a expressão “psicopatologia do trabalho” surgiu em 1952, como título de um artigo escrito pelo psiquiatra Paul Sivadon. Em seguida, foram publicados dois artigos do também psiquiatra Louis Le Guillant, a respeito da “psicologia do trabalho” e da “psicopatologia social”, em 1952 e 1954
(1) respectivamente. Contudo, desde 1927, o American Journal of Psychiatry publica matérias sobre “Psiquiatria Ocupacional”, “Saúde Mental Ocupacional” e “Psiquiatria Industrial” (Seligmann-Silva, 1994). Historicamente, pode-se identificar fatos relevantes que precederam ou aconteceram concomitantemente ao surgimento desses primeiros estudos, na França.

Logo após a I Guerra Mundial assistiu-se a uma modernização das indústrias francesas que visava basicamente à racionalização e ao aumento da produtividade. Essa racionalização dizia respeito tanto ao trabalho quanto à vida social, na medida em que o empobrecimento dos operários se acentuou em decorrência do confronto bélico. A situação encontrava-se propícia, dentre outras coisas, à delinqüência, à violência e à prostituição, abalando a ordem moral burguesa vigente.

Nesse momento, os médicos higienistas, instituídos em 1802, foram os que se encarregaram de responder a essa ameaça social. Com sua legitimação reconhecida em 1829, através da revista “Os Anais de Higiene Pública e de Medicina Legal” que tinha como representante Esquirol, Pinel, Orfila, Villermé e outros; e mais tarde com a fusão desta mesma revista com os “Anais de Medicina Legal de Criminologia e de Política Industrial e Social”, o movimento higienista orientou-se no sentido de melhorar o estado de saúde das populações, de lutar contra a degenerescência dos indivíduos e contra as psicopatias. Trata-se de um conjunto de ações profiláticas direcionado para o extermínio dos flagelos sociais como a tuberculose, o alcoolismo e as doenças venéreas, assim como para a vigilância da saúde dos trabalhadores, através da criação de serviços médicos nas empresas e da cadeira de Medicina do Trabalho (Billiard, 1996).

Nessa mesma época, Toulouse que, conforme Billiard (1996), foi um dos psiquiatras fundadores da psiquiatria social, instituiu a “Liga de Higiene Mental” no quadro dos Anais de Higiene Pública Industrial e Social, com a finalidade de pesquisa e de efetivação de medidas profiláticas dos distúrbios mentais, de melhoria das condições de tratamento dos psicopatas e do desenvolvimento da higiene mental nas indústrias e escolas. Tal projeto teve como base a teoria da degenerescência de Benedict Morel e Valentin Magnan que preconizava o papel da hereditariedade e dos aspectos orgânicos na gênese da loucura (predisposições). Ao mesmo tempo, Toulouse acreditava na influência dos fatores sociais sobre a origem das psicopatias, representados pela vivência familiar, escolar e profissional. Isso caracteriza sua dupla concepção sobre a origem da doença mental: orgânica e social. Seu modo de trabalhar, então, é essencialmente eugenista, ao definir “tipos humanos” que poderiam ser melhor utilizados pela organização racional do trabalho.

Já no período entre guerras, a psiquiatria francesa sofreu transformações ao incorporar os pressupostos freudianos à sua prática. Em 1925, na França, criou-se o “Grupo da Evolução Psiquiátrica”, fruto do movimento de mesmo nome, que publicou uma revista com o objetivo de instaurar um espaço de debate sobre psicologia clínica, psicologia geral e psiquiatria, sendo a teoria freudiana o centro da discussão. Entretanto, a psiquiatria dividiu-se entre os adeptos da psicodinâmica e aqueles que a ela resistiam.

Transformações político-sociais, científicas e tecnológicas ocorridas posteriormente na França, conduziram a novas perspectivas no desenvolvimento da Psicopatologia do Trabalho, principalmente após a II Grande Guerra. Nessa época, tornou-se necessário o desenvolvimento de estudos e técnicas para adaptar o maior número possível de novos trabalhadores em diferentes tarefas, inclusive mulheres, idosos e doentes mentais. Muitos desses últimos, aliás, foram liberados dos hospitais psiquiátricos por falta de condições de sobrevivência nesses estabelecimentos. Para surpresa dos psiquiatras, no final da Guerra, esses doentes mentais considerados “pacientes crônicos”, mostravam-se aptos a retornar à vida familiar e social, assim como a realizar alguma tarefa produtiva.

A experiência desses hospitais psiquiátricos proporcionou o desenvolvimento da “Ergoterapia”(2), cujo principal representante foi o psiquiatra Paul Sivadon, adepto da psiquiatria social. A Ergoterapia estabeleceu uma nova forma de abordar o doente mental e permitiu reconhecer o trabalho pelo seu valor de integração social, oferecendo-nos grande contribuição para os estudos na área de saúde mental no trabalho.

Tais evoluções se solidificaram com a criação dos Centros de Tratamento e Readaptação Social (CTRS) nos hospitais psiquiátricos. Paul Sivadon foi responsável por um CTRS em Ville-Evrard em 1947; e Louis Le Guillant, no hospital Villejuif em 1950.

O Colóquio de Bonneval, de 1946, mostra-nos os avanços da psiquiatria no período entre Guerras e pós II Guerra. Seu tema foi a diversidade de abordagens a respeito da gênese das neuroses e psicoses, ou seja, a organogênese, a psicogênese e a sociogênese dos distúrbios psíquicos. Este Colóquio é também importante no delineamento da Psicopatologia do Trabalho na década de 1950, através de três principais exposições: a de Henry Ey, a de Jacques Lacan e a de S. Follin e Lucien Bonnafé (1950b).

A conferência de abertura do Colóquio fora proferida por Henry Ey, na qual ele expôs sua teoria, ao mesmo tempo orgânica e dinâmica, das funções psíquicas. Se, por um lado, ele atribuía a origem da loucura aos aspectos orgânicos, infecciosos, endocrinológicos ou traumáticos, por outro, acreditava ser a atividade psíquica normal definida pela psicogênese. Ele propôs ainda a teoria da relação do “psiquismo e da moral”,  denominada teoria de hierarquia estrutural, segundo a qual cada uma das estruturas orgânica, biológica e psicológica é condição necessária mas não suficiente da estrutura que lhe é imediatamente superior. Explica ainda que

es a la filosofia de Bérgson que somos fieles como lugar privilegiado de este encuentro. Ella representa em efecto uma suerte de síntesis entre lãs tesis fenomenológicas y marxistas (...) nos preguntamos (...) qué diferencia profunda y verdadera hay entre la evolución creadora y el materialismo dialéctico (Ey, 1950a, p.202).

Jacques Lacan, por sua vez, expôs suas propostas sobre a causalidade psíquica, recusando a teoria organicista e dinâmica de Ey. Propôs, em seu lugar, que a loucura é um fenômeno do pensamento, constitutiva da dialética do ser, não sendo, portanto, um defeito de adaptação à vida. Em suma, descartou a questão orgânica da loucura em prol da causalidade psíquica, movida pela dinâmica do desejo e das identificações.

O título da exposição de Follin e Bonnafé fala por si próprio: “A propósito da psicogênese: estudo crítico do organo-dinamismo de Ey. As bases de uma psiquiatria concreta, ciência original do homem psicopata”. Referindo-se aos trabalhos de Georges Politzer, fundador da psicologia concreta, ambos descartam o monismo/dualismo de Ey e adotam a dialética em seu lugar. Para se compreender a loucura é, então, necessário recorrer ao método do materialismo dialético, considerando-se como objeto da psiquiatria o homem psicopata enquanto fenômeno social, e não a loucura. Nesse aspecto, a tarefa do psiquiatra, além de desvelar os conteúdos latentes, consiste em situar o indivíduo em seu meio de vida e sua história real, ajudando-o a se readaptar às relações sociais e atuando profilaticamente no seu meio. Follin e Bonnafe priorizaram, pois, as situações e processos concretos na análise da psicopatia, entendendo ser a sua causa, ao mesmo tempo psíquica, social e orgânica.

 

III- As correntes de pensamento derivadas das concepções de Ey, Lacan, Follin e Bonnafé

As três concepções psiquiátricas divergentes, traduzidas nos discursos de Ey, Lacan, Follin e Bonnafé, resumidos acima, influenciaram as formulações teóricas e as evoluções da Psicopatologia do Trabalho, determinando algumas correntes atuais de pensamento.

Paul Sivadon, por exemplo, prosseguiu com os trabalhos de Henri Ey, procurando conciliar as concepções orgânica e dinâmica do distúrbio psíquico. Buscou uma integração entre o psíquico, o orgânico e o social, sem conseguir fazê-la satisfatoriamente. Todavia, teve grande participação nos estudos sobre saúde mental no trabalho através do desenvolvimento da Ergoterapia, a qual se traduz como um método psicoterápico que emprega o trabalho, a ocupação educativa, na cura das doenças. Sivadon, então, analisa o trabalho como fonte de crescimento e evolução do indivíduo considerando as perversões existentes na organização das atividades de trabalho, as quais podem gerar pressões e conflitos que possibilitam o surgimento das patologias psíquicas (Sivadon & Zoila, 1988).

Le Guillant, por outro lado, aproximou-se mais das concepções de Follin e Bonnafé, ao apoiar-se nas correntes marxistas e nos preceitos da psicologia concreta de Georges Politzer. Por psicologia concreta podemos entender uma psicologia positiva, que se opõe à psicologia clássica ou abstrata, pois

só ela cumpre essa reforma radical do entendimento que a atitude verdadeiramente científica implica e da qual os psicólogos clássicos quiseram fazer economia, substituindo-lhe uma imitação puramente exterior dos métodos científicos (Politzer, 1988, p.182).

Sendo psicologia positiva, então, são observadas algumas condições para sua existência, como o estudo adequado de um grupo de fatos irredutíveis aos objetos das outras ciências, de maneira objetiva, ou seja, definindo-se o fato e o método psicológicos de forma que sejam universalmente acessíveis e verificáveis:

por ter abandonado o realismo com a atitude fundamental que ele implica, a psicologia concreta encontrou no drama humano um grupo de fatos que atendem às condições que acabamos de enunciar; apresenta-se por isso mesmo como uma verdadeira síntese da psicologia subjetiva e da psicologia objetiva (Politzer, 1988, p. 185).

Um “drama”, é entendido nessa concepção, como um “fato”, sem nenhuma conotação romântica ou emocional. Para se compreender o fato psicológico, ou o sentido do drama, precisa-se de dados fornecidos pelo sujeito através do seu próprio relato, pois, o fato psíquico é o resultado de uma construção de sentido,

não é o comportamento simples, mas o comportamento humano, isto é, o comportamento enquanto relacionado, por um lado, aos acontecimentos dentro dos quais se desenvolve a vida humana e, por outro lado, relacionado ao indivíduo, enquanto sujeito desta vida. Enfim, o fato psicológico é o comportamento com um sentido humano (Politzer, 1988, p.186)

Foi sob a influência desses preceitos da psicologia concreta que Le Guillant procurou conhecer as relações entre a alienação mental e a alienação social, buscando a compreensão da gênese das doenças mentais nas transformações sócio-históricas sem negar, no entanto, a dimensão orgânica e psicológica do adoecer psíquico. Baseando-se em Politzer, Le Guillant (1984b) concluiu que para compreendermos o psiquismo e seus distúrbios, devemos contemplar as condições reais de existência dos indivíduos, suas formas concretas de trabalho e o sentido que tudo isso tem para o sujeito, contemplando, então, tanto a perspectiva objetiva quanto a subjetiva do fato psíquico.  

Ao estudar a influência das características de trabalho, impostas pelo progresso técnico, na “fadiga nervosa”, Le Guillant nos permite identificar sua forma de pesquisa. Primeiramente, ele estabeleceu um quadro estatístico da freqüência da “síndrome subjetiva comum” da fadiga nervosa, com seus sintomas típicos (alterações do humor e do caráter, distúrbios do sono e alterações somáticas), em grupos representativos do conjunto das telefonistas. Para tanto, elaborou um questionário, cuja validade das respostas deveria ser assegurada pela comparação com dados obtidos de exames clínicos. Considerou “o conjunto das condições de vida: idade, situação familiar, condições de moradia, importância das ocupações extra-profissionais, adaptação à vida parisiense pelas numerosas interioranas” (Le Guillant, 1984a, p.11). Não houve, portanto, uma análise isolada da vida profissional e da vida pessoal das telefonistas. Por ter observado diferenças sensíveis, mesmo dentro da profissão, Le Guillant estabeleceu outras comparações através de diversos grupos controle. Quanto à objetivação da existência da síndrome que, ao se tornar irreversível constitui uma verdadeira neurose, foi utilizado o método dos reflexos condicionados.

Com a demonstração da existência dessa neurose, Le Guillant (1984a, p.11) pretendia

tratar de uma maneira racional as causas que as provocam: as condições de trabalho desfavoráveis, e de fazer reconhecer como as doenças nervosas e mentais cada vez mais numerosas, ligadas ao esgotamento nervoso a que as novas formas de trabalho conduzem.

Pode-se dizer que Le Guillant defende um enfoque psicossociológico da doença mental, em que o trabalho figuraria como instância central da realidade social. Seu método de pesquisa sobre a doença mental no trabalho é um misto de dados quantitativos e qualitativos que tentam articular as condições sociais, laborais e clínicas. Le Guillant reconhece o trabalho como fator central da evolução, ou mesmo da gênese dos distúrbios psíquicos, apesar de admitir a dificuldade de se compreender a passagem das situações concretas de trabalho para o aparecimento destes distúrbios.

Quanto à influência da psicanálise sobre a Psicopatologia do Trabalho, pode-se percebê-la melhor a partir da década de 1980 com os trabalhos de Christophe Dejours. Apesar desse último descartar a psicanálise como recurso para compreender a relação homem / trabalho, sempre recorreu aos seus conceitos ao tentar explicá-la, inclusive propondo, a partir de 1992, a mudança do termo psicopatologia para “psicodinâmica do trabalho”.

O objeto de estudo dessa última é o sofrimento e o prazer no trabalho, sendo seu grande desafio a compreensão da normalidade e não da doença mental no trabalho, ou seja, a compreensão das estratégias defensivas individuais e coletivas que permitem aos trabalhadores evitar as doenças e preservar o equilíbrio psíquico.

Para Dejours, as doenças mentais não são causadas pelo trabalho, no máximo podem ser desencadeadas por ele, já que existe uma determinação psíquica anterior ao ingresso do sujeito no mundo do trabalho. Por isso, a psicodinâmica do trabalho procura conhecer o que o trabalho significa para o trabalhador, ou seja, qual o seu significado frente aos valores, expectativas e trajetória existencial de cada um. Entende-se, então, que o sofrimento mental poderá conduzir o trabalhador à doença ao anular os “comportamentos livres” (tentativa de transformar a realidade circundante conforme os desejos do próprio sujeito) ou, ao contrário, à criatividade conforme sejam as possibilidades de haver um acordo entre seus desejos e as exigências da organização do trabalho.

Segundo Dejours (1994), o prazer do trabalhador resulta da descarga de energia psíquica que a tarefa autoriza, o que corresponde a uma diminuição da carga psíquica do trabalho. Se um trabalho permite a diminuição da carga psíquica ele é equilibrante. Se, ao contrário, as aptidões fantasmáticas (3) não são utilizadas, a energia psíquica se acumula, tornando-se fonte de desprazer, surgindo a astenia e a fadiga. A carga psíquica diferencia-se da carga física de trabalho, por tratar dos fenômenos afetivos e relacionais. A noção de carga física está relacionada à preocupação de quantificação e objetividade, enquanto a de carga psíquica está voltada para a análise qualitativa das vivências. Apesar dessa carga estar relacionada com a história psíquica de cada trabalhador, não se pode imputar o aumento da carga psíquica à estrutura de personalidade do trabalhador, pois se um indivíduo for incapaz de se satisfazer através de um trabalho, poderá, por outro lado, mostra-se apto a um trabalho físico.

A Psicodinâmica do Trabalho também estuda as formas de exploração do sofrimento mental e das próprias defesas psicológicas individuais e coletivas, através da análise das estratégias coletivas de defesa e de sua transformação em ideologia defensiva. Nesse sentido, a “alienação” é vista como uma saída para a subjetividade sufocada pela organização do trabalho. Isto é, o sofrimento causado pela falência da ideologia defensiva contra a organização do trabalho, transforma a ansiedade relativa à sobrevivência em problema individual, ao que Dejours acrescenta:

pode-se perguntar o que aconteceria se essa ideologia defensiva viesse a fracassar. De coletiva a ansiedade relativa à sobrevivência transformar-se-ia em problema individual. Aparecem então comportamen-tos individuais específicos: a principal saída frente a ansiedade concreta da morte é o alcoolismo, que atinge um certo número de indivíduos (Dejours, 1991, p 34).

As estratégias defensivas funcionam como regras, supondo um consenso ou acordo partilhado. São necessárias para a continuação do trabalho e para a adaptação às pressões organizacionais irredutíveis, minimizando a percepção que os trabalhadores têm dessas pressões, evitando a loucura e contribuindo para estabilizar a relação subjetiva com a organização do trabalho.

V- Contribuições atuais para a proposta de Louis Le Guillant
Sem pretender desconsiderar as demais tradições teórico-metodológicas da Psicopatologia do Trabalho, sem dúvida de grande importância para o desenvolvimento da disciplina, apontaremos aqui, sucintamente, determinadas contribuições para a vertente criada por Le Guillant, propostas por alguns estudiosos da área de saúde mental e trabalho. Salienta-se que a escolha por essa proposta, e não outra, advém do contato da autora com esse tipo de pesquisa em outra época (Nassif, 2002)     

Seguindo a linha de pensamento de Le Guillant, Lima (1998) salienta a importância de se retirar o caráter especulativo da investigação psicológica, através do enfoque na psicologia concreta (Politzer, 1998) e, aponta a necessidade de se integrar o trabalho como categoria central na compreensão do homem, para que as pesquisas em Saúde Mental e Trabalho (SM&T) possam tomar um cunho científico. A autora reafirma as colocações de Le Guillant, ao entender que devemos considerar tanto o discurso dos indivíduos quanto a sua atividade de trabalho, nesse campo de estudo. Sua contribuição à proposta de Le Guillant relaciona-se justamente com a dificuldade reconhecida por esse último de se chegar ao nexo entre os distúrbios e a atividade de trabalho. Isso se dá, na medida em que a proposta de Lima (1998) para os estudos em SM&T alia a Análise Ergonômica do Trabalho (AET), que é a metodologia utilizada pela Ergonomia Contemporânea, e a Análise Psicossociológica do Trabalho (APT). Este nexo é procurado, então, a partir das condições concretas de trabalho (natureza das tarefas, ritmo, etc.), das condições físicas do trabalho (ruído, iluminação, etc.) e das condições psicológicas do trabalho (comando, relações humanas, atitude em relação ao trabalho, etc.).

Enquanto a AET estuda as condições concretas de realização das atividades (horários, escalas, máquinas, equipamentos, instrumentos e matérias primas, trabalho prescrito e trabalho real, modos operatórios, habilidades exigidas, organização do trabalho, formas de interação do coletivo de trabalhadores, cargas de trabalho e distribuição do trabalho); a APT enfoca a subjetividade e a intersubjetividade dos trabalhadores, procurando compreender o sentido do trabalho, suas possibilidades de realização, relações com a empresa e suas políticas, relação com o produto / resultado do trabalho, qualidade das relações horizontais e verticais, relação com os clientes, pressões psicológicas sofridas e estratégias individuais e coletivas para lidar com elas. No conjunto, ambas analisam o mesmo objeto, ou seja, o comportamento efetivo do homem no trabalho, verificando dados referentes às agressões ambientais; ritmo excessivo; pressões da hierarquia, dos clientes, dos colegas; a fadiga e outras formas de desgaste, além de coletivizar vivências que parecem estritamente individuais. Através da inter-relação entre a AET e a APT, pretende-se verificar o real significado dos conflitos e queixas dos trabalhadores, uma vez que a APT enfoca a interioridade dos indivíduos, e a AET procura a compreensão do espaço social onde essa interioridade se exterioriza.

Portanto, o foco dos estudos em SM&T, como proposto por Lima, é a relação do indivíduo com sua atividade concreta de trabalho e suas determinações econômicas, sociais e políticas, estando sua base na apreensão das formas concretas dessa atividade de trabalho e na explicitação dos seus impactos nos indivíduos. Com isso, busca-se responder por que os trabalhadores adoecem, como poderiam evitar a doença e por que somente alguns adoecem. É importante salientar que o conhecimento sobre a relação saúde / doença, que possibilitaria encontrar respostas a essas perguntas, é um processo que deve ser construído coletivamente.

 

VI- Considerações finais

De uma maneira geral, cada ramificação da Psicopatologia do Trabalho apresenta características que são peculiares às abordagens que lhe deram origem e proporcionam, cada qual, ricas contribuições ao conhecimento do adoecimento psíquico no trabalho.

Podemos dizer que a “Ergoterapia” nos possibilita uma via de entendimento do adoecimento no trabalho, através da integração entre o psíquico, o orgânico e o social. Apesar de alguns críticos acreditarem que Paul Sivadon não foi eficaz na sua proposta.

No entender da “Psicodinâmica do Trabalho” o caminho que conduz ao trabalho saudável é aquele que respeita a identidade em construção, dentro de um trabalho cuja organização respeite os potenciais e os limites da condição humana, conduzindo o trabalhador à criatividade e ao comprometimento, realizando um trabalho de alta qualidade. Portanto, torna-se indispensável a flexibilidade da organização do trabalho, a partir da qual a prescrição e o controle das tarefas abram o espaço de liberdade para atender às necessidades do indivíduo. Sempre que é possível a variação da maneira de executar as tarefas, as pessoas conseguem estabelecer uma congruência entre o modo de trabalhar e a sua economia psicossomática. Dentro desse referencial, Dejours aconselhava que, na impossibilidade de se liberalizar a organização do trabalho, a reorientação profissional é imprescindível, de forma que se leve em conta as aptidões e as necessidades de sua economia psicossomática, pois “o pleno emprego das aptidões psicomotoras, psicosensoriais e psíquicas parece ser uma condição de prazer do trabalho” (Dejours, 1994, p.32).

Já os estudos de Le Guillant, acrescidos das atuais propostas de pesquisa em SM&T, propõem uma maneira singular de se abordar a relação homem / trabalho, através de um enfoque psicossociológico. Isso nos possibilita um modelo amplo de exploração do fenômeno. Modelo este que alia à análise do aparecimento dos sintomas, as condições concretas de trabalho, os fatores orgânicos, a história de vida e as características de personalidade do trabalhador, a partir do entrelaçamento de dados quantitativos e qualitativos. É no “ir” e “vir” entre as duas formas de análise que se busca verificar o real significado dos conflitos, queixas e sintomas, evitando-se tanto o viés psicologizante, que percebe o indivíduo isolado do contexto de trabalho quanto o viés sociologizante, que ignora a trajetória singular do indivíduo e sua personalidade.

Podemos dizer que, ao longo do seu desenvolvimento, ao reconhecer os limites e dificuldades de se compreender a influência do trabalho na saúde dos indivíduos, a Psicopatologia do Trabalho estabeleceu laços significativos com a psicologia e a medicina, utilizando conhecimentos das duas áreas. Podemos apontar, por exemplo, a influência teórica e metodológica de algumas disciplinas como a Psicologia do Trabalho, a Psicologia Cognitiva, a Psicofisiologia e a Fisiologia. Os conceitos da Psicanálise têm servido como aporte teórico utilizado, principalmente, pela Psicodinâmica do Trabalho. Alguns conceitos da Ergonomia, como o de carga de trabalho (conjunto de esforços físicos, cognitivos e psicoafetivos desenvolvido para atender as exigências das tarefas) são importantes para os estudos sobre cargas cognitivas e psicoafetivas de trabalho, a análise do trabalho concreto e sua adaptação ao homem sem afetar sua saúde e desempenho. A Psicologia Social proporciona o desenvolvimento de métodos destinados a identificar e a descrever os aspectos psicossociais relacionados às situações de trabalho e que caracterizassem riscos à saúde. As formulações teóricas que se referem à identidade social são de grande valia para a compreensão da sujeição dos trabalhadores. Assim como os estudos epidemiológicos realizados em Saúde Ocupacional são de grande interesse para a Psicopatologia do Trabalho, a análise das causas de absenteísmo registradas nos Serviços de Medicina e Segurança do Trabalho pode permitir uma correlação com as condições organizacionais e ambientais do trabalho. Da mesma forma, a Toxicologia e a Neurologia contribuem com a Psicopatologia do Trabalho quando realizam estudos sobre a influência que diferentes substâncias químicas, presentes nos ambientes de trabalho, exercem no sistema nervoso, acarretando distúrbios neurológicos, alguns deles com manifestações psiquiátricas.

A história nos mostra, portanto, algumas ramificações da Psicopatologia do Trabalho, formadas a partir da origem dessa disciplina na França, em meio a diversos acontecimentos sócio-políticos e econômicos. Cada uma dessas ramificações proporciona, para a psicologia e para a medicina atuais, diferentes vias de entendimento do adoecimento psíquico e suas relações com o trabalho.
 

Referências bibliográficas

Billiard, I (1996). Les conditions historiques et sociales de lápparition de la psychopathologie du travail en France (1929-1952).  Paris: Octarès.

Damásio, A.R. (1996). O erro de Descartes. Emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras.

Dejours, C. (1991). A loucura do trabalho.  São Paulo: Cortez-Oboré, 1991.

Dejours, C., Abdoucheli,.E., Jayet, C. (1994). Psicodinâmica do trabalho. (M.I.S. Betiol e col., Trad.s) São Paulo: Atlas. (Publicação original de 1993).

Ey, H (1950). El problema de la psicogénesis de las neurosis y de las psicosis: Coloquio de Bonneval de 1946. Bilbao: Desclée de Brower.

Ey, H; Bonnafé, L.; Lacan,J.; Rouart, J. (1950). Le problème de la psychogenèse des névroses et des psychoses: Colloque de Bonneval de 1946. Bilbao: Desclée de Brouwer.

Lima, M.E.A (1997). A pesquisa em saúde mental e trabalho. Em A. Tamayo; J.E. Andrade-Borges; W. Codo. Trabalho, organizações e cultura. (pp. 27-35). São Paulo: Cooperativa de Autores Associados.

Lima, M.E.A (1998). A psicopatologia do trabalho: origens e desenvolvimentos recentes na França. Psicologia: ciência e profissão, 18 (2), 10-15.

Le Guillant, L. e col.s (1984). A neurose das telefonistas. Revista brasileira de saúde ocupacional, 17 (47), 7-11 

Le Guillant, L. (1984).  Quelle psyquiatrie pour notre sociéte?  Paris: Érès.

Nassif, L.E. (2002). Uma contribuição da Psicopatologia do Trabalho para o estudo do alcoolismo no trabalho: estudo de caso em uma instituição pública de ensino superior. Dissertação de Mestrado, Programa de Mestrado em Psicologia Social, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG.

Politzer, G. (1998). Crítica dos fundamentos da psicologia: a psicologia e a psicanálise. Piracicaba: Editora UNIMEP.

Selligmann-Silva, E. (1994). Desgaste mental no trabalho dominado. Rio de Janeiro: UFRJ.

Sivadon, P.; Fernandez-Zoila, A. (1998). Corpo e terapêutica: uma psicopatologia do corpo. São Paulo: Papirus.
 

 Notas

(1) Infelizmente esses artigos não foram encontrados para se proceder a uma pesquisa mais apurada.(volta).

(2) Palavra derivada do grego: Ergon (trabalho) e therapeia (tratamento).(volta).

(3) Termo utilizado pelo próprio Dejours (1994).(volta).
 

Nota sobre a autora

Lílian Erichsen Nassif
é Psicóloga, especialista em Gestão Estratégica de RH pela UFMG, mestre em Psicologia Social pela UFMG, com formação em Psicoterapia Cognitiva pelo Núcleo de Psicoterapia Cognitiva de São Paulo e doutoranda em Educação pela UFMG. Contato: Alameda dos Coqueiros, 1144 - São José / Pampulha – CEP: 31275-170 Belo Horizonte (MG) – Brasil. E-mail: Nassif40@hotmail.com / lilian.erichsen@terra.com.br . Telefax: (55) (31) 3282-3634.

Data de recebimento: 15/12/2004
Data de aceite: 27/04/2005

Memorandum 8, abr/2005
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos08/nassif01.htm
 

 

 

 Português  English Envie seu comentário sobre este artigo e sobre a revista Memorandum. Clique aqui

Indique este artigo