I- Introdução
(...) as operações fisiológicas que denominamos por mente derivam desse
conjunto estrutural e funcional e não apenas do cérebro: os fenômenos
mentais só podem ser cabalmente compreendidos no contexto de um organismo
em interação com o ambiente que o rodeia. O fato de o ambiente ser, em
parte, um produto da atividade do próprio organismo apenas coloca ainda
mais em destaque a complexidade das interações que devemos ter em conta.
(Damásio, 1996, p.17)
Em
geral, a psiquiatria tradicional tende a reduzir o sofrimento mental aos
fatores orgânicos e individuais, desconsiderando a influência das
condições sociais sobre a saúde mental. Uma das instâncias sociais muitas
vezes negligenciada pela psiquiatria é o trabalho.
Sabe-se, entretanto, o quanto este último pode contribuir para o
desenvolvimento psíquico, fortalecendo a saúde mental dos trabalhadores,
ou, ao contrário, favorecendo a formação de distúrbios que se expressam
coletivamente e/ou individualmente através de transtornos psicossomáticos
e psiquiátricos. Transformações da identidade, mediadas pelas experiências
do trabalho podem ser extremamente positivas, fazendo-se no sentido do
enriquecimento dos potenciais do indivíduo. No entanto, podem também
conduzi-lo ao sentido oposto, ou seja, provocando perdas ao nível da
identidade que implicarão o empobrecimento da personalidade e da
sociabilidade.
Ao longo da história, é possível observarmos algumas modificações das
linhas de pesquisas e referenciais teóricos no que diz respeito à saúde do
trabalhador, passando de um enfoque causalista e voltado para a produção
até chegar às atuais teorias e metodologias como algumas que abordaremos
aqui: a proposta de Paul Sivadon, Le Guillant, Christophe Dejours, ou dos
pesquisadores mais recentes na área de Saúde Mental e Trabalho.
Modificações essas que não desqualifica nenhuma das abordagens ou as torna
mais ou menos ultrapassadas, mas nos dá um panorama dos diferentes
enfoques sobre o adoecimento psíquico no trabalho.
O objetivo desse artigo, portanto, é traçar as origens da
Psicopatologia do Trabalho na França, no século XX, dentro de um contexto
sócio-histórico específico. O intuito disso é proporcionar uma visão
genealógica da disciplina para uma maior compreensão da sua ressonância
sobre os aspectos teóricos e metodológicos que norteiam atualmente algumas
linhas de pesquisas sobre a saúde mental dos trabalhadores.
II- Aspectos sócio-históricos que
influenciaram o Desenvolvimento da Psicopatologia do Trabalho na França no
século XX
Segundo Billiard (1996),
corroborada por Lima (1998), a expressão “psicopatologia do trabalho”
surgiu em 1952, como título de um artigo escrito pelo psiquiatra Paul
Sivadon. Em seguida, foram publicados dois artigos do também psiquiatra
Louis Le Guillant, a respeito da “psicologia do trabalho” e da
“psicopatologia social”, em 1952 e 1954
(1)
respectivamente. Contudo, desde 1927, o American Journal of Psychiatry
publica matérias sobre “Psiquiatria Ocupacional”, “Saúde Mental
Ocupacional” e “Psiquiatria Industrial” (Seligmann-Silva, 1994).
Historicamente, pode-se identificar fatos relevantes que precederam ou
aconteceram concomitantemente ao surgimento desses primeiros estudos, na
França.
Logo após a I Guerra Mundial assistiu-se
a uma modernização das indústrias francesas que visava basicamente à
racionalização e ao aumento da produtividade. Essa racionalização dizia
respeito tanto ao trabalho quanto à vida social, na medida em que o
empobrecimento dos operários se acentuou em decorrência do confronto
bélico. A situação encontrava-se propícia, dentre outras coisas, à
delinqüência, à violência e à prostituição, abalando a ordem moral
burguesa vigente.
Nesse momento, os médicos higienistas,
instituídos em 1802, foram os que se encarregaram de responder a essa
ameaça social. Com sua legitimação reconhecida em 1829, através da revista
“Os Anais de Higiene Pública e de Medicina Legal” que tinha como
representante Esquirol, Pinel, Orfila, Villermé e outros; e mais tarde com
a fusão desta mesma revista com os “Anais de Medicina Legal de
Criminologia e de Política Industrial e Social”, o movimento
higienista orientou-se no sentido de melhorar o estado de saúde das
populações, de lutar contra a degenerescência dos indivíduos e contra as
psicopatias. Trata-se de um conjunto de ações profiláticas direcionado
para o extermínio dos flagelos sociais como a tuberculose, o alcoolismo e
as doenças venéreas, assim como para a vigilância da saúde dos
trabalhadores, através da criação de serviços médicos nas empresas e da
cadeira de Medicina do Trabalho (Billiard, 1996).
Nessa mesma época, Toulouse que,
conforme Billiard (1996), foi um dos psiquiatras fundadores da psiquiatria
social, instituiu a “Liga de Higiene Mental” no quadro dos Anais de
Higiene Pública Industrial e Social, com a finalidade de pesquisa e de
efetivação de medidas profiláticas dos distúrbios mentais, de melhoria das
condições de tratamento dos psicopatas e do desenvolvimento da higiene
mental nas indústrias e escolas. Tal projeto teve como base a teoria da
degenerescência de Benedict Morel e Valentin Magnan que preconizava o
papel da hereditariedade e dos aspectos orgânicos na gênese da loucura
(predisposições). Ao mesmo tempo, Toulouse acreditava na influência dos
fatores sociais sobre a origem das psicopatias, representados pela
vivência familiar, escolar e profissional. Isso caracteriza sua dupla
concepção sobre a origem da doença mental: orgânica e social. Seu modo de
trabalhar, então, é essencialmente eugenista, ao definir “tipos humanos”
que poderiam ser melhor utilizados pela organização racional do trabalho.
Já no período entre guerras, a
psiquiatria francesa sofreu transformações ao incorporar os pressupostos
freudianos à sua prática. Em 1925, na França, criou-se o “Grupo da
Evolução Psiquiátrica”, fruto do movimento de mesmo nome, que publicou
uma revista com o objetivo de instaurar um espaço de debate sobre
psicologia clínica, psicologia geral e psiquiatria, sendo a teoria
freudiana o centro da discussão. Entretanto, a psiquiatria dividiu-se
entre os adeptos da psicodinâmica e aqueles que a ela resistiam.
Transformações político-sociais,
científicas e tecnológicas ocorridas posteriormente na França, conduziram
a novas perspectivas no desenvolvimento da Psicopatologia do Trabalho,
principalmente após a II Grande Guerra. Nessa época, tornou-se necessário
o desenvolvimento de estudos e técnicas para adaptar o maior número
possível de novos trabalhadores em diferentes tarefas, inclusive mulheres,
idosos e doentes mentais. Muitos desses últimos, aliás, foram liberados
dos hospitais psiquiátricos por falta de condições de sobrevivência nesses
estabelecimentos. Para surpresa dos psiquiatras, no final da Guerra, esses
doentes mentais considerados “pacientes crônicos”, mostravam-se aptos a
retornar à vida familiar e social, assim como a realizar alguma tarefa
produtiva.
A experiência desses hospitais
psiquiátricos proporcionou o desenvolvimento da “Ergoterapia”(2), cujo
principal representante foi o psiquiatra Paul Sivadon, adepto da
psiquiatria social. A Ergoterapia estabeleceu uma nova forma de abordar o
doente mental e permitiu reconhecer o trabalho pelo seu valor de
integração social, oferecendo-nos grande contribuição para os estudos na
área de saúde mental no trabalho.
Tais evoluções se solidificaram com a
criação dos Centros de Tratamento e Readaptação Social (CTRS) nos
hospitais psiquiátricos. Paul Sivadon foi responsável por um CTRS em
Ville-Evrard em 1947; e Louis Le Guillant, no hospital Villejuif em 1950.
O Colóquio de Bonneval, de 1946,
mostra-nos os avanços da psiquiatria no período entre Guerras e pós II
Guerra. Seu tema foi a diversidade de abordagens a respeito da gênese das
neuroses e psicoses, ou seja, a organogênese, a psicogênese e a
sociogênese dos distúrbios psíquicos. Este Colóquio é também importante no
delineamento da Psicopatologia do Trabalho na década de 1950, através de
três principais exposições: a de Henry Ey, a de Jacques Lacan e a de S.
Follin e Lucien Bonnafé (1950b).
A conferência de abertura do Colóquio
fora proferida por Henry Ey, na qual ele expôs sua teoria, ao mesmo tempo
orgânica e dinâmica, das funções psíquicas. Se, por um lado, ele atribuía
a origem da loucura aos aspectos orgânicos, infecciosos, endocrinológicos
ou traumáticos, por outro, acreditava ser a atividade psíquica normal
definida pela psicogênese. Ele propôs ainda a teoria da relação do
“psiquismo e da moral”, denominada teoria de hierarquia estrutural,
segundo a qual cada uma das estruturas orgânica, biológica e psicológica é
condição necessária mas não suficiente da estrutura que lhe é
imediatamente superior. Explica ainda que
es a la filosofia de Bérgson que somos fieles como
lugar privilegiado de este encuentro. Ella representa em efecto uma suerte
de síntesis entre lãs tesis fenomenológicas y marxistas (...) nos
preguntamos (...) qué diferencia profunda y verdadera hay entre la
evolución creadora y el materialismo dialéctico (Ey, 1950a, p.202).
Jacques Lacan, por sua vez, expôs suas
propostas sobre a causalidade psíquica, recusando a teoria organicista e
dinâmica de Ey. Propôs, em seu lugar, que a loucura é um fenômeno do
pensamento, constitutiva da dialética do ser, não sendo, portanto, um
defeito de adaptação à vida. Em suma, descartou a questão orgânica da
loucura em prol da causalidade psíquica, movida pela dinâmica do desejo e
das identificações.
O título da exposição de Follin e Bonnafé fala por si
próprio: “A propósito da psicogênese: estudo crítico do organo-dinamismo
de Ey. As bases de uma psiquiatria concreta, ciência original do homem
psicopata”. Referindo-se aos trabalhos de Georges Politzer, fundador da
psicologia concreta, ambos descartam o monismo/dualismo de Ey e adotam a
dialética em seu lugar. Para se compreender a loucura é, então, necessário
recorrer ao método do materialismo dialético, considerando-se como objeto
da psiquiatria o homem psicopata enquanto fenômeno social, e não a
loucura. Nesse aspecto, a tarefa do psiquiatra, além de desvelar os
conteúdos latentes, consiste em situar o indivíduo em seu meio de vida e
sua história real, ajudando-o a se readaptar às relações sociais e atuando
profilaticamente no seu meio. Follin e Bonnafe priorizaram, pois, as
situações e processos concretos na análise da psicopatia, entendendo ser a
sua causa, ao mesmo tempo psíquica, social e orgânica.
III-
As correntes de pensamento derivadas das concepções de Ey, Lacan,
Follin e Bonnafé
As três concepções psiquiátricas
divergentes, traduzidas nos discursos de Ey, Lacan, Follin e Bonnafé,
resumidos acima, influenciaram as formulações teóricas e as evoluções da
Psicopatologia do Trabalho, determinando algumas correntes atuais de
pensamento.
Paul Sivadon, por exemplo, prosseguiu
com os trabalhos de Henri Ey, procurando conciliar as concepções orgânica
e dinâmica do distúrbio psíquico. Buscou uma integração entre o psíquico,
o orgânico e o social, sem conseguir fazê-la satisfatoriamente. Todavia,
teve grande participação nos estudos sobre saúde mental no trabalho
através do desenvolvimento da Ergoterapia, a qual se traduz como um método
psicoterápico que emprega o trabalho, a ocupação educativa, na cura das
doenças. Sivadon, então, analisa o trabalho como fonte de crescimento e
evolução do indivíduo considerando as perversões existentes na organização
das atividades de trabalho, as quais podem gerar pressões e conflitos que
possibilitam o surgimento das patologias psíquicas (Sivadon & Zoila,
1988).
Le Guillant, por outro lado,
aproximou-se mais das concepções de Follin e Bonnafé, ao apoiar-se nas
correntes marxistas e nos preceitos da psicologia concreta de Georges
Politzer. Por psicologia concreta podemos entender uma psicologia
positiva, que se opõe à psicologia clássica ou abstrata, pois
só ela cumpre essa reforma radical do entendimento
que a atitude verdadeiramente científica implica e da qual os psicólogos
clássicos quiseram fazer economia, substituindo-lhe uma imitação puramente
exterior dos métodos científicos (Politzer, 1988, p.182).
Sendo psicologia positiva, então, são
observadas algumas condições para sua existência, como o estudo adequado
de um grupo de fatos irredutíveis aos objetos das outras ciências, de
maneira objetiva, ou seja, definindo-se o fato e o método psicológicos de
forma que sejam universalmente acessíveis e verificáveis:
por ter abandonado
o realismo com a atitude fundamental que ele implica, a psicologia
concreta encontrou no drama humano um grupo de fatos que atendem às
condições que acabamos de enunciar; apresenta-se por isso mesmo como
uma verdadeira síntese da psicologia subjetiva e da psicologia objetiva
(Politzer, 1988, p. 185).
Um “drama”, é entendido nessa concepção,
como um “fato”, sem nenhuma conotação romântica ou emocional. Para se
compreender o fato psicológico, ou o sentido do drama, precisa-se de dados
fornecidos pelo sujeito através do seu próprio relato, pois, o fato
psíquico é o resultado de uma construção de sentido,
não é o comportamento simples, mas o comportamento
humano, isto é, o comportamento enquanto relacionado, por um lado, aos
acontecimentos dentro dos quais se desenvolve a vida humana e, por outro
lado, relacionado ao indivíduo, enquanto sujeito desta vida. Enfim, o fato
psicológico é o comportamento com um sentido humano (Politzer, 1988,
p.186)
Foi sob a influência desses preceitos da
psicologia concreta que Le Guillant procurou conhecer as relações entre a
alienação mental e a alienação social, buscando a compreensão da gênese
das doenças mentais nas transformações sócio-históricas sem negar, no
entanto, a dimensão orgânica e psicológica do adoecer psíquico.
Baseando-se em Politzer, Le Guillant (1984b) concluiu que para
compreendermos o psiquismo e seus distúrbios, devemos contemplar as
condições reais de existência dos indivíduos, suas formas concretas de
trabalho e o sentido que tudo isso tem para o sujeito, contemplando,
então, tanto a perspectiva objetiva quanto a subjetiva do fato psíquico.
Ao estudar a influência das
características de trabalho, impostas pelo progresso técnico, na “fadiga
nervosa”, Le Guillant nos permite identificar sua forma de pesquisa.
Primeiramente, ele estabeleceu um quadro estatístico da freqüência da
“síndrome subjetiva comum” da fadiga nervosa, com seus sintomas típicos
(alterações do humor e do caráter, distúrbios do sono e alterações
somáticas), em grupos representativos do conjunto das telefonistas. Para
tanto, elaborou um questionário, cuja validade das respostas deveria ser
assegurada pela comparação com dados obtidos de exames clínicos.
Considerou “o conjunto das condições de vida: idade, situação familiar,
condições de moradia, importância das ocupações extra-profissionais,
adaptação à vida parisiense pelas numerosas interioranas” (Le
Guillant, 1984a, p.11). Não houve, portanto, uma análise isolada da vida
profissional e da vida pessoal das telefonistas. Por ter observado
diferenças sensíveis, mesmo dentro da profissão, Le Guillant estabeleceu
outras comparações através de diversos grupos controle. Quanto à
objetivação da existência da síndrome que, ao se tornar irreversível
constitui uma verdadeira neurose, foi utilizado o método dos reflexos
condicionados.
Com a demonstração da existência dessa
neurose, Le Guillant (1984a, p.11) pretendia
tratar de uma maneira racional as causas que as
provocam: as condições de trabalho desfavoráveis, e de fazer reconhecer
como as doenças nervosas e mentais cada vez mais numerosas, ligadas ao
esgotamento nervoso a que as novas formas de trabalho conduzem.
Pode-se dizer que Le Guillant defende um
enfoque psicossociológico da doença mental, em que o trabalho figuraria
como instância central da realidade social. Seu método de pesquisa sobre a
doença mental no trabalho é um misto de dados quantitativos e qualitativos
que tentam articular as condições sociais, laborais e clínicas. Le
Guillant reconhece o trabalho como fator central da evolução, ou mesmo da
gênese dos distúrbios psíquicos, apesar de admitir a dificuldade de se
compreender a passagem das situações concretas de trabalho para o
aparecimento destes distúrbios.
Quanto à influência da psicanálise sobre
a Psicopatologia do Trabalho, pode-se percebê-la melhor a partir da década
de 1980 com os trabalhos de Christophe Dejours. Apesar desse último
descartar a psicanálise como recurso para compreender a relação homem /
trabalho, sempre recorreu aos seus conceitos ao tentar explicá-la,
inclusive propondo, a partir de 1992, a mudança do termo psicopatologia
para “psicodinâmica do trabalho”.
O objeto de estudo dessa última é o
sofrimento e o prazer no trabalho, sendo seu grande desafio a compreensão
da normalidade e não da doença mental no trabalho, ou seja, a compreensão
das estratégias defensivas individuais e coletivas que permitem aos
trabalhadores evitar as doenças e preservar o equilíbrio psíquico.
Para Dejours, as doenças mentais não são
causadas pelo trabalho, no máximo podem ser desencadeadas por ele, já que
existe uma determinação psíquica anterior ao ingresso do sujeito no mundo
do trabalho. Por isso, a psicodinâmica do trabalho procura conhecer o que
o trabalho significa para o trabalhador, ou seja, qual o seu significado
frente aos valores, expectativas e trajetória existencial de cada um.
Entende-se, então, que o sofrimento mental poderá conduzir o trabalhador à
doença ao anular os “comportamentos livres” (tentativa de transformar a
realidade circundante conforme os desejos do próprio sujeito) ou, ao
contrário, à criatividade conforme sejam as possibilidades de haver um
acordo entre seus desejos e as exigências da organização do trabalho.
Segundo Dejours (1994), o prazer do trabalhador resulta da descarga de
energia psíquica que a tarefa autoriza, o que corresponde a uma diminuição
da carga psíquica do trabalho. Se um trabalho permite a diminuição da
carga psíquica ele é equilibrante. Se, ao contrário, as aptidões
fantasmáticas
(3)
não são utilizadas, a energia psíquica se acumula,
tornando-se fonte de desprazer, surgindo a astenia e a fadiga. A carga
psíquica diferencia-se da carga física de trabalho, por tratar dos
fenômenos afetivos e relacionais. A noção de carga física está relacionada
à preocupação de quantificação e objetividade, enquanto a de carga
psíquica está voltada para a análise qualitativa das vivências. Apesar
dessa carga estar relacionada com a história psíquica de cada trabalhador,
não se pode imputar o aumento da carga psíquica à estrutura de
personalidade do trabalhador, pois se um indivíduo for incapaz de se
satisfazer através de um trabalho, poderá, por outro lado, mostra-se apto
a um trabalho físico.
A
Psicodinâmica do Trabalho também estuda as formas de exploração do
sofrimento mental e das próprias defesas psicológicas individuais e
coletivas, através da análise das estratégias coletivas de defesa e de sua
transformação em ideologia defensiva. Nesse sentido, a “alienação” é vista
como uma saída para a subjetividade sufocada pela organização do trabalho.
Isto é, o sofrimento causado pela falência da ideologia defensiva contra a
organização do trabalho, transforma a ansiedade relativa à sobrevivência
em problema individual, ao que Dejours acrescenta:
pode-se perguntar o que aconteceria se essa ideologia defensiva viesse a
fracassar. De coletiva a ansiedade relativa à sobrevivência
transformar-se-ia em problema individual. Aparecem então comportamen-tos
individuais específicos: a principal saída frente a ansiedade concreta da
morte é o alcoolismo, que atinge um certo número de indivíduos
(Dejours,
1991, p 34).
As
estratégias defensivas funcionam como regras, supondo um consenso ou
acordo partilhado. São necessárias para a continuação do trabalho e para a
adaptação às pressões organizacionais irredutíveis, minimizando a
percepção que os trabalhadores têm dessas pressões, evitando a loucura e
contribuindo para estabilizar a relação subjetiva com a organização do
trabalho.
V- Contribuições atuais para a proposta
de Louis Le Guillant
Sem pretender desconsiderar
as demais tradições teórico-metodológicas da Psicopatologia do Trabalho,
sem dúvida de grande importância para o desenvolvimento da disciplina,
apontaremos aqui, sucintamente, determinadas contribuições para a vertente
criada por Le Guillant, propostas por alguns estudiosos da área de saúde
mental e trabalho. Salienta-se que a escolha por essa proposta, e não
outra, advém do contato da autora com esse tipo de pesquisa em outra época
(Nassif, 2002)
Seguindo a linha de pensamento de Le
Guillant, Lima (1998) salienta a importância de se retirar o caráter
especulativo da investigação psicológica, através do enfoque na psicologia
concreta (Politzer, 1998) e, aponta a necessidade de se integrar o
trabalho como categoria central na compreensão do homem, para que as
pesquisas em Saúde Mental e Trabalho (SM&T) possam tomar um cunho
científico. A autora reafirma as colocações de Le Guillant, ao entender
que devemos considerar tanto o discurso dos indivíduos quanto a sua
atividade de trabalho, nesse campo de estudo. Sua contribuição à proposta
de Le Guillant relaciona-se justamente com a dificuldade reconhecida por
esse último de se chegar ao nexo entre os distúrbios e a atividade de
trabalho. Isso se dá, na medida em que a proposta de Lima (1998) para os
estudos em SM&T alia a Análise Ergonômica do Trabalho (AET), que é a
metodologia utilizada pela Ergonomia Contemporânea, e a Análise
Psicossociológica do Trabalho (APT). Este nexo é procurado, então, a
partir das condições concretas de trabalho (natureza das tarefas, ritmo,
etc.), das condições físicas do trabalho (ruído, iluminação, etc.) e das
condições psicológicas do trabalho (comando, relações humanas, atitude em
relação ao trabalho, etc.).
Enquanto a AET estuda as condições
concretas de realização das atividades (horários, escalas, máquinas,
equipamentos, instrumentos e matérias primas, trabalho prescrito e
trabalho real, modos operatórios, habilidades exigidas, organização do
trabalho, formas de interação do coletivo de trabalhadores, cargas de
trabalho e distribuição do trabalho); a APT enfoca a subjetividade e a
intersubjetividade dos trabalhadores, procurando compreender o sentido do
trabalho, suas possibilidades de realização, relações com a empresa e suas
políticas, relação com o produto / resultado do trabalho, qualidade das
relações horizontais e verticais, relação com os clientes, pressões
psicológicas sofridas e estratégias individuais e coletivas para lidar com
elas. No conjunto, ambas analisam o mesmo objeto, ou seja, o comportamento
efetivo do homem no trabalho, verificando dados referentes às agressões
ambientais; ritmo excessivo; pressões da hierarquia, dos clientes, dos
colegas; a fadiga e outras formas de desgaste, além de coletivizar
vivências que parecem estritamente individuais. Através da inter-relação
entre a AET e a APT, pretende-se verificar o real significado dos
conflitos e queixas dos trabalhadores, uma vez que a APT enfoca a
interioridade dos indivíduos, e a AET procura a compreensão do espaço
social onde essa interioridade se exterioriza.
Portanto, o foco dos estudos em SM&T,
como proposto por Lima, é a relação do indivíduo com sua atividade
concreta de trabalho e suas determinações econômicas, sociais e políticas,
estando sua base na apreensão das formas concretas dessa atividade de
trabalho e na explicitação dos seus impactos nos indivíduos. Com isso,
busca-se responder por que os trabalhadores adoecem, como poderiam evitar
a doença e por que somente alguns adoecem. É importante salientar que o
conhecimento sobre a relação saúde / doença, que possibilitaria encontrar
respostas a essas perguntas, é um processo que deve ser construído
coletivamente.
VI- Considerações finais
De
uma maneira geral, cada ramificação da Psicopatologia do Trabalho
apresenta características que são peculiares às abordagens que lhe deram
origem e proporcionam, cada qual, ricas contribuições ao conhecimento do
adoecimento psíquico no trabalho.
Podemos dizer que a “Ergoterapia” nos possibilita uma via de entendimento
do adoecimento no trabalho, através da integração entre o psíquico, o
orgânico e o social. Apesar de alguns críticos acreditarem que Paul
Sivadon não foi eficaz na sua proposta.
No
entender da “Psicodinâmica do Trabalho” o caminho que conduz ao trabalho
saudável é aquele que respeita a identidade em construção, dentro de um
trabalho cuja organização respeite os potenciais e os limites da condição
humana, conduzindo o trabalhador à criatividade e ao comprometimento,
realizando um trabalho de alta qualidade. Portanto, torna-se indispensável
a flexibilidade da organização do trabalho, a partir da qual a prescrição
e o controle das tarefas abram o espaço de liberdade para atender às
necessidades do indivíduo. Sempre que é possível a variação da maneira de
executar as tarefas, as pessoas conseguem estabelecer uma congruência
entre o modo de trabalhar e a sua economia psicossomática. Dentro desse
referencial, Dejours aconselhava que, na impossibilidade de se liberalizar
a organização do trabalho, a reorientação profissional é imprescindível,
de forma que se leve em conta as aptidões e as necessidades de sua
economia psicossomática, pois “o pleno emprego das aptidões psicomotoras,
psicosensoriais e psíquicas parece ser uma condição de prazer do trabalho”
(Dejours, 1994, p.32).
Já os estudos de Le Guillant, acrescidos
das atuais propostas de pesquisa em SM&T, propõem uma maneira singular de
se abordar a relação homem / trabalho, através de um enfoque
psicossociológico. Isso nos possibilita um modelo amplo de exploração do
fenômeno. Modelo este que alia à análise do aparecimento dos sintomas, as
condições concretas de trabalho, os fatores orgânicos, a história de vida
e as características de personalidade do trabalhador, a partir do
entrelaçamento de dados quantitativos e qualitativos. É no “ir” e “vir”
entre as duas formas de análise que se busca verificar o real significado
dos conflitos, queixas e sintomas, evitando-se tanto o viés psicologizante,
que percebe o indivíduo isolado do contexto de trabalho quanto o viés
sociologizante, que ignora a trajetória singular do indivíduo e sua
personalidade.
Podemos dizer que, ao longo do seu
desenvolvimento, ao reconhecer os limites e dificuldades de se compreender
a influência do trabalho na saúde dos indivíduos, a Psicopatologia do
Trabalho estabeleceu laços significativos com a psicologia e a medicina,
utilizando conhecimentos das duas áreas. Podemos apontar, por exemplo, a
influência teórica e metodológica de algumas disciplinas como a Psicologia
do Trabalho, a Psicologia Cognitiva, a Psicofisiologia e a Fisiologia. Os
conceitos da Psicanálise têm servido como aporte teórico utilizado,
principalmente, pela Psicodinâmica do Trabalho. Alguns conceitos da
Ergonomia, como o de carga de trabalho (conjunto de esforços físicos,
cognitivos e psicoafetivos desenvolvido para atender as exigências das
tarefas) são importantes para os estudos sobre cargas cognitivas e
psicoafetivas de trabalho, a análise do trabalho concreto e sua adaptação
ao homem sem afetar sua saúde e desempenho. A Psicologia Social
proporciona o desenvolvimento de métodos destinados a identificar e a
descrever os aspectos psicossociais relacionados às situações de trabalho
e que caracterizassem riscos à saúde. As formulações teóricas que se
referem à identidade social são de grande valia para a compreensão da
sujeição dos trabalhadores. Assim como os estudos epidemiológicos
realizados em Saúde Ocupacional são de grande interesse para a
Psicopatologia do Trabalho, a análise das causas de absenteísmo
registradas nos Serviços de Medicina e Segurança do Trabalho pode permitir
uma correlação com as condições organizacionais e ambientais do trabalho.
Da mesma forma, a Toxicologia e a Neurologia contribuem com a
Psicopatologia do Trabalho quando realizam estudos sobre a influência que
diferentes substâncias químicas, presentes nos ambientes de trabalho,
exercem no sistema nervoso, acarretando distúrbios neurológicos, alguns
deles com manifestações psiquiátricas.
A história nos
mostra, portanto, algumas ramificações da Psicopatologia do Trabalho,
formadas a partir da origem dessa disciplina na França, em meio a diversos
acontecimentos sócio-políticos e econômicos. Cada uma dessas ramificações
proporciona, para a psicologia e para a medicina atuais, diferentes vias
de entendimento do adoecimento psíquico e suas relações com o trabalho.
Referências
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Notas
(1)
Infelizmente esses artigos não foram encontrados para se proceder a uma
pesquisa mais apurada.(volta).
(2)
Palavra derivada do grego: Ergon (trabalho) e therapeia
(tratamento).(volta).
(3)
Termo utilizado pelo próprio Dejours (1994).(volta).
Nota sobre a autora
Lílian
Erichsen Nassif
é Psicóloga, especialista em Gestão Estratégica de RH pela UFMG, mestre em
Psicologia Social pela UFMG, com formação em Psicoterapia Cognitiva pelo
Núcleo de Psicoterapia Cognitiva de São Paulo e doutoranda em Educação
pela UFMG. Contato: Alameda dos Coqueiros, 1144 - São José / Pampulha –
CEP: 31275-170 Belo Horizonte (MG) – Brasil. E-mail:
Nassif40@hotmail.com /
lilian.erichsen@terra.com.br . Telefax: (55)
(31) 3282-3634.
Data de recebimento:
15/12/2004
Data de aceite: 27/04/2005
Memorandum 8, abr/2005
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos08/nassif01.htm