Pacheco,
P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na
psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos
XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87. Retirado em / / , do World
Wide Web:
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm
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Experiência como
fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da
Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII)
Experience
as factor of knowledge in the philosophical-psychology
Aristotelic-Thomist of the Society of Jesus (16th and 17th
centuries)
Paulo
Roberto de Andrada Pacheco
Universidade de São Paulo
Brasil
Resumo
Analisando um
tipo específico de correspondência epistolar jesuítica – as
Litterae Indipetae –, evidenciou-se um dinamismo de
elaboração da experiência, revelador de um modus
vivendi baseado no que comumente vem designado sob o nome de
psicologia-filosófica aristotélico-tomista. É a este vivido
descrito nas cartas e a este modo de viver específico (com suas
devidas implicações fundamentais) que se dedica este artigo,
buscando responder a uma pergunta: em que medida a
experiência (tal como era entendida no âmbito
histórico-cultural-institucional próprio da Companhia de Jesus
nos séculos XVI e XVII) é fator de conhecimento? E conhecimento
de quê? Mostrou-se uma concepção de experiência que parte
do pressuposto de que o homem é uma unidade (corpo e alma, razão
e fé, sensação e intelecção) e de que, vivendo ordenado (em si
mesmo e no mundo que o circunda), realiza-se o seu ser por
analogia ao Ser Divino.
Palavras-chave:
experiência; Companhia
de Jesus;
Litterae Indipetae. |
Abstract
By the analysis of a specific type of Jesuitical
correspondence – the Litterae Indipetae -, a dynamism of
the experience’s elaboration was outstanding, revealing a
modus vivendi (way of living) based in
Aristotelic-Thomist philosophical-psychology, name under which
has been usually appointed this praxis. This article is
dedicated to this lived experience described in the letters and
to this specific modus vivendi (with its due basic
implications), searching to answer this question: how the
experience (such as was understood in the proper
historical-cultural-institutional scope of the Society of Jesus
in the 16th and 17th centuries) is a
factor of knowledge? And knowledge of what? The conception of
experience that was revealed considers man as unit (body and
soul, reason and faith, sense and intellect) and that, living in
an orderly way (in itself and in the world that surrounds it),
he fulfils its being, in analogy to the Holy Being.
Keywords:
experience; Society of Jesus;
Litterae Indipetae. |
I) Introdução
É
possível que a experiência seja um fator de conhecimento? (*) Se
sim, em que circunstância? A que objeto se debruçaria? Sobre que
fundamentos se sustentaria? Qual a epistemologia de fundo? Evidentemente,
todas estas são questões, não obstante sua importância, por demais
genéricas para merecerem um estudo. No entanto, se se fazem alguns
recortes, será possível vislumbrar alguma perspectiva de pesquisa quiçá
profícua: como, portanto, a história ou a filosofia podem favorecer à
psicologia um olhar mais adequado sobre o tema da experiência? Eis
que se delineiam alguns limites. Porém, é preciso especificar ainda mais:
período histórico, horizonte cultural e institucional, documentos, ponto
de partida.
E,
sobretudo, deixar claro que não se trata tanto de uma opção por um saber
em detrimento de outro: não se trata de apostar na história em detrimento
da psicologia. Tampouco, trata-se de optar por determinada meta de
compreensão simplesmente por curiosidade, exotismo, ou porque se pretende
um psicologismo interpretativo. O pesquisador parte sempre do presente,
afirma o historiador francês Michel de Certeau (2002) (1). Nesse sentido,
o pesquisador é sempre um sujeito localizado historicamente no presente,
que lança uma pergunta, num espaço-tempo muito bem delimitado, a um
interlocutor com traços bastante particulares.
No caso deste
artigo, o termo de compreensão são os homens dos séculos XVI e XVII
(especificamente os europeus e, ainda mais especificamente, os jesuítas,
responsáveis pela construção, transmissão e preservação da cultura
brasileira nos níveis antropológico-filosóficos ou teológicos), a fim de
descobrir sua concepção de experiência. O objeto ou as fontes
documentais primeiras, por sua vez, são as assim chamadas Litterae Indipetae: cartas nas quais jovens jesuítas dos séculos XVI e XVII
solicitavam ao Padre Geral da Companhia de Jesus o envio em missão nas
“Índias” (2). Atualmente, estas cartas encontram-se conservadas no
Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), em Roma. Pode-se dizer que
são fontes que interessam, na medida em que contêm exemplos das
modalidades de elaboração da experiência pessoal no que respeita ao
processo eletivo a que eram educados os jesuítas; além de dados sobre o
indipetente (como idade, escolaridade, atividade que exercia na Ordem
etc.); bem como conteúdos edificantes próprios do gênero de documento que
são. O objetivo geral é evidenciar as categorias filosóficas, teológicas
e (se assim se pode dizer) “psicológicas” que sustentam – nas cartas – um
vivido particular, a encarnação de determinadas normas e teorias. Estas
categorias poderiam emergir da análise dos topoi cultural e
institucionalmente determinantes do protocolo formal de redação daquelas
cartas. Como método optou-se, necessariamente, pela história, já que a
alteridade em questão está afastada no tempo. No entanto, a voz se alça de
um lugar peculiar – a psicologia –, e assim instaura um “fazer singular”,
sem pretensões de “sistematização totalizante”. Esta é uma historiografia
(portanto, um fazer que implica dois termos a “história” propriamente dita
e a “escrita” de/sobre a história) que considera a “pluralidade” a que
chama atenção Certeau (2002) (3).
Na
esteira da discussão acerca do real e do discurso sobre o real (4) a que
se dedica Certeau (2002) e, com ele, seus discípulos (5), inscreve-se –
quiçá pretensiosamente! – também este artigo, que mais que um
“psicologismo” que sobrevaloriza a subjetividade, ou um “historicismo”
filo-estruturalista ou – por que não? – um “racionalismo” totalitário, é a
tentativa de dar voz ao “outro” afastado no tempo, ao “morto”, àquele
“fantasma da historiografia”: “objeto que ela busca, que ela honra e que
ela sepulta. Um trabalho de separação se efetua com respeito a esta
inquietante e fascinante proximidade” (p. 14). Assim sendo, este “discurso
sobre o real”, esta “escrita da história”, este “fazer história” singular
é mais a transcrição, o relato, de um diálogo que foi se constituindo no
dinamismo aparentemente paradoxal da estraneidade à intimidade e
vice-versa.
É justamente no
âmbito do saber sistematizado em torno do que comumente se chama
“psicologia filosófica” aristotélico-tomista, bem como dos estudos dos
diferentes gêneros de documentos produzidos neste âmbito (manuais de
filosofia, tratados de espiritualidade, cartas etc.) e das pesquisas
abrangendo esse saber que se assenta este texto.
Premissa
A julgar
simplesmente pelo uso repetido da palavra já desde séculos – como se vê,
por exemplo, no trecho extraído de um hino composto por São Bernardo de
Claraval, no século XIII –, a experientia já passa a ser fator de
interesse bastante significativo:
Jesu,
dulcis memoria / Dans vera cordis gaudia
Sed super
mel et omnia / Eius dulcis presentia.
(...)
Nec lingua valet dicere / Nec
littera exprimere
Expertus
potest credere / Quid sit Jesum diligere.
Se se
pensa, então, a discussão que começa a tomar corpo nos séculos XVI e XVII
– experientia x experimentum –, vê-se configurado um cenário
cada vez mais significativo. Considerar, finalmente, essa mesma categoria
no contexto institucional específico da Companhia de Jesus, ter-se-á
algumas razões a mais para apontar a experiência como premissa de
trabalho.
Tal como
é empregado entre os jesuítas, o termo experiência deve ser
entendido a partir de um complexo feixe de influências: além da assumida
posição filosófica aristotélico-tomista, é preciso dizer que parece
existir também uma influência agostiniana. E, para além do aspecto
puramente filosófico, quando se fala de experiência na Companhia de
Jesus, se está tratando com uma categoria que também pertence ao universo
da regulação tanto espiritual e corporal quanto jurídica e institucional.
Dizer
que expertus potest credere, como o diz São Bernardo para declarar
que o conhecimento do amor de Jesus não se dá através de lingua ou
littera; ou dizer que experientia docet, como repete algumas
vezes o Doutor Angélico; ou ainda probatur autem eius veritas tum ipsa
experientia, como aparece na obra do jesuíta português Manuel de Góis,
responsável pela composição da maior parte dos manuais de filosofia do
Curso Conimbricense do Colégio das Artes de Coimbra; enfim, dizer
experientia nesse âmbito histórico-cultural e institucionalmente
definido pode ser bem compreendido ao ler o que outro padre jesuíta,
Alexandre de Gusmão (1629-1724) escreveu no prólogo de sua obra Eleyçam
entre o bem e o mal eterno:
Se
fosse consideravel hum homem tão simples ou tão ignorante, que duvidasse,
se o fogo queymava, y a agua esfriava, este tal, com nenhuma outra razão
se poderia desenganar melhor, que com a experiência, pondo huma mão no
fogo e outra na agua. Logo se desenganaria, e veria por experiência, que o
fogo queymava e a agua esfriava.
Pois has de saber, que destes homens ha muytos neste mundo,
e sempre os houve. Não fallo dos Atheistas, os Epicureos, que da outra
vida nada curão; fallo dos christãos, que sabendo, e confessando que ha
Ceo para bons e Inferno para maos, vivem como se ignorassem, que o fogo do
Inferno queymava e a agua do Ceo refugiava. Estes tais, de ordinario se
não desenganam nesta vida, até que na outra fazem a experiencia, que o
Santo Job diz se costuma fazer no Inferno, que he passar da agua de neve
para o calor do fogo. Então com seu mal eterno experimentão, quanto queyma
aquelle fogo, e quanto esfria aquella agua. O que importa logo, he fazer
nesta vida a experiência que o Espírito Santo nos manda fazer, pelo
Ecclesiastico (Gusmão, 1720).
Experientia
é pois modo de conhecer, que não se dá simplesmente per modum cogitandi
ou somente per modum operandi. A experiência, assim dada a
entender, deve ser compreendida como o conhecimento que se adquire após o
operari e todas as potências de alma aí envolvidas e o precedente
(e/ou consecutivo) cogitare com suas devidas implicações anímicas.
Sabendo-se que o “agir” do homem (conforme essa antropologia filosófica
específica sobre a qual nos debruçamos: fundamentalmente
aristotélico-tomista) – seu operar, seu proceder – só se dá na medida em
que seja “para conseguir a coisa desejada intencionada” (Aquino, 1947, p.
166), vê-se uma importante diferença para o que se possa descrever como
ação contemporaneamente: não se trata do simples movimento verificado
apenas externamente – um “comportamento” –, mas da conjugação de uma série
longa de fatores, tais como a intencionalidade, que só nasce se se
considera a vontade e o intelecto, os apetites e as faculdades da alma
sensitiva (tanto externas quanto internas). Sabendo-se também que o
“cogitar” humano – seu modo de pensar, de inteligir – envolve toda uma
gama de faculdades anímicas influenciando umas às outras... percebe-se que
a visão de homem aqui envolvida, quando se fala de experientia é,
digamos assim, uma visão totalizante: não há solução de continuidade entre
uma e outra operação, trata-se de um contínuo, onde per experientia
implica o homem total – todos os seus cinco gêneros de potências da alma,
suas três almas distintas e seus quatro modos de viver diferentes, e suas
devidas implicações (6).
O
corpus documental
A fim de
sistematizar em grupos as fontes utilizadas e visualizar e organizar os
diferentes dados que cada uma delas poderia fornecer, elas foram
divididas, inicialmente, em três grupos: 1) documentos do universo
filosófico e retórico de formação dos Jesuítas; 2) fontes referentes à
ordenação e formação da vida espiritual (7) na Companhia de Jesus e 3)
documentos descritivos da ordenação e formação da vida institucional. A
cada um desses grupos corresponde um aspecto fundante do modus vivendi
dos jesuítas, aspectos (ou pólos de análise) que serão aqui definidos,
respectivamente, como scholicorum (por designar o fundo teorético
presente na filosofia e na retórica seiscentistas), ratio spiritualis
(a regra espiritual) e ratio intitutorum (a regra institucional).
No primeiro grupo estão o
Comentário à Ética a Nicômaco de Aristóteles (8), escrito pelo
padre Manuel de Góis, e publicado em 1593, e algumas importantes obras de
referência em retórica utilizadas pelos jesuítas (principalmente Cícero e
Quintiliano). Ao segundo grupo pertencem o texto dos Exercícios
Espirituais (9) (o texto dos Exercícios nas suas três versões – o
texto Autógrafo, de perto dos anos de 1544; o Versio Prima, escrito
em latim, de cerca de 1530; e a Vulgata, de cerca de 1547 – em
versão sinóptica, comentado por Claude Viard (10), o Diário de
Moções Interiores (11) (escrito por Inácio entre 1544 e 1545, e
publicado apenas em 1934) e o Relato (12) de Inácio (ditado por
Inácio ao Padre Luiz Gonçalves da Câmara entre os anos de 1553 e 1555). E,
finalmente, foram agrupadas ao terceiro conjunto de fontes as
Constituições (13) (a versão francesa, traduzida do texto de 1556,
acrescentada do Exame Geral – um preâmbulo das Constituições
– e das Declarações – que nada mais são que comentários ao texto
das Constituições), os chamados Documentos de Fundação (14)
(uma seleção realizada por Pierre-Antoine Fabre e Maurice Giuliani, que
consta dos seguintes documentos: o relatório 1539. Durante três meses.
A maneira como se instituiu a Companhia, o Atestado concernente à
decisão de fazer voto de obediência, o relatório Determinações da
Companhia, a transcrição do Voto de Inácio, o relatório
Forma e Oblação da Companhia, e o texto da Summa em versão
sinóptica com os dois documentos pontificais de aprovação da Companhia de
Jesus, Regimini Militantis, de 1540 e Exposcit Debitum, de
1550) e algumas das Cartas de Inácio.
Além desses três grupos de documentos,
acrescentam-se alguns textos de espiritualidade (15) a que tinham acesso
os jesuítas do período referente ao generalato do Padre Cláudio Aquaviva
(16). Esses textos exprimem os três aspectos fundamentais que, uma vez
encarnados num modus vivendi, puderam ser novamente formulados num
texto escrito e tornado prescrição de um modelo descritivo lisível.
Prescrição de um modus vivendi que toma corpo no período do
referido generalato e que vai se estabelecendo, paulatinamente, ao longo
dos anos que se seguem: tipo de espiritualidade que começa a tomar uma
forma propriamente jesuítica. Portanto, uma prescrição dirigida aos
próprios jesuítas. Exemplos desses “modelos descritivos” são alguns
diários espirituais produzidos na época (como o de Francisco de Borja e
outros (17)). As Indipetae, nesse sentido, também podem ser
consideradas exemplos disso.
Tem-se portanto o
processo de análise assim desenhado: de um lado aqueles pólos
compreensivos, de outro as Indipetae e, entre eles, os textos de
espiritualidade. As Indipetae, como fonte documental pouco
estruturada do ponto de vista dos aspectos de análise até aqui descritos,
não podem ser interpretadas de maneira imediata. São, sim, documentos
marcados por aquele aparelho pedagógico de ordenação do homem, mas para
identificar os fundamentos desse aparelho é necessário um revelador, algo
que torne presente a coisa, que represente, que transpareça essa estrutura
subterrânea. Certo, há, nas Indipetae, uma elaboração da
experiência, no entanto, não se trata de uma elaboração sistemática,
evidente em si mesma. O grau de elaboração – se se pode dizer assim –
presente nos textos de espiritualidade, é de uma profundidade tal que
permite, se colocado entre um e outro dos tipos de documentos, vir à tona
aquela estrutura profunda. Como são documentos que se propõem ao leitor
como prescrição de uma espiritualidade com traços jesuíticos, revelam com
maior clareza os fundamentos do aparelho pedagógico de ordenação do homem
que o sustenta. Esses textos são uma espécie de espelho translúcido: ao
mesmo tempo em que revelam a estrutura subterrânea das Indipetae,
desvelam a si mesmos, ao espelharem aqueles três pólos de análise
supracitados.
II) A categoria experiência tal como é
usada...
Nas
Indipetae, lemos, por exemplo, em carta enviada em 02 de maio de 1583,
pelo Irmão Coadjutor Seraphin Bonaventura Coçar:
Pero en
semejante caso experimento (...) que ades hora me da devero Dios Nuestro
Señor un desseo fervoroso, que como luz del cielo deshaze en mi alma
aquellas tinieblas y razones, dexandome muy consolado, y con tal alegria,
que me parece bastante para arrostrar a qualquiera dificultad y trabajo
que por entonces se me podria ofrecer, y de hecho se me haze todo suave
(18).
Joan
Sotalell, de Gandía, no dia 20 de maio de 1603, escreve também: “Tengo
experimentado que muchas vezes, quando alguna tentacion, o otra
cosa alguna me aflige, el medio para vencella, es pensar (...) yr a las
Indias (...), y siento despues grande consuelo y facilidad en haser lo que
antes me parecia muy pesado” (19). Ou Gabriel Mayo que, um ano depois
(10/03/1604), escreve dizendo que “juntamente
al desseo (...)
experimento facilidad grandissima para todos los
trabajos de corazon, que me paracer en comparacion de aquellos, muy
pequeños” (20). Também Juan Bravo diz
experimentar muy a la clara que este desseo que me ha dado
Nuestro Señor hasta agora ha sido como una lima con la qual gran parte de
mys imperfecçiones han desaparecido, y melhorandose my vida notablemente
fruto que es argumento claro de que es raiz divina la de donde mana
(21).
A
categoria experiência, nesses trechos, é colocada ao lado de
expressões tais como “Dios Nuestro Señor”, “alma”, “consolado”, “trabajos”,
“tentaciones”, “desseo”. Como é possível uma experiência de
Deus? Como é possível conhecer desejos, tentações ou a si mesmo e sua alma
a partir da experiência? Como o trabalho e a realidade cotidiana e
objetiva pode ser lugar de uma experiência?
É preciso, pois, compreender bem como
era entendida esta categoria no âmbito cultural e institucional
específicos com o qual se está lidando aqui: trata-se de descrever a
gramática de uso do termo, o campo semântico no qual está imerso.
... No âmbito do scholicorum
Como a filosofia seiscentista de forma
geral, mas especialmente a que se desenvolveu em torno do ponto de vista
escolástico retomado no período, abordava a questão da experiência?
É bem verdade que o período histórico
com o qual lidamos é determinado por uma transição importante – entre uma
realidade social que construía seus conhecimentos retoricamente (22) e uma
outra que passou a construir cientificamente o conhecimento (23) – onde
justamente o debate não só filosófico, mas também científico, quanto ao
que respeitava à experiência marcava claramente posições muito
distintas (24): experientia X experimentum. Não obstante
esta importante transição e as diversas implicações a ela inerentes,
interessa mais agudamente aquele modelo construído em torno da manutenção
de um pensamento propriamente escolástico.
Exatamente por se estar tratando de um
período e de uma realidade institucional e cultural que construíram muito
de seu conhecimento retoricamente, e sobretudo pelo fato mesmo de a
retórica ser disciplina importante no sistema pedagógico jesuítico, se
torna necessário assumir, aqui, algumas questões significativas deste
âmbito.
É sabido como Cícero e Quintiliano eram
os principais autores estudados quando o assunto era retórica: nihil
mutare sine ratione, dizia Cipriano Soares em seu manual de retórica –
De arte rethorica – defendendo a razoabilidade no uso de suas
obras, ainda que pagãs (Zanlonghi, 2003). E, finalmente, sabe-se também
que a retórica, nesse contexto neo-escolástico, era o aprendizado da
capacidade argumentativa.
No entanto, é preciso entender bem o que
ele quer dizer quando faz uso dessa categoria, sobretudo se se considera o
uso freqüente de expressões do tipo “há de entender, com a ajuda do
Senhor” (Idem, p. 60), “a alma, segundo penso, deve humilhar-se, para que
possa brilhar, iluminada pela graça de Cristo” (p. 82), “fatos em que o
Senhor Deus nos anuncia sua ação” (p. 131), “Deus nos envia sinais
adequados ao nosso caráter de peregrinos” (p. 147), “Deus é a verdade!”
(p. 263) ou ainda “torna-se necessário crer antes de compreender” (p.
270). Em todas estas expressões, bem como em outras tantas, começa-se a
compreender como é possível, em Agostinho, que no conhecimento esteja
implicada a fé, que já é uma adesão amorosa: credendo diligere, ele
diz.
Mas quem ama o que
desconhece? Pode-se conhecer algo e não o amar; pergunto, porém, se é
possível amar algo que se ignora, porque se isso for possível, ninguém é
capaz de amar a Deus antes de o conhecer. E o que é conhecer a Deus, senão
o contemplar e perceber com firmeza, com os olhos da mente? Ele não é um
corpo para que possamos divisá-lo e percebê-lo com os olhos corporais (p.
267).
Mente conspicere (traduzido por “olhos do espírito” no texto) e firmeque percipere
(firme percepção) estão juntas na mesma expressão. O que causa impressão é
notar o uso de uma categoria que, a rigor, se conjuga às experiências
sensíveis de maneira geral – percipere –, no âmbito de uma certa
“atenção do espírito”. Sobretudo quando se sabe que percipere, para
Agostinho, significa muitas vezes o conhecimento experimental de Deus. No
entanto, o que esclarece toda possível contradição é entender que esse
conhecimento experimental, como se viu nos excertos elencados acima, é
dado por uma sabedoria sobrenatural, pela graça da fé, enfim. Certa
enim fides, utcumque inchoat cognotionem:
De fato, é efeito
próprio da fé formar em nós uma imagem de Deus, no melhor conceito
possível. Confere ele uma existência mental às coisas propostas à nossa
adesão pessoal. (...) Mas, [Agostinho] conhecia muito bem os limites
impostos pela nossa condição terrestre à busca racional de Deus. E os
limites da experiência mística correspondentes aos limites da exploração
teológica (p. 624).
Para Agostinho, o conhecimento das
verdades eternas se obtém por meio da iluminação divina: “a iluminação
agostiniana é uma luz especial, incorpórea, que nos torna visíveis e
compreensíveis as ‘verdades eternas’. Luz essa mediante a qual Deus
irradia na mente humana essas verdades absolutas e imutáveis” (p. 637).
Em toda essa discussão o que interessa
sobremaneira é perceber a relação entre conhecimento sensível e graça da
fé, que, como se verá a seguir, não é estranha à concepção retomada pela
pedagogia inaciana, mesmo quando se está simplesmente no âmbito da
Filosofia Moral, como é o caso do Manual Conimbricense.
Como o termo experiência aparece
nesta obra amplamente divulgada nos séculos XVI e XVII tanto na Europa
quanto no Brasil?
Por exemplo na segunda disputa – Acerca
do Fim –, Góis (1593) se perguntando se Bem e Fim são iguais, diz que uma
coisa só pode ser igual a outra sob dois aspectos: formalmente (ou seja,
quando a razão formal de ambas as coisas é idêntica), ou por reciprocidade
de fundamento (quando tanto em ato quanto em potências as coisas são
iguais). A partir daí, busca responder à pergunta que abriu a disputa,
afirmando que: 1) Bem e Fim não são, do ponto de vista formal, idênticos;
2) assim como Bem e Fim não são tampouco idênticos quanto à reciprocidade
do fundamento com relação a Deus, quando se tratarem de ações divinas
internas; 3) e, finalmente, Bem e Fim, em ato, com relação às criaturas,
também não são idênticos quanto a reciprocidade de fundamentos, no
entanto, o são, de algum modo, se se consideram segundo a potência. E para
provar a segunda parte da asserção, recorrendo à experiência,
afirma:
A segunda parte da
mesma asserção consta do facto de aquilo que pode tornar-se bem e
conveniente com respeito a alguém, embora a princípio, com relação a ele,
não seja bem em acto e conveniente, pode, por sua natureza, ser por ele
apetecido e ter razão de fim com respeito a ele. E ao contrário, aquilo
que pode ser experimentado [quid potest ab aliquo experi] por
alguém e alcançar a natureza de fim em relação a alguém, pode ser-lhe bem
e conveniente ou ao menos ser apreendido como tal (p. 93).
É interessante notar como, aqui, a
categoria experiência é utilizada no âmbito de compreensão do que
seja o Bem e o Fim, objetos teleológicos daquele felicem vitae statum
a que se dedica a obra de Góis (1593). Demonstrando que, além da abordagem
intelectual da temática proposta (30), é possível, com rigor e verdade,
compreender diferenças entre as duas categorias, com o uso da
experiência; que, neste caso, não tem que ver com experimentum,
mas com a reação afetiva e efetiva do “homem como consciência encarnada” (Zanlonghi,
2003, p. 63) diante de uma determinada realidade a ser investigada.
Em seguida, na quarta disputatio,
quando discorre acerca dos “três princípios dos actos humanos: vontade,
intelecto e apetite sensitivo”, argumentando a partir de obras de Santo
Agostinho, São Damasceno, Santo Anselmo e Santo Tomás, Góis (1593)
pergunta se a vontade move as outras potências da alma humana e responde
assim:
Prova-se esta
verdade quer pela experiência própria [probatur autem eius veritas tum
ipsa experientia], visto que contemplamos, lemos, movemo-nos de um
lugar e fazemos outras obrigações do género quando queremos; quer pela
razão, porque é do fim que parte o princípio de moção de qualquer potência
ativa, visto que todo o agente opera por causa do fim e do bem em comum
que tem a razão de fim, é o objeto da vontade. Donde se conclui que a
vontade move todas as outras potências para o exercício dos seus atos (p.
147).
Nas quaestionenes que se seguem a
essa, e especialmente naquelas em que a categoria experiência
aparece, é notável como praticamente sempre ela virá unida ao conceito de
“vontade” (com apenas duas exceções). Ainda no artigo apresentado acima –
1º artigo da 3ª questão –, o autor ajuda a compreender o porquê dessa
conjunção:
A acção com que a
vontade move formalmente as outras potências é transeunte, visto que não
permanece na própria vontade. Com efeito, não se distingue realmente da
acção das outras potências. Além disso, este mesmo concurso da vontade
umas vezes é algo espiritual, visto a vontade concorrer com a
potência imaterial como com o intelecto; outras vezes, material,
se, por exemplo, concorre com potência inerente a órgão corpóreo, como
com a imaginação (p. 149).
É exatamente por agir no “órgão
corpóreo” e no “espiritual” ao mesmo tempo ou separadamente, que a vontade
é uma potência que pode ser tanto conhecida do ponto de vista estritamente
intelectual, como do ponto de vista da experiência.
Assim, por exemplo, quando se pergunta
como é possível à vontade mover os sentidos internos, usando a distinção
aristotélica entre poder despótico e político, e argumentando a partir da
compreensão tomista da obra do Estagirita, explica que não obstante para
Santo Tomás apenas a cogitativa (potência da alma sensitiva,
elencada na lista dos sentidos internos) obedecer à razão e à vontade,
sendo regida portanto por poder despótico,
a nós, porém,
parece-nos que devemos afirmar que não existe nenhum sentido interno que
obedeça sempre à vontade. Com efeito, o sentido comum apreende
necessariamente o objecto sem mudar a apreensão do sentido externo e,
de um modo geral, todos os sentidos internos (sem dúvida, quanto a
isso parece ser idêntica a razão de todos). Algumas vezes apreendem o
objecto tão tenazmente que a vontade, de nenhum modo ou dificilmente,
domina a concepção deles, como ensina a experiência cotidiana [uti
docet quotidiana experientia] (p. 151).
E explica que esta “tenacidade de
concepções” se deve a muitas causas, entre elas enumera: 1) pela presença
real do objeto que se introduz pelos sentidos externos; 2) pela instigação
dos “demônios internos”; 3) pela disposição (affectione) do órgão
interno (os melancólicos, por exemplo, por terem temperamento frio e seco,
persistem muito mais tempo na apreensão de uma mesma coisa, porque o órgão
está mais disposto a isso); 4) pelo afeto do apetite sensitivo, “visto se
saber que o sentido interno se fixa mais nas cousas para que o apetite é
levado com maior ímpeto” (p. 151).
Em seguida, Góis (1593) se pergunta como
a vontade move os apetites sensitivos. E, logo de início, explica que a
vontade move os apetites com poder político. E se baseia em autores tais
como Aristóteles, São Damasceno, São Gregório Nisseno e Santo Tomás. Mas,
a argumentação final cabe à experiência:
... que o apetite
seja movido pela vontade demonstra-o a experiência [quod appetitus a
voluntate moveatur, patet experientia], visto que muitas vezes
provocamos ou reprimimos os movimentos dele, segundo o nosso arbítrio.
(...) Que tal sujeição não é despótica, aparece claramente no facto de a
cada passo o apetite ser levado para o bem sensível contra o juízo da
razão e o afecto da vontade (31).
(...) Esta repugnância nasce do facto de o apetite sensitivo seguir a
apreensão do sentido interino, a qual é de tal modo eficaz que não pode
ser coibida pela razão nem pela vontade. Ou ainda porque a moção do
apetite sensitivo depende da disposição [dispositione] do órgão
(por isso, os que têm temperamento cálido se irritam fàcilmente), a qual
disposição [dispositio] ou modificação [sive affectio] não
se suborna ao poder (p. 153).
Todavia, o autor lembra que tanto
Aristóteles como Santo Tomás afirmam que seja possível ao apetite ser
movido pela vontade, dado que, pela ordem e hierarquia de moventes e
movidos, superior move inferior, especialmente sabendo-se que nada é
objeto de apetição se não for antes objeto de intelecção: “a vontade só
move o apetite, imediatamente e por certa redundância, quando no sentido
interno já existe notícia do mesmo objeto, de maneira que, sem nova
intenção ou aplicação da notícia, o apetite seja mais incitado por causa
da inclinação da vontade” (p. 155).
O artigo 4º dessa mesma quaestione
se dedica a compreender como a vontade pode mover os membros externos. E,
apela para a experiência, logo no início do artigo: “Como se prova
pela experiência [ut experimento compertum est], a vontade move os
membros externos, com que se exerce o movimento arbitrário, com poder
servil e sem qualquer oposição, a não ser que sejam impedidos por alguma
doença” (p. 155). Porém, ele ainda se pergunta se, na verdade, não seriam
os membros externos movidos antes pelos apetites sensitivos. E diz que
não, apelando de novo para a experiência: “o contrário disto ensina
a experiência nos santos mártires [docet experientia in sanctis
martyribus], que ofereciam os membros a tormentos acerbíssimos” (p.
155). Aqui, no entanto, é importante entender que a vontade só pode mover
os membros através de alguma potência média, que, neste caso, serão os
apetites: “pede a harmonia e a ordem dos moventes que o supremo não mova o
extremo senão com a intervenção do médio” (p. 155). Esclarece finalmente
que pode acontecer de os membros serem movidos não pela vontade (mesmo que
indeliberada), mas diretamente pelos apetites, como acontece nos
movimentos súbitos, entretanto esses não podem ser considerados movimentos
humanos, mas “do homem”.
Na quarta quaestione dessa mesma
disputa sobre os princípios dos atos humanos, Góis (1593) pergunta se o
apetite é capaz de mover a vontade. Faz, então, três afirmações,
baseando-se em Aristóteles e Santo Tomás de Aquino: 1) é inegável que o
apetite mova a vontade de alguma maneira, como se confirma “também pela
experiência [confirmatur quoque experientia]. Ninguém existe, com
efeito, que não experimente [qui non experiatur] o movimento do
apetite ou da ira ou da dor ou da alegria, inclinar a vontade para si” (p.
159); 2) porém o apetite não move a vontade com poder despótico, como a
harmonia e a ordem dos moventes o indica; 3) mas a move por intermédio da
notícia intelectiva que propõe acerca de determinado objeto que deve ser
aceito ou rejeitado, já que a vontade, seguindo a decisão do intelecto,
pode querer ou repudiar o mesmo que o apetite, ou o apetite pode mover a
vontade por meio da notícia do sentido interno, na medida em que as
imagens dos sentidos determinam o intelecto para a contemplação de uma
coisa ou de outra.
Até este ponto da obra, praticamente
todas as vezes em que se fez uso da experiência como método de
conhecimento, ela estava de algum modo vinculada à categoria “vontade”.
Nos dois outros momentos da obra em que a experiência aparece será,
uma vez vinculada às “paixões” e outra às “virtudes morais”. Vejamos.
Do debate filosófico, de maneira geral,
o que se conclui é que experiência é algo que ajuda o homem a
conhecer a verdade. Seja do ponto de vista retórico (na medida em que a
retórica conduz o homem pelas sendas dos sentidos internos, identificando,
organizando, adaptando, armazendo e ordenando e explicitando segundo sua
dignidade os elementos colhidos na realidade), seja do ponto de vista
dialético (na medida em que, como dinâmica dialógica que é, se volta
adequadamente ao fundo mesmo da realidade), a experiência é sempre
entendida, grosso modo, como um aspecto do indivíduo que pode
conduzi-lo mais adequadamente à Verdade, ou, nos termos da casuística, ao
Bem Último.
... Na ratio spiritualis
jesuítica
Como a espiritualidade seiscentista
encarava a questão da experiência? E, mais especificamente, como
uma espiritualidade com normas muito peculiares – a dos jesuítas –
compreendia a relação entre experiência e vida espiritual?
No início deste artigo, a fim de
apresentar a premissa deste trabalho, citou-se um trecho de um hino
composto no século XIII, por Bernardo de Claraval, monge beneditino –
Jesu, dulcis memoria / Dans vera cordis gaudia / Sed super mel et omnia /
Eius dulcis presentia. / (...) Nec lingua valet dicere / Nec littera
exprimere / Expertus potest credere / Quid sit Jesum diligere.
Esclarece-se, inicialmente, o que pode
parecer um anacronismo: como comparar o hino medieval com a então
emergente questão renascentista do valor da experiência? Certeau
(1982) nos chama a atenção para o fato de que a Renascença é marcada pela
retomada da fórmula teológica medieval (32) segundo a qual o
relacionamento com Cristo se dá na materialidade da Eucaristia e da
Igreja. Ele afirma que, fora dessa objetividade material, corria-se o
risco de uma “mystiquerie”. Em poucas palavras: a fé era mais do
que a língua podia dizer ou as letras expressarem: somente expertus
potest credere. Percebe-se aí que a experiência é fundamental
nesse relacionamento com o corpo real (Eucaristia) e místico (Igreja) de
Jesus Cristo na terra (33). Tem-se, portanto, um primeiro aspecto
relevante: a relação experiência/espiritualidade, que aparece num
debate teológico renascentista e que busca recuperar a carnalidade
objetiva da experiência mística.
Entra em jogo, nessa concepção de
experiência, o binômio visível/invisível (e, por que não?, do
audível/inaudível, palpável/impalpável etc.), que Certeau (1982) explica
como sendo o lugar do nascimento de uma nova concepção de “mística” (34).
Visível e invisível, fato em si e
sentido do fato, experiência e fé, corpo e alma, finito e infinito,
acidental e fundamental: a mística renascentista com uma definição
escolástica, especialmente a dos jesuítas, retoma (ou mantém) a
experiência do sagrado como algo do nível dos sentidos, mais que de
uma formulação teórica, teológica ou filosófica. Além de acrescentar algo
novo: a prática, que tem como representante mais significativo, no caso da
então nascente Companhia de Jesus, os Exercícios Espirituais. É
nítido também o fato de que não há solução de continuidade (35) entre um e
outro aspectos do relacionamento com o Mistério.
... Na ratio intitutorum
jesuítica
Interessa nesse tópico, responder às
seguintes questões: qual o conceito de experiência que aparece na
norma de um corpo institucional religioso – o da Companhia de Jesus? Que
papel desempenha a experiência no processo de
identificação/definição do indivíduo com esse corpo institucional?
Inicialmente, deve-se apontar o uso
comum, nos primeiros documentos da Companhia de Jesus, da expressão “nossa
maneira habitual”, para designar como os primeiros jesuítas agiam em
questões muito particulares. Por exemplo, no documento 1539. Durante
três meses, A maneira como se instituiu a Companhia, o redator anota
que a maneira habitual usada para discutir sobre as questões da fundação
era: “refletir e meditar sobre elas durante o dia e as aprofundar em
nossas orações” (Loyola, 1991, p. 278). Bem como no Atestado
concernente à decisão de fazer voto de obediência: “depois de ter
rezado a Deus e pesado maduramente a coisa (...), decidi de pleno grado”
(p. 282) etc.
A pergunta que se pode fazer a partir
daí é: como um indivíduo pode chegar a assumir para si, a se colocar em
primeira pessoa nessa “nossa maneira habitual”? Ou: que dinâmica permite a
identificação de um indivíduo à essa modus operandi particular?
Lê-se nas Determinações da Companhia
algo que responde a esta pergunta: “Aqueles que estão para ser admitidos
devem, antes de serem experimentados durante o ano de provação, passar
três meses em exercícios espirituais, em peregrinação e a serviço dos
pobres nos hospitais, ou em outra coisa” (p. 285). Aprende-se a ser
jesuíta “experimentando” o que seja ser um jesuíta. E o que é ser um
jesuíta? Passar por exercícios espirituais, fazer peregrinação, trabalhar
a serviço de pobres: o que é isso? É a vida de Inácio: uma
experiência-modelo que, aqui, deixa de ser a descrição de uma
experiência espiritual, para se tornar a prescrição explícita de um
modelo de imitação. É por isso que na Summa os primeiros escrevem:
“que ninguém seja recebido nesta Companhia antes que seja, inicialmente,
longa e cuidadosamente experimentado, e quando se tiver constatado que é
prudente no Cristo e se distingue por sua doutrina ou pela santidade de
sua vida” (p. 306).
Quanto ao texto das Constituições,
importa, primeiro, que fique claro que mais que um texto normativo
strictu sensu, elas são, para os jesuítas, a descrição de um caráter
particular, bem definido e com traços muito específicos. É bem verdade que
é pelo motivo mesmo de ser descritivo, que o texto tem uma virtude
prescritiva, na medida em que ao descrever como “é”, tangencia o como
“deve ser” o jesuíta. É esta característica do documento que permite
compreender porque é indicado que sejam lidas e meditadas com freqüência,
até o ponto de serem sabidas de cor (43).
Neste documento aparecem, com freqüência
termos diferentes para designar a categoria analisada neste capítulo:
experiência (que, no texto francês, aparece como expérience,
quando designa substantivo ou éprouver, para designar um verbo),
“provação” (que aparece no texto francês como probation) ou “prova”
(épreuve, em francês).
Assim, encontramos, por exemplo no
“Exame” (uma espécie de prólogo ao texto jurídico) das Constituições,
após explicar a pertinência dos “seis meses de experiências e
provas”, a seguinte observação:
Isso para que, de
uma e outra partes, aja-se com a maior clareza e conhecimento em nosso
Senhor e que, mais sua constância tenha sido experimentada, mais sejam
estáveis e firmes no serviço divino e na sua primeira vocação, para a
glória e honra de sua divina Majestade (p. 400).
Em seguida, nos parágrafos 64 a 83 do
mesmo “Exame” descrevem-se minuciosamente cada uma das experiências
que se farão ao longo do período anterior à entrada em casa ou colégio da
Companhia de Jesus (trata-se do período denominado “primeiro ano de
provação”):
Além disso, antes
de entrar na casa ou colégio, ou depois de ter entrado, seis
experiências principais são exigidas, sem contar muitas outras sobre
as quais se falará mais adiante. Essas experiências poderão ser
avançadas, retardadas ou adaptadas e, em certos casos, modificadas por
outras com a autorização do superior, segundo a pessoa, os tempos, os
lugares e as circunstâncias (p. 409).
São estas experiências: fazer
exercícios espirituais durante mais ou menos um mês (§ 65), servir em
hospitais ou em um hospital durante um outro mês (§ 66), fazer
peregrinação durante um outro mês (§ 67), se aplicar em serviços baixos e
humildes (§ 68), expor publicamente a doutrina cristã para crianças ou
pessoas ignorantes (§ 69) e pregar e confessar em igrejas indicadas (§
70). Nos parágrafos que se seguem, procura-se explicar como cada uma delas
ajuda a atestar o candidato e ao final diz: “se esses atestados quanto às
experiências faltam, deve-se procurar a razão com muito cuidado,
com o objetivo de saber a verdade sobre tudo, afim de que se possa melhor
prover a tudo, onde convém” (p. 411). Isso porque, nas experiências
de provação, o candidato se expõe, se revela, e é, portanto, essencial o
papel das testemunhas: o candidato está sempre sob os olhos de uma
testemunha. Ao final, cabe ao candidato produzir, diante de seus
superiores, o atestado de suas experiências, por isso o comentário
do § 79, acima transcrito.
Já no texto das Constituições
propriamente dito, na Primeira Parte – que trata de “A admissão à
provação” – quando fala daqueles que serão recebidos, se diz:
Para falar de uma
maneira geral daqueles que se deverá receber, pode-se dizer que mais
alguém tenha recebido de Deus nosso Senhor dons naturais e infundidos para
ajudar a Companhia naquilo que ela busca, seu divino serviço, e mais tenha
feito a experiência desses dons, mais será apto a ser recebido na
Companhia (p. 433).
Serão recebidos na Companhia aqueles que
são experimentados naqueles dons que ajudam a Companhia, ou sejam, que
distinguem a sua ação da ação das demais Ordens. De novo experiência
pode ser colocada lado a lado com o termo “identificação” ou “imitação”.
Como se confirma no Capítulo III, desta Primeira Parte – denominado “A
dispensa daqueles que foram admitidos e não deram satisfação” – onde se
enumeram as justificativas para a dispensa de um membro da Companhia:
entre elas se diz que será dispensado quem for “contrário ao bem da
Companhia”, ou seja, “se a experiência mostrar que este é de fato inútil e
mais próprio a embaraçar a Companhia que a ajudar” (p. 448).
Na Quarta Parte – “A formação nas letras
e nos outros meios de ajudar o próximo daqueles que são guardados no seio
da Companhia” – das Constituições, mais especificamente no Capítulo
III, que trata dos “Estudantes que se deve colocar nos Colégios”, por sua
vez, lê-se o seguinte:
No
entanto, só serão admitidos como estudantes aprovados aqueles que foram
experimentados nas casas ou nos colégios e que, depois de dois anos de
experiências e de provação, uma vez feitos os votos e a promessa de
entrar na Companhia, são recebidos para nela viver e nela morrer para a
glória de Deus nosso Senhor (p. 477).
Ou então, o que se lê na Quinta Parte –
“O que concerne à admissão ou incorporação na Companhia” – quando logo no
Capítulo I (“A admissão. Quem a faz e em que momento”), se diz:
Aqueles
que foram suficientemente colocados à prova na Companhia e durante
bastante tempo para saber, de parte a parte, se convém que eles permaneçam
para um maior serviço e uma maior glória de Deus nosso Senhor, devem ser
admitidos não mais em provação como antes, mas de uma maneira mais
intrínseca, enquanto membros de um mesmo corpo, o da Companhia. É o caso
principalmente daqueles que são admitidos para serem professos ou
coadjutores formados (p. 515).
Pela leitura de todos estes excertos
fica clara a identidade experiência/provação. O jesuíta é chamado a
viver um período de provas, ao final do qual o indivíduo é definitivamente
reconhecido ou não como pertencente ao um corpo institucional. A
experiência aqui pode ser definida, pois, como uma série de atividades
que garante 1) a identificação do indivíduo com a instituição e 2) a
reprodução/manutenção dessa mesma instituição (Fabre, 2000). Importante
destacar, portanto, o papel da experiência assim compreendida com o
processo de individualização x individualismo (usando termos hodiernos):
quem obedece a essa regra integra um corpo institucional e se torna um
homem que vive de uma forma que, se descrita, permite-nos conhecer o
jesuíta.
... Nos textos de espiritualidade
On peut par deux
voies savoir les choses de la vie [mystique] future, c’est à savoir par la
foi et par l’expérience. La foi est la voie commune que Dieu a établie
pour cela à cause que les choses de Dieu et de la vie future ne nous sont
connues que par ouï-dire et par la prédication des apôtres. L’expérience
est pour peu de personnes. Les apôtres de Jésus-Christ étaient de ce
nombre. Aussi disaient-il:
Quod vidimus, quod
audivimus, quod manus nostrae contrectaverunt de verbo vitae annuntiamus
vobis; et ailleurs: Quod scimus loquimur, quod vidimus testamur.
Jean-Joseph Surin (1660)
Science
Expérimentale des choses de l’autre vie
Assim inicia sua obra – Science
expérimentale des choses de l’autre vie –, o padre jesuíta francês
Jean-Joseph Surin (1600-1665), que ganhou celebridade dentro e fora da
Companhia de Jesus graças a suas virtudes e talentos como diretor
espiritual. Quarenta e cinco anos depois da morte do P.e Cláudio Aquaviva,
vê-se (com esta e outras tantas obras espirituais) muito mais estabelecida
sobre bases seguras uma espiritualidade com feições propriamente
jesuíticas.
É bem verdade que, no trecho citado,
Surin deixa claro que a experiência é uma forma de conhecimento das
coisas futuras (ou místicas) para poucos, como os apóstolos que – note-se
– viram, ouviram e tocaram o “verbo vitae”. Mas isso não significa
que somente eles puderam fazer uma experiência sensível do Verbo
Encarnado ou das coisas futuras ou místicas (para usar os termos que ele
usa). Neste ponto, Surin é bastante claro: “os apóstolos de Jesus Cristo
eram deste número”, porém, mais à frente no texto inicial da obra, ele se
diz parte deste número também e afirma ter a “mesma intenção” dos
apóstolos: “que essas coisas que conhecemos (...), e na qual a providência
de Deus nos engajou, sejam empregadas neste discurso para tornar firme a
fé na qual a profissão da religião católica nos engajou, e para nos tornar
melhores cristãos” (Surin, 1990, p. 128).
Eis o ponto capital: o texto-testemunho
de Surin – que relata os sofrimentos porque passou e as graças que recebeu
no período que se seguiu à sua intervenção junto a um caso de possessão
demoníaca de algumas irmãs Ursulinas – ganha estatuto de veracidade porque
é uma experiência feita que se comunica com a finalidade de tornar
firme a fé de quem leia: annuntiamus vobis, loquimur e
testamur que os Demônios existem (44), mas que há um “Deus, tal como a
Igreja acredita e anuncia” (Idem, p. 343) e um “Deus que é vingador dos
crimes” (p. 347), e também que “uma vontade boa é toda poderosa, e que
contra ela o Inferno é como que um quase-nada que, sem ela, se torna um
gigante sem tamanho” (p. 377), mas sobretudo que “a providência de Deus
foi singular nesta possessão, dando todas as ocasiões e provas suficientes
de que eram demônios, e que Deus e a Igreja dominam sobre eles” (p. 414).
Como, nos textos de espiritualidade
jesuítica, a questão da experiência se apresenta? Como, no tempo,
foi se estabelecendo esta espiritualidade e, sobretudo, como ela se
estabelece, no âmbito discutido até aqui, a partir do assumir-se, numa
síntese encarnada, todo um horizonte formativo com as características
bastante peculiares descritas?
Por exemplo, na carta enviada no dia 29
de setembro de 1583 pelo P.e Aquaviva à toda a Companhia de Jesus –
Lettera del Nostro Padre Generale (...) Sopra la Rinovatione dello
spirito etc. – se pode ler, depois que ele exorta os padres e irmãos a
“metter la mano all’opera”, sua justificativa para este trabalho:
sappiamo
con l’esperienza, che le arti non s’imparano, se non facendo; & pure
occupandosi intorno à materia di fuori, non trovano resistenza: perche ne
all’architetto le pietre, ne à gli altri artefici impediscono le materie i
suoi disegni; ma la nostra filosofia che consiste nel moderar gli affetti
interni, truova molto maggior ripugnanza, & mutatione; poi che se bene nel
quadrare, la pietra fa alcuna difficoltà, quadrata però non torna alla
prima roizessa; ma gli affetti nostri ben spesso si mutano, come per
isperienza proviamo
(pp. 23-24).
Aquaviva (1583), aqui, insiste no fato
de que se renovará o espírito não somente pela graça de Deus, mas pela
prática constante dessa renovação. Constante porque, “como por
experiência provamos”, os afetos não são como nossas características
externas que, quando modificadas não voltam atrás, mas “muito
freqüentemente se alteram”. Experiência é, pois, não somente
conhecimento adquirido pela prática, mas um saber indutivo acerca de si
mesmos, a que eram educados os jesuítas.
Na carta seguinte – Lettera del Nostro Padre Generale
(...)
Dello studio della
perfettione, & carità fraterna
–, Aquaviva (1586) explicando o que é este “estudo da perfeição e caridade
fraterna”, ou seja, o forçar-se a fazer a vontade do “nosso pai e senhor”
(p. 08), tornará a obediência às Constituições e aos Superiores
“cada dia mais doce” (p. 08) e, especialmente, “far-nos-á com a
experiência saborear e, com uma luz maravilhosa, que não é de lume
natural, conhecer claramente, que esta é uma doutrina do céu” (p. 08).
Regra espiritual e regra institucional são, aqui, corroboradas pelo
conhecimento filosófico das potências da alma (“se nossa vontade
não é espoliada de todo amor e afeição particular não poderá buscar a
Deus”, como escreve mais à frente na mesma carta); e a interseção se dá
exatamente no apelo à experiência.
Também Fazio (1594) faz uso dessa
categoria – dentro do mesmo espaço de discussão usado por Aquaviva (1586)
– para demonstrar o quão necessário é se aplicar no exercício da
“Mortificação santa” das faculdades da alma e, sobretudo, das paixões
desordenadas e também no exercício da obediência. Segundo ele, a
mortificação e a obediência fazem com que nos deixemos guiar, finalmente,
pela vontade de Deus e não pela nossa, que, “por sua natureza é cega” e,
dessa forma guiados, não corremos o risco de incorrer no erro “que o
Senhor mesmo predisse dizendo: Si coeco coecus ducatum prestet, ambo in
foveam cadunt” (p. 49).
Sanchez (1594/1607), fazendo uso de
questões próprias da Filosofia Moral, acaba por prescrever a obediência
como ajuda para a manutenção da prudência, que, sabidamente, é a virtude
dos experimentados. Assim escreve ele, no Capítulo IV, Livro V – que trata
da “obediência que é devida aos superiores” – de seu Le Royaume de Dieu
et le vray chemin pour y parvenir:
Apres qu’un homme
aura prins des estudes & exercices suffisans en sa vacation & estat, il a
necessité d’une prudence & discretion, par laquelle il se regle, &
conduise, car d’autre maniere, les vertus se convertiroient en vices. Et
pource que la prudence, est celle-là, qui met le frain & ordonne toutes
vertus, parfoy elle est appellée vertu des anciens, qui d’ordinaire s’obtient
fort tard, & avec grande experience (à raison de quoy les jeunes
superieurs, font tant de folies, & injures mal a propos) pourtant il est
três-evident qu’il faut prendre l’obeissance pour bride & guide, qui
supplee à la prudence
(p. 560).
Um a um, todos os padres espirituais
apresentados vão se servindo da experiência para prescrever
exercícios que auxiliem no engajamento à “religião católica” e no se
tornarem “melhores cristãos”: Villanueva (1608), depois de dizer que a
oração mental é mais oração que a vocal, lembra, por exemplo, que no
entanto se acrescentam as palavras à oração mental quando a alma “se sente
caída” (p. 7,1) e coloca que “este aviso (...), cada dia nos é ensinado
pela experiência, que vendo caído o nosso espírito na oração, com a
voz exterior o reaviva” (p. 7,2); e segue com suas considerações sobre as
potências da alma humana. À frente, na mesma obra, Villanueva (1608),
falando acerca da especulação e da contemplação, como formas de oração de
entendimento, retoma conteúdos próprios dos Exercícios Espirituais
de Santo Inácio de Loyola: aplicação dos sentidos, composição de lugar,
uso da memória, etc. Rodriguez (1609/1834) também, no Ejercicio de
perfeccion y virtudes cristianas (45), apela para a experiência
com o fim de comprovar como são importantes os votos para a ordenação
pessoal e institucional. Assim como Nieremberg (1631/1657, 1640/1957), o
qual também faz uso desta categoria para mostrar como a vontade precisa
ser bem conduzida pelos preceitos da moral (46), ou pela ordem
institucional (47). De tal forma que, nestes textos, pode-se encontrar o
teórico, o institucional e o espiritual tornados prescrição não porque
sejam documentos normativos, mas porque fazem lisível a descrição de um
modus operandi e de um modus cogitandi encarnados numa
experiência de caráter necessariamente jesuítico. “Necessariamente”
porque se trata de um caráter fundado sobre aquele tripé formativo muito
peculiar desta ordem religiosa.
III) Conclusão
No início deste artigo, se perguntave
como era possível que termos tão diversos e, sobretudo, tão distantes do
horizonte cognoscitivo da experiência pudessem ser usados, numa
mesma frase, juntos: Deus, a alma, as paixões da alma, os sentimentos etc.
Tendo seguido este percurso, a questão parece esclarecer-se.
Escrever que se faz a experiência
de que Deus dá um “desejo fervoroso” que, como luz do céu, desfaz as
trevas e as falsas razões da alma; ou que se experimenta que, na medida em
que os desejos são considerados a partir das falsas razões, parecem vir do
demônio, como o afirma Seraphin Bonaventura Coçar (48), é descrever o
resultado de um trabalho de discernimento dos espíritos, ou seja, o
trabalho do juízo a fim de bem localizar de quem partiu o desejo, quem o
concedeu; é também comprovar o trabalho de elaboração pessoal acerca da
experiência de “sentir um incendido desejo”. De fato, em sua carta,
Seraphin procura deixar claro ao Padre Geral o quão seriamente trabalhou
para conhecer a origem desse desejo e sobretudo o quão certo é de que quem
o dá é “Dios Nuestro Señor”, já que tem experimentado uma atenção
maior na “observância das regras”, depois de se ter encomendado a Deus,
nas orações. Vê-se que, a experiência, neste caso, está intimamente
ligada a um conhecimento de si mesmo e de Deus, bem como de virtudes
morais, indissociavelmente: se o desejo é um desejo honesto, útil e
agradável, é um movimento em direção ao sumo Bem; mas não basta a
confirmação teórica, é preciso uma experiência sensível de sua
honestidade, utilidade e bondade: “un desseo fervoroso, que como luz
del cielo deshaze en mi alma aquellas tinieblas y razones, dexandome muy
consolado, y con tal alegria, que me parece arrostrar a qualquiera
dificultad y trabajo”.
Joan Sotalell experimenta paciência
grande diante das tentações, pelo simples pensar “yr a las Indias”
(49), além de experimentar consolação e facilidade para fazer o que antes
era difícil. No texto que escreve, o jovem jesuíta relata, como os demais
indipetentes, o trabalho de discernimento dos espíritos a que se
dedicou – oferecimentos, obediências, abnegações, exercícios espirituais,
mortificações –, bem como procura demonstrar e comprovar como conhece bem
a si mesmo, seus limites, suas virtudes, as graças recebidas. Tudo
utilizado como argumento a favor e prova da origem divina de um tal
desejo. Além disso, Sotalell explicita seu desejo de fazer sua a vontade
de Deus: “davame grande molestia el ver que no podia ser luego, pero
conformeme con la voluntad de Dios Nuestro Señor que fuesse quando el
quiziesse”; como, por exemplo, Aquaviva (1586) lembrava em sua carta
dirigida à Companhia de Jesus: “ne trova il servo di Dio altro riposo,
ò altro contento, che il far la volontà di colui, la cui volontà è sola
regola d’ogni rettitudine” (p. 7).
A experiência de facilidade para
os “trabajos de corazon” a que se refere Gabriel Mayo (50) em sua
Indipeta, unida à certeza de sua falta de habilidades que
justifiquem o pedido, não se contradizem, porque: “no nace este desseo
que tengo de ver en mi algo delo que han de tener los Predicadores”,
mas “nace de la sola immensa bondad de Dios, que en mi lo despierta y
me tira sin ýo mereçello ni pretendello”. Porém, a comprovação maior é
que, junto com o desejo de ira para o Japão para trabalhar na conversão
das almas, sente também um “desseo de dar la vida por amor del Señor”.
Como pode ser possível que um Bem honesto, útil e agradável dê origem a um
desejo de morte? Se e somente se esse desejo é o desejo do Amor de Deus, o
desejo do Sumo Bem, da realização da vida a que foi chamado no seio da
Companhia de Jesus.
Também Juan Bravo comprova, a partir da
experiência, a origem divina do seu desejo, quando apresenta as
justificativa nascidas da elaboração pessoal: o desejo corrige suas
imperfeições e lhe permite viver firme nas “cosas de Instituto”. E,
finalmente, diz: “No creo que rayz de donde brotan tales ramas puede
ser o malas, o antojadiza” (51). Em outra carta sua (52), Juan Bravo
relata o desejo de dizer à voz tudo o que o Senhor lhe fez conhecer e
sentir: desejou estar “a los pies de Vuestra Paternidad para que con la
lengua propria diera al Padre que my Dios me ha dado una notiçia de my
coraçon y de lo que en el pasa”. Que coisas são essas que Deus lhe faz
experimentar? Sempre são confirmações da origem divina do desejo que sente
de ir ao Japão, confirmações, inclusive, que lhe dão a segurança de
escrever não uma ou duas vezes, mas várias vezes, sempre para refrescar a
memória do Padre Geral de seus desejos e, especialmente, do seu trabalho
de discernimento e da certeza a que chegou.
Experiência:
instrumento cognoscitivo? Ponte para aceder a Deus? Critério de
identificação/imitação final? Sim, tudo isso, mas num continuum
feito carne, num dinamismo particular. A aparente fragmentação da análise
desenvolvida ao longo deste texto se desfaz na leitura das cartas
Indipetae que não permitem uma compreensão de tipo
filo-estruturalista-francesa. Finalmente, é preciso dizer, há uma unidade
interna não só a essas fontes, mas à própria Companhia de Jesus: é essa
unidade mesma – retórico-filosófico-espiritual-institucional – que
permite, na leitura dos documentos identificar uma dinâmica, uma
vitalidade, que evidencia um homem e sua experiência de si mesmo,
de Deus e do mundo indissociáveis. Uma tal compreensão do homem, enfim,
faz o psicólogo se perguntar: quem é o homem para mim? E, quem sabe,
aprender com quem, de “morto” que era, se tornou uma voz encarnada.
Referências bibliográficas
Agostinho (1994). A Trindade. (A. Belmonte, trad.). São Paulo:
Paulus. (Original de 416).
Aquaviva, C. (1583).
Lettera del Nostro Padre Generale Claudio Acquaviva. Sopra la Rinovatione
dello spirito à Padri & Fratelli della Compagnie. 29/09/1583. Roma.
(BCS W12/441).
Aquaviva, C. (1586).
Lettera del Nostro Padre Generale Claudio Acquaviva. Dello studio della
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Notas
*
Este artigo é fruto das pesquisas desenvolvidas na tese de doutoramento
financiada pela CAPES, na FFCLRP/USP. Agradeço, especialmente, as
frutuosas colaborações dos professores Alcir Pécora, Pierre-Antoine Fabre
e Marina Massimi.
(1)
“...toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção
sócio-econômico, político e cultural. Implica um meio de elaboração
circunscrito por determinações próprias: uma profissão liberal, um posto
de observação ou de ensino, uma categoria de letrados etc. Ela está, pois,
submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma
particularidade. É em função deste lugar que se instauram os métodos, que
se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões,
que lhes serão propostas, se organizam” (Certeau, 2002, pp. 66-67).(volta)
(2) Termo com o qual, genericamente, eram designados os territórios de
missão, no âmbito cultural e institucional estudados.(volta)
(3) “Sublinhar a singularidade de cada análise é questionar a
possibilidade de uma sistematização totalizante, e considerar como
essencial ao problema a necessidade de uma discussão proporcionada a uma
pluralidade de procedimentos científicos, de funções sociais e de
convicções fundamentais” (Certeau, 2002, p. 32).(volta)
(4) Certeau (2002) afirma: “A historiografia (quer dizer ‘história’ e
‘escrita’) traz inscrito no próprio nome o paradoxo – e quase oximoron –
do relacionamento de dois termos antinômicos: o real e o discurso. Ela tem
a tarefa de articulá-los e, onde este laço não é pensável, fazer como
se os articulasse. Da relação que o discurso mantém com o
real, do qual trata, nasceu este livro. Que aliança é esta entre
escrita e a história? Ela já era fundamental na concepção
judaico-cristã das Escrituras. Daí o papel representado por essa
arqueologia religiosa na elaboração moderna da historiografia, que
transformou os termos e mesmo o tipo de relação passada, para lhe dar
aspecto de fabricação e não mais de leitura ou de interpretação. Desse
ponto de vista, o reexame da operatividade historiográfica desemboca, por
um lado, num problema político (os procedimentos próprios ao ‘fazer
história’) e, por outro lado, na questão do sujeito (do corpo e da palavra
enunciadora), questão reprimida ao nível da ficção ou do silêncio pela lei
de uma escrita ‘científica’.” (p. 11).(volta)
(5) Trata-se do grupo de pesquisa com o qual tive a oportunidade de
trabalhar na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em
Paris, durante estágio de pesquisa no exterior, realizado no ano
2003/2004. Lembro de modo particular de Pierre-Antoine Fabre, Antonella
Romano e Luce Giard, além daqueles que, por intermédio desses últimos, vêm
se debruçando sobre o “fazer história” dentro do mesmo horizonte de
preocupação de Michel de Certeau.(volta)
(6) Aquino é quem assim divide: cinco categorias de potências
(vegetativas, sensitivas, apetitivas, motora e intelectivas), três almas
(vegetativa, sensitiva e racional) e quatro modos de viver (vegetativo,
sensitivo, motivo e intelectivo). Cf. Aquino, 1991, pp. 159-194 (q.
LXXVIII). E ele diz ainda: “ao teólogo pertence indagar, especialmente, só
das potências intelectivas e apetitivas, susceptíveis de virtude. Mas,
como o conhecimento dessas potências depende de certo modo das outras, por
isso a nossa consideração sobre as potências da alma, em especial, será
tripartida. Pois, primeiro, devem-se considerar cousas que servem de
preâmbulo ao intelecto. Segundo, as potências intelectivas. Terceiro, as
potências apetitivas” (pp. 159-160).
(7) Falar de espiritualidade nos séculos XVI e XVII, especialmente
falar da Devotio moderna 20, sem dúvida é considerar fatores tais
como a retórica, a ética, a política, a teologia etc. Hansen, no prefácio
à obra de Pécora (1994) – Teatro do Sacramento – define a
Devotio moderna como “metafísica neo-escolástica da Luz difusa” que
funda a “história como história sacra” (Pécora, 1994, p. 16), como lugar
da epifania da “Luz”. Segundo ele, espiritualidade, experiência
religiosa, mística e fé, são re-elaborações ou retomadas de conceitos
tomistas, apenas revestidos de roupagens modernas; o que significa uma
devoção em nada desvinculada da realidade 21. Porém, é Guibert (1953) quem
melhor nos define o que seja espiritualidade, quando explica o que
significa uma “espiritualidade inaciana”: segundo ele, o termo designa
tanto a vida interior pessoal de um homem, como a maneira como esse homem
exerce certas práticas genericamente entendidas como espirituais, ou mesmo
uma doutrina espiritual presente em escritos desse mesmo homem. No
entanto, quando se trata da “espiritualidade” de uma ordem religiosa, por
exemplo, na maioria das vezes “cette spiritualité du groupe aura pour
point de départ la spiritualité d’un homme, d’un fondateur ou d’un maître,
telle qu’elle ressort de sa vie, de ses enseignements et de sa parole, de
ses écrits, de tel écrit considéré comme normatif par la tradition vivante
du groupe” (p. XVIII). Por isso, pela expressão “espiritualidade
inaciana”, se quer designar esse conjunto de características próprias da
experiência pessoal de Inácio, presente em determinados documentos
– que serão aqui analisados – que funda um modo próprio de um grupo, no
caso a Companhia de Jesus.
(8) Quando se fala de Conimbricenses
ou de Curso Conimbricense, está se referindo ao conjunto de textos
publicados entre 1592 e 1606 com o título genérico de Comentários do
Colégio Conimbricense da Companhia de Jesus. Discute-se freqüentemente
a que autores se deve atribuir a responsabilidade da redação dos volumes:
sabe-se que a maior parte dos títulos é de autoria do P.e Manuel de Góis;
cabendo aos P.es Sebastião Couto e Baltazar Álvares a redação de dois dos
seus oito volumes. De forma que as obras do P.e Pedro da Fonseca,
especialmente o Comentário à Metafísica de Aristóteles, não podem
ser consideradas como parte de sua estrutura. Observando-se o
conjunto da obra, é interessante notar que excetuando o pequeno volume
sobre a Ética a Nicômaco e o volume dedicado à lógica aristotélica,
todo o Curso gira em torno do domínio disciplinar próprio da física
(filosofia natural). De maneira geral, pode-se dizer que os comentários
estão estruturados em torno do texto aristotélico, sendo que a parte mais
significativa é a dedicada às quaestionenes: onde é possível ver um
desenvolvimento dos temas propostos pela obra aristotélica, mas sem se
fixar à “letra do texto”. Martins (1996) comenta mesmo que “mais do que no
comentário propriamente dito (...), é aqui que podemos encontrar as
posições doutrinais mais importantes dos Conimbricenses” (p. 489).
Especificamente quanto a esse pequeno volume dedicado ao comentário da
Ética a Nicômaco, pode-se dizer que não se ocupa de todo o texto
aristotélico, mas apenas de “algumas das melhores questões que foram
tratadas dispersamente por Aristóteles nos livros da Moral a Nicómaco”
(Góis, 1593, p. 59). De fato, este tratado está organizado em torno de
nove Disputationes que abordam, sumariamente, apenas alguns dos
temas da obra de Aristóteles: as três primeiras giram em torno das noções
centrais de Bem, Fim e Felicidade. A quarta se ocupa dos Princípios dos
atos humanos, ou seja, da Vontade, do Intelecto e do Apetite Sensitivo. A
quinta analisa, genericamente, a questão da bondade e da malícia dos atos
humanos. A sexta trata das Paixões e a sétima das Virtudes em geral. A
oitava e a nona Disputationes dividem a análise de algumas virtudes
em particular: a Prudência, a Justiça, a Temperança e a Fortaleza.
(9) Quantos aos Exercícios Espirituais, são – à primeira vista –
uma série de notas práticas, de métodos de exame de consciência, de
oração, de deliberação ou eleição, de planos de meditação e de
contemplação, divididos em partes que indicam quatro semanas, além de
regras etc.; é um conjunto de instruções diversas destinadas a dirigir o
cumprimento de um certo número de exercícios interiores sistematicamente
ordenados, de forma que se trata de um livro não para ser lido, mas para
ser vivido; mas, sobretudo, trata-se de uma obra destinada a quem guia o
exercitante (Guibert, 1953). Quanto à compreensão de como este texto
nasceu, qual o seu objetivo e portanto seu lugar na vida de
espiritualidade da Companhia de Jesus, é o próprio Inácio quem narra – no
seu Relato – como os Exercícios foram escritos: não de uma
só vez, “mas, na medida em que observava algumas coisas na sua alma e as
achava úteis, e lhe parecia que poderiam ser também úteis aos outros;
então as punha por escrito” (Loyola, 1991, p. 1072). De forma que o texto
dos Exercícios Espirituais é o resultado de uma experiência
pessoal, marcada por acontecimentos que são sinais da presença e da ação
de Deus, descrita de maneira a ser útil para que outros homens fossem
capazes de trilhar um caminho de experiência de encontro com Deus.
O objetivo da obra é suscitar e sustentar uma experiência de
eleição da vontade de Deus – “sempre conhecer e cumprir sua divina
vontade” (Loyola, 1991, p. 693) 28[1]
–; uma “escola de oração” (p. 529), para usar a expressão de Guibert
(1953). Podemos também dizer que os Exercícios são mesmo o ponto de
partida fecundo, no sentido de “princípio de orientação e de
desenvolvimento de toda esta espiritualidade nascida da experiência
de Santo Inácio” (idem, p. 537). E finalmente, segundo O’Malley (1999),
“não se pode compreender os jesuítas sem fazer referência” aos
Exercícios Espirituais (p. 9).
(10) Esta versão apareceu em língua francesa no ano de 1991, sob a
iniciativa de um grupo de padres jesuítas – Jean-Noël Aletti, Adrien
Demoustier, Jean-Claude Dhôtel, Gervais Dumeige, François Évain, Édouard
Gueydan, Antoine Lauras, Luc Pareydt e Claude Viard –, dirigidos pelo P.e
Maurice Giuliani, sj, com a colaboração de Pierre-Antoine Fabre (da EHESS)
e de Luce Giard (do CNRS). Trata-se da obra Loyola, Ignace de (1991).
Écrits (M. Giuliani, pres. et dir). Paris: Desclée de Brouwer/Bellarmin
(Collection Christus, 76, Textes).
(11) A respeito do Diário de Inácio, podemos dizer que o que
temos publicado atualmente é apenas um pequeno fragmento do “grande maço
de manuscritos” nos quais Inácio “escrevia cada dia o que se passava em
sua alma” (Loyola, 1991, p. 1072), especialmente com respeito à escrita
das Constituições. Esse fragmento equivale a dois cadernos
inteiramente escritos pela mão de Inácio: o primeiro vai de 02 de
fevereiro a 12 de março de 1544, e o segundo se refere aos dias de 13 de
março de 1544 à 27 de fevereiro de 1545. Esses manuscritos só foram
publicados pela primeira vez em 1934. O Diário, por ser a descrição
do que se “passava na alma” de Inácio, descreve a dinâmica da vida mística
do fundador.
(12) Finalmente, quanto ao que concerne ao Relato, o que mais
nos interessa é seu caráter “testamentário” (Cf. Loyola, 1991, p. 1011),
que ajuda a entender como a experiência espiritual de Inácio
constituiu-se fundamento da Companhia de Jesus. No Relato, a vida
de Inácio é mais que uma seqüência de acontecimentos: é uma vida marcada,
constituída e formada pela graça de Deus (Marin, 1999); a vida de Inácio
se torna, pois, uma “experiência-modelo”, de forma que ler seu relato
significa “reviver a vida do fundador, repetir a vida do fundador como
fundador, quer dizer refundar o corpo, reinstituir o instituto que ele
fundou a partir de sua conversão”
(idem, p. 147), ou seja, finalmente, é imitar Inácio.
(13) A gênese das Constituições
se confude com o nascimento da Companhia de Jesus. Não é inaugural (no
sentido de que só aparece como necessidade cerca de cinco anos depois dos
votos em Montmartre), mas é fundante da Ordem (na medida em que organiza,
define, legisla em nome de uma unidade). Em junho de 1539, os primeiros
companheiros de Inácio deliberam o que dá origem à Summa, um
conjunto de decisões que fornecerão ao Papa Paulo III o essencial para a
edição da bula Regimini Militantis que, em 1540, reconhece a nova
Ordem religiosa. Da deliberação de 1539 à versão final das
Constituições são passados 19 anos, nos quais o texto é revisado,
enriquecido, retomado. A esse período correspondem os Generalatos de
Inácio, Laínez e Borgia e o Pontificado de Paulo III e Júlio III. Cada um
desses personagens contribuiu de alguma forma com a gênese do texto
definitivo, de forma que falar de um autor é sempre uma questão
problemática; especialmente quando sabemos também que é a Polanco –
secretário dos três primeiros Padres Gerais – que se deve a maior parte do
trabalho jurídico. No entanto, é preciso ter claro que, para além das
inúmeras contribuições ao texto das Constituições, o ponto de
unidade é a experiência pessoal de Inácio (Guibert, 1953). Fabre
(1991) lembra que ainda no texto “B” (a última versão, que foi editada em
1558), Inácio teve a oportunidade de deixar várias notas marginais,
atestando assim seu trabalho de fundador (Fabre, 1991). Leite (1938)
também diz que as Constituições são “a melhor fonte para se
conhecer o pensamento explícito e direto de Inácio”. Através desse texto
fundador, conhece-se, pois, mais que um sistema jurídico, um texto que tem
a característica de constituir a Companhia de Jesus, na medida em que
compõe, dá a essência, descreve, estabelece um modo de agir que é o
espelho da vida de Inácio e de seus primeiros companheiros.
(14) Apesar de escritos em períodos distintos, os documentos, quando
lidos no conjunto, revelam uma cadeia contínua de progressiva legitimidade
da Ordem: sua instituição, a eleição do Prepósito, a Summa – texto
oficial do “Instituto” – que deverá ser aprovada, mais tarde, pelo Papa
Paulo III e, posteriormente, confirmada por Júlio III. A produção desses
documentos nada mais é que uma “articulação coletiva do ato fundador, como
vínculo, no gesto de uma escritura comum” (Loyola, 1991, p. 269), onde o
ponto de unidade do grupo que começa a se dispersar é o próprio Inácio,
que aceita se tornar Geral: é justamente porque eles se dispersarão pelas
missões “que a união em um Corpo deve ser considerada” (idem, p. 270), daí
a necessidade de um selo unitivo – a obediência (que vimos ser uma das
questões debatidas no primeiro encontro fundador, entre metade de março e
24 de junho de 1539, em Roma).
(15) Entre os textos editados no
período, selecionamos apenas alguns obedecendo basicamente a três
critérios: 1) autores e obras mais lidas nos colégios e casas da Companhia
de Jesus, conforme o inventário de Gilmont (1961) e o esboço histórico da
espiritualidade jesuítica feita por Guibert (1953); 2) disponibilidade de
obras nos arquivos pesquisados (basicamente BCS, mas também BCE, BNF e
BCR); 3) e, finalmente, aquelas obras, entre as recolhidas, que melhor
sintetizassem o conteúdo daqueles três pólos de análise anteriormente
descritos – filosófico/teorizado, regrado-espiritual e
regrado-institucional. Optamos, então, pelos seguintes textos: uma carta
do P.e Aquaviva (1543-1615), de 29 de setembro de 1583, na qual o Padre
Geral propõe a “renovação do espírito aos Padres e Irmãos da Companhia” e
uma outra carta, do dia 19 de maio de 1586, sobre o “estudo da perfeição e
da caridade fraterna”; ambas têm um caráter refundador importante, na
medida em que julgam o momento histórico vivido e propõem os novos passos
a serem dados. Um texto de Giulio Fazio – Trattato utilissimo della
mortificatione delle nostre passioni, & affetti disordinati – de 1594,
pela sua importância do ponto de vista da síntese entre conteúdo
filosófico aristotélico-tomista e experiência espiritual. Outro
texto do mesmo ano, do espanhol Pedro Sanchez – Libro del Reyno de Dios
y del camino por donde se alcanza –, do qual encontramos uma tradução
francesa de 1607. Dada a significação da obra do ponto de vista da
descrição do verdadeiro filho da Companhia de Jesus, demonstrando o valor
da obediência como “caminho” para se alcançar o Reino. O Libro de
oracion mental, de Melchior de Villanueva, editado em 1608, por ser
uma síntese bastante completa do uso de conceitos próprios da psicologia
filosófica aristotélico-tomista no âmbito da espiritualidade. O
Ejercicio de perfeccion y virtudes cristianas, de Alonso Rodrigues
(1533-1617), publicado pela primeira vez em 1609 e que conheceu inúmeras
traduções e edições ao longo da história da Companhia de Jesus.
Finalmente, como representante de uma espiritualidade completa – um todo
orgânico – que amadureceu no tempo, escolhemos algumas obras de Juan
Eusebio Nieremberg (1595-1658): o seu De Artes Voluntatis, de 1631
(tivemos acesso a uma tradução francesa de 1657) e o Vida divina y
camino real de grande atajo para la perfeccion, de 1633. Esses oito
textos são uma síntese daquilo que descrevemos a partir dos três pólos
representativos do pensamento e da ação jesuíticos, na medida em que,
imersos num ambiente filosófico, pedagógico, espiritual e institucional
específicos, se preocupam em estruturar aquilo que se configurará um
corpus de espiritualidade com características próprias. Trata-se,
nesse caso, de uma genealogia positiva: são textos que só podem ter
nascido de um ambiente sustentado minimamente por aquele tripé.
(16) É nesse período, com já vimos, que
começa a tomar corpo a realização prática do programa pedagógico (Guerra,
2003) traçado pelas Constituições; é aprovado o Diretório dos
Exercícios Espirituais em 1599, o que permite um trabalho aprofundado
e sério sobre o texto inaciano; são publicadas inúmeras cartas de Aquaviva
(sobre a oração, sobre a renovação do espírito, sobre o estudo da
perfeição e outras tantas destinadas a particulares); são editados os
primeiros tratados espirituais e instruções sobre oração, aproveitamento
espiritual etc. (Lamalle, 2004); os debates nas Congregações Gerais e seus
decretos sobre tempo dedicado à oração, noviciado etc. Todos exemplos de
uma profícua preocupação com o estabelecimento de uma Espiritualidade
“verdadeira, sólida e eficaz” (Guibert, 1953, p. XXV), com traços
propriamente jesuíticos.
(17) A julgar pelas indicações oferecidas pelo Diretório dos
Exercícios Espirituais: nas “notas transmitidas oralmente”, §8 da II
parte, diz-se que “se pode aconselhar àquele que se exercita de anotar por
escrito seus pensamentos e suas moções” (Loyola, 1991, p. 265, tradução
nossa), obedecendo à tradição iniciada por Inácio e certamente conhecida
através do seu Relato.
(18)
ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 4 (grifo nosso).
(19)
ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 338 (grifo nosso).
(20)
ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 379 (grifo nosso).
(21)
ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 329 (grifo nosso).
(22) Segundo Mendiola (2003), essas sociedades são aquelas que se
constituíram do século V a.C. ao século XVII d.C. Podemos descrever assim
essa realidade retórica: a cognição estava construída sobre a
oralidade/escritura, de forma que a leitura da realidade era sempre
analógico-metafórica; estando baseada na oralidade/escritura, é uma
realidade onde importa a interação entre as pessoas, ou seja, exige
comunicação e sociabilidade; ainda por estar baseada na
oralidade/escritura, era necessário que se normatizasse o falar,
tornando-se o processo de aprendizado um processo moralizante e
marcadamente cristão. É uma realidade, por fim, teleologicamente
orientada.
(23) Para essa assim chamada realidade científica, Mendiola (2003)
enumera as seguintes características: se desenvolveu a partir do século
XVII e chega aos nossos dias; o processo cognitivo é baseado na depuração
da escrita pelas técnicas de impressão, o que faz da leitura da realidade,
uma leitura literal-referencial; sendo baseada na escrita/impressão como
meio de comunicação, elimina a necessidade de interação e valoriza o
discurso analítico e representacional (a palavra suplanta a coisa) e
permite a comparação entre textos e opiniões diferenciadas, tornando-se,
portanto, uma dinâmica individual e técnico-cognitiva. É uma realidade,
por fim, cognitivamente orientada.
(24) Schmitt, em artigo de 1969,
discutindo a questão da diferença entre experientia e
experimentum em obras de Zabarella e Galileu, diz que “uma das
tendências que mais claramente marcam a tendência do século XVII é uma
ênfase crescente na experiência” (p. 80, tradução nossa). Uma ênfase que,
segundo ele, se encontra tanto no que respeitava à produção filosófica
(por exemplo, em Gassendi e Locke), quanto ao que respeitava à produção
científica (por exemplo, as obras de Francis Bacon e Newton).
(25) Assim, já é possível distinguir um aspecto importante da
antropologia que se constrói a partir dessa concepção da alma: os sentidos
não são passivos, na medida em que concorrem ativamente no processo
intelectivo. Podemos começar a completar a questão, lembrando: o intelecto
age a partir das phantasmata. Se se compreende a unidade
intelecto/sensibilidade, que está por trás dessa compreensão, não há
contradição: “sensibilidade e intelecto interagem até o ponto que a
virtus cogitativa apresenta uma estreita afinidade com o espírito;
assiste-se a uma espiritualização da sensibilidade” (Zanlonghi, 2003, p.
69, tradução nossa). Essa “espiritualização” permite a unidade entre razão
e sensibilidade: o homem, enquanto razão encarnada que é, necessita dos
sentidos para conhecer; sejam os sentidos externos (que recolhem as
impressões), sejam os sentidos internos que formam imagens, depositadas e
ordenadas na memória, que cumpre o papel de custodiar as impressões unidas
aos juízos do intelecto.
(26) Sobre essa passagem cf. Zanlonghi (2003), quando ela afirma:
“Todavia, para compreender de que modo a retórica age neste nexo, é
preciso refletir sobre a conexão entre prudência e retórica. Muitas, na
verdade, são as tangentes e um mesmo estatuto gnosiológico: nem ciência,
nem opinião, produzem conhecimento, mas não demonstração, como a retórica
desenvolve raciocínios que movem a partir de premissas prováveis e
constróem uma razoabilidade orientada para o concreto, assim a prudência é
a virtude que, em estreito contato com as paixões, discerne o bem do mal e
orienta a escolha do bem concreto. Ambas orientadas para a ação, radicadas
nos afetos, mas dirigidas para sua própria normalização, dividem o destino
comum de agir naquela zona intermediária entre sentido e intelecto (...).
Mesmo a prudência utiliza a cogitativa na sua aplicação na vida
cotidiana, recebendo como matéria do raciocínio a variedade das ações
possíveis ou a variedade dos aspectos e dos pontos de vista de uma mesma
ação. A prudência precisa, para produzir o seu consilium, ver
claramente a experiência. De onde tirará o socorro senão pescando da
memória, da imaginação e da cogitativa as species que a retórica
fundirá em imagens?” (pp. 75-76).
(27) A chamada arte da memória foi, segundo a tradição
ciceroniana, “descoberta” por Simónides de Céos, alguns séculos antes da
era cristã. Após entender o papel da visão e da ordem no
processo memorativo, criam-se regras para facilitar o desenvolvimento do
que passa a ser chamado “memória artificial”. Mais tarde, Cícero (1966)
enquadra a memória entre as disciplinas da Retórica (que, segundo ele, são
cinco: inventio, dispositio, elocutio, memoria
e pronuntiatio); e Quintiliano descreve o processo. Platão
compreende a memória como sinal da divindade e da imortalidade da alma.
Aristóteles também trata da memória e a relaciona à formação do
conhecimento, apontando o importante papel da imaginação. Cada um desses
pensadores da antigüidade, se tornará, na Idade Média e na Renascença,
referência para um passo na compreensão dessa arte. Segundo Yates (1975),
na antigüidade clássica é elaborado um “modelo arquitetural da memória”,
onde as coisas (para elas a memoria rerum) e as palavras (para elas
a memoria verborum) a serem lembradas são ordenadas num
espaço (locus ou topos), a partir de imagens (imaginibus
ou phantasmata). É na Idade Média, no entanto, que a arte da
memória passa a ter uma importante “intenção religiosa”: há uma
preocupação por se lembrar das coisas da salvação e da danação da alma,
dos artigos da fé, da estrada para o céu (virtudes) e para o inferno
(vícios). Essa preocupação com as virtudes e os vícios, faz com que os
escolásticos retomem a obra aristotélica, especialmente a Ética à
Nicômaco, que enquadra a memória como parte da prudência: “a memória
pode ser um habitus moral quando a utilizamos para lembrar das
coisas passadas em vista de uma conduta prudente no presente e de um olhar
prudente para o futuro” (p. 74, tradução nossa). A “memória artificial” é
uma memória aperfeiçoada pela arte: eis o papel da Prudência.
(28) Com o advento da impressão, a memória perde seu lugar, porque não
é mais necessário saber par coeur as lições aprendidas. Assim, a
“arte da memória” torna-se um jogo curioso, ou um artifício mágico:
“Tem-se a impressão que no século XVI a arte da memória começa a declinar.
O livro impresso destrói os velhos hábitos da memória” (Yates, 1975, p.
143, tradução nossa). Os principais representantes dessa nova áurea
ocultista que aparece em torno à arte da memória são as correntes
neo-platônicas renascentistas, especialmente de Pico de la Mirandola e
Marcilo Ficino. Também Giordano Bruno envereda pelas sendas da memória e
desenvolve o conceito a paritr de uma concepção mágica.
(29) Para Agostinho, o homem é uma alma que faz uso de um corpo. Até
naqueles conhecimentos adquiridos pelos sentidos, a alma se mantém em
atividade e ultrapassa o corpo. Os sentidos só mostram o imediato e o
particular, enquanto que a alma é capaz de tocar o universal e atingir a
compreensão pura, porque a alma se confunde com o próprio Deus.
(30) Em disputas e questões anteriores, o autor já havia descrito o que
os filósofos e o Filósofo entendem por Bem (aquilo a que tudo apetece; e
sendo que o bem é aquilo que é honesto, útil e/ou agradável/deleitável, o
Sumo Bem será aquilo que é, ao mesmo tempo, honesto, útil e
agradável/deleitável, ou seja, o Amor de Deus) e por Fim (aquilo a que
potencialmente toda a criatura se dirige, ou age em direção a, e em
havendo, portanto, uma finalidade para toda a ação do homem).
(31) Rm 7,23.
(32) Também Bergamo (1994) aponta a fascinação pelo mundo da
interioridade e pela estrutura da alma, presente especialmente no século
XVII, na França, e retomado da tradição medieval. Segundo ele, a questão
da estrutura da alma tem suas raízes em um problema bastante discutido por
autores de séculos anteriores: “Em particular, a aparição, com o
desenvolvimento da escolástica no século XIII, de uma antropologia
fortemente estruturada que, modelando-se sobre a filosofia aristotélica,
comportava uma classificação rigorosa das faculdades da alma, e uam
análise minuciosa de seu funcionamento, abriu a via para uma longa série
de transposições, até o ponto que conhecimentos maduros sobre o terreno de
discussão filosófico poderiam, a qualquer momento, ser transplantados e
aplicados no campo da literatura espiritual. Há, em suma, toda uma
história da representação da estrutura da alma, que não somente se
articula no interior de uma história da espiritualidade, mas ainda cruza a
história das relações da espiritualidade com seu contexto, e em particular
com o discurso filosófico” (Bergamo, 1994, pp. 32-33, tradução nossa).
(33) Certeau (1982) explica que esta
fórmula teológica mantida nos séculos XVI e XVII é no entanto ligeiramente
modificada, quando então acontece o temido risco da “mystiquerie”.
O risco, segundo Certeau é que a crescente individualização das práticas e
o aparecimento cada vez maior das experiências privadas, isto é, o
progressivo desvincular-se da instituição, produzisse esta “mystiquerie”:
“Torna-se ‘místico’ aquilo que se destaca da instituição” (p. 116,
tradução nossa). Por isso a necessidade de se retomar, com clareza maior,
a certeza de que a Igreja é o sinal do corpo de Cristo. Esta idéia faz
trazer a experiência mística para o campo da instituição visível.
(34) Ele, de fato, diz: “O campo religioso se reorganiza também em
função da oposição entre o visível e o invisível, de tal maneira que as
experiências ‘escondidas’, que cedo foram reunidas sob o nome de
‘mística’, adquiriram uma pertinência que não tinham” (Certeau, 1982, p.
120, tradução nossa). Ou ainda: “Esta (...) modificação implica uma
reestruturação das relações entre o fato e o sentido. Se torna mais
difícil pensar que os fatos chamam o sentido – um sentido que seria levado
à lisibilidade pelas coisas mesmas –, quanto mais era necessário gerar
primeiro uma ‘razão’ por textos, e depois fatos (uma ‘experiência’ e’/ou
um corpo) para esta razão (sintoma: ‘produzir’ passado do sentido de
‘manifestar’ para o de ‘criar’)” (p. 121, tradução nossa).
(35) Massimi (1999) afirma, falando da
experiência religiosa dos jesuítas: “não há solução de continuidade entre
a experiência psicológica e a experiência religiosa, já que ambas são
inerentes ao eu do homem. Nem pode haver autonomia entre a esfera psíquica
e a esfera espiritual, assim como hoje nós ‘modernos’ concebemos” (p. 51).
Segundo a tradição da filosofia aristotélico-tomista, conhece-se o
fundamental pelo acidental: “conhecemos a alma por seus efeitos, ou seja,
por suas funções psicológicas, ou faculdades que se evidenciam no plano
dos fenômenos” (p. 53).
(36) García-Mateo (2000) dá uma
descrição detalhada do uso que Inácio fazia das categorias de seu ambiente
cultural de forma justa e razoável. Assim, por exemplo no EE. 53, Inácio
escreve: “Imaginando Cristo nosso Senhor diante de mim e colocado
na cruz, fazer um colóquio: como, de Criador, ele veio a se fazer homem,
passar da vida eterna à morte temporal, e assim morrer por meus pecados.
Da mesma maneira, olhara para mim: o que eu fiz por Cristo, o que eu faço
por Cristo, o que devo fazer por Cristo. Depois, vendo-o nesse estado,
suspenso na cruz, percorrer o que se me oferecerá” (EE. 53, p. 84,
tradução e grifos nossos). Percebe-se daí que o uso da imaginação tem que
ver com o que, mais a frente explicaremos melhor, será chamado “composição
de lugar” e “aplicação dos sentidos”.
(37) A aplicação dos sentidos na composição de lugar, por exemplo,
aparece pela primeira vez, dentro do texto dos Exercícios Espirituais,
no EE. 47: “Aqui é preciso remarcar que na contemplação ou meditação do
que é visível, como por exemplo a contemplação de Cristo nosso Senhor, o
que é visível, a composição será ver com a vista da imaginação o lugar
material onde se encontra a coisa que eu quero contemplar. (...) Na
contemplação do que é invisível, como é aqui a dos pecados, a composição
será ver com a vista da imaginação e considerar minha alma aprisionada
nesse corpo corruptível e todo o composto humano neste vale, como que
exilado entre animais privados de razão. Eu digo: todo o composto da alma
e do corpo” (EE. 47. Loyola, 1991, pp. 78-80, tradução nossa). E voltará a
aparecer outras muitas vezes. Como comentário a esse EE. 47, aparece, na
obra sinótica a seguinte nota: “A composição de lugar é uma
preparação que tem necessidade da imaginação. Explicando-a aqui, Inácio
mostra que a imaginação é uma faculdade a ser colocada em ação: fazer um
trabalho que não consiste simplesmente em colocar juntas idéias e
palavras, mas os elementos de um quadro. O exercitante torna preciso assim
o lugar evangélico no qual ele vai se situar durante o exercício” (p. 79,
nota do tradutor, tradução nossa). Outros exemplos de aplicação dos
sentidos podem ser encontrados em EE. 53, EE. 66-70, EE. 122-125, EE. 159,
EE. 194, EE. 202, EE. 220.
(38) Alguns exemplos retirados dos Exercícios Espirituais:
“Verei com os olhos da imaginação” (EE. 122, p. 116, tradução e grifo
nossos). “Pelo sentido da audição escutarei” (EE. 123, p. 116,
tradução e grifo nossos). “Pelo sentido do olfato e do gosto, hei de
sentir e saborear a suavidade e a doçura infinitas da divindade, da
alma, de suas virtudes e de tudo o mais” (EE. 124, p. 116, tradução e
grifo nossos). “Exercitarei o sentido do tato, abraçando, por
exemplo, e beijando os lugares que estas pessoas tocaram com os
pés, ou se detiveram” (EE. 125, p. 116, tradução e grifo nossos). Jesu,
dulcis memoria: a “doçura infinita da divindade” deve ser
experimentada pelos sentidos. Bem como, toda experiência do sagrado passa
pelos sentidos.
(39) Cf., por exemplo, EE. 48, EE. 55, EE. 63, EE. 65, EE. 104, EE. 203.
(40) Nos EE. 29 e 30, por exemplo, logo no Exame Particular,
Inácio propõe que se compare, depois que se tenha analisado os gráficos
cotidianos e semanais, a evolução de um dia para o outro e de uma semana
para a outra, a fim de verificar se houve emenda do pecado a que o
exercitante se dispôs a emendar.
(41) Esse pequeno documento que, dobrado, comporta quatro páginas, foi
classificado entre os manuscritos do AHSI com os números 38 e 39, de forma
que temos as páginas 38f, 38v, 39f e 39v.
(42) Apenas a título de exemplo, citamos uma passagem do Relato,
quando Inácio relata sua ida para Alcalá: “uma coisa o embaraçava muito,
era que quando ele começava a aprender de cor, como era necessário nos
inícios da gramática, lhe vinham novas inteligências de coisas espirituais
e novos gostos; e isso de tal maneira que ele não podia aprender de cor e
não podia as afastar, ainda que lutasse muito contra elas” (Loyola, 1991,
p. 1046, § 54).
(43) Nas “Regras Gerais Tiradas das Constituições” se diz que foi a
Divina Providência que permitiu que a Companhia de Jesus existisse e,
portanto, mais que qualquer constituição exterior é a Ela que se deve
recorrer sempre. No entanto, continua, foi a mesma Providência Divina que
“pede a cooperação de suas criaturas” e o Papa que “assim ordenou”, que
mostraram o quão necessário era “escrever Constituições que ajudem a
melhor avançar, conformes ao Instituto da Companhia, na via do serviço
divino que começamos a seguir” (Loyola, 1991, p. 608, tradução nossa). No
parágrafo seguinte diz: “Assim, e bem mais ainda, é necessário que todos
aqueles que entram na Companhia e vivem nela sejam convencidos em nosso
Senhor e desejos de guardar integralmente todas as constituições, as
regras e a maneira de viver da Companhia e que com sua divina graça se
esforcem, de todo seu coração e de todas as suas forças, por as observar
perfeitamente” (p. 609, tradução nossa).
(44) No Capítulo I da Primeira Parte do texto Surin (1990) mostra as
“provas de que existe verdadeiramente demônios”, a partir das “pistas que
deixaram em sua saída dos corpos das pessoas possuídas” (pp. 131-149).
(45) É bem verdade que não se trata de uso explícito, como nos demais
exemplos, no entanto, Rodriguez (1609/1834) recorre a exemplos de santos,
apóstolos e mártires para mostrar, por exemplo, como é verdade que os
votos não tiram a liberdade, pelo contrário a aperfeiçoam, como é o caso
deste trecho: “não se tira a liberdade pelos votos, antes se aperfeiçoa
mais (...); porque o que fazem os votos é afirmar e fitar nossa vontade no
bem (...); como em Deus, e nos bem aventurados que não podem pecar (...) e
os apóstolos que foram confirmados em graça e não podiam pecar
mortalmente, não por isso perderam a liberdade, antes com isso se
aperfeiçoou; porque se afirmou e fixou mas o bem para que foi criada” (p.
100, tradução nossa).
(46) Nieremberg (1631/1657), no decorrer do seu De arte voluntatis,
se auxilia de conceitos vindos da psicologia filosófica
aristotélico-tomista com a clara finalidade de demostrar como as potência
da alma racional têm necessidade dos preceitos morais para se bem
ordenarem. Assim, não poucas vezes, fará uso de termos e expressões que
implicam um conhecimento por experiência: “a felicidade é um certo
silêncio” (p. 118, tradução nossa), “as ações honestas e legítimas, as
afeições sãs, as boas obras” (p. 158, tradução nossa), “nós nos privamos
voluntariamente dessas duas tão excelentes vantagens” (p. 320, tradução
nossa), “lhe represente duro e penível” (p. 377, tradução nossa), “quem
ama a paz e deseja adquirir repouso” (p. 475, tradução nossa) etc.
(47) Na obra seguinte, Nieremberg (1640/1957) segue as veredas da regra
institucional sob a qual se encontra determinado para mostrar também, pela
experiência, como este é um caminho facilitado para chegar a uma “vida
divina”.
(48) Cf. ARSI, Indipetae
Hispanae, FG 758, carta n. 4.
(49) Cf. ARSI, Indipetae
Hispanae, FG 758, carta n. 338.
(50) Cf. ARSI, Indipetae
Hispanae, FG 758, carta n. 379.
(51) Cf. ARSI, Indipetae
Hispanae, FG 758, carta n. 329.
(52) Cf. ARSI, Indipetae
Hispanae, FG 758, carta n. 404.
Nota
sobre o autor
Paulo Roberto
de Andrada Pacheco
é psicólogo formado pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutorando
do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto; desenvolvendo pesquisa na área
de concentração de História das Idéias Psicológicas na Cultura
Luso-Brasileira. Contato:
paulopac@yahoo.com.br.
Data de
recebimento: 20/08/2004
Data de aceite: 20/10/2004
Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm
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