Introdução
Este trabalho (1)
reflete enunciações do imaginário umbandista, formuladas a partir de
exus, postas nos seus próprios termos, proferidas pela boca de seus
"cavalos" (médiuns).
No seu âmbito prestou-se
especial atenção à fala de médiuns e de entidades e a todos os demais
recursos expressivos do fenômeno estritamente por razões metodológicas.
Não se cogita a atribuição de um privilégio metafísico à linguagem,
nem se presume reduzir o sagrado umbandista a uma questão de discurso.
Tão somente se privilegia esta forma de acesso ao seu mistério no
intuito de poder acessar o que em paralelo pode revelar sobre memórias
pessoais e coletivas inconscientes, criptografadas nas suas enunciações.
Ao examinar a variedade dos seus
procedimentos semióticos prestando atenção ao seu cunho de performance,
verificou-se que a sua linguagem dirige-se à totalidade do ser humano,
atingindo-o pré-representacionalmente e significando-o a partir do seu
próprio corpo e em todos os sentidos (Bairrão, 1999).
Muito rente à esfera pulsional,
verificou-se que a linguagem umbandista produz sentido
sensorial-significativamente e por isso são necessárias para a descrever
polissemias e metáforas da profundidade, no caso dos exus, (não apenas)
literalmente "viscerais".
O complexo semiótico umbandista
pode ser tratado como uma coleção de enunciações, cálculos,
reflexões, memórias e críticas, que perpetuam e re-produzem tradições
e identidades (populares), boa parte delas recalcadas, reprimidas. Esta
abordagem em hipótese alguma deprecia o seu valor e sentido de
sacralidade. Apenas não é compatível com pré-concepções do sagrado.
No caso da umbanda, a par de
assumir forma humana, o sagrado corporifica-se em histórias de tipos
sociais cujas narrativas têm valor exemplar. O subjugado dá a volta por
cima. O "baixo" é o alto. Honra-se o popular. Há uma harmonia
complexa entre os sentidos de todas as linhas (tipificações de formas de
transe decalcadas de "modelos" sociais) e um valor de inclusão
de todo o marginalizado (Birman, 1985; Brumana e Martinez, 1991).
O intuito deste estudo e de
outros desenvolvidos no âmbito de um mesmo projeto é estabelecer pontes
para um real diálogo intracultural, não autoritário, revelador da
dimensão reflexiva do popular e seu interlocutor respeitoso. Com o
conhecimento assim obtido, espera-se construir pontes para uma
intervenção social e comunitária, ética e dialógica, isenta de
narcisismo paternalista.
Sobre a Umbanda
Antes de adentrar no assunto é
importante esclarecer alguns equívocos sobre a umbanda, no quadro da
religiosidade brasileira. Sobre o assunto há diversos mal entendidos.
Muitas vezes compreendida como
coleção de resquícios e perda de tradições de outros cultos, a
umbanda ora é vista como catolicismo popular e degenerado, ora como forma
involuída de kardecismo (baixo espiritismo), ora como candomblé
degradado (pela falta de capacidade em ser fiel a uma fantasiada
"pureza" africana). Desta maneira a sua especificidade é
ignorada.
Outras tentativas de redução
repetem-se nos meios acadêmicos. Historicamente houve uma propensão para
respaldar a introdução de novas discriminações entre os africanos
trazidos como escravos (Ferretti, 1995, 1999). Em síntese, os bantos
seriam mais obtusos e, portanto, adequados para trabalhos físicos sem
nenhuma qualificação. O seu patrimônio cultural teria se perdido com
facilidade e seria inferior. Estes preconceitos são tão veementes que,
não obstante a universal presença e extrema influência da cultura banto
no Brasil, ela acontece como se fosse invisível ou transparente,
supondo-se outras origens para muitas das suas contribuições.
Especificamente quando se fala da
sua tradição religiosa, é comum que esta seja vista como perdida,
inexistente; ou limitada a práticas mágicas de diferentes
proveniências, progressivamente racionalizadas, sobre as quais
posteriormente se construiu uma nova religião (a umbanda). Na direção
oposta, mas não menos infeliz, a sua espiritualidade freqüentemente é
encarada como religião degradada em práticas mágicas. Ignora-se que a
religião é uma criação brasileira (Concone, 1973), suportada na
nomenclatura de uma tradição de práticas de cura bantos (denominada
umbanda) ministradas por especialistas intitulados quimbandas (Rodrigues
de Areia, 1974). Não houve perda nem acréscimo, a não ser os normais
nos processos culturais, incompatíveis com juízos de valor. Ocorreu
apenas um deslocamento semântico. A denominação de uma parte do
complexo cultural africano passou a ter outro uso no Brasil: enquanto
religião, a umbanda não é degradação de outra - o termo na África
não se reporta especificamente a algo religioso, pura e simplesmente
nomeando a terapêutica tradicional (Estermann, 1983; Coelho, 2000). Por
outro lado, há uma notável homogeneidade entre a plasticidade e o culto
dos ancestrais na umbanda contemporânea e as formas bantos de
religiosidade (Ligiero e Dandara, 1998).
Não é recomendável aplicar a
processos de transculturação raciocínios voluntária ou
involuntariamente evolucionistas. Assumir que uma tradição
contemporânea deva ser avaliada pela sua correspondência com alguma
matriz, real ou fantasiada, projetada num passado pensado no âmbito de
uma temporalidade linear é, no mínimo, propor-se a lidar com a
complexidade do imaginário e com a sua temporalidade intrínseca de
maneira inadvertida para com o tempo que lhe é inerente, adotando
pressupostos que seria preferível rever.
Esta ilusão sobre a linearidade
do tempo, não obstante mantida por muitos que presumem reivindicar uma
fidelidade à tradição, ignora que o tempo do sagrado é sempre
presente. A origem acontece atual e é revivida em cada reiteração do
sagrado (Corbin, 1977, 1981, 1983). O imaginário religioso, tal como o
inconsciente, não se regula pela cronologia e, curiosamente, a umbanda,
que aparentemente é uma das religiões que mais consagra o profano (sendo
por vezes difícil diferenciar a vida comum das pessoas das lendas dos
seus deuses e discernir onde acaba uma roda de samba e começa uma
"gira") apresenta um senso do tempo imaginal e uma proximidade
com o sagrado menos intelectualizadas, mais espontâneas, mas bastante
genuínas e fieis ao modo próprio do seu acontecer (talvez por não ter
sido objeto de racionalizações sócio-políticas, nem vítima de
interpretações fundamentalistas, aliás incompatíveis com o
"ethos" da sua espiritualidade).
A umbanda é uma tradição
presente. Uma "co-memoração" criativa da brasilidade atual. Os
seus fundamentos têm uma inconsistência solidária do descrédito atual
em fundamentalismos. Para um observador filosoficamente informado, a falta
de cerimônia com que se criam e recriam os seus "fundamentos"
soa como uma paródia muito contemporânea da metafísica. O mau
endereçamento do sentido do sagrado para proposições e teses
metafísicas é denunciado pela mutabilidade e reconfigurabilidade das
suas crenças e doutrinas, na forma de um jogo alegre, leve e bem humorado
- aparentemente norteado por critérios mais propriamente estéticos do
que metafísicos -, verdadeiro espelho caricatural da defunta disciplina.
Involuntariamente, o fenômeno umbandista situa-se para além do
consórcio, habitualmente em tom trágico e fúnebre, entre os discursos
nostálgicos de certezas e aqueles que "festejam" de maneira
ressentida o fim da metafísica.
Por mais paradoxal que isso possa
parecer, o descompromisso umbandista para com a intocabilidade dos efeitos
retóricos de jogos de palavras, o seu evidente descaso para com a
cristalização de "tradições", a sua liberdade de recriação
de fundamentos e doutrinas e a dimensão lúdica do seu sincretismo
permitem que apareça sem disfarces a puerilidade da metafísica. Nesta
religião o essencial nunca são conceitos - a verdadeira
"essência" do culto resume-se a gestos e ações inspirados
pelo cuidado para consigo e para com outrem, subordinando-se a estes a
mutável "doutrina".
A umbanda não precisa de origens
míticas ou inventa-as literariamente (Meyer, 1993). Desta forma é mais
dócil ao sopro do espírito e à respiração dos corpos e talvez por
isso apresente maiores dificuldades a sua intelecção a partir de
esquemas rígidos. Mantém laços de inclusão entre o sagrado e o
mundano, às vezes na forma de transparência (mais do que transcendência
ou imanência). Promove como que uma sacralização do social e humano
brasileiro e uma re-invenção constante, que ofendem a nostalgia de
metafísica e a paixão pelo estático. Não apresenta dogmas nem
codificações. As suas doutrinas são suficientemente sérias para não
se levarem muito a sério.
A sua prática poderia resumir-se
em estratégias para manter uma polifonia de vozes sobre diversos
assuntos. Cada espírito, do seu prisma, incorpora-se para dizer algo que
acrescenta ou se contrapõe a outra voz enunciada de outra perspectiva e
igualmente válida. Este processo é favorável à inclusão de conflitos
e à explicitação de contradições. O lugar de autoridade, em ultima
instancia, é devolvido ao fiel.
É interessante acompanhar
processos de afirmação progressiva das múltiplas identidades do transe
(o chamado desenvolvimento mediúnico). A partir de material simbólico
consagrado, vão-se compondo e integrando médium e "entidade".
Ambos "evoluem" juntos. Esta construção segue uma gramática
dada e obedece a uma linguagem integral, com aspectos pictóricos e
sensoriais (Price-Mars, 1984). Atinge esferas pré-representacionais. O
cunho alusivo das suas metonímias freqüentemente afasta-se do solene
(que tende a ridicularizar, já que sempre foi imposto como signo do
opressor) e a sua simplicidade muitas vezes roça o pueril (o que no
contexto umbandista é um elogio, posto que o culto leva a sério a
vinculação bíblica entre o infantil e o celestial).
Descomprometida com direitos
autorais, a umbanda incorpora vorazmente toda e qualquer
"influência" que possa ser útil à produção de um sentido
contemporâneo (Negrão, 1996). Não apenas doutrinas, ritos e panteões,
mas também músicas, literatura, etc.
Esta recepção de influencias,
não se pense acontecimento passivo (Trindade, 2000). A riqueza do
fenômeno cultural umbandista, que tudo incorpora e utiliza, desde lendas
e práticas indígenas até à retórica da Nova Era, não é compatível
com uma absorção amorfa. Artisticamente, o Outro suposto autor da
macumba combina velhos elementos em novos padrões estético-religiosos.
Uma dificuldade comum é
pretender entender estes elementos a partir do sentido proposicional que
teriam no contexto do seu uso anterior, ignorando que são meros
significantes chamados a responder por novos usos (Goldman, 1984). Como
este processo de construção não deixa de ser um desmascaramento de
procedimentos semelhantes, mas não assumidos, o cunho de denúncia que
implicitamente comporta incomoda os religiosos que, por não perceberem o
vínculo entre o sagrado e o brincar, se levam demasiado a sério.
De fato, um ritual de umbanda é
um evento alegre e muito festivo, uma grande brincadeira, mesmo que muitas
vezes se lide com dramas humanos da maior gravidade (e talvez exatamente
por isso). A sua teatralidade e a ironia para consigo mesmo e para com a
realidade circundante são uma constante - característica que já havia
sido reconhecida e descrita no início do século passado, em cultos
africanos que com ela guardam relações de semelhança profundas (Leiris,
1958/1996).
O sagrado incognoscível, em vez
de se reduzir a objeto de estertores e de fervores místicos de egos muito
crescidos, resolveu brindar os seus filhos brasileiros com significantes
de grande plasticidade, sempre capazes de propiciarem enunciações e
re-enunciações que façam sentido para uma compreensão e elaboração
da experiência coletiva e social contemporânea (Turner, 1988).
Esta liberdade de espírito
permitiu à umbanda resistir plasticamente a inúmeras tentativas de
imposição física e metafísica e, neste processo, assume lugar de vulto
uma personagem do seu panteão, exu, cedida sem autorização prévia pela
cultura ioruba (Trindade, 1975).
O Exu Umbandista
Para tal eleição contribuíram
a assimilação complexa da figura de exu ao diabo católico (nexo que
longe de ser apenas feito brasileiro, se encontra estabelecido na própria
África).
A vivência popular do diabo não
o associa propriamente a uma instância metafísica do mal,
salvaguardando-o como representante e advogado de bens e prazeres pessoais
e imediatos que, por razões o mais das vezes incompreendidas, são
proibidos em função de interesses alheios aos do indivíduo (embora
habitualmente legitimados em função do "seu" bem). Por vezes
os interesses de distintas pessoas ou grupos são antagônicos e é neste
caso que o bem alheio pode ser sentido como um mal pessoal (nunca um Mal
absoluto).
É o papel de oposição a essa
expropriação de bens pessoais, afetivos e de todo o tipo, que o
"compadre" exu está destinado a cumprir na umbanda.
Não bastasse a sua assimilação
ao diabo (contra todas as evidencias, recusada por muitos umbandistas que
tentam disciplinar a espontaneidade do imaginário, confessando dessa
forma terem soçobrado à difamação contra a simpática figura do
capeta), talvez por influência kardecista, ainda por cima o exu
umbandista perdeu o seu estatuto de divindade (ainda que decaída). Foi
"despromovido" a mero parceiro exemplar da aventura humana, uma
criança, homem ou mulher vividos (em duas acepções: experientes e
mortos), o que certamente também desagrada ao excesso de seriedade em
metafísica.
Como todas as demais
personalidades do panteão umbandista, os exus se organizam em linhas e
falanges que semanticamente revelam cenas do imaginário (com todas as
suas implicações éticas, estéticas e cognitivas) e desvendam a
funcionalidade de metáforas.
Boa parte destas (se não a
totalidade), no caso dos exus, estão marcadas pelo signo da resistência
e da liberdade. Subvertem (literalmente) a "paz dos cemitérios"
e preservam, sob uma aparente adesão, o espaço de uma identidade
própria e irredutível, à qual dão vazão, e cujo culto é claramente
percebido como "defesa" e proteção.
Nesta medida, como o panteão
umbandista, tão humano, é profundamente solidário, a sua inclusão
(ainda que em lugar discreto, fora das vistas de curiosos e de intenções
duvidosas) confere à umbanda o seu componente libertário e o seu cunho
de prática de defesa popular contra o "mau-olhado" dos grupos
dominantes e de todos aqueles que inadvertidamente não se apercebam do
seu papel de "inocentes úteis" e se deixem levar pela conversa
dos senhores opressores (mesmo quando adotam estratégia muito comum no
nosso âmbito cultural e político, e se mostram "bons moços").
Para efeito da vigilância umbandista, pouco importa que estas maviosas
maneiras procedam de pessoas individuais, de lideres de seitas adversas,
de reivindicadores da pureza africana, de braços políticos de religiões
dominantes, de políticos paternalistas, de autoridades da saúde publica
e mental, ou mesmo de cientistas sociais e psicólogos.
Indubitavelmente em compromisso
com estratégias de disfarce perante o dominante, os exus associam-se às
trevas. Mas trevas em acepção não apenas ou exatamente metafísica:
também sociais e políticas.
Inerente ao seu sentido
religioso, os exus comportam a função de dar cidadania ao recalcado, de
simbolizá-lo miticamente, tanto do ponto de vista psicológico (Segatto,
1995), como social (e portanto também histórico e político).
O reino dos exus guarda o
escondido, o desconhecido pessoal, e também o indócil ao discurso do
outro e às tentativas de dominação.
Igualmente preserva e possibilita
a integração de aspectos sociais e psíquicos menos aceites,
simbolizados por estas entidades.
Lidar com a "esquerda"
é aprender a respeitar e elaborar os aspectos pessoais e coletivos menos
exibíveis e muitas vezes os mais verdadeiros.
Depoimentos
Ao serem entrevistados, os exus
reportam a sua condição "trevosa" ao fato de em vidas humanas
terem sido coagidos a tomar atitudes que contingentemente se justificavam,
mas genericamente criticáveis. Por exemplo, atentados à vida (mesmo em
autodefesa ou para preservar próximos). A sua trajetória, como todas as
narrativas na umbanda, tem um valor de exemplo, sem que o seu destino
implique por parte dos praticantes numa diminuição da admiração pela
sua coragem e conhecimento.
Uma vez que puderam agir com
liberdade, podem guardar os caminhos dos desvãos com conhecimento de
causa e, caso seja necessário, empregar o seu "know-how" mais
uma vez, posto que são corajosos para arrostar o infortúnio e
descomprometidos com as cantadas do dominante (mesmo que este dominante
seja ou esteja eticamente justificado).
O discernimento e a
inteligência, a par da força e do sentido de individualidade, são deles
emblemáticos. Um Meia-Noite resume a situação: declara estar no escuro
porque quer. Trata-se de uma escolha. Aquém de um juízo extrínseco, um
anestesiamento voluntário que diminui a dor pelo sofrimento causado, mas,
acima de tudo, é uma decisão que conjuga liberdade e autojulgamento.
Muitas vezes esta tomada de
posição é fundamentada na importância da sua ação para que encontrem
suporte epifanias e haja força para empreendimentos e energias menos
profundos ou mesmo muito elevados. O telúrico e visceral alimenta e opera
em harmonia com a luminosidade do mais sublime (na linguagem do culto, os
exus respaldam e dão suporte à ação da "direita").
Têm a justificada fama de serem
diretos ao falar, o que pode torná-los desagradáveis aos olhos dos que
buscam não ver as próprias trevas. Não poderiam proceder de outra
forma, quando é seu papel serem dispositores do sombrio e trevoso na vida
pessoal e social.
Os umbandistas admitem que um
excesso de contacto com estas dimensões pode levar ao desenvolvimento de
características de personalidade afins da índole de cada tipo de
entidade (por exemplo, no caso do Meia-Noite, introversão, melancolia,
soturnez, laconismo, isolamento e seriedade na acepção de ausência de
senso de humor).
É notável a sofisticação e o
grau de homogeneidade na construção dos seus tipos entre pessoas que os
"incorporam" e não se conhecem entre si. Isto comprova um
elevado grau de estruturação do imaginário umbandista, não obstante a
sua quase impenetrabilidade compreensiva, e é indício do seu provável
elevado valor como veiculador e preservador de memórias populares e
sociais mal tratadas.
Os exus da Meia-Noite, por
exemplo, apresentam uma fala ainda mais rouquenha do que o habitual nestas
entidades. É como se falassem "para dentro". Falam pouco,
baixo, por vezes sussurram. Alguns manifestam um evidente ceticismo quanto
às limitações da linguagem verbal e tentam comunicar-se provocando
situações evocadoras do frio, da solidão, do silencio e da seriedade da
morte. A par disso é notável a coincidência da sua apresentação
imaginal. Descrevem-se e são descritos na forma da tradicional
representação da morte: esqueletos com caveiras cobertas por um capuz
negro, que às vezes carregam um símbolo e instrumento do seu ofício, a
foice. Além disso, fazem-se situar em algum lugar noturno em que a Lua se
veja entre nuvens. Muitas vezes são persentidos pelos seus médiuns de
costas, ou sequer chegam a ser percebidos. Vários deles surgem em
panteões pessoais (enredos de santo) nos quais Obaluaiê e principalmente
Omulu ocupam posições de destaque, o que sugere que a elaboração
imaginal umbandista tende a codificá-los como vinculados a este orixá.
Não obstante remeterem a uma representação clássica da morte, importa
sublinhar o rigor e precisão com os quais a mesma se perpetua e reproduz
na umbanda, independentemente das influencias que tenham propiciado a sua
eclosão.
Praticamente todas as qualidades
negativas do humano podem dignificar-se e ser refletidas existencialmente,
personificando-se em metáforas deste segmento subterrâneo do panteão
umbandista: há os malandros Zés Pelintras, as Marias da Praia, Moças do
Cais, Mulheres das Esquinas, as Mulambos, os Capetinhas, os Girinhos, os
do Lodo, Cobras, Morcegos, e tantos outros humanos animais, alusivos a
aspectos menos simpáticos ou pouco valorizados pela sociedade e moral
dominante, mas existentes e vitais.
Nem todos os seus nomes são tão
transparentes. Os listados têm apenas um valor ilustrativo do seu cunho
de humana significância. De qualquer modo, cada uma das suas múltiplas
denominações, a par de testemunhar humanos "defeitos"
necessários, cada vez que se incorpora e "atende" alguém,
tanto manifesta o geral da linha, como dramatiza aspectos da situação a
ser cuidada.
Exemplifique-se uma outra destas
metáforas de vivencias (sem presumir que, a não ser metodologicamente, a
isso se reduzam) recorrendo a outra linha de depoentes, os Exus
Tranca-Ruas.
Se Meia-Noite aludia à morte,
este é alusivo a outra faceta metafórica de aludir às Trevas. É
literalmente "o Cão", no qual sua versão das Encruzilhadas
pode "epifanizar-se" (ou na opinião de outros, faz-se
acompanhar deste animal, como é próprio de alguém incumbido da guarda
dos caminhos). Pode igualmente "mostrar-se" associado a qualquer
outro animal noturno, de preferência de cor escura, para o qual os
caminhos não apresentem obstáculos. Num dos terreiros estudados, faz-se
assinalar especialmente pelo gato (preto ou pelo menos malhado). Mesmo
quando este exu não é explicitamente associado ao animal, a animalidade
é descrita como uma condição "moral" sob a qual os
"espíritos" podem julgar-se, ver-se e mostrar-se a si
próprios. A "rua" apresenta igualmente um valor de metáfora:
significa o que se põe "à margem" dos valores familiares, mas
dos quais estes também dependem para que possam subsistir com firmeza e
vitalidade (a sexualidade, por exemplo).
No panteão umbandista é
freqüente a sua aparição em paralelo com Ogum ou quaisquer outras
entidades que "carreguem" aspectos da força guerreira. Vários
Tranca-Ruas foram soldados. Outros reportam-se ao Egito do tempo dos
faraós (tradicional figura imaginal da oposição ao domínio
judaico-cristão). Alguns advogaram e lutaram por causas injustas.
As suas histórias imaginais
correspondem a este modelo: lidaram com armas. Podem ter sido generais
sanguinários, advogados de criminosos ou meros larápios. Caminhavam
pelas ruas... Alguns reportam-se aos caminhos dos mortos (Tranca-Ruas das
Almas). A morte também aqui é polissêmica...
Personagem falante e muito
tradicional na umbanda, a sua composição permite diferentes
combinatórias. Podem ser Tranca-Ruas das Encruzilhadas, das Sete
Encruzilhadas ("Sete Encruzilhadas" que, tomadas isoladamente,
definem um outro tipo e classe de exus ou caboclos), Tranca-Ruas das
Almas, Tranca-Tudo, Trancas de qualquer lugar em que se encontrem uma
pluralidade de caminhos... (ou seja, se façam escolhas, haja liberdade).
O que fazem e como sucedem
comumente é refletido e elaborado a partir da noção de
"tranca". Espiritual, psicológica, ou fisicamente, aludem a
bloqueios e impedimentos e tentam administrá-los. Guardam caminhos de
libertação e de insurreição contra a contenção (dos sentidos e de
sentidos).
Talvez por isso sejam tão
necessários e tradicionalmente populares, uma vez que a experiência do
trancado, do impedido, é típica não apenas da vivencia psicológica,
como também da realidade política que circunscreve a vida dos
brasileiros. Abrir e guardar caminhos é muito precioso. Há o maior
cuidado no trato ritual com esta linha, à qual é atribuído este papel
crucial.
Conclusão
A esquerda umbandista não guarda
o mal metafísico. Apenas o pessoal e socialmente "mal dito": a
sensualidade, a revolta, a crítica mordaz, as falas inconvenientes, a
falta de hipocrisia, o prazer sem mordaças...
O lugar da esquerda é, no
panteão umbandista, o de um guardião de um miolo precioso: a
irredutibilidade individual e a liberdade. Encarna um sentido social de
resistência e de vitalidade. Os exus não são maus, embora assim possam
ser (mal) vistos. São a resposta ao Mal como expropriação de si em prol
de um bem do outro. Vozes proféticas dos interesses materiais e pessoais,
estes mensageiros têm o valor de sinal psicológico de reconhecimento e
de admissão de si.
Sobre a sua médium, um
Meia-Noite, muito honestamente, enuncia que "ela deve ir a lugares
onde eu possa entrar" (ou seja, admitir-se a si mesma em todas as
suas nuances).
Este sentido do entrar,
psicológico, integrativo, preserva o morto (no sentido de recalcado)
vivo, social e psiquicamente.
Do ponto de vista social isso é
muito claro. Um exemplo notável é um "mito" carioca de
fundação da umbanda como religião brasileira. O Padre Maladriga,
vítima da Inquisição, seria "noutra vida" o mesmo Caboclo das
Sete Encruzilhadas fundador, no início do século passado, da umbanda
como religião brasileira acolhedora de todos os excluídos.
Na mesma toada, um Exu (Capa
Preta) relata (asseverando saber que isso seria importante para a
pesquisa) que em vida anterior foi um padre inquisidor, e daí advir o seu
atual estatuto "infernal". A inversão em relação à ordem
dominante é nítida e eloqüente.
Desta forma a umbanda e a sua
"esquerda" são uma excelente oportunidade para refletir formas
sociais de cognição e alternativas de resistência étnica e cultural.
Eminentemente performance, o culto conjuga saber popular, uma prática de
cura de feridas históricas e de mazelas da memória, e uma ética
crítica implícita às suas "magias".
A umbanda constitui-se em
ocasião ímpar para aprender com os setores populares a relativizar o
psicologismo e o individualismo. Ensina a revitalizar o "morto"
e a questionar a estaticidade da tradição. Consagra o humano, pondo no
seu panteão a totalidade das suas sutilezas, agradáveis ou nem tanto.
Prova-se testemunho de uma ética
singular e social, de vocação universal, a partir do presente cotidiano.
Uma ética que propugna um sentido de inclusão psicológica e social,
politicamente indócil a tentativas históricas e teóricas de
manipulação.
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Notas
(1) Auxílio à
Pesquisa FAPESP (Processo 00/02550-8). Este trabalho é profundamente
devedor do acolhimento e do apoio das comunidades umbandistas
colaboradoras da pesquisa. Apresento os meus agradecimentos às
autoridades religiosas que o possibilitaram, bem como a todos os
entrevistados.
Uma versão preliminar foi
apresentada no XI Encontro Nacional da Associação Brasileira de
Psicologia Social, no âmbito da Mesa Redonda intitulada "Caminhos da
Ética e da Etnicidade no Imaginário Brasileiro". (voltar)
Nota sobre o autor
Graduado em Filosofia (Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo) e em
Psicologia (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo). Doutor
em Filosofia (Universidade de Campinas). Professor de Psicologia Social
(Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da
Universidade de São Paulo) e pesquisador na mesma área
(FAPESP/FFCLRP-USP).
- Data de
recebimento: 09/01/2002
- Data de aceite:
11/03/2002
-
- Memorandum,
Abr/2002
- Belo Horizonte:
UFMG; Ribeirão Preto: USP.
- http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos02/bairrao01.htm