Pressupostos teóricos
A intenção que tivemos ao
associar identidade e História da Psicologia é permitir que em uma mesma
situação se explicitem vários elementos que clarificam a trama do
permanente movimento que caracteriza o processo de desenvolvimento tanto
da identidade quanto da história. Esta trama é estabelecida a partir das
relações (de oposição ou composição) de pessoas, grupos,
instituições, envolvendo tanto os elementos subjetivos quanto os
objetivos contextuados sócio-econômico-culturalmente. A subjetividade
refere-se às relações que se dão entre o substrato biológico e
psicológico dos indivíduos e que se revelam através da consciência e
atividade. As condições objetivas referem-se às estruturas sociais que
em diferentes tempos e lugares estabelecem "políticas de
identidade" que passam a se constituir nos fundamentos para os
relacionamentos que se dão.
A perspectiva aqui utilizada é a
de identidade como metamorfose, elaborada originalmente por Ciampa (1990)
em seu livro "A estória de Severino e a história de Severina".
Neste caso o significado de identidade é constituído pela relação de
processos de igualdade e de diferença. A memória da própria história
é a condição para apreensão deste elemento de igualdade da identidade,
que constitui o eixo da biografia pessoal. Identidade portanto,
referir-se-á sempre a uma totalidade em permanente transformação. Esta
totalidade é fruto de processos complexos que se dão individualmente no
nível biológico de cada um, na sua corporeidade, no nível
intraindividual através da consciência e atividade, e no nível
interindividual considerando as relações de indivíduos e grupos. A
complexidade destes processos envolve ainda a questão dos mesmos estarem
em interação, através de composições e oposições o que confere o
caráter de semelhança e diferença tanto em relação a si mesmo, como
na relação de cada um com os outros que guardam pequenas ou grandes
semelhanças ou diferenças entre si. Esta totalidade pode representar um
indivíduo, um grupo de pessoas, um conjunto de idéias. (Baptista, 1996,
1997)
Exemplificando esta questão: ao
nos referirmos à identidade individual, podemos considerar que cada um
dos psicólogos estudados terá características que permitem
identificá-lo como sempre idêntico a si mesmo (e consequentemente
diferente dos demais), e outras que mostram as diferenças que pode ir
adquirindo ao longo do tempo, as metamorfoses que vive e que neste caso
podem aproximá-lo ou afastá-lo de seus pares.
Com relação à identidade
coletiva entendemos que o processo é o mesmo: o conjunto de psicólogos
em um determinado tempo histórico, poderá apresentar características
que o marquem como idêntico a si mesmo e diferente dos outros conjuntos
de profissionais, mas ao longo do tempo aparecerão características que
os diferenciam entre si. Assim dentro do próprio conjunto dos psicólogos
vamos encontrando peculiaridades que os separam em sub-grupos.
Estamos considerando identidade
individual, a construção permanente do "ser"ao longo de
sua vida. Entendemos que esta construção se dá pela relação
dialética de todos os fatores envolvidos: biológicos, psíquicos e
sociais.
Ao estudar a identidade
individual dos psicólogos faremos mais um recorte, para nos referirmos à
identidade profissional "faceta da identidade pessoal,
composta pelo conjunto de papeis profissionais que a pessoa assume no
decorrer de sua vida ativa".
A compreensão teórica de como
se dá a constituição da identidade profissional nos é oferecida por
Habermas (1990) – que discute a questão da identidade do "eu"
- e por Berger & Luckmann (1983) que descrevem o processo de
socialização secundária.
Para estes autores a
socialização secundária tem sua origem na divisão social do trabalho.
Ela se inicia quando a pessoa entra em contato com outras realidades
exteriores à família: os denominados sub-mundos institucionais, que
necessitam ser interiorizados. Através deste contato que se dá de forma
menos emocional que na socialização primária, a pessoa introjeta outros
papeis sociais, entre os quais o papel profissional. A aprendizagem destes
papeis sociais envolve desde rituais até os componentes normativos,
cognitivos e os afetivos, ligados ao seu desempenho.
Na socialização secundária os
"outros significativos" se ampliam: podem ser outros
indivíduos, grupos, organizações, instituições. Para Habermas (1990)
uma instância extremamente importante neste momento é a "identidade
coletiva"- que dá sentido de continuidade para os indivíduos, por
adotarem papeis normas e valores válidos para todos os componentes do
grupo, o que reafirma constantemente a realidade objetiva e subjetiva. Uma
relação positiva entre condições subjetivas e objetivas permite o
sucesso de uma socialização secundária. Em casos onde os grupos de
outros significativos representam rupturas, inconsistências ou
diferenças profundas, pode haver impossibilidade de se efetivar a
socialização secundária.
Aprofundando a questão dos
papéis sociais, Heller (1992) nos diz que eles permitem a inserção
automática do homem na realidade, mas por outro lado podem cristalizar de
tal modo a vivência do sujeito que o impede de criar a sua própria
personagem, ou modificá-la na vivência do papel. Políticas de
identidade podem ser responsáveis pela manutenção de determinadas
configurações de identidades em certos períodos de tempos. No nível
individual sempre que a pessoa reproduz indiscriminadamente esta
identidade pressuposta pela política, poderá estar vivendo o que Ciampa
(1990) denomina "mesmice": cristalização de um processo de
igualdade, movimento de reposição de uma identidade já dada. Nesta
situação o autor especifica que se dá a constituição de uma
"identidade mito".
O fato da pessoa, durante a
socialização secundária vivenciar vários papeis, faz com que possa
estabelecer as semelhanças e diferenças que existem entre eles. Estas
diferentes percepções permitem ao indivíduo assumir os papeis com maior
autonomia em relação aos modelos oferecidos, assim como estabelecer
representações genéricas dos papeis e de si próprio. Este é o
processo de individualização, de metamorfose que leva à constituição
da chamada identidade do eu ou identidade
autônoma.
A mesmice ou a metamorfose são
possibilitadas, estimuladas ou impedidas tanto pelas condições objetivas
(estrutura social, grupos de referência, organizações, instituições)
quanto pelas subjetivas - representadas principalmente pela capacidade de
reflexão de cada uma das pessoas.
No caso dos psicólogos, podemos
dizer que os que desempenharam este papel no Brasil antes da
regulamentação, vivenciaram uma metamorfose. Eles se prepararam para um
exercício profissional - em geral o de educador ou filósofo - e
posteriormente passaram a desempenhar um outro papel, o de psicólogo.
Neste processo foram de crucial importância outros referenciais
existentes, além dos de formação tradicional. Poderíamos nos referir
aqui aos profissionais que já exerciam a profissão em outros países,
literatura nacional ou internacional e também aos profissionais que
buscavam soluções originais para problemas existentes em nossa
realidade. Muitos dos profissionais que vieram a trabalhar com a
psicologia tiveram a possibilidade de efetuar total ou parcialmente sua
formação no exterior.
Para Berger & Luckmann (1983)
estes profissionais em transformação passaram a vivenciar uma história
compartilhada entre si através da vivência de atividades semelhantes e
esta história é que se constituiu no gérmen da tipificação das
ações, gerando o estabelecimento de novos papeis sociais. Este processo
que se iniciou com atividades psicológicas sendo desenvolvidas, culminou
com a institucionalização da psicologia por ocasião da regulamentação
da profissão em 1962, que significou a legitimação das transformações
já havidas.
Por analogia à esta
caracterização de identidade individual dizemos que a identidade
coletiva também é uma construção histórica que se dá a
partir da relação dialética que ocorre em um determinado espaço
geográfico, entre indivíduos e ou grupos que organizam sua vida
cotidiana desenvolvendo atividades semelhantes, a partir de um conjunto de
valores compartilhados. Segundo Berger & Luckmann (1983) sempre que
uma construção histórica compartilhada tiver que ser transmitida para
novas gerações, será utilizado para tanto um dos seguintes mecanismos
de legitimação- a explicação, justificação e normatização da
realidade criada. Estes autores colocam que neste momento se instala um
controle social, institucionalizando esta construção e dando início
portanto, à formação da identidade institucional. No caso dos
psicólogos paulistas a criação dos núcleos de atuação, de estudos,
assim como das associações e sociedades, com suas respectivas
publicações, cumpre este papel.
Podemos dizer portanto que a Identidade
institucional é também uma construção histórica que se dá a
partir da relação dialética que ocorre em um determinado espaço
geográfico entre indivíduos e ou grupos que definem um conjunto de
idéias, valores, normas e leis que caracterizam um determinado tipo de
convívio social.
Retomando estes conceitos de
identidade - individual, profissional, coletiva, institucional - vemos que
todos estão se referindo a um processo histórico que tem passado,
presente e que remete a um futuro, na medida em que nossa perspectiva
pressupõe a metamorfose permanente. Também partilhamos da opinião de
que o planejamento do futuro só é possível quando o que ocorreu no
passado se torna explicitado. Consideramos o momento atual como muito
particular da Psicologia tanto em São Paulo, quanto no Brasil, pois
observa-se um acentuado interesse pelo conhecimento de sua história.
Sendo objetivo da História da
Psicologia investigar sua evolução (descrevendo, explicando,
analisando), fazê-lo através da perspectiva da identidade só virá
enriquecê-la, na medida em que se pretende nesta proposta englobar uma
ampla gama de elementos psicossociais.
O objetivo inicial deste trabalho
que associa identidade e história, portanto, é o de estudar a identidade
profissional dos psicólogos personagens importantes na constituição da
identidade da psicologia. Partimos das singularidades, e das relações
entre as mesmas, para posteriormente entender este processo mais amplo que
é a institucionalização da Psicologia.
Proposta metodológica
Para estudar a constituição
histórica da identidade do psicólogo, partimos de um enfoque dialético
que analisa inicialmente a história de vida de cada um dos profissionais
inserida no contexto social, trabalhando a relação dos aspectos
objetivos e subjetivos, passando a compor as tramas das relações entre
estes indivíduos para entender a identidade coletiva, e posteriormente
analisar a formação da identidade da psicologia, enquanto instituição.
Este tipo de estudo de identidade pressupõe que se leve em consideração
seu desenvolvimento - composto por movimentos, transformações,
conflitos, contradições, antagonismos, reposições, conexões,
interações, interdependências - tanto no nível individual quanto no
social.
Faz parte desta perspectiva
dialética a reconstituição do contexto social que tem por finalidade
clarificar as necessidades que dão substrato ao desenvolvimento da
psicologia. Esta reconstituição se dá a partir dos elementos da
história da realidade brasileira como um pano de fundo sobre o qual se
compõe desenvolvimento das idéias psicológicas. Basicamente este
processo é constituído por pesquisa documental. Todos os tipos de
documentos existentes sobre o tema são utilizados neste momento para
caracterizar o contexto.
A abordagem adotada para
reconstituir a vida de cada profissional é a do estudo de caso.
Utilizamos com esta finalidade entrevistas, depoimentos e análise de
documentos, que permitam reconstruir a vida educacional e profissional do
personagem. Têm sido utilizados como documentos: obras - escritas,
vídeos ou filme - sobre a história da psicologia, sobre as
instituições formadoras, sobre os próprios personagens; entrevistas já
publicadas e a produção científica de cada um deles.
Este trabalho com os casos
individuais possibilita o conhecimento da constituição da identidade
profissional de cada um e a reconstrução parcial da história das
instituições focadas, do desenvolvimento da psicologia enquanto
conhecimento e aplicação prática, do desenvolvimento dos tipos de
formação oferecida, dos subgrupos que se estabelecem, das relações de
complementaridade e de oposição que ocorrem entre eles e entre
indivíduos.
O trabalho com a identidade
institucional exige uma complementação deste trabalho individual. Em
geral é realizado considerando-se um determinado espaço geográfico, e
os grupos e sub-grupos são analisados como uma unidade coletiva. Para se
entender as relações que se dão entre eles é preciso analisar as
culturas grupais, as determinações e os motivos que impulsionaram a
constituição dos mesmos, os valores implícitos e explícitos adotados,
as comunicações e ligações que se estabelecem entre os diferentes
níveis e segmentos, inter e intragrupos, os níveis de organização
alcançados, as normas estabelecidas e os movimentos de todos estes
elementos ao longo do tempo. A produção destes grupos e sub-grupos é
extremamente significativo para nos permitir avaliar todos estes aspectos.
Para ilustrarmos este processo de
pesquisa mencionaremos o procedimento utilizado para estudar a
constituição histórica da identidade dos psicólogos na cidade de São
Paulo antes de 1962.
Inicialmente selecionamos alguns
personagens considerados precursores a partir de três critérios. Eles
deveriam: 1) ser considerados publicamente precursores da atividade
profissional. Para tanto foram consultadas publicações e trabalhos
acadêmicos sobre a História da Psicologia no Brasil; 2) ter pertencido
enquanto aluno ou professor à uma das três instituições formadoras
existentes no período: Universidade de São Paulo, Faculdade São Bento e
Faculdade Sedes Sapientiae e 3) se possível, trabalhar nas áreas
que posteriormente vieram a ser denominadas: clínica,
industrial/organizacional, educacional.
Trabalhamos com doze estudos de
caso. Quatro dos personagens são falecidos: Noemy da Silveira Rudolfer,
Anita Cabral , Madre Cristina, Oswaldo de Barros Santos. Os oito restantes
são: Arrigo Leonardo Angelini, Mathilde Neder, Carolina Bori, Consuelo
Carvalho, Silvia Lane, Maria do Carmo Guedes, Odette Pinheiro, Glauco
Bardella. Todos os vivos foram entrevistados. Toda a bibliografia
produzida por eles ou sobre eles foi lida e discutida. No caso dos já
falecidos, com exceção de Noemy Rudolfer, todos tinham dado depoimentos
ao longo de suas vidas, que foram tornados públicos. Depoimentos de
contemporâneos vivos e mesmos de uns sobre os outros (tornados públicos)
foram considerados.
Paralelamente a estes estudos de
caso desenvolvemos uma busca de informações e depoimentos sobre as três
instituições formadoras acima mencionadas e também sobre a Escola
Normal da Praça, que impulsionou o desenvolvimento da Psicologia ao
privilegiar a existência de conteúdos psicológicos no currículo do
curso e manter desde o início do século um laboratório de Psicologia.
Estes profissionais estudados também trabalharam na época em oito
Núcleos de Psicologia Aplicada: Liceu de Artes e Ofícios, Estrada de
Ferro Sorocabana, Escola Técnica Getúlio Vargas, SENAI, CMTC, Setor de
Psicotécnica da FEA na USP, Serviço de Higiene Escolar. Também criaram
ou participaram de três associações: Sociedade de Psicologia de São
Paulo, Associação Brasileira de Psicólogos, Associação Brasileira de
Psicotécnica. O desenvolvimento destes núcleos e associações também
foram estudados, da mesma forma que as instituições formadoras. Neste
caso houve a possibilidade de complementar as histórias oficialmente
existentes até então, com os depoimentos colhidos.
O estudo do contexto se deu a
partir de estudos sobre a História do Brasil no período assim como do
desenvolvimento da História da Psicologia no mundo.
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Nota sobre a autora
Marisa Todescan Dias da Silva
Baptista é Doutora em Psicologia Social pela PUC/SP, Professora do
Mestrado em Psicologia da Universidade São Marcos. Contatos: Rua Ática
186 – São Paulo / SP - CEP: 04634-040 – Brasil - marisa@stbnet.com.br
- Fone:(55) (11) 5031 7673 / 5032 0045.
- Data de
recebimento: 08/10/2001
- Data de aceite:
01/04/2002
-
- Memorandum,
Abr/2002
- Belo Horizonte:
UFMG; Ribeirão Preto: USP.
- http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos02/baptista01.htm