Waeny, M. F. C. (2002) História, Memória e Abordagens Históricas: Situando um Problema. Memorandum, 2, 13-20. Retirado em   /  /  , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/ ~memorandum/artigos02/waeny01.htm.

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História, Memória e Abordagens Históricas: 
Situando um Problema
 
History, Memory and Historical Approaches: Posing a Problem
 
Maria Fernanda Costa Waeny
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Brasil
 

Resumo

O artigo aborda a emergência da história, da memória e das abordagens históricas na Alemanha do século XIX - cujo predomínio, no século XX, será da França. Das abordagens históricas francesas será considerada a psicologia histórica de Ignace Meyerson, no que diz respeito à história e à memória. Mas se história, memória e abordagens históricas emergem na virada do século, elas, no entanto, ganham relevo a partir da segunda metade do século XX, e se inserem em um panorama cuja produção apresenta novos temas e títulos, novas perspectivas teóricas e instituições científicas.

Palavras-chave: história das ciências humanas; psicologia histórica; Ignace Meyerson; história das idéias.

Abstract

The article approaches the emergence of history, memory and historical approaches in nineteenth-century Germany. In the twentieth-century, the most prominent studies about these subjects were done in France. Among the French historical approaches, Ignace Meyerson's historical psychology will be considered, specially in what concerns history and memory. History, memory and historical approaches emerge at the turn of the century, but they start to become prominent only at the second half of the century XX, and are inserted in a new context whose production contains new themes and titles, new theoretical perspectives and scientific institutions.

Keywords: history of the humanities; historical psychology; Ignace Meyerson; history of the ideas.

 

A percepção (1) de que o decorrer do tempo provoca transformações remonta aos séculos XVIII e XIX, quando inaugura-se a noção de que o homem é dotado de uma historicidade. Uma das conseqüências diretas foi a análise das sociedades, das ciências, das artes, das doutrinas e religiões – conjunto que se denomina civilização – como historicamente constituídas.

Se neste panorama a história e a memória aparecem como termos já mais ou menos estabelecidos, ou de certa forma delimitados falta definir, ainda que de modo geral, o que entende-se por abordagens históricas: são as concepções que consideram as produções e os respectivos contextos materiais e sociais humanos (ciências, artes, religiões, sistemas de idéias e também crítica e história destas mesmas produções) como expressão concreta de indivíduos situados histórica e socialmente.

Das abordagens históricas optou-se pela proposta em psicologia histórica de Ignace Meyerson (Varsóvia,1888-Paris,1983), para quem

As civilizações, as instituições, as obras têm um lugar e uma data. A análise dos comportamentos através dos fatos históricos modifica a perspectiva do psicólogo. Ele nada faz com o homem abstrato, e sim com o homem de um país e de uma época, engajado em seu contexto social e material, visto através de outros homens igualmente de um país e de uma época (1948, p.11).

Portanto, adotar como marco histórico comum para a emergência da história, da memória e das abordagens históricas modernas a Alemanha e a França dos séculos XIX-XX, tratado a seguir, segue pelo menos um dos preceitos metodológicos da proposta meyersoniana.

Alguns aspectos históricos

No ano de nascimento de Bismarck (1815) Napoleão é derrotado em Waterloo, termina o Primeiro Império francês e o Congresso de Viena organiza a Confederação Germânica – que engloba o Império Austríaco, o Reino da Prússia, principados e cidades livres. Em meados do século (1848) os levantes da França que culminam na Segunda República ecoam na Alemanha, onde ganha o programa moderado: uma união federal regida pela monarquia liberal e uma constituição elaborada a partir da assembléia nacional. A unificação alemã (1871), efetivada por Bismarck e coroando Guilherme I, coincide com o estabelecimento da Terceira República francesa e o fim da Guerra franco-prussiana, quando a Alsácia-Lorena é entregue aos alemães vitoriosos (Kent, 1982, pp.5-26; Volkmann, 1999, pp.41-46).

Em 1870 o Concílio do Vaticano definiu o dogma da infalibilidade papal, e isto atualiza sua intervenção nos assuntos de Estado. As reações anticlericais alemã – Kulturkampf - e francesa - Ralliement - incluem suspensão de subsídios governamentais; substituição da supervisão eclesiástica pela supervisão estatal em escolas e hospitais; expulsão dos jesuítas e fechamento de suas escolas; taxação sobre as propriedades de congregações religiosas e limitação dos poderes disciplinares da Igreja, por exemplo. Se na Alemanha as relações diplomáticas com o Vaticano foram restabelecidas e algumas leis anti-católicas revogadas, na França ocorre a lei da separação da Igreja e do Estado (Corrigan, 1946, pp.215-236; Kent, 1982, pp.90-94).

Na primeira metade do século a Alemanha se caracteriza pela liberdade de ensino e pela liberdade do pesquisador e do estudante - o chamado modelo universitário alemão concebido por Humboldt; multiplicam-se os seminários de novas disciplinas; laboratórios e clínicas visam à formação de professores e especialistas. A França, por outro lado, privilegia a divisão de trabalho e a estrita especialização dentro de um programa universitário uniforme e de acordo com o novo Estado; a pesquisa concentra-se nos grandes estabelecimentos e as localidades menores servem apenas aos exames de bacharelado. Depois a França segue o modelo alemão e desenvolve a pesquisa, ao passo que na Alemanha a técnica está a serviço do desenvolvimento econômico e social (Charle & Verger, 1995, p.71-79; 97-110).

A história como disciplina autônoma e detentora de cientificidade emerge no decorrer do século XIX, sendo justamente na historiografia alemã que ela se constituiu como relato erudito fundado na verossimilhança, na verdade (Châtelet, 1994, p.119). Datam do final do século XIX manuais e livros de história - franceses e alemães - que, abundando em notas de rodapé explicativas ou remetendo aos documentos originais, expressam a veracidade e a objetividade do fato, a história positivista (Carbonell, 1987, p.131-137).

A psicologia emerge como saber legítimo, como ciência, também na Alemanha da segunda metade do século XIX - seja com Fechner, nos Elementos de psicofísica (1860/1966), ou Wundt, em Contribuições para a teoria da percepção sensorial (1858-1862) (citado em Garcez, 1979, p.4).

A memória, considerada inacessível à pesquisa para Wundt, teve o primeiro estudo experimental realizado por Ebbinghaus, também na Alemanha deste período. Datam ainda desta época livros sobre o tema, como Os distúrbios da memória (Ribot, 1881/1886) e Matéria e memória (Bergson, 1896/1949), por exemplo.

A abordagem histórica em psicologia aparece mais ou menos na mesma época, na Alemanha, com a Psicologia dos povos, de Wundt (1918) e é também anunciada na França, em O futuro da filosofia (Berr, 1899). Segundo Henri Berr

O espírito é o produto da história e a história é a concreção do pensamento. Psicologia da humanidade, psicologia dos povos, psicologia biográfica: ensaios diversos se multiplicam. E todas estas concepções aspiram a se fundir, absorvendo a erudição. Há uma psicologia histórica que se elabora, sem ter encontrado sua forma definitiva (citado em Mandrou, 1961, p.423).

Se na Alemanha do século XIX história e psicologia tornam-se campos de saber e se abordagem histórica e memória tornam-se temas, o século XX testemunhará a migração da história e da abordagem histórica para a França: de factual, uma se tornará história-problema - com os Annales; e a outra, de psicologia dos povos, será psicologia histórica e história das mentalidades.

Portanto, é na versão francesa da história e numa psicologia já instituída que Ignace Meyerson sistematizará a psicologia histórica. E, nela, história e memória serão problematizadas.

A história e a memória na psicologia histórica de Ignace Meyerson

A biografia do autor divide-se em dois momentos. No primeiro, ele concluiu cursos de Filosofia e de Medicina, trabalhou na Salpêtrière durante 4 anos, foi co-diretor do Laboratório de psicofisiologia (1920-1923), fez a primeira tradução francesa da Interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud (1926), co-assinou pesquisas experimentais com macacos (1929-1937) e iniciou a carreira no Journal de Psychologie Normale et Pathologique (1920-1983), entre outras atividades. Após a defesa da tese, Les fonctions psychologiques et les œuvres (1947, publicado em 1948), começa a fase mais produtiva: iniciou os cursos de psicologia comparativa na École Pratique des Hautes Études/École des Hautes Études en Sciences Sociales – EPHE/EHESS - (1951-1983), fundou o Centre de Recherches de Psychologie Comparative – CRPC - (1953), organizou ciclos temáticos de conferências (1954-1981) e promoveu os colóquios interdisciplinares Problèmes de la couleur (1954, publicado em 1957), Problèmes de la personne (1960, publicado em 1973) e Le signe et les systèmes de signes (1962, não publicado). Datam desta fase as considerações sobre história e memória.

Ignace Meyerson define claramente as bases da psicologia histórica em uma exposição ao CRPC, em 1957

Nós temos uma posição de doutrina e de método que orienta nosso trabalho. Ela pode se resumir assim: o homem, o homem psicológico, tem uma história estreitamente ligada à história das obras que construiu, aos fatos de civilização. O homem se edifica edificando. Daí nosso método: ver o homem através de todos os tipos de obras – línguas, religiões, formas sociais, economias, ciências e técnicas, artes. Esta pesquisa nos conduz a constatar pluralidades e transformações históricas: às diversidades da história dos fatos de civilização correspondem diversidades psicológicas.

É a partir deste princípio, e visando uma história das funções psicológicas, que se enquadra o tema da história e da memória. É também nesta perspectiva que os termos são recorrentes na correspondência, em artigos, nos cursos à EPHE/EHESS, colóquios e conferências do CRPC:

Escreve ele a Piaget "minha última história, é a memória e a história. Os estados da descoberta do passado pessoal pelo homem" (citado em Fernandez-Zoila, 1989, p.180).

No artigo Le temps, la mémoire, l’histoire, considera ele que

a significação da consciência histórica do passado ... apresenta uma dupla e difícil invenção humana: a invenção da memória humana enquanto função do passado individual do homem; a invenção do pensamento histórico enquanto função do passado comum dos grupos humanos. A memória é outra coisa que o hábito; ela é do nível humano ... desenvolvida, aperfeiçoada em certos momentos da história do homem (1987, p.265).

Algumas ementas aos cursos à EPHE/EHESS relacionam tópicos sobre o assunto: "o tempo na historiografia: na Antigüidade, no Novo Testamento, em Santo Agostinho e nos historiadores dos séculos XVII ao XX" (biênio 1957/1958); "as disciplinas históricas: a memória, o tempo" (biênio 1958/1959); ou ainda "significação psicológica do pensamento histórico: ela representa uma mutação mental, uma invenção nos domínios da memória e do tempo. Aparição das diversas histórias - a história das funções psicológicas se enquadra nesta série" (biênio 1969/1970), por exemplo (2).

Ignace Meyerson encerra o colóquio Problèmes de la couleur dizendo "fisiologia, física e técnicas, línguas, poesia, pintura, séries históricas em todos os grandes domínios: o homem diversamente fabricou sua civilização da cor" (1957a, p.362). No colóquio Problèmes de la personne J. Cohen, da Universidade de Manchester, apresenta o trabalho L’homme, le temps, et l’hasard (1973); e Ignace Meyerson fecha o evento com La personne et son histoire (1973, p.473-482).

Algumas conferências ao CRPC (3) contemplam o tema: Les séries historiques dans l’étude du travail (Ignace Meyerson, em 1955); Le temps dans certaines formes du droit archaïque (Louis Gernet, em 1956); Aspects mythiques de la mémoire em Grèce (Jean-Pierre Vernant, em 1957); Ecrit et histoire en Chine ancienne (Louis Gernet, em 1958); Introduction aux réunions sur les concepts d’histoire (Ignace Meyerson, em 1963); ou L’évolution des concepts de l’histoire sociale à l’époque contemporaine (A. Soboul, em 1963), por exemplo.

Em Existe-t-il une nature humaine?, edição do curso oferecido em 1975/1976 à EPHE/EHESS, no capítulo Análise histórica de uma função: a memória, conclui ele

a memória não foi anteriormente nada daquilo que ela é para nós: função do passado, conhecimento do passado, organização temporal de um passado individual, organização do passado comum de um número mais ou menos grande de homens, função ligada à inteligência e ao conhecimento, ligada também à pessoa. Ela apareceu em nossa exploração histórica como passiva, como presentificação do passado, como uma pesquisa, como um tipo de prática adivinhatória destinada a revelar os segredos do universo. (...) Estas constatações nos fazem concluir que não apenas as idéias sobre a memória eram outrora diferentes das nossas, mas que a própria função da memória era talvez outra (2000, p.427-428).

Meyerson avalia ainda a variação da memória na história

O advento do pensamento científico, nos séculos XVI e XVII, produzirá mudanças de assunto e de perspectiva. Desta vez o papel da memória será mais afetado do que antes. O raciocínio científico, de base matemática, prestará atenção aos processos do pensamento, e o papel da memória diminuirá (2000, p.403).

O rigor metodológico de Ignace Meyerson é duplamente primoroso: a história das funções psicológicas se insere no quadro mais amplo da aparição das diversas histórias, e o aspecto temporal do humano, ao longo do tempo, veio moldando tanto a história quanto a memória. Portanto, a história, a memória e as abordagens históricas, ao mesmo tempo em que exigiram um longo percurso, são também construções recentes: elas datam, tal como se concebe atualmente, de meados do século XIX, aproximadamente.

Algumas considerações finais

A psicologia histórica de Ignace Meyerson considera história, memória e abordagens históricas na perspectiva de uma história da variabilidade das funções psicológicas. Nesse sentido, é um pensamento característico da passagem do século. Por outro lado, participa de uma novidade que se difunde após a II Guerra Mundial, quando aparecem temas até então menores (cotidiano, mulheres, morte, loucura) ao mesmo tempo em que proliferam correntes teóricas (história oral, estudos culturais, etnometodologia, antropologia histórica), instituições (Institute for psychohistory, International association for cross-cultural psychology, Société française pour l’histoire des sciences de l’homme) e periódicos (Culture and psychology, Revue de psychologie des peuples). O assunto é pressentido por Augras (1985) no acertado título, A psicologia da cultura, que aborda uma mudança na perspectiva disciplinar, mas não avalia o panorama histórico mais amplo destas inovações temáticas e teórico-metodológicas do pós-guerra.

História, memória e abordagens históricas são obras humanas já faz algum tempo. Porém, cabe ainda perguntar sobre as variações mais recentes destas mesmas obras: quais aspectos psicológicos estão contidos nesta fase histórica cujo denominador comum, entre a profusão de abordagens, é partir do homem concreto que vive, fala, significa e rememora?

Referências Bibliográficas

Augras, M. (1985). A psicologia da cultura. Psicologia: teoria e pesquisa, 1 (2), 99-109.

Bergson, H. (1949). Matière et mémoire: essai sur la relaction du corps à l’esprit. Paris: PUF. (Original publicado em 1860)

Carbonell, C. O. (1987). Historiografia. Lisboa: Ed. Teorema.

Châtelet, F. (1994). Uma história da razão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

Charle, C. & Verger, J. (1995). História das universidades. São Paulo: Unesp.

Cohen, J. (1973). L’homme, le temps et l’hasard. Em I. Meyerson (Org.). Problèmes de la personne. (pp. 373-382). Paris: Mouton & CO.

Corrigan, R. (1946). A Igreja e o século XIX. São Paulo: Agir Editora.

Fechner, T. W. (1966). Elements of psychophysics. New York: Holt, Rinehart and Winston.

Fernandez-Zoila, A. (1989). Psychologie historique et psychopathologie. L’évolution psychiatrique, 54 (1), 167-182.

Garcez, M. D. N. (1979). Whilhelm Wundt. Perfil de um pioneiro. São Paulo: Separata do Conselho Regional de Psicologia, 6a Região.

Kent, G. O. (1982). Bismarck e seu tempo. Brasília: Ed. UnB

Leroy, Y. (1983). Éléments pour une biographie d’Ignace Meyerson. Le Centre de Recherches de Psychologie Comparative: trente ans de Psychologie Historique. Journal de Psychologie Normale et Pathologoque, 1/2, 93-101.

Mandrou, R. (1961). Introduction à la France moderne. Essai de psychologie historique. Paris: Albin Michel.

Meyerson, I. (1948). Les fonctions psychologiques et les œuvres. Paris: Vrin.

Meyerson, I. (1957). Le travail du Centre. (Séance du 5 novembre 1957). São Paulo: acervo da autora.

Meyerson, I. (1957a). Problèmes de la couleur. Paris: S.E.V.P.E.N.

Meyerson, I. (1973). Problèmes de la personne. Paris: Mouton & CO.

Meyerson, I. (1987). Écrits 1920-1984. Pour une psychologie historique. Paris: PUF.

Meyerson, I. (2000). Existe-t-il une nature humaine?. Paris: Sanofi-Synthélabo.

Poulat, E. (1996). Le centre de psychologie comparative et ses coloques. Em I. Meyerson (Org.). Pour une psychologie historique. Écrits en hommage a Ignace Meyerson. (pp. 95-118). Paris: PUF.

Ribot, T. (1886). Les maladies de la mémoire. Paris: Alcan.

Volkmann, J. C. (1999). Petite chronologie de l’histoire de France. S.L.: Éditions Gisserot.

Wundt, W. (1918). Völkerpsychologie. Leipzig: Kröner.

Notas

(1) Texto inicialmente apresentado em mesa-redonda à XI Encontro Nacional da Associação Brasileira de Psicologia Social (Florianópolis, novembro/2001). (voltar)

(2) Conforme relacionado em Leroy (1986, p. 93-101). (voltar)

(3) Conforme Poulat (1996, p. 108-115). (voltar)

Nota sobre a autora

Maria Fernanda Costa Waeny é doutoranda pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP, Brasil.

 

Data de recebimento: 09/01/2002
Data de aceite: 11/03/2002
 
Memorandum, Abr/2002
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. 
http://www.fafich. ufmg.br/~memorandum/artigos02/waeny01.htm

 

 

 

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