Bairrão, J. F. M. H. (2003). Mestres Bantos da Alta Mogiana: tradição e memória da umbanda em Ribeirão Preto. Memorandum, 4, 05-32. Retirado em   /  /  , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos04/bairrao02.htm

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Mestres Bantos da Alta Mogiana: tradição e memória da umbanda em Ribeirão Preto

 Bantus masters from Alta Mogiana: Umbanda’ s tradition and memory at Ribeirão Preto

 José Francisco Miguel Henriques Bairrão
Fábio Ricardo Leme
Universidade de São Paulo
Brasil

 

Resumo

Este artigo visa dar voz aos praticantes da umbanda. O seu principal objetivo é salvaguardar a memória da comunidade negra na região de Ribeirão Preto, através do registro documental de aspectos da sua tradição, vivências sociais e cultura religiosa. Mais do que fatos, documenta-se o imaginário umbandista, revelador do modo de ser profundo destes remanescentes. Mães de Santo foram as principais colaboradoras, mas houve a participação de toda a comunidade. Recorreu-se a: gravações em áudio e vídeo de festas e rituais, narrativas sobre as memórias e histórias dos colaboradores e suas explicações, fotografias, anotações em caderno de campo, observação participante e entrevistas livres. Os resultados apontam para a necessidade de prestar mais atenção às raízes bantos da cultura brasileira e recomendam que se promovam aproximações entre a “cultura psicológica popular” e a psicologia acadêmica.

Palavras-chave: memória social; psicologia e religião; bantos; umbanda; psicologia social.

Abstract

This article aims at giving voice to the practitioners of umbanda. Its main objective is to safeguard the memory of the black community in the region of Ribeirão Preto, through the documentary register of its traditions, social experiences and religious culture. More than facts, one registers the umbandist imaginary, which reveals the deep way of being of these remainders. ?Mothers of Saint? were the main collaborators, although the whole community participated. We used: audio and video recordings of rituals, religious works and narratives on the memories and histories of the collaborators and its explanations, pictures, notations in field notebook,  researcher's participant observation and free interviews. The results point to the necessity of giving more attention to the Bantus roots of the Brazilian culture and recommend approaches between the "popular psychological culture" and academic psychology.

Keywords: social memory; psychology and religion; Bantus; umbanda; social psychology.

 

Introdução

Neste artigo visa-se documentar uma memória local da umbanda e, em paralelo, discutir as prováveis raízes bantos desta religião brasileira.

Presta-se atenção às práticas umbandistas e aos seus sentidos, no intuito de dar voz aos praticantes da umbanda, invertendo a posição incômoda na qual muitas vezes são colocados. Habitualmente a umbanda é tida como um subproduto ideológico, desautorizada a se pronunciar sobre si própria, sendo o testemunho de seus praticantes desconsiderado enquanto portador de verdade. Supostamente padeceriam de uma experiência cujo sentido lhes escapa, havendo que procurá-lo noutros lugares (Bairrão, 1999).

Na contramão desta tendência e levando em conta a necessidade de desenvolver pesquisas que reconheçam autenticamente a voz de pretensos “objetos” de estudo, deixando que ela os revele e mostre à sua maneira, buscou-se salvaguardar a memória e preservar o patrimônio cultural de parcela importante da comunidade negra que viveu e vive na região de Ribeirão Preto, através do registro documental das suas tradições, vivências comunitárias e cultura religiosa.

Segundo Casal (1997), a memória guarda os momentos mais significativos e coerentes das vidas humanas. Por seu intermédio, os nossos colaboradores revelam a si próprios e aos outros. Na voz que ecoa na história e na memória, singular e coletivo emergem. A experiência de cada um move-se através das lembranças e vidas dos outros, ganhando alcance comunitário e expressando situações comuns ao grupo. A periodização que cada colaborador faz de sua existência está indissoluvelmente ligada à leitura que faz do presente e ao contexto a partir do qual é solicitado a falar (Meihy, 2001), sendo fundamental para o modo de ser e de se organizar da sua comunidade, tanto no tempo atual, como relativamente às suas expectativas quanto ao futuro (Bosi, 1992).

Mais do que fatos cronológicos, aqui se documentam memórias que são estórias: o fabuloso imaginário umbandista, revelador do modo de ser profundo, psíquico e cultural, das comunidades pesquisadas. A sua compreensão contribui para o desvelamento do seu universo simbólico, tal como se concretiza em Ribeirão Preto, ajudando a diminuir o preconceito sofrido por estas comunidades (que se agrava ao assumirem a sua identidade religiosa) e auxiliando a aumentar o conhecimento sobre a sociedade e a cultura da região.

A umbanda, a par de imediatamente se compreender como uma prática religiosa que estrutura vínculos entre a vida terrena e o “mundo espiritual”, também organiza e reflete relações sociais e as condições de existência de seus praticantes, tornando-se extremamente importante nas suas vidas e sendo um fator de preservação cultural e social destas comunidades. Compõe um vasto universo simbólico e ritual profundamente enraizado em seus integrantes, na forma de uma síntese original de elementos culturais de diferentes proveniências. Nas casas pesquisadas, Tenda de Umbanda Ogum Guerreiro e Pai Joaquim do Congo e Tenda Espírita de Umbanda Pai Benedito, este sincretismo está marcado por envolver principalmente elementos africanos, ameríndios e europeus – tanto provenientes do espiritismo, como advindos do catolicismo popular, ou mais precisamente do que, seguindo uma sugestão de Moisés Espírito Santo (1990), talvez conviesse denominar religião popular portuguesa, por não ser uma versão depauperada da doutrina católica cultivada pelas elites, mas um sistema distinto, que em muitos pontos se lhe opõe.

Ortiz (1978) afirma ser esta uma religião genuinamente brasileira, nascida do sincretismo, principalmente, entre religiões africanas, ameríndias e européias. Há aliás um bem estabelecido consenso entre especialistas quanto ao cunho brasileiro da umbanda (Concone, 1987; Negrão, 1996; Magnani, 1986; Birman, 1983). Não obstante, na sua brasilidade, indubitavelmente, marcas africanas respiram melhor do que noutros momentos da cultura nacional. Tramonte (2001) sublinha a concomitância entre o aparecimento dos primeiros terreiros umbandistas e a fundação de escolas de samba, tanto no Rio de Janeiro como em Florianópolis.

Ligiero e Dandara (1998), numa obra de divulgação atenta à discussão internacional sobre a diáspora africana e à especificidade cultural banto, sustentam que as presumíveis raízes bantos da umbanda seriam mais relevantes do que se tenderia a supor. Encontram esta presença subjacente inclusive a elementos de outra origem aparente, como o uso de cruzes (e crucifixos). Estes não precisariam referir-se à antiga presença luso-católica no Congo e, pelo contrário, em parte explicariam a sua aceitação (de fato, não obstante o sincretismo, é praticamente impossível, mesmo no universo umbandista, encontrar uma associação da cruz à crucificação: quando é o caso de aludir à “Luz Divina” por meio da sua figuração antropomórfica como Jesus Cristo/Oxalá, em vez de moribundo, em geral este se apresenta com as pernas e braços soltos, cheio de vida). Os mesmos autores sublinham que cruzes integram universalmente e em posição de destaque um tipo de código característico das manifestações de religiosidade de origem banto, o qual, no caso da umbanda, é denominado de “pontos riscados”. Este e outros aspectos teriam escapado a especialistas europeus como Turner (1967) e só recentemente, com o surgimento de uma etnologia africana autóctone, estariam vindo à luz.

Igualmente a amplitude e riqueza da tradição banto nas Américas começa a ser mais sistematicamente estudada recentemente, a partir dos anos setenta (MacGaffey, 2000). No Brasil é também a partir dessa década que a nagocracia que imperou nos estudos afro-brasileiros passou a ser contrabalançada por pesquisas mais atentas a formas supostamente menos “puras” de cultura africana no país, algumas das quais marcam época e se tornam novos clássicos (por exemplo, Goldman, 1984; Santos, 1995). Mesmo assim o conhecimento a seu respeito permanece desproporcionalmente menor, relativamente ao que já se sabe sobre a contribuição africana de outras procedências.

Na literatura especializada mais antiga, as referências aos bantos, quando não são pouco lisonjeiras, subestimam-nos. Tendeu-se a conceber uma espécie de hierarquia racial entre africanos, colocando o banto no fim da escala. Querino (1938) refere-se aos negros angolas como fazendo o tipo do capadócio e supõe os integrantes da etnia nagô como, entre os negros, mais inteligentes. O pioneiro Nina Rodrigues (1932) sobre-valorizou a influência e presença sudanesas, contrariando evidências e autores que já na sua época sustentavam o contrário. Arthur Ramos (1934) concentra a sua argumentação no âmbito da cultura, eximindo-se de formular juízos raciais. Na prática, desloca o âmbito da depreciação para uma esfera mais “espiritual”: comparativamente aos sudaneses, os negros bantos padeceriam de uma pobreza mítica, que teria levado à absorção da sua religião. Não nega a persistência de traços bantos, mas os supõe “deturpados” e “transformados” nos candomblés e macumbas de várias partes do Brasil. Mais recentemente, a propósito do que intitula de macumba paulista, outro clássico reitera que os bantos seriam desprovidos de “mitologia desenvolvida” e adenda que não teriam uma “organização eclesiástica suficientemente orgânica” (Bastide, 1973, p. 239).

Aparentemente não ocorreu aos pioneiros no estudo da presença negra no país que estabeleceram estas descrições valorativas que aquilo que aos seus olhos possa sugerir pobreza intelectiva, confusão mental, mesmo degenerescência cultural, propensão para a imitação e fingimento, em verdade possa expressar um modo de ser e de construir apreensões cognitivas da realidade cujo único “pecado” seja o fato de radicalmente se diferenciarem de maneiras de estar no mundo profundamente distintas do que possa soar familiar ao modelo europeu. Pensaram comparativa e subtrativamente a alteridade.

O reparo não é uma acusação, até porque esta dificuldade, essa tradição a tem em boa parte devido às dificuldades levantadas pelo pouco conhecimento da cultura e especificamente da religiosidade banto na própria África, situação que aos poucos se vem modificando.

Consideramos de bom alvitre, para conhecer e investigar processos sócio-culturais brasileiros, estender até ao presente a recomendação de um historiador como Alencastro (2000), para não isolar o estudo do que se passava na margem ocidental do Atlântico Sul (Brasil), do que ocorria na margem oriental (Congo, Angola...). A propósito da arte Kongo, MacGaffey (2000) proporciona-nos uma análise dos Inquices (Minkisi) elucidativa do universo espiritual banto:

Com certas exceções, a arte dos Kongo não é figurativa; para os seus criadores e utilizadores, o significado depende não apenas do contexto ritual de utilização, mas também das suposições cosmológicas, das teorias explicativas da sorte e da desgraça e, sobretudo, da língua Kicongo. Nestas obras, a relação entre a palavra e a imagem é muito mais íntima do que, por exemplo, entre um retrato e o seu título e legenda. Cada elemento de uma complexa figura Nkisi destina-se a evocar uma ou mais associações lingüísticas, incluindo metáforas e trocadilhos que, em conjunto, podem ser “lidos” como um texto descrevendo os seus poderes e objetivos particulares. No decorrer da composição do Nkisi, o nganga cantava o nome de cada elemento e o seu significado. Infelizmente, essas vozes agora calaram-se e nunca mais vai ser possível elaborar um dicionário de significados, porque grande parte da magia dos Minkisi residia nas subtilezas da variação criativa. Grande parte do vocabulário padrão é conhecido, mas no fim de contas, o que conta, e o que certamente tinha imensa importância para os seus criadores, era o impacto visual. (Idem, p. 38).

Este autor reitera que cada divindade, Nkisi, se materializa em elaboradas composições plásticas, que desde sempre provocaram um misto de fascínio e de terror, levando à sistemática destruição dos Minkisi pelos missionários ou funcionários coloniais que os coletaram, ou à diminuição do seu impacto por meio de mutilações. Os que mais tiveram chance de sobreviver foram os de feição antropomórfica, embora do ponto de vista nativo não fossem mais importantes do que outros, feitos de cabaças, de panos, ou de potes de barro.

A dicotomia entre espiritual e material, tão cara ao modo de pensar europeu e igualmente presente na mitologia iorubá, passa ao largo da mentalidade banto. Aparentemente, nesta cultura, o que de outro horizonte se chamaria de signo, comporta ser o que está sendo referido. Não representa, apresenta. Não é isso, afinal, que está em pauta, por exemplo, no cuidado e inseparabilidade entre meninas (futuras mulheres adultas e mães) e bonecas que antecipam no presente os seus filhos futuros (Cameron, 2000)?

Identicamente os Inquices (Minkisi) não se reduzem, mas se presentificam e manipulam, em criações artísticas de objetos cuja decodificação não pode derivar de arquétipos míticos pré-estabelecidos.

Além disso, entre os bantos, muitas vezes os significados e as valorações de termos comuns entre etnias e línguas muito aparentadas variam, assumindo mesmo conotações contrárias (Rodrigues de Areia, 1974). Denominações relativas ao sagrado – tão cruciais como, por exemplo, “Kalunga” e “Nzambi” – presentes em diversas etnias bantos, não têm significados unívocos. Há variações do seu uso, segundo se trate de prosa ou de linguagem poética, e o nomeado, em vez de referido, o mais das vezes é aludido por intermédio do contexto de provérbios (Estermann, 1983).

Parece, portanto, inadequado avaliar comparativamente esta “espiritualidade” com modelos que pressuponham um tempo mítico originário, em que o ser e sagrado já estejam perfeitos (completos) para sempre, encarnados em mitologias e revelações que remetem a uma realidade metafísica e a um tempo passado e imemorial.

O sagrado banto constrói-se em cada presente, artisticamente, dependendo de talento estético, capacidade imaginativa e habilidade performática. A força e eficácia do Inquice dependem do nganga que lhe dá vida, que o sintetiza como presença concreta de provérbios, trocadilhos, alusões, que, prenhes de sentenças (mandamentos, leis) e interpretados intencionalmente (avivados por interesses humanos), remexem a determinação do cosmo em que se inserem, por meio da manipulação das entranhas reais e significantes de corpos e grupos social e etnicamente particularizados. Revela-se imanente ao âmbito do acontecer transicional (Winnicott, 1975, 1990). Manifesta às claras a co-autoria humana, na forma de colaboração entre viventes e ancestrais:

No pensamento dos Kongo, as capacidades e poderes invulgares derivam do relacionamento com a terra dos mortos. Os espíritos, diferenciados como sendo relativamente egoístas ou benéficos para a comunidade, oferecem vários gêneros de poder aos vivos através dos ritos de iniciação. As diferenças entre os espíritos são mais políticas do que objetivas e estão intimamente relacionadas com a rivalidade de indivíduos e grupos (MacGaffey, 2000, p. 43).

Entre os bantos, tal como na umbanda brasileira, as capacidades e poderes invulgares derivam do contacto com a terra dos mortos. Em ambos os casos há uma relação estreita entre palavras e imagens, aludindo os elementos plásticos da sua composição a provérbios e situações concretas, que dependem em larga medida do talento do intérprete que os cria, insubstituível por um catálogo dos termos que se utilizam, ou por uma referência a mitos previamente memorizados.

As diferenças entre os espíritos e mesmo as suas ações decorrem mais de determinações políticas e circunstâncias sociais manifestas, do que se disfarçam por trás de identidades metafísicas. Talvez sempre seja assim. “Tocado” pelo humano, o radicalmente Outro, no fundo da imagem de si em que espelha o fiel, revela-o à medida de uma verdade que lhe é relativa (Bairrão, 2001). Mas, nesse caso, conviria acusar um panteão dinâmico, que deixa a coisa evidente, de miticamente pobre?

Não seria viável estabelecer uma correlação entre estas circunstâncias e o estatuto da iconografia que, com grande liberdade e com freqüência idiossincraticamente, os terreiros umbandistas adaptam de outras tradições, remodelando-a a seu bel-prazer, segundo razões alheias às expectativas das suas fontes?

Já na África esta literal incorporação de lendas e objetos é comum aos bantos, que ao que parece têm talento e propensão para a inclusão do Outro, sem perda da sua especificidade. É assim que Martins (1993), por exemplo, documenta haver entre os Tutchokwe uma classe de espíritos obsessores brancos, com os quais se fala em português (mesmo quando a língua é desconhecida) e para os quais se ergue uma miniatura de capela na qual as suas vítimas regularmente lhes rendem culto à feição católica (altar, imagens) e se oferecem comidas ao gosto do típico paladar lusitano (bife com batatas fritas e ovos estrelados!).

Deveriam procedimentos dinâmica e estruturalmente semelhantes, aplicados à assimilação do estrangeiro nas condições do exílio escravocrata, serem interpretados como degenerescência, imitação, ou conciliação? Estes juízos de valor, políticos e científicos, em verdade não revelariam uma pré-concepção de identidade como mesmidade, presa a modelos ontológicos substancialistas e apegada a narrativas fundacionais (mitos ou Revelações) e expectativas metafísicas decalcadas da “gramática” cultural européia? Não pressuporiam um modelo mais aplicável a tradições culturais de outras partes da África, que assim mais facilmente se tornam visíveis a olhos retorcidos por esse viés etnocêntrico?

 

Tradição banto brasileira em Ribeirão Preto

Por todo o Brasil, como também em Ribeirão Preto, a umbanda é especialmente praticada nas periferias urbanas por pessoas humildes. Porém não se restringe a estas. Dirigida por pais e mães de santo, tem como ponto forte do seu ritual a incorporação das entidades da falange (linhagens de espíritos) de determinado orixá pelos médiuns dos terreiros durante as giras (rituais). Os pontos cantados (cânticos evocativos), tocados (toques de atabaque) e riscados (escrita ritual) são os elementos ritualísticos que invocam as entidades e servem de conduto para o andamento dos trabalhos, que não ficam restritos às giras nos terreiros, sendo realizados, conforme a necessidade, em matas, cachoeiras, no mar, cemitérios, encruzilhadas, nas casas dos consulentes, etc.

A umbanda tem como uma de suas grandes marcas o fato de ser uma religião de inclusão, onde todos os segmentos sociais são recebidos de braços abertos, inclusive aqueles muitas vezes excluídos pela sociedade, tais como crianças de rua, homossexuais, prostitutas, mendigos, malandros, entre outros.

A sobrevivência da umbanda mais tradicional está em risco na região de Ribeirão Preto. Por um lado, é muito atacada por outras religiões: ora é criticada por manter atavismos africanos incompatíveis com a pretensa cientificidade do espiritismo europeu, ora pelo contrário, no caso do candomblé, é denunciada por não manter uma pretensa pureza religiosa africana, lidando com entidades tidas como inferiores, por abrigar o culto a muitas classes de espíritos, e não apenas aos orixás. Também a saída de muitos de seus praticantes para os diversos cultos evangélicos, as migrações decorrentes da desagregação das formas de vida ligadas à tradicional cultura do café, as condições do trabalho com a cana e mais atualmente a reorganização urbana (que desarticulou muitas das suas comunidades), bem como a escassez de informações públicas a seu respeito, e por fim a preservação e transmissão deste patrimônio cultural de maneira oral, ameaçam a sua continuidade.

Sendo assim, é nosso interesse que, a partir das narrativas dos colaboradores, através de suas memórias se chegue a algumas das verdades que fundamentam o modo de ser e de se organizar destas comunidades, sem a intenção de lhes atribuir uma explicação, mas tão somente de as desvelar, uma vez que tendemos a concordar com a fala de uma de nossas colaboradoras, Dona Joana, que disse-nos que:

... a umbanda é uma coisa muito melindrosa, você pode trabalhar a vida inteira nela e você nunca entende ela, entende assim, você nunca vai no fundamento dela, é uma coisa assim que não tem explicação. (Depoimento Joana, 10/01/02).

A narrativa é uma forma de organização das experiências vividas (Nunes, 1988). Ao darmos voz às narrativas de nossos colaboradores, estamos propiciando-lhes um espaço de organização de suas vivências. Partindo do conhecimento produzido pela psicanálise, sabemos que o inconsciente tem uma forma de organização diferente da ordem do consciente, linear, racional e lógica. Nas narrativas esta transposição entre inconsciente e consciente é feita. Tomamos o cuidado, ao propiciá-la, de não desprezar as manifestações paradoxais presentes no discurso de nossos interlocutores. Por exemplo, aquilo que é dito e negado posteriormente, continua tendo valor. As contradições entre os vários discursos de nossos colaboradores sobre um mesmo assunto e as contradições dentro do próprio discurso têm valor em si mesmas, pois interpretamo-las como reveladoras de impasses subjetivos e da complexidade do assunto abordado.

Recorreram-se a gravações em áudio e vídeo das festas, rituais, trabalhos e narrativas sobre as memórias e histórias dos colaboradores, bem com às suas explicações sobre estes registros; a fotografias, tanto as tiradas no contexto da pesquisa, como as dos álbuns dos colaboradores; a anotações em caderno de campo de dados e impressões; à observação participante em rituais, festas; e à convivência regular junto às comunidades e a entrevistas livres.

Foram objeto de nossa atenção elementos componentes dos terreiros e do ritual: as principais entidades recebidas; a disposição das imagens no altar e a sua significação; ervas rituais, seus usos e significados; animais, seus orixás e funções no terreiro; locais de trabalho religioso; população que freqüenta a umbanda; terminologia, visão, organização e explicação da umbanda por cada casa.

As mães de santo dirigentes dos terreiros, com suas histórias de vida, memórias e narrativas, foram as principais colaboradoras, mas não as únicas. Freqüentadores, médiuns, familiares e demais participantes da comunidade colaboraram para a obtenção de informações relevantes.

Como os depoimentos foram recolhidos durante conversas comunitárias no quadro da convivência propiciada pela observação participante, o sujeito depoente, fundamentalmente, foi a memória coletiva. Partimos do pressuposto de que nossos colaboradores não são aqueles que nos falam sobre a umbanda, mas sim que é a cultura umbandista, como fenômeno social, que nos fala através deles, posto que os significantes circulam socialmente, estabelecendo laços entre uma grande quantidade de pessoas (Bairrão, 2002) e não são propriedade privada de um ego ou de um conjunto de egos. Os significantes estão presentes no contexto social, histórico, nas memórias, na fala, no não dito, não sendo restritos ao psiquismo nem a indivíduos. O universo sígnico intrapsíquico não é diferente do presente na coletividade externa, “o mais intimo processa-se com os elementos mais públicos” (Idem).

As visitas aos terreiros duraram mais de um ano e meio. Nos primeiros seis meses de contato não foram feitas entrevistas, filmagens ou qualquer outro tipo de coleta de dados que não o proveniente da observação participante. Isto nos serviu para o estabelecimento de um vínculo de confiança, permitindo-nos a obtenção de autorização para recorrer a outros procedimentos e um acesso mais amplo à vida da comunidade.

O contato mais franco começa quando o pesquisador, conforme o processo de afiliação a que se submetem os freqüentadores dos terreiros, acaba sendo significado como mais um afilhado da casa, o “filho” pesquisador.
 

 Os terreiros

A partir de relações com praticantes da religião em Ribeirão Preto, pôde-se chegar até antigas casas de umbanda da região, a Tenda de Umbanda Ogum Guerreiro e Pai Joaquim do Congo e a Tenda Espírita de Umbanda Pai Benedito. A primeira, dirigida pela mãe de santo Dona Tonica e pelo seu marido Sr. Aguinaldo (Guina), setuagenários que comandam a casa há mais de quarenta anos, e a segunda, dirigida pela mãe de santo Joana, filha carnal e espiritual de Dona Chiquinha, muito famosa na região, falecida há quase dez anos e fundadora da casa de Pai Benedito. Esta tradição é o que nos assegura um contato com a antiga presença africana na região de Ribeirão Preto.

Estes terreiros, localizadas em bairros periféricos de suas respectivas cidades, foram construídos na parte da frente das próprias casas das mães de santo. São barracões retangulares onde são realizados os rituais semanais. A porta de entrada dá para a assistência (local de onde consulentes e visitantes assistem ao ritual), que fica de frente para o altar, onde estão dispostas as imagens, em sua maioria, dos orixás e de santos católicos sincretizados com aqueles e de espíritos que “baixam” na umbanda. O altar é construído em forma de degrau, sobre um vão livre onde tem que ter água corrente, pois aí ficam as imagens do “povo da água” (orixás e espíritos afins com o elemento aquático) – a de Iemanjá, por exemplo.

A disposição das imagens no altar segue uma seqüência provavelmente imbuída de significados, os quais não nos foram revelados. Porém, Oxalá/Jesus Cristo ocupa o lugar mais alto em ambas as casas.  Na parede da porta de entrada ficam algumas imagens de exus e pombas giras, tais como Zé Pelintra e Maria Padilha, que, como entidades do “povo de rua”, devem estar próximos a esta.

Compõem ainda os elementos físicos do terreiro os atabaques, as ervas rituais, quadros e imagens, que ficam espalhados por ele.

As giras, realizadas à noite, acontecem de duas a três vezes por semana, sempre às segundas e sextas feiras e eventualmente às quartas-feiras. As segundas e quartas feiras são dedicadas aos pretos velhos, caboclos, baianos e demais entidades da direita. Às sextas estas entidades também são “cuidadas”, mas na última sexta-feira do mês, a partir de determinada hora, as da “esquerda” vêm para trabalhar por aqueles que delas precisarem. As giras, comandadas pelas respectivas mães de santo, começam com pedidos de proteção e orações, algumas delas católicas, como o “Pai Nosso”. Na seqüência são tocados e cantados diversos pontos para cada orixá, invocando as entidades de sua falange, que então se incorporam em seus “cavalos” (médiuns) e “trabalham” por aqueles que as procuram.

Os médiuns ficam enfileirados, homens de um lado, mulheres de outro, cantando e dançando enquanto esperam o momento da incorporação. Durante esta, entram em transe, provocado, segundo nos contam, pela possessão pelas entidades que recebem. Cada um dos médiuns tem um grupo de entidades com quem trabalha, as quais foram devidamente preparadas e “alinhadas” (2) pela mãe de santo durante o processo de desenvolvimento mediúnico a que eles se submetem.

Os freqüentadores dos terreiros são, em sua maioria, pessoas da própria comunidade onde se localizam. Estas em geral pertencem a uma classe economicamente desprivilegiada e com baixo grau de escolaridade. Não obstante, são portadores de uma rica cultura “popular”, advinda da prática umbandista.

Eventualmente freqüentam os terreiros juizes, promotores, policiais, políticos, praticantes de outras religiões, tais como, evangélicos, católicos e candomblecistas, entre outros, à procura dos trabalhos realizados pelas entidades.  Isto ocorre por esta umbanda se caracterizar, entre outras coisas, como uma religião de prestação de ajuda. Quando um consulente ali chega, ao falar com os espíritos, sempre lhe é perguntado algo do tipo “o que você quer de mim?”. Constatamos que fica um tanto quanto estranho participar de uma gira e não se “consultar”. Afinal de contas, o sentido destes rituais públicos é fazer-se ouvir e ser cuidado pelas entidades. Sua função é essa, prestar ajuda, “fazer caridade”, e por isso há a expectativa de que quem ali vai as procure.

 

As ervas e os animais

O uso de “ervas” rituais é uma constante na prática umbandista. Pudemos notar que nestas casas a sua utilização é feita de forma bem simples. Segundo Dona Tonica, mais de cento e vinte tipos de “ervas” são usadas na produção das garrafadas. Após serem colhidas, é feita a sua mistura com álcool, produzindo um líquido escuro de cheiro agradável, que é utilizado para as mais diversas finalidades, como, por exemplo, machucados, contusões, benzimentos, doenças em geral e para expurgar entidades maléficas que sob a sua ação abandonam a pessoa em que estão “encostadas”. No terreiro de Dona Tonica é comum durante as giras os médiuns serem molhados com este líquido na cabeça ou em áreas do corpo em que alguma entidade os esteja incomodando.

Muitas das “ervas” usadas nos terreiros estão ligadas à prática da medicina popular. Algumas dessas “ervas” tradicionais, como arruda e quebra-pedra, são utilizadas individualmente. Em relação à primeira, usa-se um pequeno galho no canto da orelha para espantar mau olhado. A segunda é utilizada na produção de chá para moléstias especificas, como pedra no rim.

As mesmas características atribuídas a “ervas”, muitas vezes, são também, atribuídas a entidades que têm os mesmos nomes (por exemplo, jurema, arruda, guiné), revelando-nos um universo significante extremamente rico que não será aprofundado nesta pesquisa, já que não é essa a pretensão deste trabalho.

Cada terreiro também tem seus animais. Nestes casos, cães pretos, ligados aos exus que conferem proteção às casas. Durante as giras a sua presença não causa incomodo nenhum, muito pelo contrário. Se lá estão, é porque se fazem necessários, pois estão associados às entidades referidas, e não sem motivo por ali perambulam.

 

Dona Maria Abadia

Morou em Ribeirão Preto uma senhora cuja história e proveniência permanecem pouco conhecidas, mas cuja vida e atuação inscrevem-se em comum nas histórias e memórias dos antigos terreiros estudados. Até onde se pôde averiguar, não há referência a outras casas ou outras mães e pais de santo mais antigos na região.

As narrativas que a incluem permitem supor que tenha de fato desempenhado um papel notável na implantação e expansão da umbanda em Ribeirão Preto e região. Esta senhora era Dona Maria Abadia, a mais antiga mãe de santo viva na memória das tradicionais casas de umbanda pesquisadas. Até onde se tem notícia, não deixou herdeiros que tocassem a sua casa, apesar de a certa altura contar com mais de cem médiuns sob o seu comando. Mas Dona Maria Abadia formou, além de muitos médiuns, futuros pais e mães de santo, que com o tempo foram abrindo seus terreiros na região.

Não se sabe precisar exatamente a época em que morreu, mas contam-nos que Maria Abadia já era bem velha na época de fundação dos terreiros colaboradores, na primeira metade do século XX. Dona Tonica a conheceu por volta dos anos quarenta, com aproximadamente vinte e três anos de idade. Hoje, 2003, ela já passa dos 70.

 

A vida antes da umbanda

A trajetória das casas pesquisadas, mesmo antes de sua fundação, guarda semelhanças marcantes. Na primeira metade do século XX, Dona Chiquinha e Dona Tonica, oriundas da zona rural, migraram para a cidade em busca de melhores condições de vida. Foi somente ali que encontraram terreiros de umbanda organizados.

Dona Chiquinha, ainda criança, tornou-se benzedeira famosa.

Ela com sete anos já fazia cura, sem saber que estava fazendo cura, porque uma criança de sete anos não sabe nada. Então uma pessoa estava sentindo dor, ela ficava passando a mão, passando a mão, meu avô que contava, meu avô e ela, a pessoa ficava boa, aí ela ia brincar para lá e a pessoa ficava boa, não sentindo nada. Às vezes tinha gente doída lá, histérica, quebrando tudo, ela entrava no meio e ia conversando, conversando, e a pessoa ficava boa. Minha mãe foi desse jeito. (Depoimento Joana, 10/01/02).

Com o passar do tempo sua fama de benzedeira foi crescendo e por motivos de saúde, má colheita, picada de cobra, entre outros, era procurada pelos moradores das redondezas, em busca de solução.

Os primeiros comportamentos atípicos, ouvir vozes, falar e ver pessoas que outros não viam, dores agudas em determinadas regiões do corpo, períodos longos de inconsciência, entre outros, apresentados pelas futuras mães de santo quando ainda jovens, a princípio foram tomados como patologias e só mais tarde interpretados como mediúnicos.

Dona Chiquinha após passar alguns dias sem comer nem beber e falando com “pessoas” que apenas ela via, foi levada por seu marido, Luiz, que não aceitava que esta pudesse ter algum tipo de mediunidade, para uma consulta médica.

... aí meu pai não aceitava aquilo, ele achava que era ruim, a casa ficava cheia de gente, não aceitava, sabe esse povo antigo? ... na época que ela não comia, não bebia nada, ela não emagrecia. Parecia que ela era alimentada pelos espíritos, pelos espíritos bons, não ruins, sabe? Então o dono da fazenda falou assim: - Seu Luiz por quê o senhor não leva a Dona Chiquinha prá consulta? Ela está ficando doida, a gente passa e ela está conversando e não tem ninguém perto dela. Mas não é! Ela estava conversando com os espíritos, sabe? (Depoimento Joana, 10/01/02).

Nos diversos exames psiquiátricos que fez, nada de anormal foi constatado. Seu próprio médico, Dr. Virgílio, sugeriu-lhe que fosse conversar com uma médium Kardecista, Dona Ludovina, que lhe falou sobre sua mediunidade e explicou-lhe que não estava “sofrendo dos nervos”. A esta época, nem Dona Chiquinha nem Seu Luiz tinham conhecimento algum sobre qualquer das religiões espíritas, apenas conheciam algumas práticas de “benzeção” comum na zona rural e já praticadas pela própria Chiquinha.

Porque naquela época, há cinqüenta, sessenta, setenta anos atrás, não existia, assim, centro. Era mais as pessoas que benziam, mas não tinha santo, sabe? Assim, imagem não tinha, imagem de caboclo, preto-velho, baiano, não tinha. Se tinha, era muito longe daqui, né?, ... há cinqüenta anos atrás, quer dizer, sempre existiu a umbanda, tudo, só que era diferente, não tinha as imagens. O povo então, se tivesse que fazer uma cura, a pessoa quando estava conversando pegava um pauzinho e fica... [riscando], no chão, dali a um pouquinho, se fosse um feitiço para matar, matava, se fosse para curar, curava. Era assim. (Depoimento Joana, 10/01/02).

Ao final de uma dessas consultas médicas, enquanto voltavam para a roça de trem, um velhinho, negro, de cabeça branca, puxou conversa com Seu Luiz e disse-lhe:

- o senhor pensa que sua esposa é doente? Ela não é doente. Ela é uma ‘média’ [médium], ela vai fazer muita cura, e vai prestar caridade. Aí meu pai disse assim - Mas a gente não entende o que é isso – Aí, falou assim: - Entende, o que ela está fazendo é a caridade; é benzer as pessoas; é cuidar das pessoas que procuram ela - Aí, explicou bem direitinho pro meu pai - ela é média, o senhor tem que levar [a um centro] – Aí, meu pai falou assim: - Mas eu já levei a roupa dela para benzer – Aí, o homem falou assim: - Não é para levar só a roupa, é para levar ela, é ela que tem que participar. (Depoimento Joana, 10/01/02).

O velhinho explicou-lhe, também, detalhadamente, o que se passava com Dona Chiquinha, mesmo sem conhecê-la. Porém Seu Luiz só se convenceu quando um dia em sua casa, na roça, teve uma visão. Ao entrar na cozinha viu e conversou com sua falecida mãe, que o avisou para não atrapalhar o destino de Dona Chiquinha. Disse-lhe sua mãe:

Olha, você não têm que “coisá” [criar caso], porque ela veio ao mundo com essa missão. Ela é uma média e ela vai ser ‘benzedeira’ e você não pode brigar nem entrar no meio. O que ela veio fazer na terra foi isso, essa caridade, ela veio prestar caridade. (Depoimento Joana, 10/01/02).

Convencido, Seu Luiz a levou de volta ao centro onde dona Ludovina atendia. Lá Dona Chiquinha recebeu o espírito de mesa branca Dra. Lucia e por quinze anos trabalhou neste centro espírita kardecista, até incorporar pela primeira vez entidades umbandistas, o que a levou até Dona Maria Abadia.

Com relação a Dona Tonica, ela teve uma vida difícil e dolorosa, principalmente em sua adolescência, quando, algum tempo depois da morte de sua mãe, recebeu a notícia, de seu pai, de que ela deveria cuidar dos irmãos, pois ele iria embora.

Meu pai pegou e falou: - Minha filha! Agora nós perdemos a tua mãe, você vai tomar conta dos seus irmãos que o seu pai vai sumir. (Depoimento Dona Tonica, 05/11/01).

Aos quinze anos Dona Tonica se via sozinha com quatro irmãos para criar. Sua sorte é que a avó e as tias moravam na cidade e a chamaram para morar com ela. Dona Tonica aceitou prontamente, vendeu o pouco que tinha e para lá foi em busca de emprego, para poder sustentar seus irmãos.

Estabelecida na casa da avó, ela não teve dificuldades para achar trabalhos como empregada doméstica. Porém, não conseguia ficar muito tempo neles, arrumava boas patroas, mas não durava muito tempo no emprego, o que acabou por se tornar um grande problema em sua vida.

Eu arrumava patroas boas, mas não sei... quando era dali um pouco eu desgostava da patroa, eu não queria mais. Aí, ia arrumar outra patroa. (Depoimento Dona Tonica, 05/11/01).

Somou-se a este problema um outro, que acabou por ser decisivo em seu encontro com a umbanda: o fato de não conseguir se firmar com nenhum namorado.

Eu não tinha sorte com namorado, eu arrumava um namorado, dali uns dias eu não queria mais, eu não gostava dele... (Depoimento Dona Tonica, 12/12/01).

Com um destes namorados chegou a acreditar que tudo iria dar certo, porém...

Aí comecei a namorar esse moço, eu pensei que era para casar, já não tinha mãe, já não tinha o pai, né? Pensei que era para casar. E namoramos bastante, e quando eu penso que não, apareceu um nenê... (risos). Quando eu estava grávida de oito meses, ele casou com a outra de Franca. Aí, casou com a outra de Franca, eu chorei muito. Tudo por que eu não pensei que ele fosse fazer isso, né? Aquele tempo não usava muito essas coisas de ficar fazendo nenê assim, sem casar. Então, mas o que eu ia fazer? Fui tocando a vida, né? Toda vida, toda vida eu trabalhei nos meus empregos. Aí, ele casou, eu fui tocando minha vida, fui criando o meu filho. (Depoimento Dona Tonica, 12/12/01).

Devido a estes problemas, suas tias Maria José e Oristela, kardecistas, a pedido da avó, levaram-na ao centro da “finada Maria Abadia”, que revelou a Dona Tonica a origem de seus problemas: a mediunidade não desenvolvida a estava atrapalhando.

 

A iniciação

Dona Chiquinha, apesar de ter passado por centros kardecistas e umbandistas antes de ter seu terreiro, desenvolveu sua mediunidade sozinha. Contrariando a norma da maioria dos médiuns de terreiro, Dona Chiquinha não foi preparada para receber suas entidades. Isto se deu espontaneamente, em situações variadas, e em diferentes contextos.

Mesmo sem ir ao centro de mesa branca, que ela nem sabia o jeito que era, ela já recebia os espíritos de mesa branca... Aí foi onde que ele (Seu Luiz) trouxe ela nessa mesma mulher, na Dona Ludovina. Aí, ela sentada lá, uma outra mulher falou: - Senta aqui Seu Luiz. Aí, meu pai falou: - Mas eu num mexo com essas coisas. Então minha mãe que era média ficou na assistência, meu pai que num era, eles puseram na mesa. Aí, de repente ela incorporou lá,  ela incorporou. Meu pai veio, ele levantou da mesa e ela que ficou no lugar do meu pai, ele não era médium... Então minha mãe “tocou” [participou como médium] quinze anos no Allan Kardec, quinze anos. De repente começou a incorporar nela Caboclo, Baiano, Preto Velho e minha mãe não sabia, não entendia dessa linha. (Depoimento Joana, 11/01/02).

Dona Chiquinha foi levada para o centro de Dona Maria Abadia por uma consulente sua, Dona Edu, a qual periodicamente ela benzia. Na primeira gira que assistiu seus guias se manifestaram. Ela incorporou no lugar da assistência, sem nenhum processo de iniciação umbandista anterior.

Aí, chegou lá, minha mãe ficou na assistência. É, mesa branca não tem nada a ver com o “centro” [de umbanda]. Nos “trabalhos” [rituais umbandistas, giras] começou a puxar ponto de preto velho e minha mãe incorporou lá no meio. você vê! Ela nunca tinha visto um terreiro, viu aquele dia, chegou, sentou e ficou quieta. Então o preto velho veio de lá e saudou o “congá” [altar] certinho, coisa que ela nunca tinha visto ninguém trabalhar nisso. Ela foi “passando” [recebendo] os “guias” [entidades] tudo, passou todos os guias. Os guias vieram, conversaram. A dona do terreiro conversou, explicou o jeito que é, e que não é. Então, dali para a frente, era aquela linha que ela tinha que seguir. Aí, foi que ela “tocou” [praticou] o resto, que deu sessenta anos.(Depoimento Joana, 10/01/02).

Quando, tanto Dona Chiquinha como Dona Tonica, conheceram Dona Maria Abadia, seu terreiro chegou a ter mais de cem médiuns, o que a fez tomar a decisão de liberar aqueles que assim o desejassem, para continuar seu desenvolvimento com outras mães e pais de santo.

Dona Tonica foi uma das médiuns que saíram, indo terminar seu desenvolvimento mediúnico em outro terreiro. Foi para a casa de José de Paula, conhecido como Pai José de Xangô, amigo seu da roça, desde antes de ambos serem umbandistas.

Mas como ele recebia o Pai Xangô, então apelidaram ele de Pai José de Xangô. Então, ai, ela [Maria Abadia] falou: - O Zé de Paula vem aí. Ele não tem médiuns e quem quiser ir para o centro dele pode ir. E ele abriu o centro dele lá no Ipiranga, para cima da “estaçãozinha”[estação de trem]. E eu fui... eu fui. Comecei a trabalhar [como médium]... e me dei bem... ele também se deu bem comigo. Aí, ele falou: - Agora eu vou fazer a sua firmeza, para vocês trabalharem melhor, e vocês vão ser madrinhas do meu centro. (Depoimento Dona Tonica, 05/11/01).

Mais ou menos após cinco anos de trabalho com Pai José, Dona Tonica “fez a cabeça” e teve seu destino traçado pelas previsões de Pai José: segundo ele, inevitavelmente, ela seria mãe de santo.

Nós ficamos fechadas em um quarto. Roupa de santo..., bombacho comprido branco, tudo branco. A Maria do Carmo não pode ir, porque a mãe dela ficou doente. Então fui eu e a Ruth. Então aí nós fomos, nós tomávamos banho, mas colocávamos roupa de santo. Quinze dias... quinze dias... Aí, quando chegou um dia, deu os quinze dias, ele foi a São Paulo, pegou os “anteparos” [elementos ritualísticos, como uma tesoura “virgem”], o que tinha de fazer, né? Aí, ele veio e primeiro ele fez a cabeça da Ruth e depois ele fez minha cabeça. Porque só nós duas é que estávamos deitadas lá. Ele fez a nossa cabeça e quando chegou o dia que nós íamos sair, aí ele... nós saímos... com uma “tesoura virgem” [citada acima]... um “ponteiro virgem”, ele raspou, cortou, ele cortou aqui (aponta o lugar) o nosso cabelo em cruz, o meu e o da Ruth, raspou com a navalha, e aqui ele fez a cicatriz, ele fez a cicatriz em cruz. Depois do “apreparo” [elementos ritualísticos, como ervas e plantas preparadas para o ritual] que ele foi buscar em São Paulo. Pôs o apreparo. Primeiro ele deu um banho na nossa cabeça, depois aí fez isso, né? Nós ficamos como se fosse assim, ficamos de preceito. Mas sempre ele falava para mim: - Tonha você afirma [firma, concentra-se], que um dia você vai ter tua “casa de santo”. Eu falava: - Não padrinho, eu não quero, é muito trabalho. Cento e tantas pessoas pra tomar conta? Hummm! Eu falava: - Não! Não! Não quero. Ele falava: - Você vai ter tua casa de santo, você vai ser mãe de santo. Quando chegou no dia que nós saímos da camarinha, era uma camarinha fechada. Era quartinho dos homens e o quartinho das mulheres e no meio era a camarinha. No quarto das mulheres entrava na camarinha. E nós ficamos... aí, ele vomitou fogo, quatro dias.  Nós estávamos lá dentro, mas lá fora o povo tava cuidando de nós. Mandamos fazer roupa nova, então eu comecei a usar coroa, aí eu comecei a usar coroa.  Ele fez uma capa, que eu tenho a capa até hoje, uma capa de Ogum, Ogum..., acho que Cosme e Damião, o outro é... acho que eu não lembro mais! Tá aí dentro! Aquela eu ganhei depois. Ele preparou tudo aquilo na hora que nós saímos, nós saímos já para ficar. A maior parte do trabalho [no terreiro] ficou só para nós. Ai depois a gente falou... agora a madrinha Tonica e a madrinha Ruth, ficamos sendo madrinha. Consagrou nós madrinha de santo. (Depoimento Dona Tonica, 05/11/01).

 

Joana

Dona Chiquinha faleceu há aproximadamente dez anos deixando o terreiro de herança a uma de suas filhas, Joana, que desde tenra idade conheceu a umbanda. Na verdade, Joana cresceu acompanhando a mãe no terreiro.

Eu vivia, assim, dentro do centro. Nasci e criei ali dentro do centro, agora os outros não, os outros irmãos iam, mas era muito pouco. Eu ficava infiltrada ali dentro mesmo, eu nunca... sabe? Eu desenvolvi com sete anos, então é muita coisa ali, nasci e criei ali, é muita coisa, você via assim muitas coisas, você via as pessoas que chegavam ruim, que ficavam boas, então você via muita coisa bonita. (Depoimento Joana, 10/01/02).

Como muitas vezes ocorre na umbanda, algum dos filhos da mãe de santo fica com a missão de tocar a casa, mas de forma peculiar Joana começou a receber o Preto Velho de sua mãe, Pai Benedito, depois que esta morreu. Herdou não só a casa, mas também a principal entidade de Dona Chiquinha, o chefe espiritual do terreiro.

Os fatos que precedem a herança da casa por Joana nos mostram a forma peculiar como sonhos e visões são tratados nesta umbanda, indicando-nos o estatuto de realidade que ganham quando manifestos:

Joana não foi iniciada para dirigir a casa. Não obstante ter ouvido da sua mãe, ainda em vida, “o bastão é seu, minha filha”, não quis ou não pode nessa altura entender o que lhe estava sendo passado, pelo implícito da revelação de uma dolorosa perda iminente. Adquiriu ciência de sua missão após a morte da mãe, através de sonhos e visões que teve com ela. Por estes, sua mãe lhe explicou algumas coisas que deveria saber. O restante lhe foi passado pelas entidades que recebe e que a orientam no transcorrer de sua prática à frente do terreiro.

Um sonho em particular teve profunda importância nesse período. Joana sonhou sete noites seguidas com sete pretos velhos da Bahia. Sua mãe a acompanhava em todos os sonhos. Nestes, foram-lhe mostradas sete “ervas” e explicado como deveria proceder no comando da casa. Uma destas “ervas” era a hortelã, que ganha, a partir deste sonho, um outro significado em sua vida. Para surpresa de Joana, em seu sonho a hortelã tem um poder de cura, revelado pelos pretos velhos, não conhecido em sua realidade desperta.

O conteúdo exato do que lhe foi dito e o significado das ervas não nos foi revelado, por certamente se tratar de um conhecimento reservado.

Joana conta com a ajuda de uma de suas irmãs mais novas, Meyre, para conduzir os trabalhos. Ela é quem comanda e fica responsável pela gira enquanto Joana está incorporada. Dada a diferença de idade, poderá suceder à irmã. É solteira e não tem filhos.

Joana tem quatro filhos, sendo que Gisele, a única menina, atualmente com 17 anos, possivelmente se tornará, depois da tia, a herdeira do terreiro. A umbanda na casa de Pai Benedito é passada de mãe para filha, do mais antigo para o mais novo, entre mulheres, de geração a geração.

Quebrando com a tradição de se dedicar desde pequena à atividade umbandista, Gisele quer primeiro estudar, tornar-se advogada. Guarda para mais tarde a sua iniciação mediúnica e a preparação para vir a comandar a casa.

 

A prática umbandista

Caridade e cura são os preceitos básicos da umbanda praticada nestes terreiros tradicionais. Não obstante a diversidade das características das falanges dos orixás que ali são cultuados, as ações das entidades concentram-se nestas duas características. Este controle é obtido pela doutrinação da entidade e pela autoridade da mãe de santo e dos “guias” dirigentes da casa.

Mesmo as da esquerda fazem caridade. Se você pedir, eles fazem caridade. Agora se você pedir maldade, eles vão fazer também, mas aí, se tiver igual, também, uma mãe de santo que não gosta que faça isso, então, entra no meio e não deixa fazer. Se eu estou incorporada, minha irmã não está, se minha irmã está, eu não estou. Então eu fico observando, eu não deixo, de jeito nenhum, jamais, fazer mal para qualquer pessoa. Pode ser o maior inimigo meu, eu não faço, nem desejo mal. Se ele deseja pra mim, que Deus dê em dobro pra ele. (Depoimento Joana 19/04/02).

Nos sessenta anos que Dona Chiquinha tocou o terreiro de Pai Benedito muita caridade e curas foram feitas, o que a tornou uma das mães de santo mais famosas da região.

Mas minha mãe trabalhava [como médium], vixe! Era uma cearense altona, nossa senhora! Ela era mais alta que minha menina, ela era altona e não tinha preguiça, nunca teve. Qualquer hora que a pessoa chegasse, era uma, eram duas, eram três horas da manhã, ela levantava e ia atender. Às vezes ela estava almoçando ou jantando, chegava gente pra benzer, ela via que a pessoa estava ruim mesmo, ela largava o prato e ia atender. (Depoimentos, Joana, Meyre, 10/01/02).

À procura de seus trabalhos vinham pessoas da comunidade, juízes, policiais, promotores, políticos, além dos freqüentadores habituais, que todas as semanas participavam das giras.

A missão recebida por Dona Chiquinha de ser mãe de santo não se restringiu ao terreiro, mas foi vivida de forma intensa, na extensão da sua família de sangue para a de santo. Além de seus doze filhos carnais, criou mais, já que era mãe de toda uma comunidade.

Minha mãe fez muita caridade, fora filho dos outros que ela criou. As mães vinham, pegavam, já estavam grandes pra trabalhar. Minha mãe criou muito filho dos outros, vixe! Ela tinha os doze dela e tinha os outros. A panela de comida que fazia era desse tamanho, assim. É! Pergunta pra elas mesmo [dirigindo-se a Gisele e a Meyre], era “grandona”. Ela criou tanto filhos dos outros e tudo o que chegava. Às vezes vinham de longe para benzer, então correu o boato do centro, ela fazia muita cura, o povo vinha tudo, então vinha gente que ela benzia e às vezes não tinha nada, não tinha dinheiro, nada para comer, de longe. Ela pegava, fazia comida e dava para aquele monte de gente. Nunca, sabe? Nunca ficou rica, também nunca passou fome, nunca faltou nada. Nunca teve dinheiro, mas também a riqueza que ela teve foram os filhos que ela teve e os filhos dos outros que ela criou. E hoje eu tenho irmão loiro, branco, moreno, preto, de tudo quanto é cor, mas é assim, a metade é tudo de criação. Irmão mesmo são doze. Então, a batalha dela foi essa, ela benzeu muita gente, sabe? (Depoimento Joana, Meyre, 10/01/02).

Não só a vida, mas a morte de Dona Chiquinha foi marcada por acontecimentos “fantásticos”. Dias antes de morrer ela reuniu seus familiares para contar-lhes que sua hora estava chegando. Segundo Joana, Meyre e Gisele, contou exatamente o dia e hora em que iria morrer. Para surpresa de toda a sua família, Dona Chiquinha faleceu na hora e dia anunciados. Seu enterro reuniu uma grande quantidade de praticantes e não praticantes da umbanda, que vieram dar seu último adeus à mãe de santo tão querida na região.

Quando Joana assumiu a casa, as coisas não mudaram. Herdeira da tradição e prática umbandista de sua mãe, fez com que caridade e cura continuassem como os preceitos básicos do terreiro.

Na casa de Pai Benedito a responsabilidade das ações, boas ou ruins, não é das entidades, mas das pessoas que lhes fazem pedidos.

Por isso é que eu falo, às vezes as pessoas falam que isso aqui é uma coisa ruim, não é que é ruim, não existe ruim, ruim é a pessoa que vai à procura de fazer aquilo. Então quem é ruim é a pessoa, não são as entidades. (Depoimento Joana, 27/09/02).

A fé é condição fundamental para se receber as graças pedidas.

Então, é a fé da pessoa e o coração limpo. Então, é onde que eu falo que tudo o que a pessoa pede, tudo que você pedir de coração limpo, você recebe. (Depoimento Joana, 27/09/02).

Certa vez uma senhora procurou Joana, pois estava tendo tremores, dificuldades para andar e uma série de outros sintomas que a impediam de ter uma vida normal. Esta senhora foi médium umbandista e quando resolveu deixar a religião entregou o vestido da sua pomba-gira (roupa ritual) para a sua patroa, que lidava com candomblé, achando que esta era uma boa pessoa (segundo Joana). Sua patroa, mal intencionada, fez “maldade” (trabalho para prejudicá-la) com a roupa, legando-a a este estado de saúde. Infelizmente, no caso dela, foi cometida uma falta grave dentro da religião – entregar a roupa de santo para alguém mal intencionado. A força desta atitude foi tão grande que o destino desta senhora já esta selado, seu caminho não tem volta e a sua falta de cuidado com as “coisas da religião” a fazem sofrer até hoje.

Joana relata episódios pitorescos, reveladores de uma consciência aguda da dupla atitude de certos segmentos sociais relativamente à sua religião. Certa feita, uma “crente” que habitualmente se benze com ela, ficou aflita e teve de ser escondida por estar chegando, com o mesmo intuito, um contingente de outros membros da sua igreja. Explicar-lhe que eles se encontrariam na mesma situação, não adiantou. Noutra oportunidade, uma personalidade do poder judiciário da região teve de sair pelas traseiras, ao se deparar com a chegada de policiais seus conhecidos. Ao  recordá-lo de que o seu carro estava estacionado na frente, aquele alegou que ali se dirigira, para não ser reconhecido, com o carro da sua mulher. Estas histórias e outras semelhantes sempre são contadas sem ressentimentos e com bom humor, tomando o cuidado de não identificar os protagonistas.

Já Dona Tonica, consagrada madrinha de santo do terreiro de Pai José, continuou a trabalhar ali, exercendo funções de maior responsabilidade entre os médiuns, posto que era uma das madrinhas do centro. Alguns anos se passaram até que Pai José, devido a problemas pessoais, teve de ir embora de Ribeirão Preto, deixando sua casa sob o comando de Dona Tonica. Por um bom tempo Dona Tonica e Seu Aguinaldo comandaram o terreiro instalado em um barracão alugado na periferia de Ribeirão Preto, à espera da volta de Pai José. Como este não voltava e o dono do barracão o pediu de volta, Dona Tonica viu seu destino se cumprir. Devolveu o barracão, fechou o terreiro de Pai José e inaugurou seu próprio terreiro, o terreiro de Pai Joaquim e Ogum Guerreiro.

A despeito das particularidades da vida de cada uma das mães de santo, com Dona Tonica as coisas não foram tão diferentes. Sua prática umbandista também foi e é marcada pela caridade e pela cura. Seu papel de “mãe”, também, foi estendido para além do contexto familiar. Em sua missão nesta vida teve como destino comandar a casa de Pai Joaquim e criar, além de seus filhos de sangue, “pelo menos mais dois” adotados, além de cuidar das crianças da comunidade.

Dona Tonica perdeu um destes filhos adotados na guerra do tráfico de drogas, existente na região, e que atinge de forma significativa o bairro em que mora (Vila Carvalho). Outra menina por ela criada casou recentemente e agora é difícil que a recebam em família, pois o marido, “crente”, opõe-se a que os visite.

Um dia, ao chegar-se no terreiro, no meio da tarde, Dona Tonica estava com várias crianças, fazendo uma festa. Eram seus netos e os filhos de uma senhora catadora de papelão, que deixava as crianças com ela para ir trabalhar.

Se, apesar de todas as provações, sua casa sobrevive há tanto tempo em Ribeirão Preto, é pela “firmeza” (fé e dedicação) em relação à religião de seu marido, de sua filha Meiry e sua própria.

Atualmente a casa de Pai Joaquim passa por algumas dificuldades. Seus médiuns, na maioria mulheres, principalmente as mais novas, em desenvolvimento, andam dando problemas a Dona Tonica; além de que Seu Aguinaldo há algum tempo está preso a uma cadeira de rodas, devido derrames atribuídos a um “tombo” (3).

Segundo Dona Tonica a causa desses problemas está no “olho gordo”. Pais de santo constantemente vêm visitar o terreiro, se encantam pela força e tradição da sua umbanda, o que os faz desejar ficar com a casa. Tempos atrás um desses pais de santo veio conhecer o terreiro, não só se encantou por ele, mas por sua herdeira, Meiry. Propôs a ela que após a morte de Tonica e Aguinaldo eles tocassem os trabalhos. Obviamente Meiry não aceitou. Aí começaram as dificuldades acima faladas e que atualmente preocupam Dona Tonica e sua filha, que constantemente têm que reunir suas “médias” (médiuns) para ver o que está acontecendo. Indisciplina e falta de cuidado com as regras da religião repetem-se entre elas, o que traz como conseqüência habituais “surras” (4), dadas pelas entidades que nelas incorporam.

Já para Meiry, a conseqüência da recusa foi seu quase enlouquecimento. Dona Tonica contou que, após sua filha rejeitar a proposta deste pai de santo, esta passou por “maus bocados”. Depois de um parto, começou a se comportar de forma muito estranha. Não conseguia ficar por muito tempo em lugar nenhum. Ficava algumas semanas na casa de Dona Tonica, arrumava suas coisas, e se mudava para casa da tia, onde passava mais um tempo e fazia o mesmo. Separada do marido durante a gravidez, dez meses depois que sua filha nasceu os primeiros sintomas apareceram. Tudo por causa do pai de santo. Seus problemas só foram solucionados quando foi levada ao terreiro, na cidade próxima de Pontal, de uma “comadre” de Dona Tonica. Lá Meiry passou alguns dias sob o cuidado dessa mãe de santo, que a “devolveu curada de seus problemas”.

Apesar da caridade e das curas promovidas nos terreiros, dizem-nos que se engana quem pensa que as suas vidas de médiuns são fáceis. Ter essa missão significa ter, apesar da evolução espiritual como recompensa, uma vida sofrida, fruto da ação de livrar as pessoas de seus problemas.

Durante o ritual de incorporação, passam pelo “cavalo” os encostos (espíritos cuja proximidade é prejudicial) e as dores dos consulentes. Os médiuns chegam a ficar até três dias com o mal estar recebido, só se livrando dele com uma sessão de descarrego e, no caso dos menos experientes, até perceberem que aqueles incômodos não são seus, mas de outra pessoa.

... só que a gente sofre muito. Então tudo que você ajuda as pessoas, tudo o que você faz de bom para as pessoas, é sofrimento pra você. É pra mim que estou ajudando..., quer dizer, eu passo a sentir aquela dor que a pessoa sentia. Talvez com três dias aquela dor saia de mim, às vezes fica meses em cima de mim, é assim! A gente sofre, você faz a caridade, mas você paga um preço muito alto, entendeu? Você sofre muito, você sofre talvez aquilo que a pessoa iria sofrer, você pega aquele sofrimento para você. É desse jeito, não é fácil não... A umbanda é uma coisa muito melindrosa. Então, é uma coisa que a sua vida fica em torno só disso, aqui é você benzer, sair daqui e... ficar em casa, cuidar de filho, cuidar de marido. Então você não pode sair. Quando você não me vê aqui, é porque eu fui fazer trabalho [religioso] na casa de um, benzer na casa do outro, é gente que está ruim, é essas coisas... (Depoimento Joana, 10/01/02).

A atividade mediúnica se expressa até nos sonhos, que, como já dito anteriormente, ganham um tratamento peculiar dentro da visão de mundo umbandista. Nela a realidade vai muito além das vivências objetivas na relação com o ambiente ou da atividade consciente, revelando-nos uma riqueza imaginativa que compreende o real muito além dos contornos da percepção profana. Segundo nos relatam, o “mundo dos espíritos” e o dos vivos é separado por um tênue estado de inconsciência, que obviamente não vale para os médiuns. Através de sonhos, visões, devaneios e pensamentos, estes têm acesso a esta realidade para nós imperceptível, mas que não obstante, entendem como objetiva.  Nem dormindo os médiuns deixam de exercer sua atividade.

Às vezes você vai deitar e não dorme aquele sono bom, às vezes você está dormindo sente choque, é assim, às vezes alguma pessoa que está te pedindo ajuda, que já veio benzer e está passando aqueles problemas e está pedindo ajuda, então você tem que levantar, você tem que acender uma vela, você tem que rezar, você tem que firmar a cabeça [concentrar-se] mesmo, para aquela influência ruim não ficar com você e atrapalhar você. (Depoimento Joana, 10/01/02).

“Seu” Aguinaldo nos conta que a primeira vez que teve contato com exus mirins (espíritos infantis da linhagem dos exus) foi quando, ao descansar perto de uma encruzilhada, viu duas crianças andando de bicicleta. Não fosse pelas roupas e pela bicicleta serem muito antigas, talvez ele nem tivesse parado para prestar-lhes atenção. Quando estas se aproximaram da encruzilhada, “seu” Aguinaldo as seguiu com os olhos. Então elas começaram a mexer em um despacho (oferenda ritual comumente feita numa encruzilhada). Ele as advertiu para não fazer aquilo. Elas olharam para ele e riram, desaparecendo sob o seu olhar.

A rápida passagem de Dona Tonica e os quinze anos de “trabalho” de Dona Chiquinha com o kardecismo deixaram marcas profundas na prática umbandista dessas mães de santo. Ainda hoje isto se evidência pela presença de imagens de Allan Kardec e de Bezerra de Menezes junto às dos pretos velhos e dos demais orixás e pela realização esporádica de sessões de mesa branca com médiuns kardecistas nos terreiros. Joana usa uma frase, muito popularizada por Chico Xavier, para definir o fundamento básico de sua prática umbandista: “fazer o bem sem olhar a quem”.

 

Os Pretos Velhos

Existe uma hierarquia nestas comunidades, que não se restringe apenas ao mundo espiritual. Aqueles que vivem também são submetidos a relações de poder. As mães de santo são as que recebem os espíritos dos pretos velhos dirigentes das casas. A elas são passadas as diretrizes e normas a serem cumpridas nos rituais. Elas são avisadas por estes de presenças incômodas ou necessidades do terreiro. A elas é delegado o cargo de comando abaixo dos pretos velhos.

Pai Benedito e Pai Joaquim costumam conversar com as mães de santo após os trabalhos, seja em sonhos ou em visões, a fim de orientá-las nos andamentos das atividades da casa. Porém nem sempre, a despeito do cargo que ocupa, a mãe de santo é a única detentora deste poder, que vem não só de sua capacidade mediúnica, mas também do conhecimento que se tem sobre a religião.

Na umbanda, ter conhecimento é ter poder. Seu Aguinaldo, marido de Dona Tonica, goza de tanto respeito dentro da casa quanto ela. Antes das giras começarem, os médiuns reúnem-se ao seu redor para ouvir suas explicações acerca do “mundo dos espíritos” e para compreenderem melhor quais as formas mais corretas de proceder na religião. Seu Aguinaldo não é médium de incorporação, mas tem o dom da clarividência. Durante as giras, os caboclos, exus, pretos velhos, baianos, que ali baixam, após cumprimentaram a mãe de santo e os demais médiuns, vão até ele mostrar seu respeito.

Pai Benedito e Pai Joaquim do Congo, pretos velhos, são as entidades que dirigem respectivamente a casa de Dona Joana e a de Dona Tonica. Para conseguir a autorização para a realização da pesquisa não bastou explicar os objetivos e pedir o consentimento às mães de santo. Foi necessário proceder da mesma forma com estes pretos velhos durante a gira. Só a partir do seu consentimento é que as portas se abriram definitivamente.

A preservação, nestas casas, do culto aos pretos velhos como a “linha” de entidades do panteão umbandista mais significativa, confere-lhes uma vivência religiosa em que mais se ressaltam as características destes, que são bondade, sabedoria, experiência e paciência. Virtudes advindas, segundo nos contam, de uma vida em que superaram as formas mais desumanas de maus tratos físicos e psicológicos, nos intermináveis anos de escravidão, acedendo, já bem velhos, à condição de espíritos com um alto grau evolutivo, e depois de mortos, à condição de dignos de um lugar tão especial no panteão umbandista.

Durante as giras os pretos velhos nunca são esquecidos. Feitas as orações de abertura, os diversos orixás são invocados em pontos cantados, baianos e caboclos incorporam e logo se vão, abrindo espaço para que os pretos velhos venham dar suas bênçãos e fazer caridade.

Acima dos pretos velhos está apenas Oxalá/Jesus Cristo, ficando as demais entidades do panteão umbandista abaixo deles. Não importa se o dia de gira ou trabalho é com o “povo da esquerda” ou “da direita”, os pretos velhos são sempre invocados e em geral como principais protagonistas. Mesmo nos dias de trabalho consagrados ao “povo da esquerda”, Pai Benedito e Pai Joaquim estão sempre presentes, para coordenar e manter os rituais segundo seus princípios, não permitindo nenhuma ação que não tenha por base a caridade e o bem estar das pessoas envolvidas nos pedidos.

Dona Tonica quando fundou sua casa, a chamou de Terreiro Tenda de Umbanda Ogum Guerreiro e Pai Joaquim do Congo, pois foram Pai Joaquim e o “Senhor Ogum” as primeiras entidades a incorporar nela.

Chamou Pai Joaquim porque foi a primeira entidade que eu recebi, seguida do Senhor Ogum..., ele é que comanda aqui (Pai Joaquim), ele e o Senhor Ogum. (depoimento Dona Tonica, 16/10/02).

 Pai Joaquim era um negro escravo que gostava de tocar atabaque e fazer orações e “benzeções”. Muito calmo e introspectivo, era respeitado até por seus senhores, devido a estas características. Na senzala praticava, às escondidas, junto a seus iguais, rituais de umbanda caracterizados pela extrema simplicidade com que eram feitos. As giras eram realizadas no terreiro da senzala, onde não havia o altar dos santos. Seu poder residia na força dos atabaques e na “firmeza” de seus praticantes. Pai Joaquim viveu cativo até o dia de sua libertação da condição de escravo, sendo justamente a transposição da condição de cativo para a de liberto, que lhe garantiu as condições necessárias para chegar a ser velho, já que, enquanto escravo, possivelmente não resistiria tanto tempo.

Um dia, na fazenda em que Pai Joaquim morava, a filha de seu senhor foi perseguida por um “valentão”, que queria pegá-la para “fazer maldade”. Pai Joaquim, ao saber do fato, foi à procura da linda menina de “pele bem branquinha e de cabelos loiros compridos”. A menina correu por um longo tempo, indo se esconder na mata. Pai Joaquim a encontrou, muito assustada e cansada. Passou a mão em um pedaço de pau e com ele a benzeu. No momento em que fazia sua reza, o perseguidor da menina desapareceu para nunca mais. A partir deste feito, graças a Pai Joaquim, ele e seus companheiros escravos foram libertos.

Pai Benedito, à semelhança de Pai Joaquim, foi um negro escravo. Não teve a mesma sorte. Viveu toda a vida em cativeiro, resistindo às mais desumanas formas de tratamento. Comia no cocho e dormia com os cavalos. Muitas vezes sua comida era pior do que a dada aos animais, mas mesmo assim viveu por volta de cem anos. Joana e Meyre contam-nos que a superação das condições indignas de sua existência foi o que o fez ascender a um alto grau de evolução espiritual, não precisando mais reencarnar. Para completar a sua purificação, basta-lhe fazer caridade, através da ação de seus “cavalos”.

 

“Seu” Aguinaldo (Guina)

“Seu” Aguinaldo, marido de Dona Tonica, é uma personalidade peculiar. Sua vida é repleta de histórias fantásticas. Quimbandeiro por doze anos, varava a noite trabalhando como cambono de médium de quimbanda seu conhecido.

Entrou para o terreiro de Pai José de Xangô para se livrar dessas práticas, que julgava prejudiciais à sua vida.

 Trabalhando como secretário do terreiro, conhece Dona Tonica, quando esta para lá foi após sair da casa de Dona Maria Abadia. Depois de algumas tentativas frustradas, Guina consegue convencer sua futura esposa de suas “boas intenções”. Honesto, trabalhador, sem vícios, Guina casa-se com Dona Tonica após alguns anos de namoro, assume o filho que esta teve com outro namorado e o registra em seu nome. Como bom filho de Xangô, “seu” Aguinaldo age de forma firme e justa em suas relações.

... e ele (Seu Aguinaldo) levava a irmã dele, que tinha mediunidade, também, pra “trabalhar” lá. E lá nós nos conhecemos. Ele ficava na... [mesa de recepção], pegando a mensalidade, cem cruzeiros, ele ficava pegando as mensalidades dos médiuns, de quem quisesse ser sócio. Então, e ali nós nos conhecemos... um dia ele falou pra mim, eu ia pagar minha mensalidade, ele me devolvia meu cartãozinho e meu dinheiro, meus cem cruzeiros. Tá bom, né? (risos). Aí eu..., eu peguei, e ele falou: – quero falar com você –  Eu falei: – ai meu Deus! Aquele moço quer falar comigo - Mas naquele tempo ele não era vaidoso como os moços de agora, né Guina? Você não era vaidoso, né? Ele não andava bem trajado, até eu achava ele com cara de homem casado. É! Eu pensei que ele era casado. Então aí nós fomos a pé. Eu ia com uma colega, eu tinha uma colega, minha colega era casada, tinha quatro filhos, já eram grandões, e..., e aí nós fomos a pé, metade foi na frente, outra metade foi indo atrás. Ele falou comigo se eu queria namorar com ele. Eu falei pra ele: - Se for pra casar de verdade, eu quero, mas se for pra bagunçar não. Por que eu já tinha um filho, né? Queria bagunça mais? Não queria. E aquele tempo não usava bagunça não. Era..., era assim, o povo recusava, assim..., aqueles que tinham filho, eles recusavam. Então, eu falei - Se for pra casar de verdade, eu quero - Mas ainda assim mesmo nós namoramos quatro anos (risos), namoramos quatro anos no centro. Nós nos encontrávamos mas era lá no centro. Depois, aí ele acompanhava se fosse muito tarde. Ele morava lá na Vila Tibério e eu morava ali na Seixas [Vila Seixas]. Então fomos, então ele falou - Agora, nós vamos dar um tempo, vamos ajeitar as coisas, aí nós vamos casar. Aí ele ajeitou, e ele criava também quatro, né? Quatro sobrinhas, né? Você criava? Era quatro ou três? Hã!

[Aguinaldo:] Duas irmãs, três sobrinhas.

[Tonica] É, duas irmãs, três sobrinhas. Ele criava também. Então ele combinou comigo que a gente ia casar. E eu já morava sozinha, eu nunca gostei de morar junto, hã! Por que a gente morando junto cada um quer fazer uma coisa, não pode.  Eu morava em..., três, três cômodos na Vila Seixas, e nessa casa que eu morava, nós nos casamos. Mas fizemos um casamentinho simples, arrumamos os padrinhos direitinho. A madrinha deu um bolo muito grande. Nós fomos lá, casamos, comemos bolo e estamos até hoje, faz cinqüenta anos. No dia oito de..., cinqüenta anos, né, Gui? No dia oito de fevereiro faz anos que nós casamos. Aí casamos, graças a Deus, fomos vivendo. Ele não recusou meu filho, não recusou e ele ainda passou, na hora de casar, lá no cartório, eles perguntaram, eu tinha um menino, se ele ia passar no nome dele ou se ele, né...? Aí ele falou que não, que passava no nome dele, passou o menino no nome dele. Chama-se Gerson Luiz Rodrigues Morais. Já é vôvô também. Mora lá no Ipiranga. E assim foi indo nossa vida. (Depoimento Dona Tonica e “seu” Aguinaldo, 05/11/01).

“Seu” Aguinaldo estudou até o segundo ano primário, tornou-se ferroviário e com a profissão sustentou sua família por muitos anos. Hoje, aposentado, “Seu” Aguinaldo, preso a uma cadeira de rodas, passa o dia no terreiro. Homem de muita firmeza (fé), septuagenário, é uma espécie de preto velho vivo, como o define Dona Tonica - “É um preto velho falando com outro” -, referindo-se a uma conversa que “seu” Aguinaldo teve com Pai Joaquim.

Não obstante a sua pouca instrução formal, Guina é muito respeitado por seu conhecimento, não só sobre a religião, mas sobre diversos assuntos. Desde pequeno, quando teve que parar de estudar para trabalhar, Aguinaldo nunca deixou de ler. Sempre que encontrava algum livro, jornal ou revista jogados no lixo, ele os pegava para ler. Em seu trabalho tinha sempre um livro diferente guardado no armário, para as horas de folga.

Firme em suas convicções, fala com autoridade aos médiuns do terreiro sobre a prática umbandista e o mundo espiritual. Estes sempre o procuram para pedir conselho e orientações sobre a melhor forma de proceder. Quando as entidades estão incorporadas, Guina, com o cuidado de ser respeitoso, as questiona sobre as coisas do “mundo de lá”.

Clarividente, Guina não tem o dom da incorporação, mas diz ouvir, ver e falar com as entidades, o que em algumas situações o coloca em uma posição melhor que a dos médiuns de incorporação, já que estes ficam inconscientes durante o estado de transe. Durante as giras, sem exceções, Aguinaldo fica atento a todos os que entram no terreiro (inclusive os pesquisadores, que também passaram pelo seu crivo), para saber quais as intenções e os procedimentos dessas pessoas dentro da casa de Pai Joaquim e do Senhor Ogum.

Calado, introspectivo e muito rígido, “seu” Aguinaldo se mostra um profundo conhecedor da doutrina umbandista e, obviamente, guarda muito desse conhecimento para si. Atitude coerente com o fato de, na umbanda, tudo o que é dito criar uma relação de obrigações e responsabilidades entre quem diz e quem houve.

 

Vida comunitária e familiar

Os dois terreiros ratificam uma peculiaridade comum a praticamente todas as comunidades umbandistas. O seu núcleo é uma família de sangue, em geral alargada a parentes mais ou menos distantes, agregados, amigos e conhecidos, que se amplia para se transformar em comunidade de “filhos de santo”. Os “estranhos” são hospitaleiramente recebidos, mas se quiserem permanecer e aprofundar os seus vínculos, devem tornar-se “familiares” (às vezes literalmente). Não é mera casualidade que a tentativa anteriormente narrada de se apossar do terreiro de Pai Joaquim se tenha formulado como proposta conjugal dirigida à filha carnal e espiritual que é a herdeira da casa de Dona Tonica e de Seu Aguinaldo.

A presença de crianças e a sua circulação pelo espaço ritual acontece com muita naturalidade. Os terreiros umbandistas são predominantemente espaços “familiares” e heterossexuais. Crianças são bem vindas, tanto do ponto de vista da sua aceitação na comunidade, como do ponto de vista do acolhimento, por parte de casais e mulheres, das geradas em decorrência da sua vida sexual.

As casas das famílias de sangue e os recintos rituais convivem em contigüidade. A casa de santo recebe a família espiritualmente alargada e é um importante núcleo de convivência comunitária. Esta característica, no caso de Ribeirão Preto, em alguns casos viu-se prejudicada por políticas de urbanização desastradas.

Embora materialmente pobres, os nossos colaboradores orgulham-se muito da riqueza dos seus valores. Tratam todos os que os procuram como filhos e as famílias nunca se resumem a relações entre pais e descendentes biológicos.

Adoções são habituais. Dona Tonica e “seu” Aguinaldo encontraram tempo para criar vários filhos e crianças das redondezas. Sofrem até hoje com a perda da criança que mais lhes deu trabalho, vítima da guerra entre traficantes. Fazem questão de contar a sua história, ressaltando não as dificuldades que tiveram com a sua educação, mas os seus talentos e as alegrias que lhes proporcionou.

Joana orgulha-se de atender a todas as suas obrigações religiosas, sem conflito nem atrito com as suas funções de esposa, dona de casa e mãe de quatro filhos.

Diversos episódios narrados pelas comunidades e que envolvem a sociedade circundante e a maneira como interagem com ela (que por respeito e sigilo não poderiam ser contados) revelam a consciência aguda da sua condição de “poderosos excluídos”, e parecem ser narrados de maneira a justificar a sua propensão em transformar em escolha um tipo de vida ao qual, aparentemente, foram relegados.

Os seus freqüentadores mais eventuais, que recorrem clandestinamente aos seus talentos, podem ser entendidos como uma metáfora da posição que a África ocupa no coração do Brasil: pode-se lhe dever muito, mas deve permanecer invisível e renegar-se qualquer familiaridade...

É o caso de mais uma vez nos indagarmos sobre as razões que tornam menos visível do que seria de esperar a presença banto no Brasil, e de sugerir que iniciativas como esta, que tentam dar voz a seus herdeiros, possam vir a contrariar essa situação, por se proporem a compreender o modo de ser profundo, ainda misterioso, pelo qual se preserva e transmite uma memória social, por meio de performances e recriações de comunidades e de práticas religiosas, mesmo à revelia da consciência de uma linha de continuidade que assegure transmissões empiricamente verificáveis. Os relatos de nossos colaboradores exemplificam este notável talento.

Esta peculiar característica deveria chamar a atenção para dimensões psicológicas peculiares, ligadas a estas comunidades, cujo esclarecimento talvez possa auxiliar a compreender como surgem e se difundem por todo o país a umbanda e práticas similares (algo que intriga e é motivo de debate entre os pesquisadores). O seu estudo é um grande desafio.

 

Hipótese de um ponto de partida para o estudo da “pessoa” umbandista

Segundo Augras (1995), psicóloga pioneira e referência já clássica no campo da investigação da religiosidade afro-brasileira, a investigação psicológica em comunidades de terreiro atenderia a dois propósitos: compreender valores e visões de mundo de significativa parcela da população brasileira e investigar como tais modelos atuam no indivíduo, em prol de uma melhor compreensão de si próprio e da integração dos componentes da sua personalidade.

O primeiro ponto deste programa é mais simples de cumprir e de certa forma foi o que fizemos ao dar ouvidos às vozes umbandistas tradicionais de Ribeirão Preto. O segundo pode implicar num esforço de revisão de pré-concepções bem assentes na psicologia acadêmica ocidental. Entre outros, Goldman (1984) manifesta ceticismo quanto à utilidade e às conseqüências do uso de categorias como personalidade e indivíduo, tão eivadas de uma noção de pessoa presumivelmente datada e menos universal do que habitualmente a ciência psicológica o presume.

Seja qual for a solução que venha a ser dada a este problema, provavelmente beneficiar-se-á de descrições etnográficas o mais literais possíveis. É necessário compreender as formas pelas quais outros, brasileiros, se revelam por meio dos modos como depõem o seu mundo. A tarefa é tão mais premente quanto o seu estilo de ser e a sua percepção (banto) do mundo, progressivamente, mesmo sem reconhecimento nem pagamento de direitos autorais, se alastram como características da cultura brasileira.

Outro motivo que torna urgente promover estudos críticos da noção de pessoa orientados para a compreensão da concepção dessa categoria vigente entre o nosso povo é o risco de a formação em psicologia continuar a produzir profissionais e pesquisadores eurocêntricos, “surdos” para a realidade psicossocial profunda do Brasil.

Trata-se de uma questão de difícil solução e desafio em aberto à psicologia brasileira, que foge às pretensões deste trabalho, mas sobre a qual aventamos uma pista banto como hipótese de ponto de partida para futuras investigações.

Certamente não é mera casualidade a coincidência entre a designação de uma religião tão brasileira e a palavra “umbanda”, existente em línguas bantos, conforme autores como Coelho (2000) e Estermann (1983) documentam. O segundo, além de a referir com o significado de substantivo abstrato relativo à arte terapêutica do quimbanda (curandeiro ou feiticeiro), igualmente registra o seu emprego no sudoeste de Angola para referir sessões espíritas, dirigidas por um quimbanda (não se confunda o significado a que a palavra “quimbanda” se viu constrangida no Brasil, e que aparece noutras partes deste artigo, com o seu significado africano).

Embora coincidências fonéticas sejam fracos indícios, de fato a estes não se resumem as aproximações que podem ser feitas entre estas formas religiosas dos dois lados do Atlântico.

A nosso ver não residiria nesta “coincidência”, nem no presumível constrangimento dos Inquices (Minkisi) à iconografia católica e à mitologia dos orixás o principal indício do ”espírito” banto da umbanda brasileira.

Livremente reinterpretadas, as imagens dos santos e de tipos romanceados de ancestrais que se assentam nos congás (altares) umbandistas, daí se deslocam para incorporarem-se em performances rituais de espíritos, que, diferentemente dos “mentores” kardecistas, não se resumem a individualidades concebidas como equivalentes a personalidades sem corpo. Sempre seguem uma coreografia correspondente ao tipo de um ancestral aglutinador de determinados bens simbólicos e modelo exemplar de condutas e recursos a serem utilizados em diferentes circunstâncias de vida. A par de uma certa estereotipia, admitem margem para interpretações pessoais, mas sempre segundo enquadres compatíveis com os significados e missões atribuídos a cada classe de ancestrais. Embora todos amparem, cada tipo se especializa em utilidades e finalidades diversas, em conjunto compondo um cardápio de recursos solicitáveis conforme as situações.

Alguns estudiosos mostraram a construção histórica, brasileira, de alguns destes tipos (por exemplo, Meyer, 1993) e chegaram mesmo a referir o momento de surgimento ou de generalização de outros (Santos, 1995).

Este último autor correlaciona o caboclo cultuado nos candomblés baianos à imagem do índio celebrada em cortejos cívicos comemorativos da independência da Bahia. Note-se que o sentido global desta imagem, derivada da necessidade de constituir uma referência nacionalista que permitisse criar um hiato entre o brasileiro e o português, ou mais exatamente, transformar o luso tropical americano numa nacionalidade distinta, já tinha sido culturalmente elaborada, em narrativas que construíam um modelo de nacional alternativo ao português, cujo escoadouro mais óbvio foi a figura romântica do índio, altivo e insubmisso, cheio de qualidades éticas e integrado à paisagem sul americana (bom e selvagem). É este ideário que se narra e inscreve na iconografia do caboclo.

O passo seguinte, o deslocamento de um símbolo para uma categoria “metafísica” e a sua encarnação em performances rituais, talvez possa compreender-se melhor ao se levar em conta a alternativa disponibilizada pela cultura banto para materializar atributos e poderes espirituais consubstanciados em ancestrais, na forma de imagens cheias de força e ritualmente manipuláveis.

No mundo banto, a “força espiritual” impacta visualmente e comove corporalmente. É elaborada em ícones esteticamente impactantes, que armazenam e permitem manipular os “espíritos”. Os espíritos imaginam-se (proporcionam-se como imagem e são imaginados) e as imagens “têm” espírito.

A gramática cultural implícita que autorize tais deslocamentos, supômo-la encontrar-se materialmente expressa no tradicional feitio banto de máscaras. Estas são formas estéticas de presentificação do espírito como ícone, que concomitantemente revelam o ícone como face do espírito. São personificações de faces do Outro.

As máscaras não são quaisquer imagens. São ícones que olham. São imagens videntes, “outros” esteticamente presentificados.

São interfaces entre ícones que se proporcionam ao olhar, e Outro olhar que nos vê. Incluem compreensivamente a quem interpelam. Dão-se a ver e mostram-se olhar.

Ao ver-se visto, o sujeito vê-se no olhar do Outro (Corbin, 1977, 1981). E numa cultura que não estratifica o espiritual e o material como regiões ontológicas imiscíveis, é natural que este ver-se do Outro permita desdobramentos em outros eus, encarnados no próprio corpo. É a alternância entre Outro vidente e vidência de Outro, consubstancial à fenomenologia da face e esteticamente materializada na máscara, que lhe assegura uma posição de charneira na consecução do transe: os olhares do Outro, inclusivos, são suscetíveis de serem habitados pelos humanos que encaram.

As máscaras “materializam” o Outro. São ícones que dão corpo sensível aos espíritos, mas também são “outros” que podem revestir o “eu”.

Se no universo banto os espíritos se proporcionam (como) imagens e as imagens  do panteão umbandista, suas “linhas” e “falanges”, se desdobram em performances rituais estereotípicas, não poderiam estas compreender-se como desdobramentos das máscaras bantos?

Não tem nenhuma importância o fato destas faces, na sua versão brasileira, não se constituírem em objetos máscaras no estrito senso. A sua sutileza e eficácia é independente da sua composição material (reside na imagem de um rosto). O médium umbandista que ao entrar em transe se reveste dos adereços significativos da categoria e da singularidade do espírito que incorpora está compondo uma máscara (entendo-se que a natureza desta é da ordem do imaginário e do especular, que independe dos materiais físicos que lhe dão suporte).

A eficácia da mascarada não esta no artefato material, mas no sutil impacto estético. A sua visibilidade física apenas facilita a socialização comunitária dos seus efeitos.

Quando a máscara funciona, a narrativa é eficaz, e todos partilham a performance. Estabelece-se uma “corrente”. A umbanda é uma espécie de tecnologia social do imaginário e do transicional.

As narrativas dramáticas, performances, no espaço ritual umbandista reúnem propriedades similares à função dos Minkisi e das máscaras no universo banto: fatores como ancestralidade, valores e o jogo com humanas possibilidades de ser. Graças à sutileza e talento na manipulação do transicional (na acepção winnicottiana), consubstanciam materialmente uma alteridade não coisificada. Os movimentos ondulantes de corpos e saias imitando ondas durante as danças rituais, por exemplo, transportam poeticamente o “clima” da água marinha ou doce em ondas coletivamente eficazes, porque são “sentidas” pelos presentes, e quando estes (ainda) não o alcançam, os participantes mais “sensíveis” as “vêem” e as narram para a comunidade.

Cada performance dramática narra e se circunscreve em outro que se compõe em imagem No jogo ritual, a partir de mínimos elementos, há uma mobilização coletiva que insere e inscreve, na carne do ser, na pessoa, mensagens compatíveis com o âmago de narrativas dramatizadas, personificáveis em faces (máscaras).

A máscara não é portanto um papel social. É condição de ser, e não vestimenta que se usa sem transformar o utente. A máscara possui, é eficaz. O mascarado não mente, tanto quanto um sujeito moderno não se despe da sua “identidade” ou “personalidade” – as suas máscaras, feitas sob medida para um só “indivíduo”. (5)

As máscaras narram histórias cujo argumento nelas se encontra visualmente aludido. A composição das mascaras reúne trocadilhos, provérbios – fundamentais na cultura banto (Martins, 1951) –, memórias e todo o demais tipo de alusão a narrativas culturais. Encarnam-se em objetos tridimensionais, que atingem os corpos, além das mentes. Contam histórias encarnando-se em performances de sujeitos em transe, que entrelaçam memórias ancestrais, interpretações do mundo e estabelecem laços entre os membros da comunidade e o seu destino coletivo.

As máscaras são intercambiáveis. Podem olhar e ser olhadas, mas também podem ser portadas por diversas pessoas. Abrem leques de posições intersubjetivas e asseguram a mobilidade entre elas.

Como as máscaras são fabricadas, permitem espaço para a singularidade, num contexto de sintaxe global. Filiam a uma tradição, mas com margem para re-elaborações pessoais.

Em suma, não poderia a transição entre um ícone e a performance de espíritos ser pensada nos termos bantos da utilização de máscaras para inscrever e assinalar a presença de valores e a vigilância de ancestrais que elas personificam (vide Jordan, 2000), e de Minkisi como espíritos plasmáveis em ícones que, antropomórficos ou não, resumem narrativas que explicitam as possíveis qualidades das suas interações com os humanos (MacGaffey, 2000)? Poderia o panteão umbandista ser interpretado como um prolongamento transformado (e adaptado) do recurso, não exclusivo dos bantos, mas bastante comum e apurado entre eles, a máscaras? (6)

O recurso a máscaras é comum a muitas culturas, inclusive a outras etnias africanas, americanas, e sequer é desconhecido dos europeus. Não é especificamente banto, é até universal, mas estes nisso são exímios. E talvez aqui, neste talento transmitido ao Brasil, se resolva um falso dilema a propósito da umbanda: tratar-se-ia de uma tradição africana degenerada ou recomposta no Brasil, ou de uma criação local que recorre a elementos africanos?

A nosso ver não se trata nem de um culto banto remanescente, nem de um brasileiro original, mas de uma realização brasileira que herdou dos bantos o talento para fabricar máscaras e explorar a sutileza (“psicológica”) dos seus efeitos.

A hipótese ora levantada tem em seu benefício a oportunidade que oferece de resolver um ponto que apoquenta não apenas religiosos de outros horizontes (que nisso encontram mais um pretexto para se sobressaírem relativamente à umbanda), mas também alguns pesquisadores do transe. Estas duas classes de interlocutores, aparentemente unidas pela aposta numa espécie de “metafísica fisicista”, indagam-se a respeito da realidade da incorporação umbandista: haveria de fato incorporação (seja de outro espírito, ou de uma parte dissociada do eu, para o efeito desta argumentação tanto faz), ou tudo não passaria de um fingimento, do desempenho maroto de um papel social capaz de ludibriar inclusive o macumbeiro que acredite em si mesmo?

É óbvio que este problema, desta forma, se propõe em termos metafísicos e substancialistas, profundamente alheios à sutileza da fenomenologia da mascarada e aos horizontes espirituais bantos. Estes sabem muito bem que a máscara é o ator (eu) sem deixar de ser o espírito (outro), e que no mesmo evento ritual (por exemplo a mukanda, iniciação de meninos tutchokwe à vida adulta), espírito e ator se manifestam concomitantemente para diferentes participantes e espectadores, e até sucessivamente para os mesmos (é parte fundamental da iniciação espiritual do jovem adulto que, uma vez gravado o impacto e assegurada a intimidade com a mensagem do espírito que se personifica numa máscara, se revele a humanidade que lhe dá suporte).

A umbanda, o gênio banto, não são acessíveis a um estilo de perquirição pateticamente enredado em juízos inquisitoriais sobre uma presumida natureza substancial do imaterial, a anseios empenhados em capturar o espiritual nos termos da coisa.

O “espírito” banto e umbandista endereça-se a ouvidos não ocidentais nem metafísicos, desapegados da credulidade em substâncias hiperfísicas. Polêmicas que não se poupem de agonias determinadas por falsas questões relativas à materialidade do metafísico, ou à “parafisiologia” dos eus outros ou outros eus, condenadas ao âmbito de uma dicotomia entre ser (espírito) e nada (ser), não estão à altura do que está em jogo.

 

Algumas Considerações Finais

Numa pesquisa como esta, a palavra “conclusão” não faz muito sentido, por duas razões. Uma é porque os “dados”, eles próprios, são os depoimentos dos nossos colaboradores e, em fidelidade ao nosso objetivo, visa-se resgatar a sua voz, e não falar sobre eles. A segunda prende-se ao fato de apenas se haver esboçado o início de uma interlocução com a cultura social e psicológica popular marcadamente africana, que seria muito precoce encerrar por meio de uma conclusão.

De qualquer modo, talvez não seja inútil alinhar algumas idéias que ficam entre comentários críticos ao habitual descaso acadêmico pelo universo social brasileiro tal como ele efetivamente se mostra, e explicitações de aspectos da memória social que se dizem quando se entrelaçam as histórias das duas casas, sem que sejam explicitamente falados (até porque o que aí se expressa não é a experiência de alguém, mas uma experiência cultural que “possui” os seus informantes e os ultrapassa enquanto indivíduos empíricos).

Relativamente a esta, observe-se a coincidência no histórico da fundação dos dois terreiros: uma prévia cultura rural, identificada com um difuso catolicismo popular (nem sempre muito “católico”) e práticas de “benzimento”, ao se estabelecer em solo urbano é recodificada em termos espíritas kardecistas. Estes, por sua vez, são apenas uma transição para que se reacendam memórias ancestrais já brasileiras, mas etnicamente africanas, que provavelmente se mantinham em hibernação, quais cinzas apagadas que em momento propício recuperam a sua incandescência.

Sublinhe-se que o “aquecimento” desses traços de uma memória social conservados invisivelmente e re-elaborados faz-se ao preço de um sofrimento existencial agudo, heroicamente enfrentado, capaz de desenvolver nos seus eleitos um talento para entrar em sintonia e nutrir empatia por experiências igualmente intensas, individuais ou coletivas, atuais ou passadas, de opressão e extermínio. Acima de tudo, é capaz de cuidar e dar sentido ao que é e foi oprimido, histórica, social e psicologicamente, com orgulho das raízes e sem temor da dor nem do passado.

Literalmente, protestar contra o silenciamento do extinto, reavivar o morto, torna-se uma tarefa assumida, principalmente por mulheres, que encaram os sinais do outro que se inscrevem nos seus destinos e corpos como o chamado para uma missão, digna de ser vivida, de resgate de indignidades presentes e passadas. Têm que cumpri-la em obediência a uma ética elevada, mas em harmonia com as pessoas com as quais convivem. Para isso contam com recursos “fantásticos”. Dona Chiquinha não poderia cumprir com a sua “missão” em desacordo com o marido. Foi precisa até a intervenção da sua defunta sogra, para que a situação se resolvesse.

Os relatos das vidas das fundadoras e as narrativas dos pretos velhos fundantes das casas trazem luz sobre a natureza dessa “missão”: combater no presente as mazelas, doenças e maldades de qualquer época. Neste aspecto, o panteão umbandista é também, implicitamente, a crônica de uma crítica social.

O principal “segredo da macumba” não reside em ginásticas parapsicológicas, nem em manipulações metafísicas. Tal como o sublinham Brumana e Martinez (1991), a umbanda é uma ética que expressa, condensa e recupera um sistema de regras de interpretação e de conduta. É uma teoria da realidade social e um guia de comportamento para ela, bem como uma forma de cognição social e um microcosmo da cultura brasileira (Idem). Mas para aceder ao que, enquanto ponto de vista de setores marginalizados, nos diz sobre como estes interpretam as suas condições existenciais, tudo indica que é necessário enfrentar o desafio de refletir uma mentalidade popular que escapa à fixação pelas substâncias: decifrar a “gramática” de uma construção de mundo que, quase que certamente, é subterraneamente informada por uma sólida (fluida!) marca banto.

Para explorar em profundidade esta hipótese seria necessário algo que aqui não se visa nem se alcança (apenas se sugere): o estudo da “ontologia” e da “psicologia” bantos, no intento de tornar compreensível uma “gramática” cultural que também já se tornou brasileira (ou melhor, é fator constituinte do brasílico).

No universo banto parece haver uma abertura para o tempo ancestral não como passado, mas como localização sincrônica; e os contornos entre transcendente e imanente, espírito e matéria, serem borrados. Duas características que notável e indelevelmente se transmitiram à religiosidade umbandista brasileira.

Não apenas as histórias e identidades das principais “entidades” destes terreiros, mas também a composição étnica da esmagadora maioria dos seus fundadores, adeptos e freqüentadores, revelam uma ciência da sua origem africana, e muito significativamente uma clara diferenciação da sua África relativamente ao moderno candomblé, importado de metrópoles como Brasília, Salvador, Rio de janeiro e São Paulo, classificado por eles como “chiquento” e pouco dado à prática da caridade.

É verdade, porém, que estas raízes africanas, aparentemente não se manifestam explicitamente como uma identidade negra, talvez até porque a feição cosmopolita e racionalizante que a mesma adquiriu não acolha muito favoravelmente o modo de ser específico destes afro-brasileiros acaboclados e até lhes seja hostil.

Mas sabem que os seus pais foram realmente escravos e o sofrimento das suas existências fica sem sentido se a sua memória não puder recriar-se e sobreviver à morte, para doar sentido a eles e a toda a humanidade remanescente.

Não temem nem afastam os ancestrais e mantêm portas abertas para todos os tipos de aflitos e etnias que os procuram (qualidades que também arrolamos entre os vastos indícios de que apresentam uma filiação “inconsciente” à etnia e cultura bantos).

Não hesitamos em referir estes brasileiros africanos, especialistas nos meandros da alma humana e no tratamento das enormidades de que é capaz, a raízes culturais bantos. São mestres no tratamento e recriação da sua tradição cultural. Os seus terreiros como que se assemelham a quilombos “metafísicos”, territórios de liberdade e de dignidade para refugiados de todas as procedências, mas com uma nítida marca da senzala (aldeia) africana meridional.

 

Referências bibliográficas:

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Notas

(1) Apoio FAPESP. Agradecemos também o apoio, acolhimento e colaboração do povo de santo e dos dirigentes, espirituais e materiais, da Tenda de Umbanda Ogum Guerreiro e Pai Joaquim do Congo (Vila Carvalho, Ribeirão Preto) e Tenda Espírita de Umbanda Pai Benedito (Jardinópolis), bem como a inestimável colaboração da colega Sabrina Rocha Stanford Thompson.

(2) O trabalho de alinhamento das entidades é feito pela mãe de santo durante o desenvolvimento mediúnico, consistindo numa definição das entidades com as quais o médium irá trabalhar. (volta).

(3) Palavra que tem o significado moral de uma retaliação do destino, interpretada como acerto de dívidas éticas. No caso, está em pauta o passado quimbandista de “seu” Aguinaldo.(volta)

(4) Machucam-se durante o processo ritual de incorporação, o que é interpretado como castigo.(volta)

(5) O estudo das máscaras, atento ao conluio entre imagem de si e olhar do outro que nelas se explicita e tão fundamental para a análise psicológica (psicanalítica), poderia ser útil a uma revisão das teorias psicológicas sobre a personalidade, que permita contextualizar como um caso particular a concepção de pessoa moderna que embasa a psicologia, revelando-a uma espécie de totem particular em tribo cujos integrantes se resumam a um átomo social (Goldman, 1984).(volta)

(6) Entre as etnias bantos são empregadas ritualmente mais de uma centena de máscaras, utilizadas em performances rituais (Jordan, 2000). Lá em África como cá no Brasil, as qualidades de espíritos, além de ancestrais, encarnam valores sociais e criam-se conforme as circunstâncias e a necessidade de significar vivências coletivas (Souza, 2001; Concone, 2001; Kubik, 2000).(volta)

 

Nota sobre os autores

José Francisco Miguel Henriques Bairrão é Doutor em Filosofia pela UNICAMP, professor de Psicologia Social na FFCLRP-USP, Brasil, e pesquisador na mesma área (FAPESP/FFCLRP-USP).
Contato:
jfbairrao@ffclrp.usp.br

Fábio Ricardo Leme é psicólogo e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP-USP, Brasil.
Contato:
ricardosommer@ig.com.br

Data de recebimento: 06/02/2003
Data de aceite: 22/03/2003
 

Memorandum 4, Abr/2003
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. 
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos04/bairrao02.htm
 

 

 

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