Introdução
Neste artigo visa-se
documentar uma memória local da umbanda e, em paralelo, discutir as
prováveis raízes bantos desta religião brasileira.
Presta-se atenção às
práticas umbandistas e aos seus sentidos, no intuito de dar voz aos
praticantes da umbanda, invertendo a posição incômoda na qual muitas vezes
são colocados. Habitualmente a umbanda é tida como um subproduto
ideológico, desautorizada a se pronunciar sobre si própria, sendo o
testemunho de seus praticantes desconsiderado enquanto portador de
verdade. Supostamente padeceriam de uma experiência cujo sentido lhes
escapa, havendo que procurá-lo noutros lugares (Bairrão, 1999).
Na
contramão desta tendência e levando em conta a necessidade de desenvolver
pesquisas que reconheçam autenticamente a voz de pretensos “objetos” de
estudo, deixando que ela os revele e mostre à sua maneira, buscou-se
salvaguardar a memória e preservar o patrimônio cultural de parcela
importante da comunidade negra que viveu e vive na região de Ribeirão
Preto, através do registro documental das suas tradições, vivências
comunitárias e cultura religiosa.
Segundo Casal (1997), a
memória guarda os momentos mais significativos e coerentes das vidas
humanas. Por seu intermédio, os nossos colaboradores revelam a si próprios
e aos outros. Na voz que ecoa na história e na memória, singular e
coletivo emergem. A experiência de cada um move-se através das lembranças
e vidas dos outros, ganhando alcance comunitário e expressando situações
comuns ao grupo. A periodização que cada colaborador faz de sua existência
está indissoluvelmente ligada à leitura que faz do presente e ao contexto
a partir do qual é solicitado a falar (Meihy, 2001), sendo fundamental
para o modo de ser e de se organizar da sua comunidade, tanto no tempo
atual, como relativamente às suas expectativas quanto ao futuro (Bosi,
1992).
Mais do
que fatos cronológicos, aqui se documentam memórias que são estórias: o
fabuloso imaginário umbandista, revelador do modo de ser profundo,
psíquico e cultural, das comunidades pesquisadas. A sua compreensão
contribui para o desvelamento do seu universo simbólico, tal como se
concretiza em Ribeirão Preto, ajudando a diminuir o preconceito sofrido
por estas comunidades (que se agrava ao assumirem a sua identidade
religiosa) e auxiliando a aumentar o conhecimento sobre a sociedade e a
cultura da região.
A
umbanda, a par de imediatamente se compreender como uma prática religiosa
que estrutura vínculos entre a vida terrena e o “mundo espiritual”, também
organiza e reflete relações sociais e as condições de existência de seus
praticantes, tornando-se extremamente importante nas suas vidas e sendo um
fator de preservação cultural e social destas comunidades. Compõe um vasto
universo simbólico e ritual profundamente enraizado em seus integrantes,
na forma de uma síntese original de elementos culturais de diferentes
proveniências. Nas casas pesquisadas, Tenda de Umbanda Ogum Guerreiro e
Pai Joaquim do Congo e Tenda Espírita de Umbanda Pai Benedito, este
sincretismo está marcado por envolver principalmente elementos africanos,
ameríndios e europeus – tanto provenientes do espiritismo, como advindos
do catolicismo popular, ou mais precisamente do que, seguindo uma sugestão
de Moisés Espírito Santo (1990), talvez conviesse denominar religião
popular portuguesa, por não ser uma versão depauperada da doutrina
católica cultivada pelas elites, mas um sistema distinto, que em muitos
pontos se lhe opõe.
Ortiz (1978) afirma ser esta
uma religião genuinamente brasileira, nascida do sincretismo,
principalmente, entre religiões africanas, ameríndias e européias. Há
aliás um bem estabelecido consenso entre especialistas quanto ao cunho
brasileiro da umbanda (Concone, 1987; Negrão, 1996; Magnani, 1986; Birman,
1983). Não obstante, na sua brasilidade, indubitavelmente, marcas
africanas respiram melhor do que noutros momentos da cultura nacional.
Tramonte (2001) sublinha a concomitância entre o aparecimento dos
primeiros terreiros umbandistas e a fundação de escolas de samba, tanto no
Rio de Janeiro como em Florianópolis.
Ligiero e Dandara (1998),
numa obra de divulgação atenta à discussão internacional sobre a diáspora
africana e à especificidade cultural banto, sustentam que as presumíveis
raízes bantos da umbanda seriam mais relevantes do que se tenderia a
supor. Encontram esta presença subjacente inclusive a elementos de outra
origem aparente, como o uso de cruzes (e crucifixos). Estes não
precisariam referir-se à antiga presença luso-católica no Congo e, pelo
contrário, em parte explicariam a sua aceitação (de fato, não obstante o
sincretismo, é praticamente impossível, mesmo no universo umbandista,
encontrar uma associação da cruz à crucificação: quando é o caso de aludir
à “Luz Divina” por meio da sua figuração antropomórfica como Jesus
Cristo/Oxalá, em vez de moribundo, em geral este se apresenta com as
pernas e braços soltos, cheio de vida). Os mesmos autores sublinham que
cruzes integram universalmente e em posição de destaque um tipo de código
característico das manifestações de religiosidade de origem banto, o qual,
no caso da umbanda, é denominado de “pontos riscados”. Este e outros
aspectos teriam escapado a especialistas europeus como Turner (1967) e só
recentemente, com o surgimento de uma etnologia africana autóctone,
estariam vindo à luz.
Igualmente a amplitude e
riqueza da tradição banto nas Américas começa a ser mais sistematicamente
estudada recentemente, a partir dos anos setenta (MacGaffey, 2000). No
Brasil é também a partir dessa década que a nagocracia que imperou nos
estudos afro-brasileiros passou a ser contrabalançada por pesquisas mais
atentas a formas supostamente menos “puras” de cultura africana no país,
algumas das quais marcam época e se tornam novos clássicos (por exemplo,
Goldman, 1984; Santos, 1995). Mesmo assim o conhecimento a seu respeito
permanece desproporcionalmente menor, relativamente ao que já se sabe
sobre a contribuição africana de outras procedências.
Na
literatura especializada mais antiga, as referências aos bantos, quando
não são pouco lisonjeiras, subestimam-nos. Tendeu-se a conceber uma
espécie de hierarquia racial entre africanos, colocando o banto no fim da
escala. Querino (1938) refere-se aos negros angolas como fazendo o tipo do
capadócio e supõe os integrantes da etnia nagô como, entre os negros, mais
inteligentes. O pioneiro Nina Rodrigues (1932) sobre-valorizou a
influência e presença sudanesas, contrariando evidências e autores que já
na sua época sustentavam o contrário. Arthur Ramos (1934) concentra a sua
argumentação no âmbito da cultura, eximindo-se de formular juízos raciais.
Na prática, desloca o âmbito da depreciação para uma esfera mais
“espiritual”: comparativamente aos sudaneses, os negros bantos padeceriam
de uma pobreza mítica, que teria levado à absorção da sua religião. Não
nega a persistência de traços bantos, mas os supõe “deturpados” e
“transformados” nos candomblés e macumbas de várias partes do Brasil. Mais
recentemente, a propósito do que intitula de macumba paulista, outro
clássico reitera que os bantos seriam desprovidos de “mitologia
desenvolvida” e adenda que não teriam uma “organização eclesiástica
suficientemente orgânica” (Bastide, 1973, p. 239).
Aparentemente não ocorreu aos pioneiros no estudo da presença negra no
país que estabeleceram estas descrições valorativas que aquilo que aos
seus olhos possa sugerir pobreza intelectiva, confusão mental, mesmo
degenerescência cultural, propensão para a imitação e fingimento, em
verdade possa expressar um modo de ser e de construir apreensões
cognitivas da realidade cujo único “pecado” seja o fato de radicalmente se
diferenciarem de maneiras de estar no mundo profundamente distintas do que
possa soar familiar ao modelo europeu. Pensaram comparativa e
subtrativamente a alteridade.
O reparo
não é uma acusação, até porque esta dificuldade, essa tradição a tem em
boa parte devido às dificuldades levantadas pelo pouco conhecimento da
cultura e especificamente da religiosidade banto na própria África,
situação que aos poucos se vem modificando.
Consideramos de bom alvitre, para conhecer e investigar processos
sócio-culturais brasileiros, estender até ao presente a recomendação de um
historiador como Alencastro (2000), para não isolar o estudo do que se
passava na margem ocidental do Atlântico Sul (Brasil), do que ocorria na
margem oriental (Congo, Angola...). A propósito da arte Kongo, MacGaffey
(2000) proporciona-nos uma análise dos Inquices (Minkisi) elucidativa do
universo espiritual banto:
Com certas exceções, a arte
dos Kongo não é figurativa; para os seus criadores e utilizadores, o
significado depende não apenas do contexto ritual de utilização, mas
também das suposições cosmológicas, das teorias explicativas da sorte e da
desgraça e, sobretudo, da língua Kicongo. Nestas obras, a relação entre a
palavra e a imagem é muito mais íntima do que, por exemplo, entre um
retrato e o seu título e legenda. Cada elemento de uma complexa figura
Nkisi destina-se a evocar uma ou mais associações lingüísticas, incluindo
metáforas e trocadilhos que, em conjunto, podem ser “lidos” como um texto
descrevendo os seus poderes e objetivos particulares. No decorrer da
composição do Nkisi, o nganga cantava o nome de cada elemento e o seu
significado. Infelizmente, essas vozes agora calaram-se e nunca mais vai
ser possível elaborar um dicionário de significados, porque grande parte
da magia dos Minkisi residia nas subtilezas da variação criativa. Grande
parte do vocabulário padrão é conhecido, mas no fim de contas, o que
conta, e o que certamente tinha imensa importância para os seus criadores,
era o impacto visual. (Idem, p. 38).
Este
autor reitera que cada divindade, Nkisi, se materializa em elaboradas
composições plásticas, que desde sempre provocaram um misto de fascínio e
de terror, levando à sistemática destruição dos Minkisi pelos missionários
ou funcionários coloniais que os coletaram, ou à diminuição do seu impacto
por meio de mutilações. Os que mais tiveram chance de sobreviver foram os
de feição antropomórfica, embora do ponto de vista nativo não fossem mais
importantes do que outros, feitos de cabaças, de panos, ou de potes de
barro.
A
dicotomia entre espiritual e material, tão cara ao modo de pensar europeu
e igualmente presente na mitologia iorubá, passa ao largo da mentalidade
banto. Aparentemente, nesta cultura, o que de outro horizonte se chamaria
de signo, comporta ser o que está sendo referido. Não representa,
apresenta. Não é isso, afinal, que está em pauta, por exemplo, no cuidado
e inseparabilidade entre meninas (futuras mulheres adultas e mães) e
bonecas que antecipam no presente os seus filhos futuros (Cameron, 2000)?
Identicamente os Inquices (Minkisi) não se reduzem, mas se presentificam e
manipulam, em criações artísticas de objetos cuja decodificação não pode
derivar de arquétipos míticos pré-estabelecidos.
Além
disso, entre os bantos, muitas vezes os significados e as valorações de
termos comuns entre etnias e línguas muito aparentadas variam, assumindo
mesmo conotações contrárias (Rodrigues de Areia, 1974). Denominações
relativas ao sagrado – tão cruciais como, por exemplo, “Kalunga” e
“Nzambi” – presentes em diversas etnias bantos, não têm significados
unívocos. Há variações do seu uso, segundo se trate de prosa ou de
linguagem poética, e o nomeado, em vez de referido, o mais das vezes é
aludido por intermédio do contexto de provérbios (Estermann, 1983).
Parece,
portanto, inadequado avaliar comparativamente esta “espiritualidade” com
modelos que pressuponham um tempo mítico originário, em que o ser e
sagrado já estejam perfeitos (completos) para sempre, encarnados em
mitologias e revelações que remetem a uma realidade metafísica e a um
tempo passado e imemorial.
O
sagrado banto constrói-se em cada presente, artisticamente, dependendo de
talento estético, capacidade imaginativa e habilidade performática. A
força e eficácia do Inquice dependem do nganga que lhe dá vida, que o
sintetiza como presença concreta de provérbios, trocadilhos, alusões, que,
prenhes de sentenças (mandamentos, leis) e interpretados intencionalmente
(avivados por interesses humanos), remexem a determinação do cosmo em que
se inserem, por meio da manipulação das entranhas reais e significantes de
corpos e grupos social e etnicamente particularizados. Revela-se imanente
ao âmbito do acontecer transicional (Winnicott, 1975, 1990). Manifesta às
claras a co-autoria humana, na forma de colaboração entre viventes e
ancestrais:
No pensamento dos Kongo, as
capacidades e poderes invulgares derivam do relacionamento com a terra dos
mortos. Os espíritos, diferenciados como sendo relativamente egoístas ou
benéficos para a comunidade, oferecem vários gêneros de poder aos vivos
através dos ritos de iniciação. As diferenças entre os espíritos são mais
políticas do que objetivas e estão intimamente relacionadas com a
rivalidade de indivíduos e grupos (MacGaffey, 2000, p. 43).
Entre os bantos, tal como na
umbanda brasileira, as capacidades e poderes invulgares derivam do
contacto com a terra dos mortos. Em ambos os casos há uma relação estreita
entre palavras e imagens, aludindo os elementos plásticos da sua
composição a provérbios e situações concretas, que dependem em larga
medida do talento do intérprete que os cria, insubstituível por um
catálogo dos termos que se utilizam, ou por uma referência a mitos
previamente memorizados.
As
diferenças entre os espíritos e mesmo as suas ações decorrem mais de
determinações políticas e circunstâncias sociais manifestas, do que se
disfarçam por trás de identidades metafísicas. Talvez sempre seja assim.
“Tocado” pelo humano, o radicalmente Outro, no fundo da imagem de si em
que espelha o fiel, revela-o à medida de uma verdade que lhe é relativa (Bairrão,
2001). Mas, nesse caso, conviria acusar um panteão dinâmico, que deixa a
coisa evidente, de miticamente pobre?
Não
seria viável estabelecer uma correlação entre estas circunstâncias e o
estatuto da iconografia que, com grande liberdade e com freqüência
idiossincraticamente, os terreiros umbandistas adaptam de outras
tradições, remodelando-a a seu bel-prazer, segundo razões alheias às
expectativas das suas fontes?
Já na
África esta literal incorporação de lendas e objetos é comum aos bantos,
que ao que parece têm talento e propensão para a inclusão do Outro, sem
perda da sua especificidade. É assim que Martins (1993), por exemplo,
documenta haver entre os Tutchokwe uma classe de espíritos obsessores
brancos, com os quais se fala em português (mesmo quando a língua é
desconhecida) e para os quais se ergue uma miniatura de capela na qual as
suas vítimas regularmente lhes rendem culto à feição católica (altar,
imagens) e se oferecem comidas ao gosto do típico paladar lusitano (bife
com batatas fritas e ovos estrelados!).
Deveriam
procedimentos dinâmica e estruturalmente semelhantes, aplicados à
assimilação do estrangeiro nas condições do exílio escravocrata, serem
interpretados como degenerescência, imitação, ou conciliação? Estes juízos
de valor, políticos e científicos, em verdade não revelariam uma
pré-concepção de identidade como mesmidade, presa a modelos ontológicos
substancialistas e apegada a narrativas fundacionais (mitos ou Revelações)
e expectativas metafísicas decalcadas da “gramática” cultural européia?
Não pressuporiam um modelo mais aplicável a tradições culturais de outras
partes da África, que assim mais facilmente se tornam visíveis a olhos
retorcidos por esse viés etnocêntrico?
Tradição banto brasileira em Ribeirão
Preto
Por todo o Brasil, como
também em Ribeirão Preto, a umbanda é especialmente praticada nas
periferias urbanas por pessoas humildes. Porém não se restringe a estas.
Dirigida por pais e mães de santo, tem como ponto forte do seu ritual a
incorporação das entidades da falange (linhagens de espíritos) de
determinado orixá pelos médiuns dos terreiros durante as giras (rituais).
Os pontos cantados (cânticos evocativos), tocados (toques de atabaque) e
riscados (escrita ritual) são os elementos ritualísticos que invocam as
entidades e servem de conduto para o andamento dos trabalhos, que não
ficam restritos às giras nos terreiros, sendo realizados, conforme a
necessidade, em matas, cachoeiras, no mar, cemitérios, encruzilhadas, nas
casas dos consulentes, etc.
A
umbanda tem como uma de suas grandes marcas o fato de ser uma religião de
inclusão, onde todos os segmentos sociais são recebidos de braços abertos,
inclusive aqueles muitas vezes excluídos pela sociedade, tais como
crianças de rua, homossexuais, prostitutas, mendigos, malandros, entre
outros.
A
sobrevivência da umbanda mais tradicional está em risco na região de
Ribeirão Preto. Por um lado, é muito atacada por outras religiões: ora é
criticada por manter atavismos africanos incompatíveis com a pretensa
cientificidade do espiritismo europeu, ora pelo contrário, no caso do
candomblé, é denunciada por não manter uma pretensa pureza religiosa
africana, lidando com entidades tidas como inferiores, por abrigar o culto
a muitas classes de espíritos, e não apenas aos orixás. Também a saída de
muitos de seus praticantes para os diversos cultos evangélicos, as
migrações decorrentes da desagregação das formas de vida ligadas à
tradicional cultura do café, as condições do trabalho com a cana e mais
atualmente a reorganização urbana (que desarticulou muitas das suas
comunidades), bem como a escassez de informações públicas a seu respeito,
e por fim a preservação e transmissão deste patrimônio cultural de maneira
oral, ameaçam a sua continuidade.
Sendo
assim, é nosso interesse que, a partir das narrativas dos colaboradores,
através de suas memórias se chegue a algumas das verdades que fundamentam
o modo de ser e de se organizar destas comunidades, sem a intenção de lhes
atribuir uma explicação, mas tão somente de as desvelar, uma vez que
tendemos a concordar com a fala de uma de nossas colaboradoras, Dona
Joana, que disse-nos que:
... a umbanda é uma coisa
muito melindrosa, você pode trabalhar a vida inteira nela e você nunca
entende ela, entende assim, você nunca vai no fundamento dela, é uma coisa
assim que não tem explicação. (Depoimento Joana, 10/01/02).
A
narrativa é uma forma de organização das experiências vividas (Nunes,
1988). Ao darmos voz às narrativas de nossos colaboradores, estamos
propiciando-lhes um espaço de organização de suas vivências. Partindo do
conhecimento produzido pela psicanálise, sabemos que o inconsciente tem
uma forma de organização diferente da ordem do consciente, linear,
racional e lógica. Nas narrativas esta transposição entre inconsciente e
consciente é feita. Tomamos o cuidado, ao propiciá-la, de não desprezar as
manifestações paradoxais presentes no discurso de nossos interlocutores.
Por exemplo, aquilo que é dito e negado posteriormente, continua tendo
valor. As contradições entre os vários discursos de nossos colaboradores
sobre um mesmo assunto e as contradições dentro do próprio discurso têm
valor em si mesmas, pois interpretamo-las como reveladoras de impasses
subjetivos e da complexidade do assunto abordado.
Recorreram-se a gravações em áudio e vídeo das festas, rituais, trabalhos
e narrativas sobre as memórias e histórias dos colaboradores, bem com às
suas explicações sobre estes registros; a fotografias, tanto as tiradas no
contexto da pesquisa, como as dos álbuns dos colaboradores; a anotações em
caderno de campo de dados e impressões; à observação participante em
rituais, festas; e à convivência regular junto às comunidades e a
entrevistas livres.
Foram objeto de nossa
atenção elementos componentes dos terreiros e do ritual: as principais
entidades recebidas; a disposição das imagens no altar e a sua
significação; ervas rituais, seus usos e significados; animais, seus
orixás e funções no terreiro; locais de trabalho religioso; população que
freqüenta a umbanda; terminologia, visão, organização e explicação da
umbanda por cada casa.
As mães de santo dirigentes dos
terreiros, com suas histórias de vida, memórias e narrativas, foram as
principais colaboradoras, mas não as únicas. Freqüentadores, médiuns,
familiares e demais participantes da comunidade colaboraram para a
obtenção de informações relevantes.
Como os depoimentos foram recolhidos
durante conversas comunitárias no quadro da convivência propiciada pela
observação participante, o sujeito depoente, fundamentalmente, foi a
memória coletiva. Partimos do pressuposto de que nossos colaboradores não
são aqueles que nos falam sobre a umbanda, mas sim que é a cultura
umbandista, como fenômeno social, que nos fala através deles, posto que os
significantes circulam socialmente, estabelecendo laços entre uma grande
quantidade de pessoas (Bairrão, 2002) e não são propriedade privada de um
ego ou de um conjunto de egos. Os significantes estão presentes no
contexto social, histórico, nas memórias, na fala, no não dito, não sendo
restritos ao psiquismo nem a indivíduos. O universo sígnico intrapsíquico
não é diferente do presente na coletividade externa, “o mais intimo
processa-se com os elementos mais públicos” (Idem).
As visitas aos terreiros duraram mais
de um ano e meio. Nos primeiros seis meses de contato não foram feitas
entrevistas, filmagens ou qualquer outro tipo de coleta de dados que não o
proveniente da observação participante. Isto nos serviu para o
estabelecimento de um vínculo de confiança, permitindo-nos a obtenção de
autorização para recorrer a outros procedimentos e um acesso mais amplo à
vida da comunidade.
O contato mais franco começa quando o
pesquisador, conforme o processo de afiliação a que se submetem os
freqüentadores dos terreiros, acaba sendo significado como mais um
afilhado da casa, o “filho” pesquisador.
Os
terreiros
A partir de relações com praticantes da
religião em Ribeirão Preto, pôde-se chegar até antigas casas de umbanda da
região, a Tenda de Umbanda Ogum Guerreiro e Pai Joaquim do Congo e a Tenda
Espírita de Umbanda Pai Benedito. A primeira, dirigida pela mãe de santo
Dona Tonica e pelo seu marido Sr. Aguinaldo (Guina), setuagenários que
comandam a casa há mais de quarenta anos, e a segunda, dirigida pela mãe
de santo Joana, filha carnal e espiritual de Dona Chiquinha, muito famosa
na região, falecida há quase dez anos e fundadora da casa de Pai Benedito.
Esta tradição é o que nos assegura um contato com a antiga presença
africana na região de Ribeirão Preto.
Estes
terreiros, localizadas em bairros periféricos de suas respectivas cidades,
foram construídos na parte da frente das próprias casas das mães de santo.
São barracões retangulares onde são realizados os rituais semanais. A
porta de entrada dá para a assistência (local de onde consulentes e
visitantes assistem ao ritual), que fica de frente para o altar, onde
estão dispostas as imagens, em sua maioria, dos orixás e de santos
católicos sincretizados com aqueles e de espíritos que “baixam” na
umbanda. O altar é construído em forma de degrau, sobre um vão livre onde
tem que ter água corrente, pois aí ficam as imagens do “povo da água”
(orixás e espíritos afins com o elemento aquático) – a de Iemanjá, por
exemplo.
A disposição das imagens no altar segue
uma seqüência provavelmente imbuída de significados, os quais não nos
foram revelados. Porém, Oxalá/Jesus Cristo ocupa o lugar mais alto em
ambas as casas. Na parede da porta de entrada ficam algumas imagens de
exus e pombas giras, tais como Zé Pelintra e Maria Padilha, que, como
entidades do “povo de rua”, devem estar próximos a esta.
Compõem ainda os elementos físicos do
terreiro os atabaques, as ervas rituais, quadros e imagens, que ficam
espalhados por ele.
As giras, realizadas à noite, acontecem
de duas a três vezes por semana, sempre às segundas e sextas feiras e
eventualmente às quartas-feiras. As segundas e quartas feiras são
dedicadas aos pretos velhos, caboclos, baianos e demais entidades da
direita. Às sextas estas entidades também são “cuidadas”, mas na última
sexta-feira do mês, a partir de determinada hora, as da “esquerda” vêm
para trabalhar por aqueles que delas precisarem. As giras, comandadas
pelas respectivas mães de santo, começam com pedidos de proteção e
orações, algumas delas católicas, como o “Pai Nosso”. Na seqüência são
tocados e cantados diversos pontos para cada orixá, invocando as entidades
de sua falange, que então se incorporam em seus “cavalos” (médiuns) e
“trabalham” por aqueles que as procuram.
Os médiuns ficam enfileirados, homens
de um lado, mulheres de outro, cantando e dançando enquanto esperam o
momento da incorporação. Durante esta, entram em transe, provocado,
segundo nos contam, pela possessão pelas entidades que recebem. Cada um
dos médiuns tem um grupo de entidades com quem trabalha, as quais foram
devidamente preparadas e “alinhadas” (2) pela mãe de santo durante o
processo de desenvolvimento mediúnico a que eles se submetem.
Os freqüentadores dos terreiros são, em
sua maioria, pessoas da própria comunidade onde se localizam. Estas em
geral pertencem a uma classe economicamente desprivilegiada e com baixo
grau de escolaridade. Não obstante, são portadores de uma rica cultura
“popular”, advinda da prática umbandista.
Eventualmente freqüentam os terreiros
juizes, promotores, policiais, políticos, praticantes de outras religiões,
tais como, evangélicos, católicos e candomblecistas, entre outros, à
procura dos trabalhos realizados pelas entidades. Isto ocorre por esta
umbanda se caracterizar, entre outras coisas, como uma religião de
prestação de ajuda. Quando um consulente ali chega, ao falar com os
espíritos, sempre lhe é perguntado algo do tipo “o que você quer de mim?”.
Constatamos que fica um tanto quanto estranho participar de uma gira e não
se “consultar”. Afinal de contas, o sentido destes rituais públicos é
fazer-se ouvir e ser cuidado pelas entidades. Sua função é essa, prestar
ajuda, “fazer caridade”, e por isso há a expectativa de que quem ali vai
as procure.
As
ervas e os animais
O uso de “ervas” rituais é uma
constante na prática umbandista. Pudemos notar que nestas casas a sua
utilização é feita de forma bem simples. Segundo Dona Tonica, mais de
cento e vinte tipos de “ervas” são usadas na produção das garrafadas. Após
serem colhidas, é feita a sua mistura com álcool, produzindo um líquido
escuro de cheiro agradável, que é utilizado para as mais diversas
finalidades, como, por exemplo, machucados, contusões, benzimentos,
doenças em geral e para expurgar entidades maléficas que sob a sua ação
abandonam a pessoa em que estão “encostadas”. No terreiro de Dona Tonica é
comum durante as giras os médiuns serem molhados com este líquido na
cabeça ou em áreas do corpo em que alguma entidade os esteja incomodando.
Muitas das “ervas” usadas nos terreiros
estão ligadas à prática da medicina popular. Algumas dessas “ervas”
tradicionais, como arruda e quebra-pedra, são utilizadas individualmente.
Em relação à primeira, usa-se um pequeno galho no canto da orelha para
espantar mau olhado. A segunda é utilizada na produção de chá para
moléstias especificas, como pedra no rim.
As mesmas características atribuídas a
“ervas”, muitas vezes, são também, atribuídas a entidades que têm os
mesmos nomes (por exemplo, jurema, arruda, guiné), revelando-nos um
universo significante extremamente rico que não será aprofundado nesta
pesquisa, já que não é essa a pretensão deste trabalho.
Cada terreiro também tem seus animais.
Nestes casos, cães pretos, ligados aos exus que conferem proteção às
casas. Durante as giras a sua presença não causa incomodo nenhum, muito
pelo contrário. Se lá estão, é porque se fazem necessários, pois estão
associados às entidades referidas, e não sem motivo por ali perambulam.
Dona
Maria Abadia
Morou em
Ribeirão Preto uma senhora cuja história e proveniência permanecem pouco
conhecidas, mas cuja vida e atuação inscrevem-se em comum nas histórias e
memórias dos antigos terreiros estudados. Até onde se pôde averiguar, não
há referência a outras casas ou outras mães e pais de santo mais antigos
na região.
As
narrativas que a incluem permitem supor que tenha de fato desempenhado um
papel notável na implantação e expansão da umbanda em Ribeirão Preto e
região. Esta senhora era Dona Maria Abadia, a mais antiga mãe de santo
viva na memória das tradicionais casas de umbanda pesquisadas. Até onde se
tem notícia, não deixou herdeiros que tocassem a sua casa, apesar de a
certa altura contar com mais de cem médiuns sob o seu comando. Mas Dona
Maria Abadia formou, além de muitos médiuns, futuros pais e mães de santo,
que com o tempo foram abrindo seus terreiros na região.
Não se
sabe precisar exatamente a época em que morreu, mas contam-nos que Maria
Abadia já era bem velha na época de fundação dos terreiros colaboradores,
na primeira metade do século XX. Dona Tonica a conheceu por volta dos anos
quarenta, com aproximadamente vinte e três anos de idade. Hoje, 2003, ela
já passa dos 70.
A
vida antes da umbanda
A
trajetória das casas pesquisadas, mesmo antes de sua fundação, guarda
semelhanças marcantes. Na primeira metade do século XX, Dona Chiquinha e
Dona Tonica, oriundas da zona rural, migraram para a cidade em busca de
melhores condições de vida. Foi somente ali que encontraram terreiros de
umbanda organizados.
Dona
Chiquinha, ainda criança, tornou-se benzedeira famosa.
Ela com sete anos já fazia
cura, sem saber que estava fazendo cura, porque uma criança de sete anos
não sabe nada. Então uma pessoa estava sentindo dor, ela ficava passando a
mão, passando a mão, meu avô que contava, meu avô e ela, a pessoa ficava
boa, aí ela ia brincar para lá e a pessoa ficava boa, não sentindo nada.
Às vezes tinha gente doída lá, histérica, quebrando tudo, ela entrava no
meio e ia conversando, conversando, e a pessoa ficava boa. Minha mãe foi
desse jeito. (Depoimento Joana, 10/01/02).
Com o
passar do tempo sua fama de benzedeira foi crescendo e por motivos de
saúde, má colheita, picada de cobra, entre outros, era procurada pelos
moradores das redondezas, em busca de solução.
Os primeiros comportamentos atípicos,
ouvir vozes, falar e ver pessoas que outros não viam, dores agudas em
determinadas regiões do corpo, períodos longos de inconsciência, entre
outros, apresentados pelas futuras mães de santo quando ainda jovens, a
princípio foram tomados como patologias e só mais tarde interpretados como
mediúnicos.
Dona Chiquinha após passar
alguns dias sem comer nem beber e falando com “pessoas” que apenas ela
via, foi levada por seu marido, Luiz, que não aceitava que esta pudesse
ter algum tipo de mediunidade, para uma consulta médica.
... aí meu pai não aceitava
aquilo, ele achava que era ruim, a casa ficava cheia de gente, não
aceitava, sabe esse povo antigo? ... na época que ela não comia, não bebia
nada, ela não emagrecia. Parecia que ela era alimentada pelos espíritos,
pelos espíritos bons, não ruins, sabe? Então o dono da fazenda falou
assim: - Seu Luiz por quê o senhor não leva a Dona Chiquinha prá consulta?
Ela está ficando doida, a gente passa e ela está conversando e não tem
ninguém perto dela. Mas não é! Ela estava conversando com os espíritos,
sabe? (Depoimento Joana, 10/01/02).
Nos
diversos exames psiquiátricos que fez, nada de anormal foi constatado. Seu
próprio médico, Dr. Virgílio, sugeriu-lhe que fosse conversar com uma
médium Kardecista, Dona Ludovina, que lhe falou sobre sua mediunidade e
explicou-lhe que não estava “sofrendo dos nervos”. A esta época, nem Dona
Chiquinha nem Seu Luiz tinham conhecimento algum sobre qualquer das
religiões espíritas, apenas conheciam algumas práticas de “benzeção” comum
na zona rural e já praticadas pela própria Chiquinha.
Porque
naquela época, há cinqüenta, sessenta, setenta anos atrás, não existia,
assim, centro. Era mais as pessoas que benziam, mas não tinha santo, sabe?
Assim, imagem não tinha, imagem de caboclo, preto-velho, baiano, não
tinha. Se tinha, era muito longe daqui, né?, ... há cinqüenta anos atrás,
quer dizer, sempre existiu a umbanda, tudo, só que era diferente, não
tinha as imagens. O povo então, se tivesse que fazer uma cura, a pessoa
quando estava conversando pegava um pauzinho e fica... [riscando], no
chão, dali a um pouquinho, se fosse um feitiço para matar, matava, se
fosse para curar, curava. Era assim. (Depoimento Joana, 10/01/02).
Ao final de uma dessas consultas
médicas, enquanto voltavam para a roça de trem, um velhinho, negro, de
cabeça branca, puxou conversa com Seu Luiz e disse-lhe:
- o
senhor pensa que sua esposa é doente? Ela não é doente. Ela é uma ‘média’
[médium], ela vai fazer muita cura, e vai prestar caridade. Aí meu pai
disse assim - Mas a gente não entende o que é isso – Aí, falou assim: -
Entende, o que ela está fazendo é a caridade; é benzer as pessoas; é
cuidar das pessoas que procuram ela - Aí, explicou bem direitinho pro meu
pai - ela é média, o senhor tem que levar [a um centro] – Aí, meu pai
falou assim: - Mas eu já levei a roupa dela para benzer – Aí, o homem
falou assim: - Não é para levar só a roupa, é para levar ela, é ela que
tem que participar. (Depoimento Joana, 10/01/02).
O velhinho explicou-lhe, também,
detalhadamente, o que se passava com Dona Chiquinha, mesmo sem conhecê-la.
Porém Seu Luiz só se convenceu quando um dia em sua casa, na roça, teve
uma visão. Ao entrar na cozinha viu e conversou com sua falecida mãe, que
o avisou para não atrapalhar o destino de Dona Chiquinha. Disse-lhe sua
mãe:
Olha,
você não têm que “coisá” [criar caso], porque ela veio ao mundo com essa
missão. Ela é uma média e ela vai ser ‘benzedeira’ e você não pode brigar
nem entrar no meio. O que ela veio fazer na terra foi isso, essa caridade,
ela veio prestar caridade. (Depoimento Joana, 10/01/02).
Convencido, Seu Luiz a levou de volta
ao centro onde dona Ludovina atendia. Lá Dona Chiquinha recebeu o espírito
de mesa branca Dra. Lucia e por quinze anos trabalhou neste centro
espírita kardecista, até incorporar pela primeira vez entidades
umbandistas, o que a levou até Dona Maria Abadia.
Com relação a Dona Tonica, ela teve uma
vida difícil e dolorosa, principalmente em sua adolescência, quando, algum
tempo depois da morte de sua mãe, recebeu a notícia, de seu pai, de que
ela deveria cuidar dos irmãos, pois ele iria embora.
Meu pai
pegou e falou: - Minha filha! Agora nós perdemos a tua mãe, você vai tomar
conta dos seus irmãos que o seu pai vai sumir. (Depoimento Dona Tonica,
05/11/01).
Aos quinze anos Dona Tonica se via
sozinha com quatro irmãos para criar. Sua sorte é que a avó e as tias
moravam na cidade e a chamaram para morar com ela. Dona Tonica aceitou
prontamente, vendeu o pouco que tinha e para lá foi em busca de emprego,
para poder sustentar seus irmãos.
Estabelecida na casa da avó, ela não
teve dificuldades para achar trabalhos como empregada doméstica. Porém,
não conseguia ficar muito tempo neles, arrumava boas patroas, mas não
durava muito tempo no emprego, o que acabou por se tornar um grande
problema em sua vida.
Eu
arrumava patroas boas, mas não sei... quando era dali um pouco eu
desgostava da patroa, eu não queria mais. Aí, ia arrumar outra patroa.
(Depoimento Dona Tonica, 05/11/01).
Somou-se a este problema um outro, que
acabou por ser decisivo em seu encontro com a umbanda: o fato de não
conseguir se firmar com nenhum namorado.
Eu não
tinha sorte com namorado, eu arrumava um namorado, dali uns dias eu não
queria mais, eu não gostava dele... (Depoimento Dona Tonica, 12/12/01).
Com um destes namorados chegou a
acreditar que tudo iria dar certo, porém...
Aí
comecei a namorar esse moço, eu pensei que era para casar, já não tinha
mãe, já não tinha o pai, né? Pensei que era para casar. E namoramos
bastante, e quando eu penso que não, apareceu um nenê... (risos). Quando
eu estava grávida de oito meses, ele casou com a outra de Franca. Aí,
casou com a outra de Franca, eu chorei muito. Tudo por que eu não pensei
que ele fosse fazer isso, né? Aquele tempo não usava muito essas coisas de
ficar fazendo nenê assim, sem casar. Então, mas o que eu ia fazer? Fui
tocando a vida, né? Toda vida, toda vida eu trabalhei nos meus empregos.
Aí, ele casou, eu fui tocando minha vida, fui criando o meu filho.
(Depoimento Dona Tonica, 12/12/01).
Devido a estes problemas, suas tias
Maria José e Oristela, kardecistas, a pedido da avó, levaram-na ao centro
da “finada Maria Abadia”, que revelou a Dona Tonica a origem de seus
problemas: a mediunidade não desenvolvida a estava atrapalhando.
A
iniciação
Dona Chiquinha, apesar de ter passado
por centros kardecistas e umbandistas antes de ter seu terreiro,
desenvolveu sua mediunidade sozinha. Contrariando a norma da maioria dos
médiuns de terreiro, Dona Chiquinha não foi preparada para receber suas
entidades. Isto se deu espontaneamente, em situações variadas, e em
diferentes contextos.
Mesmo
sem ir ao centro de mesa branca, que ela nem sabia o jeito que era, ela já
recebia os espíritos de mesa branca... Aí foi onde que ele (Seu Luiz)
trouxe ela nessa mesma mulher, na Dona Ludovina. Aí, ela sentada lá, uma
outra mulher falou: - Senta aqui Seu Luiz. Aí, meu pai falou: - Mas eu num
mexo com essas coisas. Então minha mãe que era média ficou na assistência,
meu pai que num era, eles puseram na mesa. Aí, de repente ela incorporou
lá, ela incorporou. Meu pai veio, ele levantou da mesa e ela que ficou no
lugar do meu pai, ele não era médium... Então minha mãe “tocou”
[participou como médium] quinze anos no Allan Kardec, quinze anos. De
repente começou a incorporar nela Caboclo, Baiano, Preto Velho e minha mãe
não sabia, não entendia dessa linha. (Depoimento Joana, 11/01/02).
Dona Chiquinha foi levada para o centro
de Dona Maria Abadia por uma consulente sua, Dona Edu, a qual
periodicamente ela benzia. Na primeira gira que assistiu seus guias se
manifestaram. Ela incorporou no lugar da assistência, sem nenhum processo
de iniciação umbandista anterior.
Aí,
chegou lá, minha mãe ficou na assistência. É, mesa branca não tem nada a
ver com o “centro” [de umbanda]. Nos “trabalhos” [rituais umbandistas,
giras] começou a puxar ponto de preto velho e minha mãe incorporou lá no
meio. você vê! Ela nunca tinha visto um terreiro, viu aquele dia, chegou,
sentou e ficou quieta. Então o preto velho veio de lá e saudou o “congá”
[altar] certinho, coisa que ela nunca tinha visto ninguém trabalhar nisso.
Ela foi “passando” [recebendo] os “guias” [entidades] tudo, passou todos
os guias. Os guias vieram, conversaram. A dona do terreiro conversou,
explicou o jeito que é, e que não é. Então, dali para a frente, era aquela
linha que ela tinha que seguir. Aí, foi que ela “tocou” [praticou] o
resto, que deu sessenta anos.(Depoimento Joana, 10/01/02).
Quando, tanto Dona Chiquinha como Dona
Tonica, conheceram Dona Maria Abadia, seu terreiro chegou a ter mais de
cem médiuns, o que a fez tomar a decisão de liberar aqueles que assim o
desejassem, para continuar seu desenvolvimento com outras mães e pais de
santo.
Dona Tonica foi uma das médiuns que
saíram, indo terminar seu desenvolvimento mediúnico em outro terreiro. Foi
para a casa de José de Paula, conhecido como Pai José de Xangô, amigo seu
da roça, desde antes de ambos serem umbandistas.
Mas como
ele recebia o Pai Xangô, então apelidaram ele de Pai José de Xangô. Então,
ai, ela [Maria Abadia] falou: - O Zé de Paula vem aí. Ele não tem médiuns
e quem quiser ir para o centro dele pode ir. E ele abriu o centro dele lá
no Ipiranga, para cima da “estaçãozinha”[estação de trem]. E eu fui... eu
fui. Comecei a trabalhar [como médium]... e me dei bem... ele também se
deu bem comigo. Aí, ele falou: - Agora eu vou fazer a sua firmeza, para
vocês trabalharem melhor, e vocês vão ser madrinhas do meu centro.
(Depoimento Dona Tonica, 05/11/01).
Mais ou menos após cinco anos de
trabalho com Pai José, Dona Tonica “fez a cabeça” e teve seu destino
traçado pelas previsões de Pai José: segundo ele, inevitavelmente, ela
seria mãe de santo.
Nós
ficamos fechadas em um quarto. Roupa de santo..., bombacho comprido
branco, tudo branco. A Maria do Carmo não pode ir, porque a mãe dela ficou
doente. Então fui eu e a Ruth. Então aí nós fomos, nós tomávamos banho,
mas colocávamos roupa de santo. Quinze dias... quinze dias... Aí, quando
chegou um dia, deu os quinze dias, ele foi a São Paulo, pegou os
“anteparos” [elementos ritualísticos, como uma tesoura “virgem”], o que
tinha de fazer, né? Aí, ele veio e primeiro ele fez a cabeça da Ruth e
depois ele fez minha cabeça. Porque só nós duas é que estávamos deitadas
lá. Ele fez a nossa cabeça e quando chegou o dia que nós íamos sair, aí
ele... nós saímos... com uma “tesoura virgem” [citada acima]... um
“ponteiro virgem”, ele raspou, cortou, ele cortou aqui (aponta o lugar) o
nosso cabelo em cruz, o meu e o da Ruth, raspou com a navalha, e aqui ele
fez a cicatriz, ele fez a cicatriz em cruz. Depois do “apreparo”
[elementos ritualísticos, como ervas e plantas preparadas para o ritual]
que ele foi buscar em São Paulo. Pôs o apreparo. Primeiro ele deu um banho
na nossa cabeça, depois aí fez isso, né? Nós ficamos como se fosse assim,
ficamos de preceito. Mas sempre ele falava para mim: - Tonha você afirma
[firma, concentra-se], que um dia você vai ter tua “casa de santo”. Eu
falava: - Não padrinho, eu não quero, é muito trabalho. Cento e tantas
pessoas pra tomar conta? Hummm! Eu falava: - Não! Não! Não quero. Ele
falava: - Você vai ter tua casa de santo, você vai ser mãe de santo.
Quando chegou no dia que nós saímos da camarinha, era uma camarinha
fechada. Era quartinho dos homens e o quartinho das mulheres e no meio era
a camarinha. No quarto das mulheres entrava na camarinha. E nós ficamos...
aí, ele vomitou fogo, quatro dias. Nós estávamos lá dentro, mas lá fora o
povo tava cuidando de nós. Mandamos fazer roupa nova, então eu comecei a
usar coroa, aí eu comecei a usar coroa. Ele fez uma capa, que eu tenho a
capa até hoje, uma capa de Ogum, Ogum..., acho que Cosme e Damião, o outro
é... acho que eu não lembro mais! Tá aí dentro! Aquela eu ganhei depois.
Ele preparou tudo aquilo na hora que nós saímos, nós saímos já para ficar.
A maior parte do trabalho [no terreiro] ficou só para nós. Ai depois a
gente falou... agora a madrinha Tonica e a madrinha Ruth, ficamos sendo
madrinha. Consagrou nós madrinha de santo. (Depoimento Dona Tonica,
05/11/01).
Joana
Dona Chiquinha faleceu há
aproximadamente dez anos deixando o terreiro de herança a uma de suas
filhas, Joana, que desde tenra idade conheceu a umbanda. Na verdade, Joana
cresceu acompanhando a mãe no terreiro.
Eu
vivia, assim, dentro do centro. Nasci e criei ali dentro do centro, agora
os outros não, os outros irmãos iam, mas era muito pouco. Eu ficava
infiltrada ali dentro mesmo, eu nunca... sabe? Eu desenvolvi com sete
anos, então é muita coisa ali, nasci e criei ali, é muita coisa, você via
assim muitas coisas, você via as pessoas que chegavam ruim, que ficavam
boas, então você via muita coisa bonita. (Depoimento Joana, 10/01/02).
Como muitas vezes ocorre na umbanda,
algum dos filhos da mãe de santo fica com a missão de tocar a casa, mas de
forma peculiar Joana começou a receber o Preto Velho de sua mãe, Pai
Benedito, depois que esta morreu. Herdou não só a casa, mas também a
principal entidade de Dona Chiquinha, o chefe espiritual do terreiro.
Os fatos que precedem a herança da casa
por Joana nos mostram a forma peculiar como sonhos e visões são tratados
nesta umbanda, indicando-nos o estatuto de realidade que ganham quando
manifestos:
Joana não foi iniciada para dirigir a
casa. Não obstante ter ouvido da sua mãe, ainda em vida, “o bastão é seu,
minha filha”, não quis ou não pode nessa altura entender o que lhe estava
sendo passado, pelo implícito da revelação de uma dolorosa perda iminente.
Adquiriu ciência de sua missão após a morte da mãe, através de sonhos e
visões que teve com ela. Por estes, sua mãe lhe explicou algumas coisas
que deveria saber. O restante lhe foi passado pelas entidades que recebe e
que a orientam no transcorrer de sua prática à frente do terreiro.
Um sonho em particular teve profunda
importância nesse período. Joana sonhou sete noites seguidas com sete
pretos velhos da Bahia. Sua mãe a acompanhava em todos os sonhos. Nestes,
foram-lhe mostradas sete “ervas” e explicado como deveria proceder no
comando da casa. Uma destas “ervas” era a hortelã, que ganha, a partir
deste sonho, um outro significado em sua vida. Para surpresa de Joana, em
seu sonho a hortelã tem um poder de cura, revelado pelos pretos velhos,
não conhecido em sua realidade desperta.
O conteúdo exato do que lhe foi dito e
o significado das ervas não nos foi revelado, por certamente se tratar de
um conhecimento reservado.
Joana conta com a ajuda de uma de suas
irmãs mais novas, Meyre, para conduzir os trabalhos. Ela é quem comanda e
fica responsável pela gira enquanto Joana está incorporada. Dada a
diferença de idade, poderá suceder à irmã. É solteira e não tem filhos.
Joana tem quatro filhos, sendo que
Gisele, a única menina, atualmente com 17 anos, possivelmente se tornará,
depois da tia, a herdeira do terreiro. A umbanda na casa de Pai Benedito é
passada de mãe para filha, do mais antigo para o mais novo, entre
mulheres, de geração a geração.
Quebrando com a tradição de se dedicar
desde pequena à atividade umbandista, Gisele quer primeiro estudar,
tornar-se advogada. Guarda para mais tarde a sua iniciação mediúnica e a
preparação para vir a comandar a casa.
A
prática umbandista
Caridade e cura são os preceitos
básicos da umbanda praticada nestes terreiros tradicionais. Não obstante a
diversidade das características das falanges dos orixás que ali são
cultuados, as ações das entidades concentram-se nestas duas
características. Este controle é obtido pela doutrinação da entidade e
pela autoridade da mãe de santo e dos “guias” dirigentes da casa.
Mesmo as
da esquerda fazem caridade. Se você pedir, eles fazem caridade. Agora se
você pedir maldade, eles vão fazer também, mas aí, se tiver igual, também,
uma mãe de santo que não gosta que faça isso, então, entra no meio e não
deixa fazer. Se eu estou incorporada, minha irmã não está, se minha irmã
está, eu não estou. Então eu fico observando, eu não deixo, de jeito
nenhum, jamais, fazer mal para qualquer pessoa. Pode ser o maior inimigo
meu, eu não faço, nem desejo mal. Se ele deseja pra mim, que Deus dê em
dobro pra ele. (Depoimento Joana 19/04/02).
Nos sessenta anos que Dona Chiquinha
tocou o terreiro de Pai Benedito muita caridade e curas foram feitas, o
que a tornou uma das mães de santo mais famosas da região.
Mas
minha mãe trabalhava [como médium], vixe! Era uma cearense altona, nossa
senhora! Ela era mais alta que minha menina, ela era altona e não tinha
preguiça, nunca teve. Qualquer hora que a pessoa chegasse, era uma, eram
duas, eram três horas da manhã, ela levantava e ia atender. Às vezes ela
estava almoçando ou jantando, chegava gente pra benzer, ela via que a
pessoa estava ruim mesmo, ela largava o prato e ia atender. (Depoimentos,
Joana, Meyre, 10/01/02).
À procura de seus trabalhos vinham
pessoas da comunidade, juízes, policiais, promotores, políticos, além dos
freqüentadores habituais, que todas as semanas participavam das giras.
A missão recebida por Dona Chiquinha de
ser mãe de santo não se restringiu ao terreiro, mas foi vivida de forma
intensa, na extensão da sua família de sangue para a de santo. Além de
seus doze filhos carnais, criou mais, já que era mãe de toda uma
comunidade.
Minha
mãe fez muita caridade, fora filho dos outros que ela criou. As mães
vinham, pegavam, já estavam grandes pra trabalhar. Minha mãe criou muito
filho dos outros, vixe! Ela tinha os doze dela e tinha os outros. A panela
de comida que fazia era desse tamanho, assim. É! Pergunta pra elas mesmo
[dirigindo-se a Gisele e a Meyre], era “grandona”. Ela criou tanto filhos
dos outros e tudo o que chegava. Às vezes vinham de longe para benzer,
então correu o boato do centro, ela fazia muita cura, o povo vinha tudo,
então vinha gente que ela benzia e às vezes não tinha nada, não tinha
dinheiro, nada para comer, de longe. Ela pegava, fazia comida e dava para
aquele monte de gente. Nunca, sabe? Nunca ficou rica, também nunca passou
fome, nunca faltou nada. Nunca teve dinheiro, mas também a riqueza que ela
teve foram os filhos que ela teve e os filhos dos outros que ela criou. E
hoje eu tenho irmão loiro, branco, moreno, preto, de tudo quanto é cor,
mas é assim, a metade é tudo de criação. Irmão mesmo são doze. Então, a
batalha dela foi essa, ela benzeu muita gente, sabe? (Depoimento Joana,
Meyre, 10/01/02).
Não só a vida, mas a morte de Dona
Chiquinha foi marcada por acontecimentos “fantásticos”. Dias antes de
morrer ela reuniu seus familiares para contar-lhes que sua hora estava
chegando. Segundo Joana, Meyre e Gisele, contou exatamente o dia e hora em
que iria morrer. Para surpresa de toda a sua família, Dona Chiquinha
faleceu na hora e dia anunciados. Seu enterro reuniu uma grande quantidade
de praticantes e não praticantes da umbanda, que vieram dar seu último
adeus à mãe de santo tão querida na região.
Quando
Joana assumiu a casa, as coisas não mudaram. Herdeira da tradição e
prática umbandista de sua mãe, fez com que caridade e cura continuassem
como os preceitos básicos do terreiro.
Na casa
de Pai Benedito a responsabilidade das ações, boas ou ruins, não é das
entidades, mas das pessoas que lhes fazem pedidos.
Por isso é que eu falo, às
vezes as pessoas falam que isso aqui é uma coisa ruim, não é que é ruim,
não existe ruim, ruim é a pessoa que vai à procura de fazer aquilo. Então
quem é ruim é a pessoa, não são as entidades. (Depoimento Joana,
27/09/02).
A fé é
condição fundamental para se receber as graças pedidas.
Então, é a fé da pessoa e o
coração limpo. Então, é onde que eu falo que tudo o que a pessoa pede,
tudo que você pedir de coração limpo, você recebe. (Depoimento Joana,
27/09/02).
Certa vez uma senhora procurou Joana,
pois estava tendo tremores, dificuldades para andar e uma série de outros
sintomas que a impediam de ter uma vida normal. Esta senhora foi médium
umbandista e quando resolveu deixar a religião entregou o vestido da sua
pomba-gira (roupa ritual) para a sua patroa, que lidava com candomblé,
achando que esta era uma boa pessoa (segundo Joana). Sua patroa, mal
intencionada, fez “maldade” (trabalho para prejudicá-la) com a roupa,
legando-a a este estado de saúde. Infelizmente, no caso dela, foi cometida
uma falta grave dentro da religião – entregar a roupa de santo para alguém
mal intencionado. A força desta atitude foi tão grande que o destino desta
senhora já esta selado, seu caminho não tem volta e a sua falta de cuidado
com as “coisas da religião” a fazem sofrer até hoje.
Joana relata episódios pitorescos,
reveladores de uma consciência aguda da dupla atitude de certos segmentos
sociais relativamente à sua religião. Certa feita, uma “crente” que
habitualmente se benze com ela, ficou aflita e teve de ser escondida por
estar chegando, com o mesmo intuito, um contingente de outros membros da
sua igreja. Explicar-lhe que eles se encontrariam na mesma situação, não
adiantou. Noutra oportunidade, uma personalidade do poder judiciário da
região teve de sair pelas traseiras, ao se deparar com a chegada de
policiais seus conhecidos. Ao recordá-lo de que o seu carro estava
estacionado na frente, aquele alegou que ali se dirigira, para não ser
reconhecido, com o carro da sua mulher. Estas histórias e outras
semelhantes sempre são contadas sem ressentimentos e com bom humor,
tomando o cuidado de não identificar os protagonistas.
Já Dona Tonica, consagrada madrinha de
santo do terreiro de Pai José, continuou a trabalhar ali, exercendo
funções de maior responsabilidade entre os médiuns, posto que era uma das
madrinhas do centro. Alguns anos se passaram até que Pai José, devido a
problemas pessoais, teve de ir embora de Ribeirão Preto, deixando sua casa
sob o comando de Dona Tonica. Por um bom tempo Dona Tonica e Seu Aguinaldo
comandaram o terreiro instalado em um barracão alugado na periferia de
Ribeirão Preto, à espera da volta de Pai José. Como este não voltava e o
dono do barracão o pediu de volta, Dona Tonica viu seu destino se cumprir.
Devolveu o barracão, fechou o terreiro de Pai José e inaugurou seu próprio
terreiro, o terreiro de Pai Joaquim e Ogum Guerreiro.
A despeito das particularidades da vida
de cada uma das mães de santo, com Dona Tonica as coisas não foram tão
diferentes. Sua prática umbandista também foi e é marcada pela caridade e
pela cura. Seu papel de “mãe”, também, foi estendido para além do contexto
familiar. Em sua missão nesta vida teve como destino comandar a casa de
Pai Joaquim e criar, além de seus filhos de sangue, “pelo menos mais dois”
adotados, além de cuidar das crianças da comunidade.
Dona Tonica perdeu um destes filhos
adotados na guerra do tráfico de drogas, existente na região, e que atinge
de forma significativa o bairro em que mora (Vila Carvalho). Outra menina
por ela criada casou recentemente e agora é difícil que a recebam em
família, pois o marido, “crente”, opõe-se a que os visite.
Um dia, ao chegar-se no terreiro, no
meio da tarde, Dona Tonica estava com várias crianças, fazendo uma festa.
Eram seus netos e os filhos de uma senhora catadora de papelão, que
deixava as crianças com ela para ir trabalhar.
Se, apesar de todas as provações, sua
casa sobrevive há tanto tempo em Ribeirão Preto, é pela “firmeza” (fé e
dedicação) em relação à religião de seu marido, de sua filha Meiry e sua
própria.
Atualmente a casa de Pai Joaquim passa
por algumas dificuldades. Seus médiuns, na maioria mulheres,
principalmente as mais novas, em desenvolvimento, andam dando problemas a
Dona Tonica; além de que Seu Aguinaldo há algum tempo está preso a uma
cadeira de rodas, devido derrames atribuídos a um “tombo” (3).
Segundo Dona Tonica a causa desses
problemas está no “olho gordo”. Pais de santo constantemente vêm visitar o
terreiro, se encantam pela força e tradição da sua umbanda, o que os faz
desejar ficar com a casa. Tempos atrás um desses pais de santo veio
conhecer o terreiro, não só se encantou por ele, mas por sua herdeira,
Meiry. Propôs a ela que após a morte de Tonica e Aguinaldo eles tocassem
os trabalhos. Obviamente Meiry não aceitou. Aí começaram as dificuldades
acima faladas e que atualmente preocupam Dona Tonica e sua filha, que
constantemente têm que reunir suas “médias” (médiuns) para ver o que está
acontecendo. Indisciplina e falta de cuidado com as regras da religião
repetem-se entre elas, o que traz como conseqüência habituais “surras”
(4), dadas pelas entidades que nelas incorporam.
Já para Meiry, a conseqüência da recusa
foi seu quase enlouquecimento. Dona Tonica contou que, após sua filha
rejeitar a proposta deste pai de santo, esta passou por “maus bocados”.
Depois de um parto, começou a se comportar de forma muito estranha. Não
conseguia ficar por muito tempo em lugar nenhum. Ficava algumas semanas na
casa de Dona Tonica, arrumava suas coisas, e se mudava para casa da tia,
onde passava mais um tempo e fazia o mesmo. Separada do marido durante a
gravidez, dez meses depois que sua filha nasceu os primeiros sintomas
apareceram. Tudo por causa do pai de santo. Seus problemas só foram
solucionados quando foi levada ao terreiro, na cidade próxima de Pontal,
de uma “comadre” de Dona Tonica. Lá Meiry passou alguns dias sob o cuidado
dessa mãe de santo, que a “devolveu curada de seus problemas”.
Apesar
da caridade e das curas promovidas nos terreiros, dizem-nos que se engana
quem pensa que as suas vidas de médiuns são fáceis. Ter essa missão
significa ter, apesar da evolução espiritual como recompensa, uma vida
sofrida, fruto da ação de livrar as pessoas de seus problemas.
Durante
o ritual de incorporação, passam pelo “cavalo” os encostos (espíritos cuja
proximidade é prejudicial) e as dores dos consulentes. Os médiuns chegam a
ficar até três dias com o mal estar recebido, só se livrando dele com uma
sessão de descarrego e, no caso dos menos experientes, até perceberem que
aqueles incômodos não são seus, mas de outra pessoa.
... só
que a gente sofre muito. Então tudo que você ajuda as pessoas, tudo o que
você faz de bom para as pessoas, é sofrimento pra você. É pra mim que
estou ajudando..., quer dizer, eu passo a sentir aquela dor que a pessoa
sentia. Talvez com três dias aquela dor saia de mim, às vezes fica meses
em cima de mim, é assim! A gente sofre, você faz a caridade, mas você paga
um preço muito alto, entendeu? Você sofre muito, você sofre talvez aquilo
que a pessoa iria sofrer, você pega aquele sofrimento para você. É desse
jeito, não é fácil não... A umbanda é uma coisa muito melindrosa. Então, é
uma coisa que a sua vida fica em torno só disso, aqui é você benzer, sair
daqui e... ficar em casa, cuidar de filho, cuidar de marido. Então você
não pode sair. Quando você não me vê aqui, é porque eu fui fazer trabalho
[religioso] na casa de um, benzer na casa do outro, é gente que está ruim,
é essas coisas... (Depoimento Joana, 10/01/02).
A
atividade mediúnica se expressa até nos sonhos, que, como já dito
anteriormente, ganham um tratamento peculiar dentro da visão de mundo
umbandista. Nela a realidade vai muito além das vivências objetivas na
relação com o ambiente ou da atividade consciente, revelando-nos uma
riqueza imaginativa que compreende o real muito além dos contornos da
percepção profana. Segundo nos relatam, o “mundo dos espíritos” e o dos
vivos é separado por um tênue estado de inconsciência, que obviamente não
vale para os médiuns. Através de sonhos, visões, devaneios e pensamentos,
estes têm acesso a esta realidade para nós imperceptível, mas que não
obstante, entendem como objetiva. Nem dormindo os médiuns deixam de
exercer sua atividade.
Às vezes você vai deitar e não dorme aquele sono bom, às
vezes você está dormindo sente choque, é assim, às vezes alguma pessoa que
está te pedindo ajuda, que já veio benzer e está passando aqueles
problemas e está pedindo ajuda, então você tem que levantar, você tem que
acender uma vela, você tem que rezar, você tem que firmar a cabeça
[concentrar-se] mesmo, para aquela influência ruim não ficar com você e
atrapalhar você.
(Depoimento Joana, 10/01/02).
“Seu”
Aguinaldo nos conta que a primeira vez que teve contato com exus mirins
(espíritos infantis da linhagem dos exus) foi quando, ao descansar perto
de uma encruzilhada, viu duas crianças andando de bicicleta. Não fosse
pelas roupas e pela bicicleta serem muito antigas, talvez ele nem tivesse
parado para prestar-lhes atenção. Quando estas se aproximaram da
encruzilhada, “seu” Aguinaldo as seguiu com os olhos. Então elas começaram
a mexer em um despacho (oferenda ritual comumente feita numa
encruzilhada). Ele as advertiu para não fazer aquilo. Elas olharam para
ele e riram, desaparecendo sob o seu olhar.
A rápida passagem de Dona Tonica e os
quinze anos de “trabalho” de Dona Chiquinha com o kardecismo deixaram
marcas profundas na prática umbandista dessas mães de santo. Ainda hoje
isto se evidência pela presença de imagens de Allan Kardec e de Bezerra de
Menezes junto às dos pretos velhos e dos demais orixás e pela realização
esporádica de sessões de mesa branca com médiuns kardecistas nos
terreiros. Joana usa uma frase, muito popularizada por Chico Xavier, para
definir o fundamento básico de sua prática umbandista: “fazer o bem sem
olhar a quem”.
Os
Pretos Velhos
Existe uma hierarquia nestas
comunidades, que não se restringe apenas ao mundo espiritual. Aqueles que
vivem também são submetidos a relações de poder. As mães de santo são as
que recebem os espíritos dos pretos velhos dirigentes das casas. A elas
são passadas as diretrizes e normas a serem cumpridas nos rituais. Elas
são avisadas por estes de presenças incômodas ou necessidades do terreiro.
A elas é delegado o cargo de comando abaixo dos pretos velhos.
Pai Benedito e Pai Joaquim costumam
conversar com as mães de santo após os trabalhos, seja em sonhos ou em
visões, a fim de orientá-las nos andamentos das atividades da casa. Porém
nem sempre, a despeito do cargo que ocupa, a mãe de santo é a única
detentora deste poder, que vem não só de sua capacidade mediúnica, mas
também do conhecimento que se tem sobre a religião.
Na umbanda, ter conhecimento é ter
poder. Seu Aguinaldo, marido de Dona Tonica, goza de tanto respeito dentro
da casa quanto ela. Antes das giras começarem, os médiuns reúnem-se ao seu
redor para ouvir suas explicações acerca do “mundo dos espíritos” e para
compreenderem melhor quais as formas mais corretas de proceder na
religião. Seu Aguinaldo não é médium de incorporação, mas tem o dom da
clarividência. Durante as giras, os caboclos, exus, pretos velhos,
baianos, que ali baixam, após cumprimentaram a mãe de santo e os demais
médiuns, vão até ele mostrar seu respeito.
Pai Benedito e Pai Joaquim do Congo,
pretos velhos, são as entidades que dirigem respectivamente a casa de Dona
Joana e a de Dona Tonica. Para conseguir a autorização para a realização
da pesquisa não bastou explicar os objetivos e pedir o consentimento às
mães de santo. Foi necessário proceder da mesma forma com estes pretos
velhos durante a gira. Só a partir do seu consentimento é que as portas se
abriram definitivamente.
A preservação, nestas casas, do culto
aos pretos velhos como a “linha” de entidades do panteão umbandista mais
significativa, confere-lhes uma vivência religiosa em que mais se
ressaltam as características destes, que são bondade, sabedoria,
experiência e paciência. Virtudes advindas, segundo nos contam, de uma
vida em que superaram as formas mais desumanas de maus tratos físicos e
psicológicos, nos intermináveis anos de escravidão, acedendo, já bem
velhos, à condição de espíritos com um alto grau evolutivo, e depois de
mortos, à condição de dignos de um lugar tão especial no panteão
umbandista.
Durante as giras os pretos velhos nunca
são esquecidos. Feitas as orações de abertura, os diversos orixás são
invocados em pontos cantados, baianos e caboclos incorporam e logo se vão,
abrindo espaço para que os pretos velhos venham dar suas bênçãos e fazer
caridade.
Acima dos pretos velhos está apenas
Oxalá/Jesus Cristo, ficando as demais entidades do panteão umbandista
abaixo deles. Não importa se o dia de gira ou trabalho é com o “povo da
esquerda” ou “da direita”, os pretos velhos são sempre invocados e em
geral como principais protagonistas. Mesmo nos dias de trabalho
consagrados ao “povo da esquerda”, Pai Benedito e Pai Joaquim estão sempre
presentes, para coordenar e manter os rituais segundo seus princípios, não
permitindo nenhuma ação que não tenha por base a caridade e o bem estar
das pessoas envolvidas nos pedidos.
Dona Tonica quando fundou sua casa, a
chamou de Terreiro Tenda de Umbanda Ogum Guerreiro e Pai Joaquim do Congo,
pois foram Pai Joaquim e o “Senhor Ogum” as primeiras entidades a
incorporar nela.
Chamou
Pai Joaquim porque foi a primeira entidade que eu recebi, seguida do
Senhor Ogum..., ele é que comanda aqui (Pai Joaquim), ele e o Senhor Ogum.
(depoimento Dona Tonica, 16/10/02).
Pai Joaquim era um negro escravo que
gostava de tocar atabaque e fazer orações e “benzeções”. Muito calmo e
introspectivo, era respeitado até por seus senhores, devido a estas
características. Na senzala praticava, às escondidas, junto a seus iguais,
rituais de umbanda caracterizados pela extrema simplicidade com que eram
feitos. As giras eram realizadas no terreiro da senzala, onde não havia o
altar dos santos. Seu poder residia na força dos atabaques e na “firmeza”
de seus praticantes. Pai Joaquim viveu cativo até o dia de sua libertação
da condição de escravo, sendo justamente a transposição da condição de
cativo para a de liberto, que lhe garantiu as condições necessárias para
chegar a ser velho, já que, enquanto escravo, possivelmente não resistiria
tanto tempo.
Um dia, na fazenda em que Pai Joaquim
morava, a filha de seu senhor foi perseguida por um “valentão”, que queria
pegá-la para “fazer maldade”. Pai Joaquim, ao saber do fato, foi à procura
da linda menina de “pele bem branquinha e de cabelos loiros compridos”. A
menina correu por um longo tempo, indo se esconder na mata. Pai Joaquim a
encontrou, muito assustada e cansada. Passou a mão em um pedaço de pau e
com ele a benzeu. No momento em que fazia sua reza, o perseguidor da
menina desapareceu para nunca mais. A partir deste feito, graças a Pai
Joaquim, ele e seus companheiros escravos foram libertos.
Pai Benedito, à semelhança de Pai
Joaquim, foi um negro escravo. Não teve a mesma sorte. Viveu toda a vida
em cativeiro, resistindo às mais desumanas formas de tratamento. Comia no
cocho e dormia com os cavalos. Muitas vezes sua comida era pior do que a
dada aos animais, mas mesmo assim viveu por volta de cem anos. Joana e
Meyre contam-nos que a superação das condições indignas de sua existência
foi o que o fez ascender a um alto grau de evolução espiritual, não
precisando mais reencarnar. Para completar a sua purificação, basta-lhe
fazer caridade, através da ação de seus “cavalos”.
“Seu”
Aguinaldo (Guina)
“Seu” Aguinaldo, marido de Dona Tonica,
é uma personalidade peculiar. Sua vida é repleta de histórias fantásticas.
Quimbandeiro por doze anos, varava a noite trabalhando como cambono de
médium de quimbanda seu conhecido.
Entrou para o terreiro de Pai José de
Xangô para se livrar dessas práticas, que julgava prejudiciais à sua vida.
Trabalhando como secretário do
terreiro, conhece Dona Tonica, quando esta para lá foi após sair da casa
de Dona Maria Abadia. Depois de algumas tentativas frustradas, Guina
consegue convencer sua futura esposa de suas “boas intenções”. Honesto,
trabalhador, sem vícios, Guina casa-se com Dona Tonica após alguns anos de
namoro, assume o filho que esta teve com outro namorado e o registra em
seu nome. Como bom filho de Xangô, “seu” Aguinaldo age de forma firme e
justa em suas relações.
... e
ele (Seu Aguinaldo) levava a irmã dele, que tinha mediunidade, também, pra
“trabalhar” lá. E lá nós nos conhecemos. Ele ficava na... [mesa de
recepção], pegando a mensalidade, cem cruzeiros, ele ficava pegando as
mensalidades dos médiuns, de quem quisesse ser sócio. Então, e ali nós nos
conhecemos... um dia ele falou pra mim, eu ia pagar minha mensalidade, ele
me devolvia meu cartãozinho e meu dinheiro, meus cem cruzeiros. Tá bom, né?
(risos). Aí eu..., eu peguei, e ele falou: – quero falar com você – Eu
falei: – ai meu Deus! Aquele moço quer falar comigo - Mas naquele tempo
ele não era vaidoso como os moços de agora, né Guina? Você não era
vaidoso, né? Ele não andava bem trajado, até eu achava ele com cara de
homem casado. É! Eu pensei que ele era casado. Então aí nós fomos a pé. Eu
ia com uma colega, eu tinha uma colega, minha colega era casada, tinha
quatro filhos, já eram grandões, e..., e aí nós fomos a pé, metade foi na
frente, outra metade foi indo atrás. Ele falou comigo se eu queria namorar
com ele. Eu falei pra ele: - Se for pra casar de verdade, eu quero, mas se
for pra bagunçar não. Por que eu já tinha um filho, né? Queria bagunça
mais? Não queria. E aquele tempo não usava bagunça não. Era..., era assim,
o povo recusava, assim..., aqueles que tinham filho, eles recusavam.
Então, eu falei - Se for pra casar de verdade, eu quero - Mas ainda assim
mesmo nós namoramos quatro anos (risos), namoramos quatro anos no centro.
Nós nos encontrávamos mas era lá no centro. Depois, aí ele acompanhava se
fosse muito tarde. Ele morava lá na Vila Tibério e eu morava ali na Seixas
[Vila Seixas]. Então fomos, então ele falou - Agora, nós vamos dar um
tempo, vamos ajeitar as coisas, aí nós vamos casar. Aí ele ajeitou, e ele
criava também quatro, né? Quatro sobrinhas, né? Você criava? Era quatro ou
três? Hã!
[Aguinaldo:] Duas irmãs, três sobrinhas.
[Tonica]
É, duas irmãs, três sobrinhas. Ele criava também. Então ele combinou
comigo que a gente ia casar. E eu já morava sozinha, eu nunca gostei de
morar junto, hã! Por que a gente morando junto cada um quer fazer uma
coisa, não pode. Eu morava em..., três, três cômodos na Vila Seixas, e
nessa casa que eu morava, nós nos casamos. Mas fizemos um casamentinho
simples, arrumamos os padrinhos direitinho. A madrinha deu um bolo muito
grande. Nós fomos lá, casamos, comemos bolo e estamos até hoje, faz
cinqüenta anos. No dia oito de..., cinqüenta anos, né, Gui? No dia oito de
fevereiro faz anos que nós casamos. Aí casamos, graças a Deus, fomos
vivendo. Ele não recusou meu filho, não recusou e ele ainda passou, na
hora de casar, lá no cartório, eles perguntaram, eu tinha um menino, se
ele ia passar no nome dele ou se ele, né...? Aí ele falou que não, que
passava no nome dele, passou o menino no nome dele. Chama-se Gerson Luiz
Rodrigues Morais. Já é vôvô também. Mora lá no Ipiranga. E assim foi indo
nossa vida. (Depoimento Dona Tonica e “seu” Aguinaldo, 05/11/01).
“Seu”
Aguinaldo estudou até o segundo ano primário, tornou-se ferroviário e com
a profissão sustentou sua família por muitos anos. Hoje, aposentado, “Seu”
Aguinaldo, preso a uma cadeira de rodas, passa o dia no terreiro. Homem de
muita firmeza (fé), septuagenário, é uma espécie de preto velho vivo, como
o define Dona Tonica - “É um preto velho falando com outro” -,
referindo-se a uma conversa que “seu” Aguinaldo teve com Pai Joaquim.
Não
obstante a sua pouca instrução formal, Guina é muito respeitado por seu
conhecimento, não só sobre a religião, mas sobre diversos assuntos. Desde
pequeno, quando teve que parar de estudar para trabalhar, Aguinaldo nunca
deixou de ler. Sempre que encontrava algum livro, jornal ou revista
jogados no lixo, ele os pegava para ler. Em seu trabalho tinha sempre um
livro diferente guardado no armário, para as horas de folga.
Firme em
suas convicções, fala com autoridade aos médiuns do terreiro sobre a
prática umbandista e o mundo espiritual. Estes sempre o procuram para
pedir conselho e orientações sobre a melhor forma de proceder. Quando as
entidades estão incorporadas, Guina, com o cuidado de ser respeitoso, as
questiona sobre as coisas do “mundo de lá”.
Clarividente, Guina não tem o dom da
incorporação, mas diz ouvir, ver e falar com as entidades, o que em
algumas situações o coloca em uma posição melhor que a dos médiuns de
incorporação, já que estes ficam inconscientes durante o estado de transe.
Durante as giras, sem exceções, Aguinaldo fica atento a todos os que
entram no terreiro (inclusive os pesquisadores, que também passaram pelo
seu crivo), para saber quais as intenções e os procedimentos dessas
pessoas dentro da casa de Pai Joaquim e do Senhor Ogum.
Calado, introspectivo e muito rígido,
“seu” Aguinaldo se mostra um profundo conhecedor da doutrina umbandista e,
obviamente, guarda muito desse conhecimento para si. Atitude coerente com
o fato de, na umbanda, tudo o que é dito criar uma relação de obrigações e
responsabilidades entre quem diz e quem houve.
Vida comunitária e familiar
Os dois
terreiros ratificam uma peculiaridade comum a praticamente todas as
comunidades umbandistas. O seu núcleo é uma família de sangue, em geral
alargada a parentes mais ou menos distantes, agregados, amigos e
conhecidos, que se amplia para se transformar em comunidade de “filhos de
santo”. Os “estranhos” são hospitaleiramente recebidos, mas se quiserem
permanecer e aprofundar os seus vínculos, devem tornar-se “familiares” (às
vezes literalmente). Não é mera casualidade que a tentativa anteriormente
narrada de se apossar do terreiro de Pai Joaquim se tenha formulado como
proposta conjugal dirigida à filha carnal e espiritual que é a herdeira da
casa de Dona Tonica e de Seu Aguinaldo.
A
presença de crianças e a sua circulação pelo espaço ritual acontece com
muita naturalidade. Os terreiros umbandistas são predominantemente espaços
“familiares” e heterossexuais. Crianças são bem vindas, tanto do ponto de
vista da sua aceitação na comunidade, como do ponto de vista do
acolhimento, por parte de casais e mulheres, das geradas em decorrência da
sua vida sexual.
As casas
das famílias de sangue e os recintos rituais convivem em contigüidade. A
casa de santo recebe a família espiritualmente alargada e é um importante
núcleo de convivência comunitária. Esta característica, no caso de
Ribeirão Preto, em alguns casos viu-se prejudicada por políticas de
urbanização desastradas.
Embora
materialmente pobres, os nossos colaboradores orgulham-se muito da riqueza
dos seus valores. Tratam todos os que os procuram como filhos e as
famílias nunca se resumem a relações entre pais e descendentes biológicos.
Adoções
são habituais. Dona Tonica e “seu” Aguinaldo encontraram tempo para criar
vários filhos e crianças das redondezas. Sofrem até hoje com a perda da
criança que mais lhes deu trabalho, vítima da guerra entre traficantes.
Fazem questão de contar a sua história, ressaltando não as dificuldades
que tiveram com a sua educação, mas os seus talentos e as alegrias que
lhes proporcionou.
Joana
orgulha-se de atender a todas as suas obrigações religiosas, sem conflito
nem atrito com as suas funções de esposa, dona de casa e mãe de quatro
filhos.
Diversos
episódios narrados pelas comunidades e que envolvem a sociedade
circundante e a maneira como interagem com ela (que por respeito e sigilo
não poderiam ser contados) revelam a consciência aguda da sua condição de
“poderosos excluídos”, e parecem ser narrados de maneira a justificar a
sua propensão em transformar em escolha um tipo de vida ao qual,
aparentemente, foram relegados.
Os seus
freqüentadores mais eventuais, que recorrem clandestinamente aos seus
talentos, podem ser entendidos como uma metáfora da posição que a África
ocupa no coração do Brasil: pode-se lhe dever muito, mas deve permanecer
invisível e renegar-se qualquer familiaridade...
É o caso
de mais uma vez nos indagarmos sobre as razões que tornam menos visível do
que seria de esperar a presença banto no Brasil, e de sugerir que
iniciativas como esta, que tentam dar voz a seus herdeiros, possam vir a
contrariar essa situação, por se proporem a compreender o modo de ser
profundo, ainda misterioso, pelo qual se preserva e transmite uma memória
social, por meio de performances e recriações de comunidades e de práticas
religiosas, mesmo à revelia da consciência de uma linha de continuidade
que assegure transmissões empiricamente verificáveis. Os relatos de nossos
colaboradores exemplificam este notável talento.
Esta peculiar característica deveria
chamar a atenção para dimensões psicológicas peculiares, ligadas a estas
comunidades, cujo esclarecimento talvez possa auxiliar a compreender como
surgem e se difundem por todo o país a umbanda e práticas similares (algo
que intriga e é motivo de debate entre os pesquisadores). O seu estudo é
um grande desafio.
Hipótese de um ponto de partida para o
estudo da “pessoa” umbandista
Segundo Augras (1995), psicóloga
pioneira e referência já clássica no campo da investigação da
religiosidade afro-brasileira, a investigação psicológica em comunidades
de terreiro atenderia a dois propósitos: compreender valores e visões de
mundo de significativa parcela da população brasileira e investigar como
tais modelos atuam no indivíduo, em prol de uma melhor compreensão de si
próprio e da integração dos componentes da sua personalidade.
O primeiro ponto deste
programa é mais simples de cumprir e de certa forma foi o que fizemos ao
dar ouvidos às vozes umbandistas tradicionais de Ribeirão Preto. O segundo
pode implicar num esforço de revisão de pré-concepções bem assentes na
psicologia acadêmica ocidental. Entre outros, Goldman (1984) manifesta
ceticismo quanto à utilidade e às conseqüências do uso de categorias como
personalidade e indivíduo, tão eivadas de uma noção de pessoa
presumivelmente datada e menos universal do que habitualmente a ciência
psicológica o presume.
Seja
qual for a solução que venha a ser dada a este problema, provavelmente
beneficiar-se-á de descrições etnográficas o mais literais possíveis. É
necessário compreender as formas pelas quais outros, brasileiros, se
revelam por meio dos modos como depõem o seu mundo. A tarefa é tão mais
premente quanto o seu estilo de ser e a sua percepção (banto) do mundo,
progressivamente, mesmo sem reconhecimento nem pagamento de direitos
autorais, se alastram como características da cultura brasileira.
Outro
motivo que torna urgente promover estudos críticos da noção de pessoa
orientados para a compreensão da concepção dessa categoria vigente entre o
nosso povo é o risco de a formação em psicologia continuar a produzir
profissionais e pesquisadores eurocêntricos, “surdos” para a realidade
psicossocial profunda do Brasil.
Trata-se de uma questão de
difícil solução e desafio em aberto à psicologia brasileira, que foge às
pretensões deste trabalho, mas sobre a qual aventamos uma pista banto como
hipótese de ponto de partida para futuras investigações.
Certamente não é mera casualidade a coincidência entre a designação de uma
religião tão brasileira e a palavra “umbanda”, existente em línguas
bantos, conforme autores como Coelho (2000) e Estermann (1983) documentam.
O segundo, além de a referir com o significado de substantivo abstrato
relativo à arte terapêutica do quimbanda (curandeiro ou feiticeiro),
igualmente registra o seu emprego no sudoeste de Angola para referir
sessões espíritas, dirigidas por um quimbanda (não se confunda o
significado a que a palavra “quimbanda” se viu constrangida no Brasil, e
que aparece noutras partes deste artigo, com o seu significado africano).
Embora coincidências
fonéticas sejam fracos indícios, de fato a estes não se resumem as
aproximações que podem ser feitas entre estas formas religiosas dos dois
lados do Atlântico.
A nosso
ver não residiria nesta “coincidência”, nem no presumível constrangimento
dos Inquices (Minkisi) à iconografia católica e à mitologia dos
orixás o principal indício do ”espírito” banto da umbanda brasileira.
Livremente reinterpretadas, as imagens dos santos e de tipos romanceados
de ancestrais que se assentam nos congás (altares) umbandistas, daí
se deslocam para incorporarem-se em performances rituais de espíritos,
que, diferentemente dos “mentores” kardecistas, não se resumem a
individualidades concebidas como equivalentes a personalidades sem corpo.
Sempre seguem uma coreografia correspondente ao tipo de um ancestral
aglutinador de determinados bens simbólicos e modelo exemplar de condutas
e recursos a serem utilizados em diferentes circunstâncias de vida. A par
de uma certa estereotipia, admitem margem para interpretações pessoais,
mas sempre segundo enquadres compatíveis com os significados e missões
atribuídos a cada classe de ancestrais. Embora todos amparem, cada tipo se
especializa em utilidades e finalidades diversas, em conjunto compondo um
cardápio de recursos solicitáveis conforme as situações.
Alguns estudiosos mostraram
a construção histórica, brasileira, de alguns destes tipos (por exemplo,
Meyer, 1993) e chegaram mesmo a referir o momento de surgimento ou de
generalização de outros (Santos, 1995).
Este último autor
correlaciona o caboclo cultuado nos candomblés baianos à imagem do índio
celebrada em cortejos cívicos comemorativos da independência da Bahia.
Note-se que o sentido global desta imagem, derivada da necessidade de
constituir uma referência nacionalista que permitisse criar um hiato entre
o brasileiro e o português, ou mais exatamente, transformar o luso
tropical americano numa nacionalidade distinta, já tinha sido
culturalmente elaborada, em narrativas que construíam um modelo de
nacional alternativo ao português, cujo escoadouro mais óbvio foi a figura
romântica do índio, altivo e insubmisso, cheio de qualidades éticas e
integrado à paisagem sul americana (bom e selvagem). É este ideário que se
narra e inscreve na iconografia do caboclo.
O passo seguinte, o
deslocamento de um símbolo para uma categoria “metafísica” e a sua
encarnação em performances rituais, talvez possa compreender-se melhor ao
se levar em conta a alternativa disponibilizada pela cultura banto para
materializar atributos e poderes espirituais consubstanciados em
ancestrais, na forma de imagens cheias de força e ritualmente
manipuláveis.
No mundo banto, a “força
espiritual” impacta visualmente e comove corporalmente. É elaborada em
ícones esteticamente impactantes, que armazenam e permitem manipular os
“espíritos”. Os espíritos imaginam-se (proporcionam-se como imagem e são
imaginados) e as imagens “têm” espírito.
A gramática cultural
implícita que autorize tais deslocamentos, supômo-la encontrar-se
materialmente expressa no tradicional feitio banto de máscaras. Estas são
formas estéticas de presentificação do espírito como ícone, que
concomitantemente revelam o ícone como face do espírito. São
personificações de faces do Outro.
As
máscaras não são quaisquer imagens. São ícones que olham. São imagens
videntes, “outros” esteticamente presentificados.
São
interfaces entre ícones que se proporcionam ao olhar, e Outro olhar que
nos vê. Incluem compreensivamente a quem interpelam. Dão-se a ver e
mostram-se olhar.
Ao
ver-se visto, o sujeito vê-se no olhar do Outro (Corbin, 1977, 1981). E
numa cultura que não estratifica o espiritual e o material como regiões
ontológicas imiscíveis, é natural que este ver-se do Outro permita
desdobramentos em outros eus, encarnados no próprio corpo. É a alternância
entre Outro vidente e vidência de Outro, consubstancial à fenomenologia da
face e esteticamente materializada na máscara, que lhe assegura uma
posição de charneira na consecução do transe: os olhares do Outro,
inclusivos, são suscetíveis de serem habitados pelos humanos que encaram.
As
máscaras “materializam” o Outro. São ícones que dão corpo sensível aos
espíritos, mas também são “outros” que podem revestir o “eu”.
Se no
universo banto os espíritos se proporcionam (como) imagens e as imagens
do panteão umbandista, suas “linhas” e “falanges”, se desdobram em
performances rituais estereotípicas, não poderiam estas compreender-se
como desdobramentos das máscaras bantos?
Não tem
nenhuma importância o fato destas faces, na sua versão brasileira, não se
constituírem em objetos máscaras no estrito senso. A sua sutileza e
eficácia é independente da sua composição material (reside na imagem de um
rosto). O médium umbandista que ao entrar em transe se reveste dos
adereços significativos da categoria e da singularidade do espírito que
incorpora está compondo uma máscara (entendo-se que a natureza desta é da
ordem do imaginário e do especular, que independe dos materiais físicos
que lhe dão suporte).
A
eficácia da mascarada não esta no artefato material, mas no sutil impacto
estético. A sua visibilidade física apenas facilita a socialização
comunitária dos seus efeitos.
Quando a
máscara funciona, a narrativa é eficaz, e todos partilham a performance.
Estabelece-se uma “corrente”. A umbanda é uma espécie de tecnologia social
do imaginário e do transicional.
As
narrativas dramáticas, performances, no espaço ritual umbandista reúnem
propriedades similares à função dos Minkisi e das máscaras no
universo banto: fatores como ancestralidade, valores e o jogo com humanas
possibilidades de ser. Graças à sutileza e talento na manipulação do
transicional (na acepção winnicottiana), consubstanciam materialmente uma
alteridade não coisificada. Os movimentos ondulantes de corpos e saias
imitando ondas durante as danças rituais, por exemplo, transportam
poeticamente o “clima” da água marinha ou doce em ondas coletivamente
eficazes, porque são “sentidas” pelos presentes, e quando estes (ainda)
não o alcançam, os participantes mais “sensíveis” as “vêem” e as narram
para a comunidade.
Cada
performance dramática narra e se circunscreve em outro que se compõe em
imagem No jogo ritual, a partir de mínimos elementos, há uma mobilização
coletiva que insere e inscreve, na carne do ser, na pessoa, mensagens
compatíveis com o âmago de narrativas dramatizadas, personificáveis em
faces (máscaras).
A
máscara não é portanto um papel social. É condição de ser, e não
vestimenta que se usa sem transformar o utente. A máscara possui, é
eficaz. O mascarado não mente, tanto quanto um sujeito moderno não se
despe da sua “identidade” ou “personalidade” – as suas máscaras, feitas
sob medida para um só “indivíduo”. (5)
As
máscaras narram histórias cujo argumento nelas se encontra visualmente
aludido. A composição das mascaras reúne trocadilhos, provérbios –
fundamentais na cultura banto (Martins, 1951) –, memórias e todo o demais
tipo de alusão a narrativas culturais. Encarnam-se em objetos
tridimensionais, que atingem os corpos, além das mentes. Contam histórias
encarnando-se em performances de sujeitos em transe, que entrelaçam
memórias ancestrais, interpretações do mundo e estabelecem laços entre os
membros da comunidade e o seu destino coletivo.
As
máscaras são intercambiáveis. Podem olhar e ser olhadas, mas também podem
ser portadas por diversas pessoas. Abrem leques de posições
intersubjetivas e asseguram a mobilidade entre elas.
Como as
máscaras são fabricadas, permitem espaço para a singularidade, num
contexto de sintaxe global. Filiam a uma tradição, mas com margem para
re-elaborações pessoais.
Em suma, não poderia a
transição entre um ícone e a performance de espíritos ser pensada nos
termos bantos da utilização de máscaras para inscrever e assinalar a
presença de valores e a vigilância de ancestrais que elas personificam
(vide Jordan, 2000), e de Minkisi como espíritos plasmáveis em
ícones que, antropomórficos ou não, resumem narrativas que explicitam as
possíveis qualidades das suas interações com os humanos (MacGaffey, 2000)?
Poderia o panteão umbandista ser interpretado como um prolongamento
transformado (e adaptado) do recurso, não exclusivo dos bantos, mas
bastante comum e apurado entre eles, a máscaras? (6)
O recurso a máscaras é comum
a muitas culturas, inclusive a outras etnias africanas, americanas, e
sequer é desconhecido dos europeus. Não é especificamente banto, é até
universal, mas estes nisso são exímios. E talvez aqui, neste talento
transmitido ao Brasil, se resolva um falso dilema a propósito da umbanda:
tratar-se-ia de uma tradição africana degenerada ou recomposta no Brasil,
ou de uma criação local que recorre a elementos africanos?
A nosso ver não se trata nem
de um culto banto remanescente, nem de um brasileiro original, mas de uma
realização brasileira que herdou dos bantos o talento para fabricar
máscaras e explorar a sutileza (“psicológica”) dos seus efeitos.
A
hipótese ora levantada tem em seu benefício a oportunidade que oferece de
resolver um ponto que apoquenta não apenas religiosos de outros horizontes
(que nisso encontram mais um pretexto para se sobressaírem relativamente à
umbanda), mas também alguns pesquisadores do transe. Estas duas classes de
interlocutores, aparentemente unidas pela aposta numa espécie de
“metafísica fisicista”, indagam-se a respeito da realidade da incorporação
umbandista: haveria de fato incorporação (seja de outro espírito, ou de
uma parte dissociada do eu, para o efeito desta argumentação tanto faz),
ou tudo não passaria de um fingimento, do desempenho maroto de um papel
social capaz de ludibriar inclusive o macumbeiro que acredite em si mesmo?
É óbvio
que este problema, desta forma, se propõe em termos metafísicos e
substancialistas, profundamente alheios à sutileza da fenomenologia da
mascarada e aos horizontes espirituais bantos. Estes sabem muito bem que a
máscara é o ator (eu) sem deixar de ser o espírito (outro), e que no mesmo
evento ritual (por exemplo a mukanda, iniciação de meninos
tutchokwe à vida adulta), espírito e ator se manifestam
concomitantemente para diferentes participantes e espectadores, e até
sucessivamente para os mesmos (é parte fundamental da iniciação espiritual
do jovem adulto que, uma vez gravado o impacto e assegurada a intimidade
com a mensagem do espírito que se personifica numa máscara, se revele a
humanidade que lhe dá suporte).
A
umbanda, o gênio banto, não são acessíveis a um estilo de perquirição
pateticamente enredado em juízos inquisitoriais sobre uma presumida
natureza substancial do imaterial, a anseios empenhados em capturar o
espiritual nos termos da coisa.
O
“espírito” banto e umbandista endereça-se a ouvidos não ocidentais nem
metafísicos, desapegados da credulidade em substâncias hiperfísicas.
Polêmicas que não se poupem de agonias determinadas por falsas questões
relativas à materialidade do metafísico, ou à “parafisiologia” dos eus
outros ou outros eus, condenadas ao âmbito de uma dicotomia entre ser
(espírito) e nada (ser), não estão à altura do que está em jogo.
Algumas Considerações Finais
Numa
pesquisa como esta, a palavra “conclusão” não faz muito sentido, por duas
razões. Uma é porque os “dados”, eles próprios, são os depoimentos dos
nossos colaboradores e, em fidelidade ao nosso objetivo, visa-se resgatar
a sua voz, e não falar sobre eles. A segunda prende-se ao fato de apenas
se haver esboçado o início de uma interlocução com a cultura social e
psicológica popular marcadamente africana, que seria muito precoce
encerrar por meio de uma conclusão.
De
qualquer modo, talvez não seja inútil alinhar algumas idéias que ficam
entre comentários críticos ao habitual descaso acadêmico pelo universo
social brasileiro tal como ele efetivamente se mostra, e explicitações de
aspectos da memória social que se dizem quando se entrelaçam as histórias
das duas casas, sem que sejam explicitamente falados (até porque o que aí
se expressa não é a experiência de alguém, mas uma experiência cultural
que “possui” os seus informantes e os ultrapassa enquanto indivíduos
empíricos).
Relativamente a esta, observe-se a coincidência no histórico da fundação
dos dois terreiros: uma prévia cultura rural, identificada com um difuso
catolicismo popular (nem sempre muito “católico”) e práticas de “benzimento”,
ao se estabelecer em solo urbano é recodificada em termos espíritas
kardecistas. Estes, por sua vez, são apenas uma transição para que se
reacendam memórias ancestrais já brasileiras, mas etnicamente africanas,
que provavelmente se mantinham em hibernação, quais cinzas apagadas que em
momento propício recuperam a sua incandescência.
Sublinhe-se que o “aquecimento” desses traços de uma memória social
conservados invisivelmente e re-elaborados faz-se ao preço de um
sofrimento existencial agudo, heroicamente enfrentado, capaz de
desenvolver nos seus eleitos um talento para entrar em sintonia e nutrir
empatia por experiências igualmente intensas, individuais ou coletivas,
atuais ou passadas, de opressão e extermínio. Acima de tudo, é capaz de
cuidar e dar sentido ao que é e foi oprimido, histórica, social e
psicologicamente, com orgulho das raízes e sem temor da dor nem do
passado.
Literalmente, protestar contra o silenciamento do extinto, reavivar o
morto, torna-se uma tarefa assumida, principalmente por mulheres, que
encaram os sinais do outro que se inscrevem nos seus destinos e corpos
como o chamado para uma missão, digna de ser vivida, de resgate de
indignidades presentes e passadas. Têm que cumpri-la em obediência a uma
ética elevada, mas em harmonia com as pessoas com as quais convivem. Para
isso contam com recursos “fantásticos”. Dona Chiquinha não poderia cumprir
com a sua “missão” em desacordo com o marido. Foi precisa até a
intervenção da sua defunta sogra, para que a situação se resolvesse.
Os
relatos das vidas das fundadoras e as narrativas dos pretos velhos
fundantes das casas trazem luz sobre a natureza dessa “missão”: combater
no presente as mazelas, doenças e maldades de qualquer época. Neste
aspecto, o panteão umbandista é também, implicitamente, a crônica de uma
crítica social.
O
principal “segredo da macumba” não reside em ginásticas parapsicológicas,
nem em manipulações metafísicas. Tal como o sublinham Brumana e Martinez
(1991), a umbanda é uma ética que expressa, condensa e recupera um sistema
de regras de interpretação e de conduta. É uma teoria da realidade social
e um guia de comportamento para ela, bem como uma forma de cognição social
e um microcosmo da cultura brasileira (Idem). Mas para aceder ao que,
enquanto ponto de vista de setores marginalizados, nos diz sobre como
estes interpretam as suas condições existenciais, tudo indica que é
necessário enfrentar o desafio de refletir uma mentalidade popular que
escapa à fixação pelas substâncias: decifrar a “gramática” de uma
construção de mundo que, quase que certamente, é subterraneamente
informada por uma sólida (fluida!) marca banto.
Para
explorar em profundidade esta hipótese seria necessário algo que aqui não
se visa nem se alcança (apenas se sugere): o estudo da “ontologia” e da
“psicologia” bantos, no intento de tornar compreensível uma “gramática”
cultural que também já se tornou brasileira (ou melhor, é fator
constituinte do brasílico).
No
universo banto parece haver uma abertura para o tempo ancestral não como
passado, mas como localização sincrônica; e os contornos entre
transcendente e imanente, espírito e matéria, serem borrados. Duas
características que notável e indelevelmente se transmitiram à
religiosidade umbandista brasileira.
Não
apenas as histórias e identidades das principais “entidades” destes
terreiros, mas também a composição étnica da esmagadora maioria dos seus
fundadores, adeptos e freqüentadores, revelam uma ciência da sua origem
africana, e muito significativamente uma clara diferenciação da sua África
relativamente ao moderno candomblé, importado de metrópoles como Brasília,
Salvador, Rio de janeiro e São Paulo, classificado por eles como
“chiquento” e pouco dado à prática da caridade.
É
verdade, porém, que estas raízes africanas, aparentemente não se
manifestam explicitamente como uma identidade negra, talvez até porque a
feição cosmopolita e racionalizante que a mesma adquiriu não acolha muito
favoravelmente o modo de ser específico destes afro-brasileiros
acaboclados e até lhes seja hostil.
Mas
sabem que os seus pais foram realmente escravos e o sofrimento das suas
existências fica sem sentido se a sua memória não puder recriar-se e
sobreviver à morte, para doar sentido a eles e a toda a humanidade
remanescente.
Não
temem nem afastam os ancestrais e mantêm portas abertas para todos os
tipos de aflitos e etnias que os procuram (qualidades que também arrolamos
entre os vastos indícios de que apresentam uma filiação “inconsciente” à
etnia e cultura bantos).
Não hesitamos em referir
estes brasileiros africanos, especialistas nos meandros da alma humana e
no tratamento das enormidades de que é capaz, a raízes culturais bantos.
São mestres no tratamento e recriação da sua tradição cultural. Os seus
terreiros como que se assemelham a quilombos “metafísicos”, territórios de
liberdade e de dignidade para refugiados de todas as procedências, mas com
uma nítida marca da senzala (aldeia) africana meridional.
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Notas
(1)
Apoio FAPESP. Agradecemos também o apoio, acolhimento e colaboração do
povo de santo e dos dirigentes, espirituais e materiais, da Tenda de
Umbanda Ogum Guerreiro e Pai Joaquim do Congo (Vila Carvalho, Ribeirão
Preto) e Tenda Espírita de Umbanda Pai Benedito (Jardinópolis), bem como a
inestimável colaboração da colega Sabrina Rocha Stanford Thompson.
(2) O
trabalho de alinhamento das entidades é feito pela mãe de santo durante o
desenvolvimento mediúnico, consistindo numa definição das entidades com as
quais o médium irá trabalhar. (volta).
(3)
Palavra que tem o significado moral de uma retaliação do destino,
interpretada como acerto de dívidas éticas. No caso, está em pauta o
passado quimbandista de “seu” Aguinaldo.(volta)
(4)
Machucam-se durante o processo ritual de incorporação, o que é
interpretado como castigo.(volta)
(5) O
estudo das máscaras, atento ao conluio entre imagem de si e olhar do outro
que nelas se explicita e tão fundamental para a análise psicológica
(psicanalítica), poderia ser útil a uma revisão das teorias psicológicas
sobre a personalidade, que permita contextualizar como um caso particular
a concepção de pessoa moderna que embasa a psicologia, revelando-a uma
espécie de totem particular em tribo cujos integrantes se resumam a um
átomo social (Goldman, 1984).(volta)
(6) Entre as etnias bantos
são empregadas ritualmente mais de uma centena de máscaras, utilizadas em
performances rituais (Jordan, 2000). Lá em África como cá no Brasil, as
qualidades de espíritos, além de ancestrais, encarnam valores sociais e
criam-se conforme as circunstâncias e a necessidade de significar
vivências coletivas (Souza, 2001; Concone, 2001; Kubik, 2000).(volta)
Nota sobre
os autores
José Francisco Miguel Henriques Bairrão é
Doutor em Filosofia pela UNICAMP, professor de Psicologia Social na
FFCLRP-USP, Brasil, e pesquisador na mesma área (FAPESP/FFCLRP-USP).
Contato:
jfbairrao@ffclrp.usp.br
Fábio Ricardo Leme é psicólogo e mestrando do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP-USP, Brasil.
Contato:
ricardosommer@ig.com.br
Data de
recebimento: 06/02/2003
Data de aceite: 22/03/2003
Memorandum 4, Abr/2003
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos04/bairrao02.htm