Baptista, M. T. D. S. (2003) As relações entre identidade, memória e pesquisa da história da psicologia. Memorandum, 4, 33-39. Retirado em   /  /   do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos04/baptista02.htm

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As relações entre identidade, memória e a pesquisa da história da psicologia
 

The relationships between identity, memory and 
the research of the history of psychology

 Marisa Todescan Dias da Silva Baptista
Universidade São Marcos
Brasil

Resumo

Este trabalho de cunho teórico discute algumas questões metodológicas que surgem com o uso da memória em pesquisas que relacionam identidade e história da Psicologia. Esta investigação fundamentou-se em uma perspectiva de identidade que a compreende como um movimento constante de transformação no tempo Este movimento é concebido como uma composição onde estão presentes elementos de continuidade e de mudança. Para a apreensão desta continuidade, e manutenção de biografia, a memória é fundamental. Quando o historiador reconstrói o processo de formação da identidade, usando a memória de cada participante do processo histórico, reconstitui simultaneamente o percurso da Psicologia. Ao reconstruir o processo identitário pessoal, não só revela a realidade subjetiva de cada um, mas também o contexto do grupo de referência que lhe dá suporte e principalmente a vinculação ao seu "fazer psicológico" e às transformações que possibilita o "fazer psicológico coletivo".

Palavras-chave: identidade; memória; história da psicologia

Abstract

Some methodological questions that appear with the use of memory in researches that relate identity and history of Psychology are discussed here, based on a perspective of identity conceived as a movement of transformation in time. Movement is conceived as containing elements of continuity and change. For the apprehension of continuity, memory is fundamental. When the historian reconstructs the process of identity formation, using each participant´s memory of the historical process, he/she reveals the subjective reality of each one and the context of the reference group, the link to his/hers “psychological activity” and to the transformations that facilitate the "collective psychological activity”. We consider “collective memory” from the perspective of Halbwachs and “history”, in the perspective of social approach. The problems discussed are: forgetfulness / remembrance as components of collective memory; remaining of collective memory; types of work allowing the understanding of the movement provoked by transformations.

Keywords: identity; collective memory; history of psychology

O objetivo deste trabalho é discutir as relações existentes entre identidade, memória e história da psicologia e mais especificamente alguns problemas metodológicos ligados ao uso da memória coletiva. Para que possamos concretizar esta discussão é importante esclarecer os conceitos fundamentais com os quais estamos trabalhando: o de identidade, história e memória.

Ciampa (1990), em seu livro "A estória do Severino e a história da Severina", apresenta a identidade como um processo contínuo de transformação, que ele denomina de metamorfose, no qual estão envolvidas todas as especificidades do ser humano: biológicas, psicológicas e sociais. Essas transformações se dão ao longo do tempo de vida de cada indivíduo, constituindo uma singularidade que se identifica e diferencia em relação a si mesmo em diferentes momentos, assim como se aproxima e se distancia de outros indivíduos em momentos diferentes ou iguais. O eu se configura a partir das relações sociais que permitem a cada um observar papéis, assumi-los e obter a confirmação do seu exercício através de outros indivíduos significativos. Por um lado, as vivências desses papéis que se vão dando ao longo da vida necessitam ser permanentemente relembradas para constituírem o elemento que dá continuidade ao eixo das biografias individuais. Por outro lado, a possibilidade de constituição deste eu de forma mais ou menos autônoma ocorre na medida em que a vivência simultânea da teia de papéis permite que sejam exercidos de forma diferente dos modelos, estando, portanto, na questão da originalidade da vivência a possibilidade de transformações.

Esta perspectiva de identidade que se aplica aos indivíduos, e conseqüentemente recebe a denominação de identidade individual, por si só já considera as questões históricas como parte de sua constituição. A memória da própria história é a condição para apreensão desse elemento de igualdade da própria identidade, que constitui o eixo da biografia pessoal (Baptista, 2002).

A proposta de Ciampa (1990) se aplica não só ao estudo dos indivíduos, mas também ao estudo de grupos (denominados então de identidades coletivas) ou instituições (chamados de identidade institucional). Os denominados "outros indivíduos significativos" compõem a primeira imagem do que nomeamos "identidade coletiva". Essa identidade também é uma construção histórica que se dá a partir da relação dialética que ocorre em um determinado espaço geográfico, entre indivíduos e/ou grupos que organizam sua vida cotidiana em torno de atividades semelhantes, tendo como base um conjunto de valores compartilhados. Esses grupos podem ser a família, grupos profissionais, grupos que têm atividades de lazer semelhantes etc. É esta identidade coletiva que dá o sentido de continuidade aos indivíduos, que adotam papéis, normas e valores válidos para todos os componentes do grupo, o que reafirma constantemente, através da memória, a realidade objetiva e subjetiva. De maneira análoga ao que ocorre com a identidade individual, essa identidade coletiva vai se constituindo ao longo do tempo, atravessando momentos em que as atividades podem se cristalizar ou se transformar. As relações de afirmação tendem a facilitar a continuidade das vivências, assim como os questionamentos, as vivências desconexas ou diferenciadas tendem a introduzir as transformações. A memória está sempre presente nessas possibilidades tanto de afirmação quanto de transformação.

A identidade institucional também é uma construção histórica que se inicia quando determinado grupo com uma identidade coletiva se propõe uma organização que permita a outras gerações ou outros grupos partilharem dessa construção histórica. Segundo Berger e Luckmann (1983) esta normatização da realidade constituída é um mecanismo de legitimação que permite transmitir a outros o conjunto de idéias, valores, normas e leis considerado significativo para o grupo gerador da instituição. Esse mecanismo explicita claramente o papel da memória coletiva, transitando pelos três tempos: passado, presente e futuro.

Em qualquer um desses estudos a identidade estará se referindo a uma totalidade em permanente transformação, fruto de processos complexos que envolvem aspectos biológicos, materiais, psicológicos, simbólicos, sociais. Envolvem indivíduos, grupos, contextos socioeconômicos e culturais em permanente interação dialética.

Partir das questões de identidade para estudar a história torna-se significativo, pois nos permite compreender com maior clareza as interseções entre o individual e o social.

Com relação ao "tipo" de história a que estamos nos referindo é a compreendida como "abordagem social", caracterizada por Antunes (1998) como aquela que procura a "compreensão da trama de relações na qual ela se insere e se desenvolve" (p. 363). Por outro lado, não podemos deixar de mencionar que os dados das pesquisas históricas citadas neste trabalho referem-se a um tempo muito próximo ao nosso, de tal forma que sua reconstituição se deu principalmente a partir de relatos de participantes do processo, o que nos permite caracterizá-la como uma história recente. Segundo Reis (2000), esta é uma tendência de estudo histórico, assumida pela "Escola dos Annales" na década de 70.

A forma que adotamos para esses estudos é o da reconstrução histórica que procura focalizar as diferentes relações existentes em espaços e tempos diferentes e as conexões e desconexões que ocorrem nesse processo, os quais caracterizam situações de cristalizações ou transformações das identidades. Nesta interseção entre história e identidade está envolvida, como já visto, a questão da memória. Torna-se imprescindível o concurso da mesma para a reconstituição do passado (seja individual, seja coletivo). Ela é considerada, portanto, um recurso fundamental para a apreensão da identidade/história.

A concepção de memória, de alguma forma mencionada nos parágrafos anteriores, é retomada de Bosi (1993, p.281): "A memória é sim um trabalho sobre o tempo vivido, conotado pela cultura e pelo indivíduo".

Este trabalho a que a autora se refere, segundo nossa compreensão, pode ser de cunho individual e/ou coletivo, sendo que existe uma interpenetração de ambos.

Para Halbwachs (1950/1990) a memória coletiva se refere a uma identidade coletiva que explica uma experiência e um passado vivido por participantes de um mesmo grupo. Dito por ele:

...se a memória individual pode, para confirmar algumas de suas lembranças, para precisá-las, e mesmo para cobrir algumas de suas lacunas, apoiar-se sobre a memória coletiva, deslocar-se nela, confundir-se momentaneamente com ela, nem por isto deixa de seguir seu próprio caminho, e todo esse aporte exterior é assimilado e incorporado progressivamente a sua substância. A memória coletiva por outro, envolve as memórias individuais, mas não se confunde com elas (Idem, p. 53).

Explicitando melhor esta questão, ele menciona

Diríamos voluntariamente que cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios (Idem, p. 51).

Queiroz (1987) reforça essa idéia afirmando que a memória depende do contexto social e é responsável pela transmissão de comportamentos, valores, ideologias, técnicas. Através da história de vida de cada membro do grupo é possível captar aspectos tanto de sua vida pessoal como os da sociedade mais ampla, assim como de seu grupo mais restrito. Ela, portanto, ressalta a questão da construção social da memória e a sua conservação.

Como pesquisadores preocupados com a História da Psicologia, memória e constituição de identidades, deparamo-nos com algumas questões ligadas ao uso da memória coletiva que precisam ser consideradas.

Estas questões se evidenciaram em duas pesquisas realizadas por nós que fundamentam as próximas reflexões deste trabalho. A primeira teve como objetivo estudar a constituição da Psicologia antes de 1962, em São Paulo; a segunda, a instalação dos cursos regulares de Psicologia após 1962. Ambas tiveram como preocupação fundamental verificar a formação da identidade da Psicologia.

No caso da primeira pesquisa partimos do estudo das identidades individuais de alguns dos psicólogos considerados pioneiros. Consideramos fundamental utilizar os dados de memória dos mesmos e para isto programamos doze estudos de casos. Fizemos entrevistas abertas com oito psicólogos e através do relato livre de suas lembranças pudemos reconstituir parte do seu percurso. Usamos também, para enriquecer os estudos de caso, depoimentos de contemporâneos de cada um deles, obtidos oralmente ou já publicados e/ou registrados em vídeos e filmes, assim como documentos e/ou entrevistas publicadas do personagem principal, ou de seus pares. Também foram consultadas as produções científicas publicadas ao longo de suas vidas. Para o estudo das identidades dos profissionais já falecidos trabalhamos com depoimentos de pares, assim como com todos os tipos de documentos mencionados acima e que podemos denominar de "memórias documentadas". Para clarificar a institucionalização da Psicologia em São Paulo foi também pesquisada a história dos agrupamentos (cursos de formação, associações, sociedades, grupos e/ou núcleos de trabalho) existentes no período, suas relações de complementaridade ou oposição, assim como as publicações produzidas nestas diferentes instâncias. Esses grupos inicialmente foram criando mecanismos e instrumentos (publicações, encontros) com a finalidade de registrar a memória e transmiti-la a outros grupos.

Na segunda pesquisa histórica estudamos os primeiros três cursos regulares de Psicologia da cidade de São Paulo - o da Universidade de São Paulo, o do Sedes Sapientiae e o da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Também utilizamos como enfoque a memória coletiva a partir dos relatos orais de alguns professores e alunos que foram seus partícipes, complementados pela documentação localizada.

Os denominados informantes dessas duas pesquisas participaram de situações comuns anteriormente. Teoricamente, o confronto dos diferentes depoimentos permitiria a reconstituição da memória coletiva, que sempre se localiza em um tempo e em um local. Na situação de análise das falas, deparamo-nos com a questão de reconstruções nem sempre semelhantes por parte dos diferentes participantes.

A primeira questão que levantamos sobre o trabalho com a memória coletiva diz respeito aos esquecimentos e lembranças dos depoentes, ligados à reconstituição de fatos. Vários estudiosos - Halbwachs (1950/1990), Damasceno (1987), Meneses (1987), Kenski (1995) - se referem ao fato de a memória envolver tanto lembranças quanto esquecimentos.

Kenski (1995) nos diz que freqüentemente os motivos tanto das lembranças quanto dos esquecimentos são emocionais. A mesma autora (1987) refere que muitos fatores concorrem para essa seleção. Entre outros, cita o fato de o narrador construir uma versão do passado de acordo com as "necessidades do presente". Diz ainda que

o sujeito busca construir uma identidade pessoal que, em alguns casos, não é exatamente a mesma que ele possuía no passado e nem ele sabe disso (...) o que ocorre é que (...) as pessoas aproveitam para passar a limpo o passado e construir um todo coerente, onde se mesclam situações reais e imaginárias (Idem, p. 109).

Neste sentido, ao trabalhar com as questões de memória, Kenski de certa forma está partilhando da perspectiva de identidade enquanto metamorfose, por nós adotada, pois também reconhece as transformações vividas pelas pessoas ao longo do tempo.

Frota (1985) reforça essa visão de Kenski sobre o esquecimento ao considerar que o depoimento solicitado muito tempo após o acontecido pode sofrer variações ou imprecisões, em função do que os depoentes considerem aceitável no momento do depoimento, por causa de "convicções pessoais, interesses de grupo ou classe, preconceitos, envolvimento pessoal e emocional" (p. 43).

Nos relatos dos depoentes vimos que algumas lembranças referiam-se a fatos que, por algum motivo, ficaram mais marcados para cada um deles. Por outro lado nos deparamos com concordâncias ou discordâncias de testemunhos sobre um mesmo fato ou situação.

Na constituição dos diferentes cursos de formação, aparecem detalhes no relato de alguns informantes que não são registrados em outros. Em relação ao curso regular do Sedes, isto fica muito evidenciado nos relatos de ex-alunos sobre as disciplinas que compunham o currículo. Cada um deles fez referências a determinadas disciplinas do currículo que teriam chamado mais sua atenção enquanto aluno. Poderíamos explicar tal situação associando-a principalmente ao fato de cada um dos entrevistados estar hoje ligado profissionalmente a uma determinada abordagem ou área da psicologia derivada das antigas disciplinas preferidas.

Também no relato livre sobre a participação de cada depoente no projeto de regulamentação da profissão as contribuições individuais e pessoais de cada entrevistado ficam bem nítidas, mas não há uma referência ao trabalho de outros participantes, assim como também não há lembranças sobre o grupo como um todo. Mesmo quando estimulados formalmente a se referirem aos outros participantes, tiveram muita dificuldade em mencioná-los. Neste caso, se houvéssemos considerado somente os depoimentos individuais, o trabalho coletivo teria ficado pouco explicitado na reconstituição histórica. O que estaria determinando esse esquecimento? Levantamos como hipótese explicativa para este fato a questão das disputas que ocorreram explícita e implicitamente entre diferentes indivíduos e grupos para que seus pontos de vista fossem contemplados no projeto final. Durante aproximadamente dez anos várias tentativas de regulamentação foram feitas reunindo diferentes profissionais e grupos de diferentes partes do Brasil, que possivelmente só se constituíram enquanto grupo para atingir o objetivo de aprovar o projeto. Depois, cada um seguiu caminhos diferentes e aquela situação circunstancial de encontro de diferenças, que possivelmente representou uma carga emocional muito pesada, deixou de ser alimentada, perdendo seu sentido e, conseqüentemente, sendo apagada da memória. Digamos que a identidade coletiva desse grupo teve um tempo de existência delimitado, e como tal as participações individuais passaram a ter uma significação absoluta. Halbwachs (1950/1990) caracteriza esse esquecimento como fruto do "desapego" ao grupo (p. 27). Complementa a explicação afirmando que "desde que mantiveram-se afastados, nenhum deles pode reproduzir todo o conteúdo do antigo pensamento" (Idem, p. 34).

Schimidt e Mahfoud (1993) fecham esta questão ao explicitar as diferenças de comportamento dos diferentes elementos de um grupo: Para eles, a ocorrência dessa diferenciação está indicando o movimento dialético do grupo ao qual o indivíduo pertence. Explicam que a recuperação da memória se dá a partir de uma realidade presente atualizada, que nem sempre é a mesma para cada um dos membros do grupo.

Pudemos constatar uma situação oposta na reconstrução da história de um curso livre de Psicologia do Instituto Sedes Sapientiae. Ele havia sido organizado com a função de estimular estudantes de medicina a buscarem conhecimentos de psicologia, e a partir daí não desenvolverem mais preconceitos em relação a esta área. O fato marcante é que todos os ex-estudantes de medicina entrevistados que freqüentaram este curso referiram-se a ele de forma positiva, declararam as contribuições do mesmo para sua formação, mostrando que o objetivo proposto realmente conseguiu ser atingido. Neste caso, a uniformidade de informações obtidas através da memória individual, contribuiu para uma narrativa coesa, não conflitiva da existência coletiva. Talvez o fato de os componentes desse grupo terem mantido ligações entre si e com a instituição durante um tempo mais longo do que o próprio curso tenha permitido o exercício permanente de uma memória construída e reconstruída coletivamente durante um tempo maior.

Outra questão com a qual nos deparamos é a da permanência da memória coletiva quando diferentes entrevistados pertencem a diferentes grupos. Antes de 1962, havia em São Paulo vários subgrupos que atuavam com Psicologia Aplicada, viviam situações muito parecidas e, no decorrer do tempo, foram adquirindo uma identidade coletiva, a partir de visões e vivências semelhantes da Psicologia. Este aspecto ficou bastante ilustrado nos depoimentos dos profissionais que trabalharam em alguns dos núcleos de Psicologia Aplicada existentes em São Paulo naquele período - Liceu de Artes e Ofícios; Estrada de Ferro Sorocabana; Escola Técnica Getúlio Vargas; SENAI; CMTC; Serviço de Higiene Escolar etc. A descrição unânime que os diversos depoentes pertencentes a cada um destes núcleos fizeram das diferentes atividades desenvolvidas e principalmente dos instrumentos utilizados (de como foram importados, estudados, padronizados) permitiu uma reconstituição bastante linear da realidade profissional vivida nestes contextos. Também os depoimentos de participantes de um grupo sobre as atividades dos outros grupos confirmaram este domínio de atividades comuns. Havia intensa colaboração inter-grupos quanto ao tipo de trabalho realizado, e em alguns casos o mesmo profissional trabalhava em mais de um deles, o que pode explicar esta uniformidade de ação trazida pela memória dos participantes, e mantida ao longo do tempo.

Neste mesmo sentido, uma experiência com depoentes dos três cursos regulares existentes em São Paulo, logo após a regulamentação, mostrou uma realidade completamente diferente. Os professores e alunos de cada um dos cursos tiveram muita dificuldade para dar depoimentos sobre os outros dois, e os poucos relatos obtidos são informações de domínio público, denotando desconhecimento dos contextos aos quais não pertenciam. Este resultado de alguma forma pode estar demonstrando o pequeno relacionamento existente entre os participantes das diferentes instituições acadêmicas.

A última questão a ser mencionada está relacionada com a criação de formas de trabalho que possibilitem, neste tipo de estudo, verificar o movimento provocado pelas transformações que vão ocorrendo ao longo do tempo tanto nas identidades individuais quanto coletivas e suas repercussões sobre a memória coletiva. No caso dos psicólogos podemos considerar que individualmente eles vivenciaram uma primeira metamorfose quando se transformaram profissionalmente, passando de pedagogos ou filósofos (atividades para as quais eram preparados nos cursos oficiais de formação) a psicólogos. A transformação coletiva mais evidenciada nesse período foi a que ocorreu por ocasião da institucionalização da Psicologia, em 1962, quando todos os subgrupos se uniram em torno da elaboração do projeto de regulamentação da profissão. Os relatos mencionam um processo extremamente demorado (quase uma década) e penoso, mas necessário para que as diferenças fossem sendo trabalhadas a fim de que todos os diferentes grupos pudessem apoiar o projeto que, finalmente, foi encaminhado e aprovado no âmbito federal.

A reconstituição do passado e a possibilidade de conseguir explicitar esses movimentos mencionados neste tipo de pesquisa é realizada, portanto, por um movimento do historiador que se assemelha à montagem de um quebra-cabeças. Cada personagem entrevistado oferece, com suas lembranças, a sua percepção da vivência dos fatos ocorridos. Com este material e mais os decorrentes dos documentos consultados, o quebra-cabeças começa a ser montado. Algumas vezes o quebra-cabeças ou partes dele compõem-se com maior facilidade, outras vezes permanecem buracos que devem ser preenchidos a partir de hipóteses estabelecidas por nós, pesquisadores, e que constituem a interpretação da situação, principalmente quando nos deparamos com as questões ligadas à memória coletiva. Para Reis (2000) este tipo de historiador é considerado alguém que lida com uma "história-problema" (a pesquisa histórica suscitada por um problema recortado a partir do tempo presente, que ajuda a entender as semelhanças e diferenças dos dois tempos). A "história-problema", segundo o mesmo autor, é um processo difundido pela "Escola dos Annales", que pressupõe o historiador como alguém que estabelece um diálogo entre homens do passado e homens do presente. Poderíamos acrescentar que é este diálogo que vai permitir a construção de projetos futuros.

 

Referências bibliográficas

 

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Nota sobre a autora

Marisa Todescan Dias da Silva Baptista é Doutora em Psicologia Social pela PUC/SP, Professora do Mestrado em Psicologia da Universidade São Marcos.
Contatos: Rua Ática 186 – São Paulo / SP - CEP: 04634-040 – Brasil - marisa@nw.com.br – Fone/fax: (55) (11) 5031-7673.

Data de recebimento: 11/02/2003
Data de aceite: 09/04/2003

  Memorandum 4, abr/2003
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. 

http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos04/baptista02.htm
 

 

 

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