Introdução
Quando abordamos o
trabalho de Gustav Fechner (1801-1887), podemos seguir três trilhas. Em
primeiro lugar haveria uma trilha indicada pelo conjunto dos seus textos,
caracterizando um trabalho mais ou menos sistemático na direção do que ele
designou por “visão diurna” ou panpsiquismo. Por panpsiquismo entendia-se
um conjunto de pensamentos e reflexões sobre o mundo enquanto composto por
uma hierarquia de seres em que o espírito e o corpo seriam coextensivos
desde as esferas mais elementares. O trabalho psicofísico de Fechner não
seria uma exceção dentro desta visão metafísica, mas a própria tentativa
de lhe estabelecer a sua prova e o seu rigor. Uma segunda trilha é operada
por alguns historiadores da psicologia, como Edwin G. Boring (1886-1968),
que produzem a cisão entre a doutrina panpsiquista, o que para este
hitoriador era o lazer de um livre pensador, e o seu trabalho psicofísico,
enquanto um rigoroso esforço de Fechner em estabelecer uma ciência
psicológica (Boring, 1950/1979). Ainda que Fechner não se denominasse
psicólogo, tais historiadores consideram o surgimento experimental desta
ciência no trabalho deste psicofísico (cf. Idem, p. 297). Mais
especificamente na famosa intuição de Fechner de 22 de Outubro de 1850,
que, segundo Boring (citado por Saul Rosenzweig, 1987), deu ensejo ao seu
trabalho psicofísico. De modo mais conciso, o trabalho psicofísico de
Fechner se produz como a reunião de uma doutrina (a do Panpsiquismo), uma
metodologia experimental (correlacionando as variações dos estímulos e das
sensações percebidas) e um conjunto de leis matemáticas (destacando-se a
famosa lei Weber-Fechner). Destes três fatores os dois últimos aspectos
são considerados relevantes para o surgimento da psicologia. Esta cisão,
que se opera no sentido contrário das intenções de Fechner, tem como
finalidade constituir uma história triunfal da psicologia, escandindo o
científico do seu “resto metafísico”.
Contudo, haveria uma
terceira trilha: em que o conjunto dos trabalhos de Fechner é confrontado
com um conjunto de questões presentes em meados do século XIX, notadamente
com relação ao reconhecimento da psicologia enquanto saber científico.
Pensar que o surgimento de uma ciência se restringe ao estabelecimento de
procedimentos experimentais e de uma formalização matemática, é esquecer
todo um campo de problematizações em que os instrumentos criados por
Fechner puderam superar alguns obstáculos e responder a estas questões,
notadamente as colocadas pela filosofia crítica de Imannuel Kant
(1724-1804). É por esta trilha que este artigo seguirá. Antes de observar
como esta resposta é possível, vejamos como este campo problemático que
leva ao surgimento da psicologia surge no seio da filosofia moderna, de
René Descartes (1596-1650) a Imannuel Kant e Augusto Comte (1798-1857). E
finalmente, como os fisiólogos do século XIX, como Johannes Müller
(1801-1858) e Ferdinand von Helmholtz (1795-1878), irão dar subsídios para
resolver estas questões junto com a psicofísica de Fechner. Em suma: o que
estes últimos autores irão proceder é uma suspensão das críticas kanteanas
e comteanas quanto à possibilidade de uma Psicologia Científica. É neste
circuito problemático que se pretende enxergar a importância da
psicofísica de Fechner para a constituição de uma Ciência Psicológica,
mais do que qualquer contribuição metodológica ou matemática. Passemos à
montagem desta história e de seus personagens.
A
filosofia moderna como problematização do sujeito
Antônio Penna (n.1917),
um eminente historiador da psicologia brasileiro, considera o trabalho de
Descartes como indutor, através do seu dualismo metafísico entre uma
substância extensa (o corpo) e outra inextensa (a alma), o dualismo de uma
psicologia que se divide entre comportamentalista e mentalista. Seguindo
os veios da substância extensa estaria uma psicologia comportamental
fundada por John Watson (1878-1958) que, apoiada na doutrina dos
“animais-máquina” de Descartes e na garantia darwinista de que o homem é
um animal, concluiria que o ser humano nada mais é do que uma soma de
reflexos. Por outro lado, nas trilhas da substância inextensa, teria se
desenvolvido uma psicologia cognitivista, cujo maior expoente é Noam
Chomsky (n.1928), a qual o corpo é posto entre parêntesis, a fim de dar
conta das competências do pensamento humano às quais ele apenas executa em
mero desempenho mecânico (cf. Penna, 1981, p.81).
Contudo, mais do que a
delimitação do dualismo metafísico que habita a Ciência Psicológica,
balizando a opção das relações entre mente e corpo, pode ser visto em
Descartes a colocação de uma nova problemática, ou ao menos, um novo ponto
de partida para o pensamento ocidental. No século XVI, o aristotelismo
temperado com cristianismo, próprio de São Tomás de Aquino (1225-1274)
dava provas de esgotamento, favorecendo todo um pensamento cético como o
de Michel de Montaigne (1533-1595). Nutrindo-se da dúvida cética, a
certeza de que não há certezas, radicalizando-a, tornando-a hiperbólica, e
pondo-a sob o julgo de um suposto gênio maligno apto a fazer com que nos
equivoquemos com tudo, é que Descartes estabelecerá os primeiros pilares
de um novo porto-seguro do pensamento:
Não há, pois, dúvida alguma que sou, se ele (o suposto
Gênio Maligno) me engana; e, por mais que me engane,não poderá jamais
fazer com que eu nada seja, enquanto eu pensar ser alguma coisa. De sorte
que, após ter pensado bastante nisso e ter examinado cuidadosamente todas
as coisas, cumpre enfim concluir e ter por constante que essa proposição
eu sou, eu existo, é necessariamente verdadeira todas as vezes que
a enuncio em meu espírito (Descartes, 1641/1972, p.100).
Essa intuição imediata
do próprio eu pensante impõe um novo ponto de partida para a filosofia
ocidental: não mais o Ser, as Essências ou Deus, mas o Espírito e o
Sujeito, enquanto sedes da verdade, mesmo que em Descartes as idéias
claras e distintas que instruem nossa razão sejam de origem divina. É
neste ponto que todo o nosso pensamento se torna gnosiológico: para saber
do tema da verdade era necessário saber da verdade do sujeito.
Como a
psicologia se insere neste projeto? Não apenas pelo fato do Sujeito e do
Espírito terem sido estipulados como os novos alvos do pensamento, que por
transformações sucessivas viriam a dar na mente, no psiquismo ou no
complemento destes, o comportamento, mas principalmente ao se por o
problema do conhecimento, como condição de acesso à verdade. Desde o tempo
de Descartes, debatem racionalistas e empiristas sobre a via mais segura
para atingir a verdade através do Espírito: razão ou sentidos? Discussão
esta que se rebate nos dias de hoje, no interior da epistemologia entre
racionalistas aplicados, como Gaston Bachelard (1884-1962) e Georges
Canguilhem (1904-1991), e neopositivistas, como Rudolf Carnap (1891-1970)
e Moritz Schlick (1882-1936), e na psicologia entre behavioristas e
cognitivistas. Contudo, a questão gnosiológica que nutre o surgimento da
psicologia é complementar à da busca da verdade no sujeito: trata-se da
questão do erro. É neste aspecto que Aron Gurwitsch (1901-1973) verá a
origem da psicologia na questão do erro, como uma desculpa do espírito à
Razão identificada com o ideário mecanicista da ciência iniciante no
século XVII:
O que
caracteriza essencialmente a física, tal como nós a conhecemos é a
separação definitiva que ela estabelece entre a realidade verdadeira e as
aparências “subjetivas”. O mundo não é como ele parece ser, tal como se
oferece à percepção ordinária, na verdade ele é como a ciência física
consegue construí-lo... Segundo as ciências físicas, eis todo o aspecto
fenomenal do mundo: as qualidades consideradas secundárias, os caracteres
de valor de toda as espécies, os momentos teleológicos que ele parece
conter, etc., não constituem nada de real; com estes fatos estamos na
presença de uma contribuição que se deve à subjetividade humana, e que o
homem, graças a sua constituição psico-fisiológica, projeta sobre um
universo que é de outra natureza... A psicologia é colocada diante da
tarefa de mostrar, como, por outro lado, sendo dada a realidade objetiva
e, por outro lado, a constituição psico-fisiológica do homem, o universo
pode assumir este aspecto fenomenal e “subjetivo”, que uma tendência
natural nos leva a considerar como a própria realidade (Gurwitsch, 1935,
p.107).
Esta
problemática do Espírito foi detectada por Galileu e Descartes na divisão
entre as qualidades primárias e secundárias. Pensar no Espírito como ponto
da verdade implica como tarefa complementar pensar o que nele conduz ao
equívoco. Se há algo em Descartes que inspira o surgimento da Psicologia
no século XIX não é o Eu pensante ou o Corpo mecânico, mas
as Paixões, enquanto ponto do Espírito em que as duas substâncias
se misturam, especialmente através dos sentidos, produzindo o erro.
Qual é o
caminho de acesso à verdade através do Espírito? A ordem das Razões
desviando-se dos equívocos dos sentidos, como sugerem os racionalistas? Ou
a impressão dos sentidos, a partir da qual a nossa razão nada mais seria
do que um hábito, uma ilusão, conforme os empiristas? A coexistência
destas duas vias de mão-dupla da verdade e do erro irá inspirar um
discípulo de Gottfried Leibniz (1646-1716), Christian Wolff (1679-1754) a
produzir em meados do século XVIII, uma nova análise do Espírito, que
chamará de Psychologia Rationalis, ao estudar a alma imortal
como substância em 1734, e Empírica, ao estudar o fluxo de nossas
vivências nesta alma em 1732. Com uma novidade: não é mais o conhecimento
que está em questão, mas a possibilidade de se descrever objetivamente o
espírito. É neste aspecto que Georges Canguilhem criticará esta suposta
filiação cartesiana desta psicologia filosófica ao afirmar que:
Toda a história desta psicologia pode se escrever como a
dos contra-sentidos dos quais as Meditações (Metafísicas) foram a
ocasião sem ter a sua responsabilidade... As Meditações são chamadas por
Descartes Metafísicas porque elas pretendem atingir diretamente a
natureza e a essência do Eu penso, na apreensão imediata de sua
existência. A meditação cartesiana não é uma confidência pessoal (Canguilhem,
1956/1972, p.111-112).
E, mais
adiante:
É que se desconheceu o ensinamento de Descartes ao mesmo
tempo constituindo, contra ele, uma psicologia empírica como história
natural do eu – de Locke a Ribot, através de Condillac, os Ideólogos
franceses e os Utilitaristas ingleses – e constituindo, segundo ele,
acreditava-se, uma psicologia racional fundada numa intuição de um Eu
substancial (Idem, p. 113).
Imannuel
Kant será o formulador da mais derradeira crítica a esta psicologia mal
apoiada no pensamento cartesiano. Inicialmente, ao propor que o
conhecimento nada mais seria do que a reunião entre o empírico e o
racional, dada na síntese a priori entre o diverso sensível e as
formas e categorias do Sujeito transcendental, e superando as
aporias da gnosiologia moderna entre empiristas e racionalistas. Neste
ponto, a própria pedra fundamental do pensamento cartesiano é
problematizada: a intuição intelectual deste Eu penso, que seria a
primeira evidência dentro de uma ordem das razões, não é mais possível,
uma vez que o próprio Eu penso não é passível de uma intuição
sensível. Ele não se encontra como um objeto no tempo e no espaço, mas
acompanha todas as representações produzidas pelo sujeito. Se a psicologia
filosófica é um equívoco ao tomar a evidência do Cogito como uma
confidência pessoal, este engano será duplicado, ao se permitir que o
Eu Penso seja abordado a partir de uma intuição intelectual. Em função
da revolução copernicana da gnosiologia kantiana é que as
psicologias racional e empírica de Wolff serão criticadas, por não poderem
dar conta como uma ciência legítima do Sujeito transcendental.
Examinemos as críticas e os vetos a essas psicologias.
A Psychologia Rationalis será alvo da Crítica da
Razão Pura kantiana, mais especificamente da sua Dialética
Transcendental, onde são examinadas as Idéias de Razão (como a
de alma imortal), enquanto produtos de uma busca em uma série
conceitual de um termo incondicionado, que é tomado inadequadamente como
uma coisa em si. A tarefa da Dialética kantiana é, pois, demonstrar
os paralogismos, ou sofismas, presentes numa razão desenfreada e sem
limite, como a presente nas metafísicas, e, em especial, a de Wolff. O
argumento básico contra a Psicologia Racional é que o suposto conhecimento
de uma alma imortal está assentado na experiência de um eu, ou o sentido
interno fenomenal, que nada mais é do que uma intuição empírica, que diz
respeito ao próprio tempo da consciência, de resto, bem diferente do Eu
penso. Este seria uma pura função de organização da experiência e
sujeito de todo julgamento de apercepção, sobre o qual não poderia recair
qualquer ciência, uma vez que ele é condição transcendental de toda
ciência. O erro da Psicologia Racional está em tomar este Eu penso,
enquanto função transcendental do conhecimento com algo a ser vivenciado,
como o eu empírico. Em outras palavras, seria confundir eu
determinante com eu determinável; sujeito com objeto. Nas
palavras de Kant:
De tudo isto se vê que a psicologia racional deve a sua origem a um
simples mal entendido. A unidade da consciência, que serve de fundamento
às categorias, é tomada aqui por uma intuição do sujeito enquanto objeto
e, em seguida a ela aplicada a categoria de substância (1781/1994, p.
359-360).
Se o Eu penso da Psychologia Rationalis não é
passível de se tornar objeto de uma ciência, uma vez que condição de todas
as ciências, resta o Eu empírico, tema da Psychologia Empirica.
Esta, inclusive estaria mais próxima do projeto que norteará o surgimento
da Psicologia Experimental no século XIX, visando estudar as ilusões da
experiência imediata. Mas, persiste a pergunta: caberia uma ciência aqui?
A resposta de Kant (1786/1989) nos Princípios metafísicos da
ciência da natureza é que a Psychologia Empirica não seria uma
ciência nem impropriamente dita, como a química, que assim seria
por não operar com relações matemáticas (ao menos em 1786). Passemos a
palavra a Kant:
A
psicologia empírica está mais distanciada que a química da classe da
ciência da natureza propriamente dita, primeiro, porque a matemática não é
aplicável aos fenômenos do sentido interno e a suas leis, pois teria que
se ter em conta em tal caso somente a lei de continuidade no fluxo das
mudanças do dito sentido interno. Mas, a ampliação do conhecimento assim
obtido se relacionaria com o conhecimento obtido pela matemática dos
corpos de maneira semelhante ao modo como se relaciona a doutrina das
propriedades da linha reta com toda a geometria. Pois a pura intuição
interna, na qual devem se constituir os fenômenos da alma é o tempo, mas
este tem uma só dimensão. A doutrina empírica da alma jamais poderá se
aproximar da química como arte sistemática de análise, ou doutrina
experimental, uma vez que nela, o múltiplo da observação interna está
separado somente por uma simples divisão no pensamento, sem poder
manter-se separado, e unificar-se de novo arbitrariamente; menos ainda
poderá se submeter outro sujeito pensante a nossa busca, de tal modo que
seja conforme a nossos propósitos, e inclusive a observação em si mesma
altera e distorce o estado do objeto observado. Por isso, a psicologia
nunca pode ser mais do que uma doutrina histórica do sentido interno, e
como tal, tão, tão sistemática quanto possível, uma simples descrição da
alma, mas não uma ciência da alma, nem uma doutrina psicológica
experimental (Kant, 1786/1989, p. 32-33).
Para
Kant, segundo Canguilhem, não restaria à psicologia lugar senão na “Antropologia,
como propedêutica de uma teoria da habilidade e da prudência, coroada por
uma teoria da sabedoria” (Canguilhem, 1956/1972, p.114). Resta dizer que
as críticas de Kant a psicologia empírica encontraram eco no positivismo
de Augusto Comte, que em seu Curso de Filosofia Positiva assim
criticava o método da introspecção: “O indivíduo pensante não poderia se
dividir em dois, um raciocinando, enquanto o outro o visse raciocinar. O
órgão observado e o órgão observador, sendo, neste caso, idênticos, como
poderia haver a observação?” (Comte, 1830/1972, p. 20). Deve-se dizer que
as críticas de Comte voltam-se aqui no século XIX contra outras
psicologias filosóficas: a dos Ideólogos, a dos Ecléticos, e a da Escola
Escocesa, conforme Lèvy-Brul (1913, citado por Penna 1990, p.19). Restam,
contudo, os vetos propostos por Kant à psicologia empírica. Para se provar
ciência ela terá que:
1)
Descobrir o seu elemento de modo similar à química, para com isto efetuar
análises e sínteses;
2)
Facultar a este elemento um estudo de tal modo objetivo, em que sujeito e
objeto não se misturem como na introspecção;
3)
Que
se produza uma matematização mais avançada que geometria da linha reta,
apta a dar conta das sucessões temporais do sentido interno.
E esta
missão caberá aos fisiólogos do século XIX, e, em especial a Fechner.
A
superação dos vetos kantianos: fisiologia sensorial e psicofísica
O
primeiro problema listado, a falta de um elemento objetivo, será suprido
pela teoria das energias nervosas específicas de Johannes Müller,
formulada explicitamente em seu Handbuch der Physiologie de 1826.
Para este fisiólogo, cada via aferente possuiria uma energia nervosa
específica que se traduziria em uma sensação específica de cada nervo.
Assim, o nervo ótico excitado pela ação da retina, ou por forças mecânicas
e químicas produzirá sempre imagens luminosas. O mesmo ocorreria com os
demais sentidos. Seria uma espécie de kantismo fisiológico, em que o mundo
percebido seria uma mera propriedade das nossas energias nervosas
específicas (do que Galileu havia chamado de qualidades secundárias),
estimuladas sempre por um fator físico qualquer, não importando a sua
natureza. Trata-se de um elemento preciso, corporalmente situado como
fenômeno, ao contrário das idéias e impressões descritas
pelos empiristas, enquanto elementos arbitrários. É por tal razão que a
sensação vai se oferecer como elemento para uma possível psicologia: ela
ligaria o mundo físico que constantemente estimula os sentidos; o
fisiológico, uma vez que as energias nervosas específicas estão ligadas
aos nervos, e o psicológico, uma vez que a sensação seria a base de nossas
representações. E quem desenvolverá este aspecto, junto com a solução do
segundo problema kantiano será um discípulo de Müller, Hermann von
Helmholtz
Helmholtz irá
elaborar em 1860 uma teoria sobre o surgimento das representações
psicológicas, ou das apercepções, que, no seu reverso, irá fomentar um
novo método para estudo objetivo das sensações. A teoria proposta é a das
inferências inconscientes, de claro cunho empirista, e o método, o
da introspecção experimental, bem diferente, como veremos do
produzido na psicologia filosófica. As nossas sensações seriam organizadas
por experiências passadas, que seriam armazenadas como as premissas
maiores de um silogismo, aptas a ordenar de modo inconsciente e rápido as
premissas menores informadas pelos sentidos, produzindo como conclusão as
nossas representações psicológicas. O modo de análise das sensações, a
introspecção experimental, se processaria no inverso dessas sínteses
inconscientes, visando neutralizar os efeitos dessa inferência silogística
operada pela experiência passada. Para neutralizar esta síntese
inconsciente, processa-se então uma análise consciente, em que os sujeitos
dos experimentos são treinados para reconhecer o aspecto mais bruto e
selvagem de nossa experiência. Como animais selvagens domesticados teriam
que ser reeducados ao seu ambiente natural. Este treinamento dos sujeitos,
que faz com que este estudo não possa ser feito sobre crianças,
primitivos, ou doentes mentais, visa o evitar o erro do estímulo,
qual seja, a confusão do objeto percebido com os juízos inconscientes
acumulados pela experiência passada. Por isto, o estudo objetivo das
sensações em um sujeito só poderá ser feito se este mesmo sujeito for
também um fisiólogo, apto a distinguir o joio da experiência passada do
trigo das sensações. Por todos estes cuidados metodológicos, em que a
distância entre observador e observado se impõe, ainda que ocorra no mesmo
sujeito, e na presença de um elemento objetivo é que o método
introspectivo irá se distinguir da introspecção dos filósofos-psicólogos.
Restava ainda o problema da matematização, o terceiro colocado por Kant. É
aqui que entra a psicofísica de Fechner, delineada nos Elemente der
Psychophysik de 1860. Pode-se dizer que ela também oferece uma
resposta experimental ao segundo veto kantiano. Mas a sua principal
conquista está em oferecer a qualquer estudo psicológico a possibilidade
de desenvolver uma matemática mais avançada que a geometria de uma linha
reta. Isto, através do estabelecimento da primeira lei matemática,
batizada por ele Lei Weber-Fechner, em função do aproveitamento da equação
desenvolvida por Ernst Weber (1795-1878) sobre a relação de
proporcionalidade entre as diferenças apenas percebidas entre
estímulos e os valores absolutos destes. Fechner, além de complexificar a
equação, irá transformar as diferenças apenas percebidas em
sensações, sugerindo a primeira medição psicológica.
Conclusão
Por se tratar da
superação do último veto kantiano é que se pode dizer que o trabalho de
Fechner representa o primeiro pilar de uma psicologia a nascer, e que as
fundações deste pilar se encontram na intuição de Fechner de 22 de outubro
de 1850, data que serve de marco para este encontro. Mas deve se lembrar
que o valor deste trabalho está correlacionado ao poder de resposta que
ele oferece a problemas filosóficos que se iniciam em Descartes e
desembocam nas críticas kantianas. É neste circuito gnosiológico que se
faz a importância do trabalho de Fechner, pois ele abriu espaço para a
primeira formulação científica da psicologia, superando os impasses da
psicologia empírica de cunho metafísico, gerada na tentativa de também
responder a estes mesmos problemas filosóficos. Por detrás do sonho de
Fechner havia o sonho da psicologia de acordar do sono dogmático
denunciado por Kant. O sonho de Fechner pode ter brevemente acordado a
psicologia (ou ter feito sonhar que acordou) do sono dogmático, apesar da
sua intenção ter sido mais nos acordar do sono materialista. Pois
correlacionar o físico (estímulo) e o espiritual (sensação) para Fechner
não visava provar uma psicologia matematizável, mas um duplo aspecto de
uma mesma natureza extensível a todos os seres, o seu panpsiquismo.
Contudo, a história da psicologia prossegue na proliferação de escolas e
sistemas que se colocam como a quintessência da cientificidade na
psicologia. Em função da proliferação destes mundos científicos possíveis
é que se pode perguntar se os vetos kantianos, formulados no final do
século XVIII não continuam a assombrar a psicologia. Novos Kants e novos
Fechners não apenas serão recorrentes, mas igualmente bem vindos.
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final tribute of E. G. Boring to G. Fechner. American Psychologist, 42
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Nota sobre o autor
Arthur Arruda Leal Ferreira
é
Professor Adjunto do Instituto de Psicologia da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia
Universidade Católica da São Paulo e pesquisador financiado pela FAPERJ.
Contato:
Rua do Riachuelo 169/405. Rio de Janeiro / RJ. Brasil. CEP: 20.230-014.
E-mail:
arleal@antares.com.br
Data de
recebimento: 15/08/2003
Data de
aceite: 18/10/2003
Memorandum
5, out/2003
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos05/ferreira01.htm