Amatuzzi, M.M. (2004). A composição dos elementos: uma tradução do “De Mixtione Elementorum” de Tomás de Aquino. Memorandum, 6, 78-88. Retirado em / / da World Wide Web:  http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/amatuzzi02.htm

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A composição dos elementos: uma tradução do

De Mixtione Elementorum” de Tomás de Aquino

 The composition of the elements: a translation of Thomas Aquinas’ De Mixtione Elementorum

Mauro Martins Amatuzzi
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Brasil

Resumo

Apresenta-se tradução para o português - e original latino conforme edição crítica - de texto de Tomás de Aquino sobre a composição dos elementos. O interesse daquele texto medieval para a história da psicologia é que coloca as bases teóricas sobre as quais será concebida a estrutura mais complexa do ser humano, segundo seu autor. Os elementos materiais simples existem no todo de um corpo composto a partir deles. Neste mesmo caminho será compreendida, em outros textos, a composição constitutiva dos seres vivos – num segundo estágio de complexidade - e a composição do ser humano onde o espírito se manifesta mais claramente, num terceiro estágio. Os elementos simples encontram-se no composto não em sua plena atualidade como quando isolados, mas virtualmente, ou seja, trazendo sua virtude para um todo maior que os integra. Comentários hermenêuticos explicitam sua importância para uma psicologia segundo a concepção de Tomás de Aquino.

Palavras-chave: Tomás de Aquino; composição física; corpo humano; alma.

Abstract

This article presents a Portuguese translation of a text by Thomas Aquinas on the composition of the material elements. Presents, also, for each translated paragraph, the Latin original text according to the critical edition. The interest for the history of psychology of that medieval text is that it presents the theoretical bases on which it will be conceived the human being most complex structure, according to Thomas Aquinas. The text exposes how the simple material elements can exist in the whole of a material composed body. In the same way it will be understood, in other texts, the composition of living beings, in a second complexity level, and the human being composition, in which the spirit is manifested, in a third complexity level. Simple elements do not exist in a composed body in its full presence, but virtually; in other words, bringing its virtue for a whole that integrates them.

Keywords: Thomas Aquinas; physical composition; human body; soul.

 

Introdução

Esta tradução faz parte de um projeto que pretende resgatar textos de Tomás de Aquino que sejam de interesse para a psicologia (neste sentido ver Amatuzzi, 2003). Inicialmente pretendemos selecionar, e traduzir quando for o caso, textos que se refiram, primeiro, à matéria, em segundo lugar à vida, e, finalmente ao espírito. Esses três temas correspondem aos três grandes níveis de complexidade observados entre os entes de nosso mundo. Este primeiro texto aqui selecionado, sobre a composição dos elementos simples na formação dos corpos compostos, é um texto que pertence à física, mas já coloca alguns conceitos básicos que serão usados ulteriormente na compreensão dos seres vivos e em particular do ser humano onde o espírito se manifesta de modo mais claro, e, portanto, na psicologia.

A tradução foi feita diretamente a partir do texto latino tal como consta no sítio eletrônico da Universidade de Navarra na Espanha (Tomás de Aquino, 1976), o qual, por sua vez, é o texto da Edição Leonina, de Roma em 1976. Torrell (1999) nos informa que

esse pequeno tratado é endereçado ao Mestre Filipe de Castro Caeli, professor de medicina em Bolonha e em Nápoles, que consultou Tomás sobre a questão dos quatro elementos e de suas qualidades, segundo o papel que a medicina antiga lhes conferia na teoria dos humores e temperamentos. (p.412).

A data desse opúsculo, ainda segundo Torrell, é incerta; ele a situa na segunda estadia de Tomás em Paris, pouco antes de 1270, sendo portanto obra da maturidade do mestre. A única tradução mencionada por Torrell é para o francês, Opuscules de saint Thomas d’Aquin, feita pelo abade Bandel, edição Vivès, t.4, Paris, 1857.

A divisão em parágrafos numerados, tal como consta aqui, foi feita por nós, visando facilitar a leitura e as referências. Transcrevemos o texto latino em letras itálicas e com recuo de margem, seguido, parágrafo por parágrafo, pela tradução em letras normais. A tradução procurou ser o mais literal possível. Contudo, como o texto é muito sucinto, acrescentamos nela, por vezes, entre colchetes, algumas palavras que, julgamos, poderiam auxiliar a compreensão.

A questão a que remete este opúsculo, enquanto relacionada com a antropologia ou mesmo com a psicologia, pode ser colocada da seguinte forma: cada ser humano é apenas um aglomerado de partículas materiais elementares mais ou menos independentes, ou ele se constitui como um todo original, dotado de uma unidade tal que o lança num nível ontológico diferente? A resposta de Tomás de Aquino procura encontrar um sentido consistente na linha da segunda alternativa. Se traduzimos, pois, este texto aqui é porque ele coloca fundamentos para se compreender a própria realidade humana.

 Texto bilíngüe

DE MIXTIONE ELEMENTORUM

Sancti Thomae de Aquino ad magistrum Philippum de Castro Caeli

Textum Leoninum Romae 1976 editum

ac automato translatum a Roberto Busa SJ in taenias magneticas

denuo recognovit Enrique Alarcón atque instruxit.

 

SOBRE A COMPOSIÇÃO DOS ELEMENTOS

de Santo Tomás de Aquino ao mestre Filipe de Castro Caeli
Texto da edição Leonina, Roma, 1976.
Copiado em fitas magnéticas por Roberto Busa SJ,
reconhecido e preparado por Enrique Alarcón.

 1. Dubium apud multos esse solet quomodo elementa sint in mixto.

1. Costuma haver dúvida em muitos sobre como os elementos [materiais simples] podem estar no [corpo material] composto. 

2. Videtur autem quibusdam quod, qualitatibus activis et passivis elementorum ad medium aliqualiter reductis per alterationem, formae substantiales elementorum manent: si enim formae substantiales non maneant, corruptio quaedam elementorum esse videbitur et non mixtio.

2. Com efeito, parece a alguns que, estando as qualidades ativas e passivas dos elementos, de algum modo, reduzidas a um grau intermediário, por causa da alteração [que gera o composto], suas formas substanciais permanecem [no composto], pois se não permanecessem, existiria corrupção [deles] e não composição [a partir da sua alteração]. 

3. Rursus si forma substantialis corporis mixti sit actus materiae non praesuppositis formis simplicium corporum, simplicia corpora elementorum rationem amittent. Est enim elementum ex quo componitur aliquid primo, et est in eo, et est indivisibile secundum speciem; sublatis enim formis substantialibus, non sic ex simplicibus corporibus corpus mixtum componetur, quod in eo remaneant.

3. Do contrário, se a forma substancial do corpo composto fosse ato da matéria sem pressupor as formas dos corpos simples, estes perderiam sua razão de elementos. Mas existem os elementos a partir dos quais primeiramente se compõem as coisas, elementos que estão nelas e são indivisíveis segundo a espécie. Subtraídas, pois, suas formas substanciais, o corpo composto não estaria assim composto por corpos simples que permaneceriam nele. 

4. Est autem impossibile sic se habere; impossibile est enim materiam secundum idem diversas formas elementorum suscipere. Si igitur in corpore mixto formae substantiales elementorum salventur, oportebit diversis partibus materiae eas inesse. Materiae autem diversas partes accipere est impossibile, nisi praeintellecta quantitate in materia; sublata enim quantitate, substantia indivisibilis permanet, ut patet in primo Physic. Ex materia autem sub quantitate existente, et forma substantiali adveniente, corpus physicum constituitur. Diversae igitur partes materiae formis elementorum subsistentes plurium corporum rationem suscipiunt. Multa autem corpora impossibile est esse simul. Non igitur in qualibet parte corporis mixti erunt quatuor elementa; et sic non erit vera mixtio, sed secundum sensum, sicut accidit in aggregatione corporum insensibilium propter parvitatem.

4. É impossível, porém, que seja assim; pois é impossível que a matéria assuma, no mesmo ponto, diversas formas. Se no corpo composto as formas substanciais dos elementos se salvassem, seria necessário que estivessem localizadas em diversas partes da matéria. Mas é impossível à matéria aceitar partes diversas a não ser que se pressuponha nela a quantidade; supressa, pois, a quantidade, a substância permanece indivisível, como se mostra no I livro da Física [de Aristóteles]. É, pois, a partir da matéria existente sob a quantidade [ou seja, da matéria extensa], e da forma substancial que lhe advém, que se constitui o corpo físico. Portanto [naquele caso] as diversas partes da matéria, subsistentes às formas dos elementos, tomariam para si a razão de muitos corpos. É impossível, porém, que muitos corpos existam simultaneamente. Portanto, não será em todas as partes do corpo composto que existirão os quatro elementos. Se assim fosse, não haveria verdadeira composição, mas apenas composição aparente como acontece na aglomeração de corpos que [quando separados] não são perceptíveis por serem muito pequenos [mas o são quando reunidos]. 

5. Amplius, omnis forma substantialis propriam dispositionem in materia requirit, sine qua esse non potest: unde alteratio est via ad generationem et corruptionem. Impossibile est autem in idem convenire propriam dispositionem, quae requiritur ad formam ignis, et propriam dispositionem quae requiritur ad formam aquae, quia secundum huiusmodi dispositiones ignis et aqua sunt contraria. Contraria autem impossibile est esse in eodem. Impossibile est igitur quod in eadem parte mixti sint formae substantiales ignis et aquae. Si igitur mixtum fiat remanentibus formis substantialibus simplicium corporum, sequitur quod non sit vera mixtio, sed solum ad sensum, quasi iuxta se positis partibus insensibilibus propter parvitatem.

5. Além disso, toda forma substancial requer uma disposição própria na matéria sem a qual não pode existir; daí porque a alteração seja o caminho para a geração e a corrupção. Mas é impossível reunirem-se na mesma coisa a disposição própria requerida para a forma do fogo e a disposição própria requerida para a forma da água. E isso porque é segundo essas disposições que fogo e água são contrários, e os contrários não podem existir na mesma coisa. Não é possível, portanto, que na mesma parte do composto estejam as formas substanciais do fogo e da água. Se, portanto, o composto fosse formado permanecendo as formas substanciais dos corpos simples, seguir-se-ia não haver uma verdadeira composição, mas somente em aparência, como uma justaposição de [corpos que seriam como] partes imperceptíveis por sua pequenez. 

6. Quidam autem utrasque rationes vitare volentes, in maius inconveniens inciderunt. Ut enim mixtionem ab elementorum corruptione distinguerent, dixerunt formas substantiales elementorum aliqualiter remanere in mixto. Sed rursus ne cogerentur dicere esse mixtionem ad sensum, et non secundum veritatem, posuerunt quod formae elementorum non manent in mixto secundum suum complementum, sed in quoddam medium reducuntur; dicunt enim quod formae elementorum suscipiunt magis et minus et habent contrarietatem ad invicem.

6. Alguns, porém, querendo evitar essas razões, caíram em maiores inconvenientes ainda. Para poderem diferenciar a composição dos elementos de sua corrupção, afirmaram que as formas dos elementos permanecem [somente] de algum modo no composto. E para que de novo não fossem obrigados a dizer que a composição seria [nesse caso também] aparente e não verdadeira, afirmaram que as formas dos elementos não permanecem em toda sua completude no composto, mas ficam reduzidas a um certo [estado] intermediário; dizem, com efeito, que as formas dos elementos admitem mais e menos, e têm contrariedade umas em relação às outras. 

7. Sed quia hoc manifeste repugnat communi opinioni et dictis Aristotelis dicentis in Praedic., quod substantiae nihil est contrarium, et quod non recipit magis et minus; ulterius procedunt, dicentes quod formae elementorum sunt imperfectissimae, utpote materiae primae propinquiores: unde sunt mediae inter formas substantiales et accidentales; et sic, inquantum accedunt ad naturam formarum accidentalium, magis et minus suscipere possunt.

7. Mas como isso evidentemente repugna à opinião comum e às afirmações de Aristóteles, no livro dos Predicamentos, quando diz que substância não tem contrário, e nem [tampouco] aceita mais e menos, foram mais longe dizendo que as formas dos elementos são as mais imperfeitas uma vez que estão mais próximas à matéria primeira, sendo intermediárias entre as formas substanciais e as formas acidentais; e dessa maneira, por se aproximarem da natureza das formas acidentais, são susceptíveis de mais e menos. 

8. Haec autem positio multipliciter improbabilis est. Primo quidem quia esse aliquid medium inter substantiam et accidens est omnino impossibile: esset enim aliquid medium inter affirmationem et negationem. Proprium enim accidentis est in subiecto esse, substantiae vero in subiecto non esse. Formae autem substantiales sunt quidem in materia, non autem in subiecto: nam subiectum est hoc aliquid; forma autem substantialis est quae facit hoc aliquid, non autem praesupponit ipsum. Item ridiculum est dicere medium esse inter ea quae non sunt unius generis; ut probatur in decimo Metaph., medium enim et extrema ex eodem genere esse oportet; nihil igitur medium esse potest inter substantiam et accidens.

8. Por múltiplas razões essa posição é improvável. Em primeiro lugar porque é totalmente impossível algo ser um intermediário entre substância e acidente, pois equivaleria a ser intermediário entre afirmação e negação. Com efeito, é próprio ao acidente existir em um sujeito, enquanto à substância [ao contrário, é próprio] não existir em um sujeito. As formas substanciais existem na matéria, mas não em um sujeito, pois o sujeito é algo constituído e a forma substancial é [justamente] aquilo que faz algo [ser] constituído, e, portanto, não o pressupõe. Além disso, é ridículo dizer que existe um intermediário entre aquelas coisas que não são de um mesmo gênero, como está provado no décimo livro da Metafísica [de Aristóteles], pois é necessário que tanto o intermediário como os extremos sejam do mesmo gênero. Portanto não pode haver intermediário entre substância e acidente.

 9. Deinde impossibile est formas substantiales elementorum suscipere magis et minus. Omnis enim forma suscipiens magis et minus est divisibilis per accidens, inquantum scilicet subiectum eam potest participare vel magis vel minus. Secundum autem id quod est divisibile per se vel per accidens, contingit esse motum continuum, ut patet in sexto Physic. Est enim loci mutatio et augmentum et decrementum, secundum quantitatem et locum quae sunt per se divisibilia; alteratio autem secundum qualitates quae suscipiunt magis et minus, ut calidum et album. Si igitur formae elementorum suscipiunt magis et minus, tam generatio quam corruptio elementorum erit motus continuus. Quod est impossibile. Nam motus continuus non est nisi in tribus generibus, scilicet in quantitate et qualitate, et ubi, ut probatur in quinto Physic. Amplius, omnis differentia secundum formam substantialem variat speciem. Quod autem recipit magis et minus, differt quod est magis ab eo quod est minus et quodammodo est ei contrarium, ut magis album et minus album. Si igitur forma ignis suscipiat magis et minus, magis facta vel minus facta speciem variabit, et non erit eadem forma, sed alia. Et hinc est quod philosophus dicit in octavo Metaph., quod sicut in numeris variatur species per additionem et subtractionem, ita in substantiis. Oportet igitur alium modum invenire, quo et veritas mixtionis salvetur, et tamen elementa non totaliter corrumpantur, sed aliqualiter in mixto remaneant.

9. Em segundo lugar é impossível que as formas substanciais dos elementos sejam susceptíveis de mais e menos. Pois toda forma susceptível de mais e menos é divisível acidentalmente, isto é, na medida em que o sujeito pode participar dela mais ou menos. Mas quando algo é divisível, por si ou acidentalmente, pode acontecer o fluxo [ou movimento] contínuo [e não apenas discreto ou por saltos] como fica claro no livro sexto da Física [de Aristóteles]. Existe, com efeito, mudança de lugar, [mudança por] crescimento e [por] decréscimo, no aspecto de quantidade e lugar, que são por si divisíveis. Já a [mudança do tipo da] alteração existe no aspecto das qualidades que são susceptíveis de mais e menos, como o quente e o branco. Se, portanto, as formas dos elementos são susceptíveis de mais e menos, tanto a geração como a corrupção dos elementos seria um movimento [ou um fluxo] contínuo [com graduações infinitas, e não algo discreto, de um estado a outro]; o que é impossível. De fato, o movimento contínuo só pode existir em três gêneros, isto é, na quantidade, na qualidade e no lugar [e não no gênero da substância, como é o caso da composição], como se prova no quinto livro da Física. E mais: toda diferença no que diz respeito à forma substancial, acarreta uma variação na espécie. Naquilo que aceita mais e menos difere o que é mais do que é menos sendo de certo modo contrários, como o mais branco e o menos branco. Se, portanto, a forma do fogo é susceptível de mais e menos, ser mais [fogo] ou menos [fogo] acarretará em mudança na espécie, não sendo a mesma forma, mas outra. Daí porque o filósofo Aristóteles, no oitavo livro da Metafísica, afirme que, assim como nos números a espécie varia pela adição e subtração, assim também nas substâncias. É necessário, portanto, encontrar um outro modo pelo qual a verdade da composição se salve e, apesar disso, os elementos não se corrompam totalmente, mas de algum modo permaneçam no composto. 

10. Considerandum est igitur quod qualitates activae et passivae elementorum contrariae sunt ad invicem et magis et minus recipiunt. Ex contrariis autem qualitatibus quae recipiunt magis et minus constitui potest media qualitas, quae sapiat utriusque extremi naturam, sicut pallidum inter album et nigrum, et tepidum inter calidum et frigidum. Sic igitur, remissis excellentiis qualitatum elementarium, constituitur ex his quaedam qualitas media, quae est propria qualitas corporis mixti, differens tamen in diversis secundum diversam mixtionis proportionem: et haec quidem qualitas est propria dispositio ad formam corporis mixti, sicut qualitas simplex ad formam corporis simplicis. Sicut igitur extrema inveniuntur in medio, quod participat naturam utriusque, sic qualitates simplicium corporum inveniuntur in propria qualitate corporis mixti. Qualitas autem simplicis corporis est quidem aliud a forma substantiali ipsius, agit tamen in virtute formae substantialis, alioquin calor calefaceret tantum, non autem per eius actionem forma substantialis educeretur in actum; cum nihil agat ultra suam speciem. Sic igitur virtutes formarum substantialium simplicium corporum in corporibus mixtis salvantur. Sunt igitur formae elementorum in corporibus mixtis non quidem actu, sed virtute: et hoc est quod Aristoteles dicit in primo de Gener.: non manent igitur elementa scilicet in mixto actu, ut corpus et album, nec corrumpuntur nec alterum nec ambo: salvatur enim virtus eorum.

10. Deve-se considerar, então, que as qualidades ativas e passivas dos elementos podem ser contrárias umas às outras, e aceitar mais e menos [embora isso não possa acontecer com as formas substanciais]. De qualidades contrárias, que aceitam mais e menos, pode ser constituída uma qualidade intermediária que tenha o sabor da natureza de ambos os extremos [contrários], como acontece com o cinzento, que fica entre o branco e o preto, ou o tépido, entre o quente e o frio. Assim, portanto, afrouxada a primazia das qualidades dos elementos, a partir delas constitui-se uma qualidade intermediária que é a qualidade própria do corpo composto, a qual pode diferir nos diversos [compostos] de acordo com as diversas proporções de composição. É essa qualidade que é a disposição própria para a forma do corpo composto, assim como a qualidade simples o é para o corpo simples. Assim como os extremos encontram-se no intermediário que participa da natureza de ambos, assim também as qualidades dos corpos simples encontram-se na própria qualidade do corpo composto. A qualidade do corpo simples é, na verdade, diferente da forma substancial em si mesma; porém age em virtude [pela energia] da forma substancial. Se assim não fosse o calor apenas aqueceria, sem produzir, por sua ação, a forma substancial [do fogo] em ato [no corpo aquecido], pois para isso teria que produzir um efeito para além de sua espécie [de simples calor como qualidade]. Assim, portanto, as energias [forças, ações, virtudes] das formas substanciais dos corpos simples permanecem nos corpos compostos. Portanto, as formas dos elementos estão nos corpos compostos, mas, na verdade, não em ato, e sim em sua energia [virtude, força ou ação]. E é isso que diz Aristóteles no primeiro livro sobre a Geração, ou seja, não permanecem os elementos em ato no composto, como [por exemplo] corpo e branco, nem um corrompe a outro nem corrompem-se mutuamente, mas permanece a energia [virtude, força ou ação] deles.

 

Comentários

1) Com estes comentários pretendemos, além de esclarecer alguns detalhes ou dificuldades da tradução, proceder a uma interpretação (hermenêutica fenomenológica) do De Mixtione Elementorum que se aproxima do que Ricoeur (1977, 1978) chama de distanciamento e apropriação, e Gadamer (2003) de fusão de horizontes. Haight descreve o método de se fazer isso discorrendo sobre os dois movimentos do pensamento aí envolvidos: “o primeiro é uma certa desvinculação do significado em relação à sua particularidade no passado; o segundo é uma recuperação desse significado em uma nova situação específica” (Haight, 2003, p.61). Em termos mais concretos, queremos nos perguntar que significado pode ter ainda, para nós hoje, este pensamento cosmológico de Tomás de Aquino, explorando-o a partir de um horizonte que se tornou comum depois de Newton, no séc.17 e 18, e mesmo da física nuclear no séc.20. Não será, contudo, necessário recorrermos a toda elaboração científica moderna e contemporânea, bastando que leiamos o mestre medieval com uma sensibilidade mais próxima à nossa visão de mundo.

2) Qual é o projeto desse pequeno texto de Tomás de Aquino? Não é, obviamente, o de propor e relatar investigações empíricas, no sentido da ciência contemporânea, pelas quais se resolva a questão dos modos de composição dos elementos. Na verdade o texto mais confronta opiniões e as avalia para poder chegar a uma conclusão. Contudo essa é apenas a face mais superficial de seu caminho. A nosso ver ele pretende chegar a um modo de linguagem que faça sentido a respeito da constituição dos entes de nosso mundo e de sua transformação. Em outras palavras, pretende responder a uma questão do seguinte tipo: como podemos falar de forma correta, consistente com nossa experiência comum, a respeito da presença dos elementos materiais simples no todo de um corpo composto, sem que essa presença elimine nem a realidade do elemento, nem a unidade própria do composto? É esse o projeto do texto. Para realizar isso é que ele recorre à experiência comum e à discussão das opiniões a respeito. E o problema ainda tem ressonância nos tempos atuais: afinal, não passamos de um amontoado de elementos químicos que atuam de forma casualmente ordenada, ou existe em nós algum tipo de unidade que ultrapassa a soma desses elementos?

3) A resposta final de Tomás é que os elementos materiais não estão presentes, em sua plena atualidade, no ser que é verdadeiramente composto. Eles estão aí virtualmente, isto é, por sua virtude ou influxo, trazendo para o composto qualidades suas de algum modo alteradas pela própria composição que deu origem ao novo ser, mas que se prendem à natureza deles como a uma fonte de energia. É através dessa alteração, quando eles se integram uns aos outros, que criam uma nova disposição material que servirá de fundamento à nova forma substancial. Em outras palavras, os elementos não estão presentes como entidades autônomas, mas sim através de sua força ou energia remanescente. Esse tipo de presença pode ser denominado de virtual, ou potencial: presença de poder, de fonte de energia. Laín Entralgo, no século XX, retomando um conceito de Zubiri, vai falar em “subtensão dinâmica” para designar o estado dos elementos químicos quando integrados ao corpo humano (Laín Entralgo, 1995).

4) Mas isso significa também que a forma substancial do elemento simples, através da qual ele é o que é quando isolado, não existe mais quando ele se integra no composto. Tomás argumenta que se ela existisse nós teríamos dois corpos constituídos num só e mesmo corpo, o que não faz sentido. O elemento simples entrando em composição, passa a fazer parte de um outro todo, e o que existe agora é a forma substancial desse outro todo que é o composto. Esse tipo de composição se aplica melhor aos casos que nós conhecemos como composição química, quando, a partir de dois elementos mais simples, se constitui um terceiro diferente embora baseado nos anteriores (transportando para o terceiro algo dos primeiros). Tomás menciona também o outro caso: o do aglomerado, no qual não há composição propriamente dita. Aqui os elementos estão apenas justapostos, mesmo quando somente assim eles sejam visíveis (mais ou menos como acontece com um monte de areia fina: plenamente visível no seu todo, dificilmente visível em cada partícula). Somente neste caso é que as formas substanciais das partículas permanecem. Mas não mais podemos falar de unidade substancial, e sim, apenas, de aparência ou unidade acidental. Porque não há verdadeira composição. Algo assim pode acontecer também com o corpo humano: ele usa e integra em seu funcionamento uma série de elementos, tirando proveito deles em função da vida do organismo, mas sem fundi-los a si mesmo, digamos assim. O problema do texto, no entanto, é o de compreender a verdadeira composição. Nesta, os elementos simples estão na origem, e ainda podem ser identificados por algum tipo de presença alterada por força da própria composição. A forma substancial, contudo, que é aquilo que dá o ser específico constituindo o corpo como tal corpo, não é mais a dos elementos e sim a do composto.

5) No que diz respeito ao nosso mundo material (sub-lunar), Tomás de Aquino acolhe a física de sua época sem discutir os detalhes. A realidade material é composta de elementos simples indivisíveis (terra, ar, água e fogo), cada um deles com suas qualidades características (seco, úmido, frio e quente) (ver, por exemplo, ST,I,66,r.s.c.2) (1). Esses elementos se compõem uns com os outros em proporções diversas e levando em conta a contrariedade de suas qualidades, formando outros seres que são os corpos compostos. O esquema de pensamento é semelhante ao da química moderna (embora com um conteúdo rudimentar). Mas aqui cessa a analogia, e devemos dar um passo além se quisermos montar um discurso coerente que dê conta de nossa experiência de unidade e mudança em nosso mundo. A constituição última do mundo material, para Tomás, não é vista apenas em termos de elementos simples ou entidades completas em si mesmas (como pensavam os antigos filósofos naturalistas conhecidos por ele através de Aristóteles – ver ST,I,66,1). Saber de que são feitas as coisas não é suficiente para dar conta da geração de novos seres como vemos em nosso mundo físico. Eis como pensa Tomás de Aquino. A matéria é o que permanece por trás das mudanças. O que muda é a forma. Às vezes o que muda é a forma acidental, como a cor ou a figura, mas a substância permanece a mesma. Trata-se nesse caso de uma simples alteração que não afeta a essência: a substância material permanece. Quando, porém, a mudança é mais profunda, a própria substância muda. O que subjaz, então, a essa transformação radical, não sendo nem mesmo a substância, será a matéria primeira de que são feitas todas as coisas corpóreas. Esta matéria primeira, assim concebida em sua radicalidade última, é totalmente indefinida, pois qualquer definição já seria uma forma constitutiva. Ela é, portanto, pura passividade às formas. Se matéria é o “de quê” são feitas as coisas, e forma é o arranjo desse material na sua aparência, devemos ir mais longe em nossa concepção e falarmos em matéria primeira como pura passividade, e forma substancial que é dá o “ser tal coisa” a algo. A essa concepção se denominou “hilemorfismo” (hylé = matéria; morfé = forma). A composição básica das coisas não é a que existe entre os elementos, pois esses seriam matéria segunda (substância já constituída), mas a composição de dois princípios metafísicos: a matéria primeira (pura passividade) e a forma substancial (determinação e dinamismo básicos). De onde vem, então, o que gostaríamos, hoje, de chamar de “energia” do movimento, e da transformação? Na linha do pensamento de Tomás de Aquino, creio que devemos procurar essa origem na forma e não na matéria primeira, pois é a forma que é o princípio ativo de definição e desenvolvimento, enquanto a matéria, em sua radicalidade última, é apenas o princípio passivo. E uma das primeiras características impressas pela da forma é justamente a quantidade ou extensão, pela qual dizemos que é uma forma material. O esquema de pensamento da física moderna se aproxima do que para Tomás de Aquino era o pensamento dos filósofos naturalistas. Eles estavam em busca da partícula elementar, e o que se acrescenta a isso são as sofisticadas formas de medida. Mas para Tomás, desde que se possa identificar uma partícula (elemento), ou mesmo simplesmente medir um fenômeno (qualquer que seja ele), já tenho aí uma forma, e não mais estamos diante da matéria pura. A matéria em estado puro não existe, é pura passividade; toda estrutura e todo dinamismo são forma. A forma em estado puro também não existe, pois ela é determinação de alguma passividade.

6) Estamos aqui diante de problemas de tradução. Matéria e forma, para Tomás de Aquino, não têm, o sentido que nós damos a esses termos contemporaneamente (matéria, como constituinte último da realidade, e forma como aspecto externo de algo). Para evitar equívocos, talvez devêssemos dizer: passividade ou receptividade, e estrutura dinâmica. Tomás afirma que “a matéria é conhecida pela forma, daí porque, considerada em si mesma, ela é dita invisível e vazia” (ST,I,66,1). E: “aquilo pelo que em primeiro lugar alguma coisa opera é sua forma” (ST,I,76,1). O constituinte último da realidade corporal (matéria, no sentido atual mais comum) é a matéria (passividade) já informada (com alguma forma, estrutura dinâmica). Com o hilemorfismo, estamos além da física (ao menos no sentido moderno do termo), buscando um modo de compreender a nossa experiência de um mundo unificado e constantemente mutante. Laín Entralgo (1995), o médico filósofo do séc.20, escolhe também o termo “estrutura” para falar de uma dimensão indispensável da realidade física, mas não acredita que a “forma”, de que falava Tomás de Aquino, possa ser essa estrutura. Não vejo porque não.

7) Como isso se apresentava do ponto de vista genético, para Tomás de Aquino? A discussão partia dos versículos bíblicos sobre a criação do mundo, especialmente aquele que diz que no princípio a terra era “sem vida e vazia” (ST,I,1,obj.1). A questão que se colocava, então, era: existiu um estado informe, isto é, sem forma, da matéria? Tomás dirá que não, que isso é impensável. A matéria já foi criada com formas, embora essas pudessem ser rudimentares e perfectíveis (ST,I,66,1,r.s.c.1: pequena passagem que abre uma grande perspectiva: a da evolução!). Mas essas formas não correspondem a uma forma comum: “também não se pode dizer que houve uma forma comum, e depois sobrevieram e ela formas diversas das quais ela seria distinta” (ST,I,66,1). E isso porque, se assim fosse, as formas subseqüentes seriam acidentais e não substanciais, esvaziando-se assim a consistência das coisas de nosso mundo, transformando a geração e corrupção (ou seja, a mutações em nosso mundo) em meras alterações externas, transformando a unidade substancial em aglomerado. E ele conclui que “a matéria primeira nem foi criada totalmente sem forma, nem sob uma forma comum, mas sob formas distintas” (ST,I,66,1). E podemos pensar que essas formas distintas é que têm algo em comum: elas são todas formas “corporais”, isto é, das quais a quantidade é a primeira qualificação (e, portanto, a extensão e a mensurabilidade).

8) É preciso mencionar aqui outros problemas de tradução. A resposta de Tomás ao problema proposto (como os elementos existem no composto) seria, em resumo, essa: é a energia dos elementos componentes que permanece no composto, mas não sua forma substancial, do contrário teríamos duas formas substanciais existindo na mesma porção de matéria, o que não é pensável. Com “energia” estamos aqui traduzindo aqui o termo latino “virtus” (virtude, em português). Essa palavra tem um primeiro sentido moral, que se tornou o mais comum em nossa língua: disposição permanente para atos bons. Mas seu sentido geral, também muito usado em latim, é o de força, energia, fonte do impulso para atos. Desse sentido resta em português, por exemplo, a expressão “em virtude de”, significando “por força de”, ou “por causa de”. Poderíamos ter traduzido “virtus” por “virtude”, mas optamos por “energia” para não restringirmos a compreensão ao sentido moral. Se nos lembrarmos que “estrutura definidora e dinâmica” pode ser uma boa tradução para “forma substancial”, teríamos que a resposta, segundo o pensamento de Tomás de Aquino, para a questão de como os elementos existem no composto poderia ser do seguinte tipo: os elementos que se agregam ao composto (constituindo, como que, um meio indispensável para que ele possa subsistir), obviamente conservam sua estrutura definidora independente, mas os elementos que compõem verdadeiramente o novo ser não conservam sua estrutura original autônoma, mas trazem dela a energia a partir da qual, por composição, se gera uma nova estrutura.

9) Qual a importância disso tudo para uma antropologia (enquanto compreensão do ser humano)? O ser humano é um composto, dotado de unidade substancial. Ele não é um aglomerado. A alma humana será concebida como a forma do corpo vivo, ou seja, como estrutura dinâmica definidora e unificadora deste ser que é o homem. Todos os “elementos” a partir dos quais se constitui o corpo humano vivo, ou são elementos agregados necessários ao seu funcionamento, ou são elementos que se fundem na unidade deste corpo sob a mesma estrutura dinâmica que é sua forma substancial. Aqui estão colocadas as bases para se pensar a realidade concreta do ser humano. É preciso, no entanto, considerar que as estruturas se apresentam com complexidade crescente na criatura corporal. A estrutura humana é a mais complexa que conhecemos. Para compreendermos toda essa complexidade segundo a mente de Tomás de Aquino, deveremos ainda traduzir outros textos do mestre, sobre a vida, e sobre o espírito.

 

Referências bibliográficas

Amatuzzi, M. M. (2003). Releitura de textos de Tomás de Aquino visando a construção de um pensamento psicológico. Memorandum, 5, 42-54. Retirado em 10/11/2003 da World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos05/amatuzzi01.htm

 

Gadamer, H.-G. (2003). Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 5a. ed. (F.P. Meurer, Trad.). Petrópolis: Vozes; Universidade São Francisco. (Publicação original de 1960).

 

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Laín Entralgo, P. (1995). Cuerpo y alma, estructura dinámica del cuerpo humano. 2ª. edição. Madrid: Espasa Calpe. (Primeira edição em 1992).

 

Ricoeur, P. (1977). Interpretação e ideologias. (H. Japiassu, Org., trad. e apres.). Rio de Janeiro: Francisco Alves. (Originais de 1972-1973).

 

Ricoeur, P. (1978). O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. (H. Japiassu, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Publicação original de 1969).

 

Tomás de Aquino (1976). De mixtione elementorum (ad magistrum Philippum de Castro Caeli). Roma: Leonina. Retirado em World Wide Web: http://www.unav.es/filosofia/alarcon/amicis/opx.html, em 07/12/2003. (Original do séc. XIII).

 

Tomás de Aquino (2001). Suma Teológica. v.1. (Ed. Bilíngüe). (C.J. Pinto de Oliveira, Coord.). São Paulo: Loyola. (Original do séc.XIII).

 

Torrell, J.-P., OP (1999). Iniciação a Santo Tomás de Aquino: sua pessoa e obra. (L.P. Rouanet, Trad.). São Paulo: Loyola. (Publicação original em 1993).

 

Nota

(1) Os textos da Suma Teológica de Tomás de Aquino, abreviados como ST, serão citados aqui da forma convencional, a partir da edição Loyola de 2001.(volta).

 

Nota sobre o autor
Mauro Martins Amatuzzi
é psicólogo, doutor em Educação pela UNICAMP, docente no programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Interessa-se por metodologias qualitativas de pesquisa, por processos de mudança e desenvolvimento pessoal, por psicologia da religião, e pelo resgate de pensamentos psicológicos antigos. Contato: R. Luverci Pereira de Souza, 1656 (Cidade Universitária) – 13083-730 – Campinas / SP, Brasil. E-mail: amatuzzi2m2@yahoo.com.br

Data de recebimento: 16/01/2004
Data de aceite: 23/04/2004

Memorandum 6, abril/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/amatuzzi02.htm

 

 

 

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