Esta pesquisa começa no campo da história das idéias psicológicas (que é
onde nos perguntamos como se formaram os conceitos através dos quais foram
sendo pensadas a alma humana, o psiquismo e suas manifestações). Contudo
não visa reconstituir fórmulas, e sim encontrar o sentido. É assim que
procuramos estabelecer a ponte com o hoje da psicologia. Nosso objetivo é
resgatar, por esse caminho, a psicologia contida em pensamentos antigos,
anteriores às cisões epistemológicas da modernidade.
Gostaríamos de explorar, por exemplo, a origem do pensamento psicológico
do africano Agostinho de Hipona (1997, 1994). Ele constrói, na virada do
séc. IV para o V, uma compreensão de Deus a partir da consideração da
psicologia humana, baseando-se no pressuposto de que o homem, tendo sido
feito à imagem e semelhança de Deus, pode ser para nós um caminho nessa
compreensão. Também poderíamos explorar Boaventura de Bagnoregio (1999), o
mestre franciscano do séc. XIII, ou o místico alemão do séc. XIV, mestre
Eckhart (1983), profundos conhecedores dos itinerários psicológicos.
Faríamos com eles um trabalho semelhante ao que Leloup (2000) fez com
Fílon de Alexandria (filósofo judeu do séc. I). Escolhemos, porém, para
iniciar nossa viagem, Tomás de Aquino, o grande pensador do séc. XIII. Mas
por que ele?
Além de ele se movimentar numa atmosfera pré-cartesiana (o que por si só
já seria interessante, pois nos faria entrever possibilidades diferentes
da abordagem dicotomizada de se pensar o humano), Tomás está na origem de
uma das fontes plasmadoras da mentalidade latino-americana, por mais
incrível que isso possa parecer. Quem nos abriu essa percepção foi Marina
Massimi, historiadora da psicologia no Brasil. Os primeiros missionários
que por aqui estiveram ainda no séc. XVI, e muitos dos que vieram depois,
e que trabalharam na formação da alma popular, foram, por sua vez,
formados em escolas ibéricas onde o pensamento básico era o de Tomás de
Aquino (Massimi, 2001, 2001a).
Pelo pensamento de
Tomás de Aquino passa praticamente todo saber da época, buscando um lugar
coerente numa doutrina polarizada pela fé religiosa. Assim é que podemos
encontrar em seus escritos um extenso e minucioso pensamento psicológico,
baseado nos autores de referência na época, e em suas próprias
observações, reflexões e sistematizações. Sua obra principal, na qual nos
basearemos primeiramente aqui, foi a chamada Suma Teológica (escrita entre
1268 e 1273), uma imensa e complexa reflexão, talvez comparável somente
com as belíssimas catedrais medievais. Trata-se de uma obra escrita em
latim medieval, composta de 5 volumes de aproximadamente 800 páginas cada
um, mas para a qual já existem boas edições bilíngües (Tomás de Aquino,
1951, 1980, 2001). O sistema de referências utilizado para as citações,
aqui, é o adotado pela edição Loyola (o primeiro dígito, em algarismos
romanos, indica a “parte” da Suma Teológica, o segundo, em arábicos, a
“questão”, o terceiro, também em arábicos, o “artigo”; e “prólogo” [pról.],
“objeção” [obj.], “em sentido contrário” [s.c.] e “solução a uma objeção”
[sol.] estão abreviados conforme indicado entre colchetes). Boas
introduções à vida de Tomás de Aquino e sua obra podem ser encontradas em
Nascimento (1992b), Lauand (1999) e Torrell (1999). – Sobre o contexto de
seu pensamento, ver, por exemplo, Jeauneau (1986) e Nascimento (1992a).
A leitura que faremos
do mestre medieval pode ser chamada de fenomenológica, pois estaremos
buscando muito mais o sentido que suas afirmações podem ter para o
psicólogo de hoje, do que as próprias palavras com as quais ele encerra
alguma questão. Assim sendo podemos dizer que nosso objetivo primeiro é
procurar saber como Tomás de Aquino constrói o que chamaríamos nós de um
pensamento psicológico, investigando as bases desse pensamento em sua obra
principal, a Suma Teológica, visando tirar daí sugestões para uma
construção atual que supere certos impasses epistemológicos. Nossa
pretensão é, na verdade, um contato direto com o texto mesmo do mestre, a
partir das preocupações atuais de uma psicologia humanista de feitio
fenomenológico (deixando para outra ocasião um estudo bibliográfico a
respeito de como a psicologia “tomista” pôde ser entendida). Nesse
sentido, obras como a do médico-filósofo Laín Entralgo (1995) aproximam-se
mais da intenção deste artigo, pois elas procuram construir também uma
compreensão do ser humano a partir de uma história das idéias e em contato
com pesquisas da área.
Além da ciência
A primeira questão que
aparece na Suma Teológica diz respeito à suficiência ou não das doutrinas
filosóficas (e da ciência) para dar ao homem uma orientação completa de
vida. O pensamento de Tomás de Aquino aponta claramente para a
insuficiência (não a inutilidade) de qualquer saber construído somente com
os recursos racionais, e indica a necessidade de uma doutrina de outra
ordem.
É preciso, diz ele,
haver uma doutrina de vida que trate de assuntos que vão além daqueles que
a razão humana, sozinha, é capaz de investigar. E isso porque o ser
humano, de fato, aspira coisas que estão além daquilo que pode ser
investigado pela razão. Mas, além disso, porque, mesmo naquelas coisas que
podem ser investigadas somente com a razão, quando se trata de assuntos
como a vida e a felicidade, há dificuldade grande no seu questionamento
sistemático e metódico. Estamos sempre sujeitos a erros, diz ele, e, na
prática, os resultados de uma tal investigação, pela sua sofisticação e
complexidade, são pouco acessíveis à maioria das pessoas. Deve, pois,
também por esse motivo, haver um outro caminho de acesso às verdades de
vida.
A afirmação básica,
pois, é: como doutrina de vida, a ciência não basta. Deve haver uma outra
forma de ligação com os objetivos humanos, que envolva um outro tipo de
saber, um outro tipo de discurso, um outro tipo de prática. Tomás aqui se
preocupa com a condição concreta do ser humano, respeita a experiência do
caráter ilimitado de suas aspirações, por um lado, e, por outro, o caráter
limitado de seus esforços.
Mas que outro caminho é
esse? Por enquanto ele só vai dizer que é uma participação a um saber
maior, divino; o que significa, na sua linguagem, um saber recebido “por
revelação”. Por esse caminho o ser humano não mais constrói e possui a
sabedoria, mas se deixa possuir por ela. O acesso a essa outra sabedoria é
uma entrega pessoal, numa consciência de seu lugar no universo, e ao mesmo
tempo uma entrega que se apóia na consideração de fatos concretos da
história vivida pelos homens.
“É necessário existir
para a salvação do homem, [para] além das disciplinas filosóficas, que são
pesquisadas pela razão humana, uma doutrina fundada na revelação divina”
(I, q.1, a.1). Para que a vida do homem tenha um sentido, é preciso
recorrer a um conhecimento de outra ordem. “Revelação” aqui significa uma
intuição, vivida como recebida de um poder maior, num determinado tempo,
sobre o sentido do que acontece, e que também se transmite historicamente
depois, enriquecendo-se de sentidos.
A doutrina sagrada [em que consiste esse
conhecimento de outra ordem] (...) procede de princípios conhecidos à luz
de uma ciência superior (...). Como a música aceita os princípios que lhe
são passados pelo aritmético, assim também a doutrina sagrada aceita os
princípios revelados por Deus. (I, q.1, a.2).
E o
ser humano pode dançar conforme essa música, sem ter que ficar pensando em
alta matemática.
“Fatos singulares são relatados na doutrina sagrada (...) como exemplos de
vida (...) ou visam estabelecer a autoridade dos homens pelos quais nos
chega a revelação” (I, q.1, a.2, sol.2). O “fato singular” é, nesta
linguagem, o coneito representante do que hoje chamaríamos, talvez, de
fato histórico. A doutrina sagrada tem um aspecto de narrativa, de olhar
para a história concreta dos humanos. É uma visão da história que revela
uma dimensão nova, um sentido inaudito.
O acesso a esse
sentido, coerentemente com a forma como ele se manifesta, é uma entrega
pessoal, uma fé (e não um raciocínio abstrato). No entanto desdobra-se em
um pensamento exigente no qual o ser humano procura compreender a harmonia
do que aí se coloca, tirar conclusões práticas e apreciar sua
fundamentação.
A doutrina sagrada [enquanto um pensamento
construído pelo homem a partir da “revelação”] não se vale da argumentação
para provar seus próprios princípios, as verdades da fé; mas parte deles
para manifestar alguma outra verdade (...). Não tendo outra [doutrina] que
lhe seja superior [na ordem das doutrinas de vida, diríamos nós], terá que
disputar com quem nega seus princípios. Ela o fará valendo-se da
argumentação, se o adversário concede algo (...). Mas se o adversário não
acredita em nada [das verdades a que se poderia ter acesso por aquele
outro caminho], não resta nenhum modo de provar com argumentos os artigos
da fé; pode-se apenas refutar os argumentos que oporia à fé. (I, q.1,
a.8).
O
que ele está dizendo aqui? Como o podemos ler? Ao mesmo tempo que o acesso
a esse outro saber, diferente do meramente racional, implica em uma
entrega pessoal, uma fé, implica também em uma intensa atividade crítica
de pensamento, que no entanto não pode pretender provar o conteúdo do que
é sabido nessa outra ordem de saber.
Pois bem, é no contexto
dessa “doutrina sagrada”, dessa “teologia”, que iremos encontrar toda uma
psicologia implícita. O sentido mais profundo dessa psicologia vai
depender de um contato com a problemática existencial concreta do ser
humano, de um contato com os dilemas básicos que se colocam para o homem.
Vejamos isso um pouco mais de perto.
Enraizado nas buscas existenciais
Uma de primeiras
afirmações dessa teologia é que, por natureza, nós só temos um
conhecimento vago e confuso de Deus (isto é, daquilo em que consiste o
sentido último de nossa existência), embutido em nosso desejo de
felicidade.
Está impresso naturalmente em nós algum conhecimento geral e confuso (...)
de Deus, isto é, Deus como a felicidade do homem, pois o homem deseja
naturalmente a felicidade, e o que por sua própria natureza ele deseja,
naturalmente também conhece. Mas nisso não consiste em absoluto o
conhecimento (...) de Deus (...). Muitos [de fato] pensam que a
felicidade, este bem perfeito do homem, consiste nas riquezas, outros a
colocam nos prazeres ou em qualquer outra coisa. (I, q.2, a.1, sol.1).
O conhecimento daquilo
em que consiste a felicidade, faz parte de um dinamismo de busca. Todos
desejam a felicidade, e é esse o dinamismo que anima o viver. Mas existe a
necessidade de todo um “trabalho” de discernimento e tomadas de posição
para que encontremos o caminho. Nesse trabalho vamos elaborando
significados, os quais nos orientam em nossa vida, gerando assim novas
experiências e significados (ver também I-II, q.2 e 3).
Existe, então, um
conhecimento apenas geral e mais ou menos vago da natureza do desejo que
nos habita. É uma experiência interior da qual podemos nos dar conta. Mas
não um conhecimento claro de algo que polarize esse desejo. Quem vivencia
aquele outro caminho para o encontro de uma orientação de vida (acolhendo
na fé o que se manifesta historicamente), poderá entender que a
felicidade, em última instância, está numa reaproximação do Ser, realidade
central, origem e sentido de todas as coisas, por alguns chamado de
“Deus”. Mas ainda assim não sabe com total clareza o que significa isso.
Tem uma direção para seu caminhar, e nele vai construindo progressivamente
significados que o ajudam nessa aproximação. As realidades experimentadas,
porém, não são da mesma ordem que as conclusões de um saber racional.
Que modelo de
funcionamento humano é subjacente a essa forma de ver? Temos uma
experiência do movimento que nos anima, de nosso desejo, de nossas
aspirações. A partir daí, com a vida e as escolhas que fazemos, vamos
significando essa experiência e o mundo em torno. Esses significados, por
sua vez, iluminam nosso próprio caminhar, e geram novas experiências e
novos significados. Nossa segunda afirmação poderia, então, ser essa: é no
dinamismo de nossas buscas existenciais que vamos construindo nossos
significados.
Apoiando-se na linguagem comum como num laboratório
E uma terceira
afirmação seria: essa construção de significados não é obra de um ser
humano isolado, mas a própria linguagem, socialmente construída, contém
pistas capazes de nos orientar, colocando-nos em contato com a experiência
da humanidade. Tomás se apóia nos modos de dizer para desvelar a realidade
humana interior, tão complexa e de difícil abordagem direta.
Na pesquisa do que
consiste a vida, por exemplo, ele propõe um princípio metodológico geral:
para caracterizarmos um fenômeno devemos partir da consideração daqueles
seres onde esse fenômeno se apresenta de forma clara. Então, para sabermos
o que é a vida, diz ele, devemos considerar os seres que manifestamente
para nós são vivos, ou seja, a respeito dos quais não temos dúvida em
declarar que são vivos. Ora, os seres, a respeito dos quais não temos
dúvida em dizer que são vivos, são os animais. Neles o momento da morte é
claro: aí eles deixam de ser entidades viventes, e a matéria de que eram
compostos se dispersa. E, por outro lado, o surgimento do ser vivo, como
unidade independente, também é claro: a vida começa a existir quando
aquele ser se torna autônomo, passa a se mexer por si mesmo.
Por aqueles em quem a vida é manifesta, podemos entender quem vive e quem
não vive. Ora, a vida cabe claramente aos animais (...). Assim deve-se
distinguir os vivos dos não-vivos, por aquilo pelo qual os animais se
dizem vivos, a saber, por aquilo em que por primeiro a vida se manifesta e
em que por último permanece. Com efeito, dizemos que, por primeiro, um
animal vive, quando começa a mover-se por si próprio, e julgamos que vive
tanto tempo quanto o movimento nele aparece. Quando, pelo contrário, já
não tem por si mesmo movimento algum, mas é apenas movido por outro,
dizemos que está morto (...). Assim, é chamado vivo tudo o que se move ou
age por si mesmo. Os que, por natureza, não se movem nem agem por si
mesmos só serão chamados vivos por semelhança. (I, q.18, a.1).
A linguagem é
construída para dar conta da experiência. Podemos nos basear nela, então,
para clarear os conceitos através dos quais designamos os objetos e suas
características. Repare o leitor, no texto acima, como Tomás explora não
tanto os objetos em si, mas a relação que nós humanos temos com eles, a
forma como espontaneamente os significamos. A língua foi se moldando para
dar conta da complexidade da vida: a vida se manifesta ... os animais
se dizem vivos ... dizemos que ... julgamos que ... dizemos que. Assim, é
chamado ... É tão válido dizermos que ele está esclarecendo o fenômeno
em si, como dizermos que está esclarecendo nossa linguagem. Essas duas
abordagens se confundem, e como que, se interpenetram. Lauand, seguindo de
perto Pieper, nos lembra a esse propósito uma bela frase de Tomás de
Aquino no começo de uma outra obra, a Suma Contra os Gentios: “a linguagem
corrente das pessoas (ou, como traduz Lauand, o uso comum do povo -
multitudinis usus), que, segundo crê Aristóteles, deve ser seguido na
denominação das coisas, quis que comumente se chamem sábios aqueles
que...” (I, CG, cap.1; cf. Tomás de Aquino, 1952, p.95). E Lauand (1999)
comenta: “A linguagem comum é por ele considerada depositária de
sabedoria, quando devidamente trabalhada, garimpada”. (p. 49). E, mais
adiante: “O filosofar é, em boa medida, uma tentativa de lembrar, de
resgatar os grandes insights de sabedoria que se encontram encerrados na
linguagem comum” (p.50). E o fato de que as diversas línguas tenham modos
diferentes de significar (I, q.39, art.3, sol.2) não impede isso, pois, o
trabalho do pensador não termina na língua em si, mas na realidade
significada.
O pensamento é
construído para dar conta da experiência, pela mediação da linguagem.
Esta, na verdade, por expressar nossa experiência com a lida das coisas do
mundo, constitui-se como um sinal do que são as coisas. Quando Tomás de
Aquino fala de “vida” e de “alma”, por exemplo, ele está se referindo a
modos de significar o real. Com ele, movimentamo-nos constantemente na
relação homem-mundo. Eu ousaria dizer que, se nos ativermos às intuições e
ao movimento básico de seu pensamento, não existe alma em si, e nem vida
em si, assim como, aliás, também não existe a matéria em si. Esses termos
são criações do homem para dar conta da realidade com a qual ele precisa
lidar. Antes da elaboração explícita do pensamento, a linguagem já tinha
feito seu trabalho. Nosso esforço de pensar a realidade pode se apoiar na
linguagem para ir mais longe.
Os possíveis conteúdos
de uma psicologia
Partindo desses pressupostos
operacionais epistemológicos, Tomás de Aquino propõe 3 grandes partes para
o movimento de expor-acompanhar a Doutrina Sagrada (sobre a arquitetura e
o “movimento” da Suma Teológica, ver a belíssima tese de Lafont, 1960, e
também Torrell, 1999), e isso tem a ver com nosso intento de buscar sua
psicologia. Na Primeira Parte ele vai considerar “Deus”, fonte
primeira de tudo que existe, e ao mesmo tempo sentido último de todas as
existências (I, q.2, pról.). Podemos ler aí a consideração da realidade em
seus fundamentos primeiros e em seu sentido radical. No que diz respeito à
psicologia, vamos encontrar nessa primeira parte considerações sobre a
alma humana (o psiquismo humano) e a maneira adequada de falar sobre ela.
Na Segunda Parte ele vai tratar do “movimento da criatura racional para
Deus” (I, q.2, pról.), ou seja, as ações humanas. Podemos ler nessa
parte a consideração do sentido do agir, e a orquestração do interior
humano nesse movimento: como se apresenta a alma na ação do homem que
busca, delibera, decide. E na Terceira Parte, vai considerar “o homem
chamado Cristo que é para nós o caminho que leva a Deus” (Idem). Podemos
ler aí a consideração da história concreta, dos eventos que a marcam como
símbolos desse caminhar da humanidade. Nossa leitura poderá encontrar aí
como se apresentam os símbolos no psiquismo humano, inseridos nesse
contexto concreto.
Uma “psicologia
tomasiana” deveria considerar então 1) como falar consistentemente da alma
humana; 2) como essa alma se manifesta no dinamismo do agir; e 3) como ela
se preenche de conteúdos através dos símbolos historicamente produzidos.
Um imenso programa que apenas mencionamos aqui como para aquilatar o
alcance dessa possível psicologia.
A psicologia começa com a vida
Uma psicologia que
levasse em conta as intuições do mestre medieval deveria começar por um
olhar para nosso mundo, situando aí a originalidade da vida. É no contexto
do universo material que surge a vida, e com ela o psiquismo.
Ser vivente significa
ter uma unidade que transcende a dos componentes materiais elementares que
se agrupam no organismo. O que caracteriza a vida é justamente o fato de
que o todo do ser é que se relaciona com o meio. O ser vivo é um sistema
fechado que se organiza e se preserva na relação com o meio. O conceito de
“alma” atende a essa percepção: num corpo vivo existe uma estrutura
integrativa dinâmica responsável pelo seu ser, por seu funcionamento como
unidade, e por seu desenvolvimento. Se divido uma pedra ao meio, terei
duas pedras: isso é um tipo de unidade. Se divido um gato ao meio, terei
um gato morto, ou seja, não mais terei nenhum gato. É outro tipo de
unidade. A linguagem criou o conceito de alma porque era necessário para
darmos conta da originalidade do ser vivo. Dizer “tem alma”, é o mesmo que
dizer “é animado” ou “é vivente”, isto é, “tem uma unidade de outro
nível”, ou ainda “preserva-se como um todo”. A psicologia é o estudo da
alma (psique = alma, logos = razão). E então deve começar fazendo contato
com a originalidade do ser vivo, constituindo o psiquismo como seu objeto.
Eis o que diz Tomás: “a
ação da alma ultrapassa a ação da natureza corporal. A natureza corporal,
toda ela, está com efeito submetida à alma, e se refere a ela como matéria
e instrumento” (I, q.78, a.1). As operações dos elementos materiais
no corpo vivo são como instrumentos a serviço da vida; mas a vida as
ultrapassa, como uma estrutura ultrapassa as sub-estruturas que utiliza.
A partir daí Tomás vai
caracterizar a vida pela autonomia de movimentos. Começa a ser vivente
aquele que começa a se mover por si mesmo, preservando sua unidade (e
dando continuidade assim ao fluxo da vida no planeta). E já não é mais
vivente aquele que já não se move a si mesmo, mas apenas é movido por
outro (colocando sua matéria a serviço de outros sistemas).
A vida não é como uma
porção de matéria que contamina o restante de um corpo. Ela é a própria
matéria bruta enrolando-se sobre si própria, organizando-se num sistema
complexo, diferente dos níveis de organização anteriores, ganhando uma
autonomia nova e caminhando para uma preservação do indivíduo, e
ultrapassando o próprio indivíduo na busca de se garantir como um fluxo
novo no mundo material. O movimento do universo material já trazia em seu
bojo a potencialidade do que viria a ser vida: para Tomás ele tem uma
“semelhança de vida” (I, q.18, a.1, sol.1). Bem poderíamos dizer, de nosso
ponto de vista, que essa semelhança de vida não deixa de ser uma semente.
A vida transfigura
totalmente uma determinada porção de matéria. Quando o corpo vivo morre,
não podemos mais dizer que é o mesmo ser. Tomás evoca aqui um dito de
Aristóteles: para os seres vivos, viver é ser (I, q.18, a.2, s.c.).
Viver refere-se a esse modo de ser consistente, no fluxo do universo, e
não apenas ao operar. O operar decorre do ser.
Em decorrência desse
olhar para o ser podemos ver que a vida se apresenta em graus diferentes,
e com características diferentes. O tipo de autonomia que têm as plantas
não é o mesmo daquele que se apresenta nos animais. E a autonomia que é
possível ao ser humano, por sua vez, ultrapassa aquela dos animais. Se a
manifestação básica da vida em nosso mundo for a vegetativa, a partir daí
ela vai se mostrando em formas cada vez mais complexas, até chegar no ser
humano. Este cresce como uma planta, percebe e sente como um animal, e,
além disso, pensa, é capaz de um entendimento e de um afeto de outra ordem
de complexidade. O ser humano transcende as determinações de uma natureza
fechada (própria da planta), de um instinto também totalmente determinante
(como no animal), e se abre para a reflexão, o que lhe permite um grau de
autonomia antes insuspeitado (I, q.18, art.3). É importante dizermos que
essa graduação nos processos da vida, explícita em Tomás de Aquino,
corresponde ao que nós, melhor do que ele, vemos num fluxo evolutivo: na
história do mundo foram emergindo formas cada vez mais complexas de
organização autônoma e unidade, transcendendo sempre mais as
possibilidades isoladas da matéria elementar.
Nosso mundo não se
compõe apenas de “matéria elementar”. Existem “estruturas complexas” que
organizam essa matéria elementar e lhe dão um sentido novo. Como se
apresenta isso?
Matéria e forma, corpo e alma
Para Tomás de Aquino
nosso mundo está cheio de “coisas”, de corpos, de seres. Nesses corpos
ocorrem transformações. Mas quando falamos em transformação estamos
querendo dizer que algo muda, mas também que algo permanece. Esse
substrato que permanece sob a transformação das “formas”, é que seria a
“matéria”. Entre os primeiros filósofos essa matéria foi identificada com
os elementos: terra, água, fogo e ar. Completos em si mesmos, os elementos
entrariam em composição uns com os outros, em proporções diversas, para
constituir as diferentes “coisas” de nosso mundo. Mas outros filósofos
foram mais longe dizendo que cada elemento é também composto de matéria e
forma: forma de terra, de água, de ar, de fogo, e a matéria primeira de
que eles são feitos (ver, por exemplo, I, q.44, a.3). Essa matéria
primeira, em si mesma, nada mais seria que pura potencialidade para
diversas formas, e, nesse sentido, indeterminada, pois, qualquer
determinação já seria uma forma, uma estrutura. Não apenas o formato
externo, a cor, o contorno, são forma. A própria estrutura íntima de cada
coisa é forma. A matéria primeira, então, nunca existe sozinha. Ela seria
apenas o substrato de todas as transformações de nosso mundo material.
Algo quase imaterial...
Matéria e forma, para
Tomás de Aquino, não podem ser concebidas como duas entidades completas em
si mesmas, assim como, aliás, corpo e alma também não. Se assim fosse, se
os componentes permanecessem completos no composto, este, como entidade,
seria uma ilusão. Matéria e forma não são duas “entidades”, mas dois
“princípios”, isto é, algo que devemos pressupor, para podermos pensar a
realidade de modo consistente (I, q.75, art.1).
Quando um corpo tem
como característica o fato de ele poder mover-se a si mesmo, então dizemos
que é um ser vivo. Sua forma é de vivo. Neste caso, ela, a forma,
se chama “alma” (anima); pois dizemos que é um corpo animado. A
alma é, então, a forma própria dos corpos que são vivos, sua estrutura
unificadora e dinâmica. Dizer “tem alma” é o mesmo que dizer “é animado”,
“move-se por si mesmo”.
A complexidade de nosso mundo
Da forma vem o
ser em tal natureza. Da matéria vem a comunidade de pertença ao
mesmo mundo. Matéria e forma fazem parte da linguagem usada por Tomás de
Aquino para dar conta do mundo em que vivemos. Contudo, neste mundo surge
uma realidade de outra ordem: o conhecimento (I, q.75, art.1). Com
ele entramos num âmbito de considerações bastante original: o mundo
intencional, mental, espiritual. O que vem a ser isso?
Conhecer (ver, ouvir,
sentir, saber, entender) é um modo de “ter” o objeto dentro de si. No
entanto esse “ter” não é físico. Se, ao ver uma árvore, eu a tivesse
fisicamente dentro de mim, eu me destruiria. A árvore que “tenho dentro de
mim” não é a mesma que “está lá fora”. A que tenho em mim é uma “imagem”
da que está lá fora, através da qual me refiro a ela. Mas o que conheço
não é a imagem, e sim a árvore lá fora. Conhecer é uma relação pura,
digamos assim, mesmo que mediada pela imagem. Não consiste em “fazer
alguma coisa” com o objeto, mas apenas em tê-lo “espiritualmente”, não
materialmente. A palavra latina, muitas vezes usada para dizer isso, é “intentio”,
intenção. O conhecimento é um fenômeno “intencional” (eu “tendo” para a
coisa, “relaciono-me” com ela). O conhecimento em si não é material, ele
põe o sujeito “fora” de si mesmo, e inicia uma ordem de relações
totalmente original (que só é possível para os seres onde existe um
“dentro”, em função de sua forma-alma).
Há duas espécies de modificação: uma é natural, outra é espiritual. A
modificação é natural quando a forma do que causa a mudança é recebida no
que é mudado segundo seu ser natural [diríamos físico]. Por exemplo, o
calor no que é esquentado [ele passa fisicamente da fonte de calor para o
objeto aquecido]. Uma modificação é espiritual quando a forma é recebida
segundo seu ser espiritual. (...) Para a ação dos sentidos, requer-se uma
modificação espiritual pela qual a forma intencional do objeto sensível é
produzida no órgão do sentido. De outra sorte, se a modificação natural
bastasse por si só para produzir a sensação, todos os corpos naturais, ao
se alterarem, sentiriam. (I, q.78, a.3).
A modificação material
não é sempre portadora da modificação espiritual. A imagem de cor no olho
que vê, é um apoio físico para a relação de conhecimento da cor. Mas o que
vejo não é a imagem de meu olho (ou meu cérebro), e sim o objeto colorido
que está aí fora diante de mim. Em suma, um fenômeno original no mundo
material. Um fenômeno espiritual.
Os modos da relação “conhecimento” variam conforme o nível de vida. O
conhecimento sensorial (ver, sentir com o tato, ouvir, sentir o gosto ou o
cheiro), típico da animalidade, corresponde a um nível diferente daquele
do conhecimento intelectual (entender, compreender, saber o que é,
raciocinar). No entanto esses níveis estão interligados no ser humano (o
entendimento pressupõe uma atividade sensorial, e, de certa forma, a
elabora e complexifica). - Além disso, devemos dizer que ao conhecimento
se segue normalmente uma outra forma de “intenção” (ou relação). Essa
outra forma de intenção é o afeto, o desejo, a busca intencional, ou, como
se diz no latim, resumindo tudo, o “apetite” (que, na língua de Tomás de
Aquino, é toda forma de tendência intencional, e não só aquela relacionada
com o alimentar-se). Assim como existe a intenção cognitiva (relação de
conhecimento), existe também a intenção apetitiva (relação de afeto, de
desejo, de busca). Para Tomás de Aquino essa outra relação é derivada da
primeira (pressupõe sempre algum tipo de conhecimento), e é também uma
relação “espiritual”. E nela também podemos falar de níveis conforme o
nível de vida. Existe o “apetite sensorial” (que se segue à apreensão dos
sentidos ou conhecimento sensorial), e o apetite intelectual (que se segue
ao entendimento ou conhecimento intelectual) (ver I, q.81 e 82).
A consideração das
formas superiores de conhecimento e afeto nos leva a pensar que nosso
mundo é atravessado por algo como uma energia propulsora. Essa energia é o
que dá o dinamismo a toda matéria e a faz evoluir para formas cada vez
mais complexas. Essa energia, porém, não se identifica com a matéria. É
anterior a ela, digamos assim, e se manifesta nela. É por ela que a
própria matéria existe. Pois bem, essa energia aproxima-se do que Tomás de
Aquino (seguindo Aristóteles) chamava de forma. Esta, na verdade,
não se restringe à natureza estática de alguma coisa. É a estrutura íntima
que define cada coisa, sim, mas enquanto tomando consistência num
dinamismo que a ultrapassa. A forma é a “estrutura” de alguma coisa, mas
também é sua “vocação” no conjunto do universo. A forma contém um sentido.
As estruturas complexas que surgem em nosso mundo material são portadoras
de uma direção de desenvolvimento que acaba ultrapassando o próprio
momento atual do indivíduo.
Falando da criação e da criatura, Tomás tem uma frase onde essa intuição
aparece de modo claro: Toda criatura [1°] subsiste em seu ser, [2°] possui
uma forma que determina sua espécie e [3°] está ordenada a algo distinto
(I, q.45, a.7). Essa “ordenação a algo distinto”, sua “vocação”, ou
sentido, lhe é, portanto, também constitutivo.
Estaríamos nos
distanciando muito do pensamento de Tomás de Aquino? Acredito que não.
Leiamos um trecho de Ip., q.76, art.1 (alguns comentários estarão
entremeados ao texto, entre colchetes, para evidenciar nossa leitura.
“A natureza de cada coisa é revelada por sua operação
[a natureza é pois
dinâmica]. A operação própria do homem, enquanto homem, é conhecer
[em latim intelligere, o conhecer de nível intelectual, entender,
efetuar a leitura do mundo, daí decorrendo um afeto, uma tendência, um
‘apetite’, um dinamismo de ação que lhe é próprio]. É por aí que ele é
superior a todos os animais. [Pela capacidade de reflexão, o ser
humano pode por a cabeça para fora dos sistemas nos quais estava submerso,
e se relacionar com eles, tomar posição em relação a eles. Diferencia-se,
assim, dos outros animais.] Por isso Aristóteles (...) estabeleceu
nessa operação (...) própriamente humana, a felicidade perfeita. [A
realização plena do ser humano consiste em realizar a operação que lhe é
própria, seguida das outras que normalmente decorrem dela; o homem deseja
cumprir os anseios que o habitam, e nisso está sua felicidade ou
realização última.] A espécie do homem deve ser pois determinada
segundo o princípio desta operação. [O que é o ser humano, nós o
sabemos a partir dos apelos contidos nas possibilidades de suas operações
próprias.] E como a espécie de uma coisa é determinada segundo sua
própria forma, segue-se daí que o princípio intelectivo é para o homem sua
própria forma”. (I, q.76, art.1).
O ser humano é o que é
a partir de sua capacidade reflexiva, de entender, de questionar o mundo e
a vida, e de iniciar a partir daí um dinamismo de ação. A operação que é
própria ao ser humano é uma operação de relação, de comunhão com tudo o
mais. Em outras palavras: a “forma” humana (a alma humana) tem, embutida
em si mesma, uma “vocação”. Não é uma forma fechada.
Na seqüência do mesmo
texto, Tomás diz: “Deve-se considerar, ainda, que quanto mais nobre for
a forma, tanto mais domina a matéria corporal e tanto menos nela está
imersa; e mais a ultrapassa por sua operação e poder. [O conceito de
“nobreza” para Tomás de Aquino corresponde mais ou menos ao que para nós
seria a “complexidade”: quanto mais complexa for uma estrutura, tanto mais
ela ultrapassa a matéria corporal, tanto menos estando nela imersa.]
Assim vemos que a forma de um corpo composto [de elementos] possui
alguma operação que não é causada pelas qualidades elementares. [O
comportamento do corpo não se reduz às propriedades desses elementos em
separado.] E quanto mais se eleva a nobreza das formas [quanto mais
complexa for a estrutura] tanto mais o poder da forma vai além da
matéria elementar. Por exemplo, a alma vegetativa é superior à forma do
metal [isto é, dos corpos inanimados], e a alma sensitiva [do
animal], à da alma vegetativa. Ora, a alma humana é entre as formas a
mais elevada em nobreza [ou complexidade]. Por sua potência
transcende a matéria corporal na medida em que tem uma operação e potência
nas quais a matéria corporal não participa de maneira alguma. Essa
potência chama-se intelecto [referido à forma mais desenvolvida de
conhecimento]”. (I, q.76, a.1).
Fica muito clara aqui a
originalidade do ser humano. Tomás chega a dizer que a potência de sua
forma é tal que de algum modo transcende a matéria corporal. Vemos no
mundo material emergirem formas cada vez mais “nobres”, estruturas cada
vez mais complexas, capazes de proporcionar uma relação com o mundo também
cada vez mais elaborada. Na ponta desse desenvolvimento, encontra-se a
forma humana, a alma humana. Nesse sentido o ser humano se diferencia de
tudo que a natureza produziu antes dele. Ele é o primeiro que consegue
olhar o mundo e “ler dentro” (intelligere), e por isso mesmo ser
impulsionado por um afeto totalmente novo. É o primeiro que se pergunta
pelo sentido de tudo isso, e sua essência está justamente nesse perguntar.
Sua felicidadE não será plena a não ser no trabalho dessa pergunta (e na
comunhão que daí resulta). Na verdade nosso mundo material não se explica
somente a partir da matéria (entendida como pura potencialidade
indeterminada). Vemos aí um dinamismo interior que impulsiona todo o
processo. A ciência moderna parece estar voltando a isso, primeiro quando
fala de evolução (a emergência de formas cada vez complexas do âmago da
matéria desorganizada), mas também quando fala de uma energia, anterior à
matéria, que se manifesta nela, e que é portadora de todo um impulso para
o desenvolvimento.
O
que é então nosso mundo? É preciso que o entendamos incluindo a
originalidade da vida, e da vida em sua manifestação mais complexa que é a
humana. Se nós, humanos, fazemos parte do mundo, e se somos seres capazes
de movimento autônomo e conhecimento (isto é, seres que são fonte de seus
próprios movimentos, e seres capazes questionar o sentido), então é porque
há algo mais aqui que a pura matéria-passividade. É esse algo mais que vem
organizando a matéria em estruturas que acabam por transcendê-la de algum
modo. A dimensão “sentido” está presente na forma, impulsionando-a a
superar-se. É a “vocação” que se faz presente no desenvolvimento dos
processos de nosso mundo. Uma leitura atual de Tomás de Aquino, atenta às
suas intuições, para além de suas fórmulas, nos leva a pensar isso. Nosso
mundo produziu a alma humana na ponta de sua evolução conhecida. Então ele
é habitado por um “espírito”.
Estudar a alma humana
Diz Tomás de Aquino: Ao
teólogo compete considerar a natureza do homem no que se refere à alma, e
não no que se refere ao corpo, a não ser em sua relação com a alma
(I, q.75, pról.). Existem, portanto, duas considerações complementares do
ser humano: uma por parte da alma, e isto, para Tomás, define o ponto de
vista do teólogo (e de quem quer que o considere como um todo, em sua
natureza e em seu sentido), e outra por parte do corpo, e isso define o
ponto de vista do médico (ou de todos os cientistas naturais que
consideram as condições físicas da existência). O médico se interessa (e
cuida) primeiramente do corpo. Ele só aborda a alma enquanto possa ter
relações com as disposições corporais. Paralelamente, o teólogo se
interessa primeiramente pela alma (isto é, o ser humano inteiro, em sua
estrutura interior unificadora e doadora de sentido). O corpo só lhe
interessa enquanto possa ter relações com as disposições anímicas.
Considerar o ser humano
por parte da alma é estar cuidando do sentido da vida, do
significado de viver (e isso, com certeza, inclui a ética, diríamos nós
hoje). Considerá-lo por parte do corpo é estar mais atento às
condições físicas de saúde. O que vamos fazer uma vez tendo saúde, isso é
um desafio para a alma, e não cai mais sob a consideração direta do
médico. É a alma que nos dá o enfoque do todo. O corpo, somente das
partes. Quando o teólogo (ou quem quer que considere o ser humano por
inteiro) fala do corpo, ele está somente preocupado em como as condições
corporais se relacionam com uma vida plena. São dois modos de se estudar o
ser humano e, conseqüentemente, de interagir com ele, determinando duas
possíveis posturas profissionais.
Minha hipótese sobre a
questão corpo e alma: não são duas entidades, mas dois aspectos do ser
humano, que correspondem a dois discursos. A abordagem do “médico” incide
sobre algo que denominamos “corpo” (o homem todo, visto por fora, e em
suas partes); a do “teólogo” incide sobre algo que denominamos “alma” (o
homem todo, visto por dentro, em sua estrutura unificadora e dinamizadora).
A separação entre corpo e alma não seria ontológica, mas epistemológica.
Não se trata de duas “coisas”, mas de uma só, o ser humano, visto de dois
ângulos diferentes. Como dizia Jung, precisamos desses dois ângulos,
porque não sabemos fazer de outro modo: são dois aspectos diferentes
somente para a nossa inteligência, e não na realidade. (Jung, 1972,
p.93).
Estudar a alma humana é próprio do teólogo. O que faz então o psicólogo?
Essa figura não existia no tempo de Tomás de Aquino. Mas, se tudo que
dissemos aqui for verdade, uma psicologia que queira ser verdadeiramente
humana, não pode se furtar às questões mais abrangentes que se colocam
para nós, e nesse sentido fica mais para o lado da teologia do que para o
da medicina.
Recolhendo conclusões
Nossa questão inicial era: como Tomás de Aquino
constrói aquilo que nós hoje chamaríamos de um pensamento psicológico?
Comparando certos textos do mestre medieval com preocupações de uma
psicologia atual (principalmente humanista, existencial e fenomenológica),
obtivemos 3 respostas básicas.
Pelo fato de se referir ao ser humano no que ele tem
de próprio, e, portanto, enquanto um ser desafiado pela busca do sentido,
a construção desse pensamento psicológico supõe uma atitude aberta a
todas as possibilidades de encontro com o sentido. Esta foi nossa
primeira resposta. Concretamente, isso significa a necessidade de se ir
além da razão instrumental. Sempre útil na organização da lida cotidiana,
ela é insuficiente no que diz respeito às questões de significado que se
colocam para o homem. Para essas questões é necessário perscrutar os
sentidos que se manifestam de diversos modos nos fatos singulares,
históricos. Mas a apreensão desses sentidos não é obra da pura razão.
Supõe um envolvimento maior do ser humano por inteiro, pois está associada
com a decisão da ação, ou seja, com os rumos de vida. Muito mais do que
construir uma sabedoria, essa apreensão é um deixar-se possuir por uma
sabedoria maior, que transcende o indivíduo.
Em segundo lugar essa construção acompanha o
próprio movimento da indagação humana que, apoiada no desejo da
felicidade e articulada com tomadas de posição pessoais, vai produzindo e
testando significados capazes de orientar a vida. Mesmo quando produz
modelos de funcionamento mental, seu contexto de base, ou sua raiz, é a
inquietação humana. É em torno da compreensão dessa inquietação que o
pensamento de Tomás vai integrando o saber acumulado sobre a alma, suas
operações, e suas paixões.
Finalmente, no caminho dessa construção, Tomás de
Aquino recorre constantemente às formas da linguagem comum, como
guia. Não para ficar nelas, mas para, penetrando-as, clarear o
entendimento da alma humana. A linguagem expressa os momentos da
experiência humana na lida e na compreensão do mundo, e é como o resultado
de um imenso experimento coletivo, no qual confia Tomás.
Abertura para outras fontes de significado,
acompanhamento do movimento da inquietação humana, e confiança no
experimento coletivo que se expressa na linguagem, são, em resumo, alguns
dos principais fundamentos da construção desse pensamento psicológico.
No que diz respeito ao conteúdo, essa construção deve atender a três
âmbitos de indagação, que podem ser indicados por 3 perguntas gerais. 1)
Como falar adequadamente da alma humana e de suas operações, dando conta
de nossa experiência? (isso corresponde ao enfoque da I parte da Suma
Teológica); 2) Como se manifestam as operações da alma, quando na trama do
agir humano em busca de um sentido? (enfoque da II parte da Suma); e 3)
Quais são os símbolos do caminhar humano, historicamente produzidos, e
como esses símbolos se integram significando esse mesmo caminhar em seus
momentos chave, e servindo de instrumento para ele? (enfoque da III
parte).
Não podemos deixar de mencionar, finalmente, uma dimensão dessa
construção. Ela só esclarecerá em definitivo todas aquelas questões acima,
se permitir situar o movimento humano (em seu aspecto psicológico) no
movimento maior do próprio mundo. Se, nessa construção, não compreendermos
qual a relação entre a psicologia humana e o dinamismo do universo, não
teremos tido êxito, e alguma coisa estará faltando. O pensamento
psicológico é solidário com o pensamento cosmológico.
Uma pergunta fica no ar: não estaríamos falando muito mais de uma
psicologia filosófica (ou de uma reflexão prévia que nos situe face ao
objeto da psicologia), do que de uma psicologia científica? Penso que
poderíamos responder como Merleau-Ponty (1973): sem uma reflexão prévia
desse tipo, a ciência não saberia de que está falando, e então poderia
estar esmiuçando um fantasma.
Referências
bibliográficas
Agostinho de Hipona (1994). A Trindade. (A. Belmonte, Trad.). São
Paulo: Paulus. (Original latino do séc. V).
Agostinho de Hipona (1997). Sobre a potencialidade da alma. (A. J.
Faria, Trad.). Petrópolis: Vozes. (Original latino do séc. IV).
Boaventura de Bagnoregio (1999). Escritos filosófico-teológicos (L.
A. Boni & J. Jerkovic, Trad.). Porto Alegre: EDIPUCRS. (Original latino do
séc. XIII).
Boff, Leonardo (2002). Experimentar Deus. Campinas: Verus.
Eckhart, Mestre (1983).
Tratados y sermones
(I.
M. De Brugger, Trad.). Barcelona: Edhasa.
(Original alemão do
séc. XIV).
Jeauneau, Edouard (1986). A filosofia medieval. (J. A. Santos, Trad.).
Lisboa: Ed. 70. (Original francês de 1963).
Jung, Carl G. (1972). Fundamentos de psicologia analítica: as
conferências de Tavistok (A. Elman, Trad.). Petrópolis: Vozes.
(Original alemão de 1935).
Lafont, Ghislain (1960).
Structures et méthode dans la Somme Théologique de Saint Thomas d’Aquin.
Bruges: Desclée de Brouwer.
Laín Entralgo, Pedro (1995).
Cuerpo y alma: estructura dinámica del cuerpo humano.
2ª ed. Madrid: Editorial Espassa Calpe.
Lauand, Luiz Jean (1999). Tomás de Aquino: vida e pensamento: estudo
introdutório geral. Em Tomás de Aquino. Verdade e conhecimento. (L.
J. Lauand & M. B. Sproviero, Trad., estudos introdutórios e notas).
(pp.1-80). São Paulo: Martins Fontes.
Leloup, Jean-Yves (2002). Cuidar do ser: Fílon e os terapeutas de
Alexandria. 5ªed. (R. Fittipaldi, E. F. Alves, L. E. Orth &
J. A. Clasen, Trad.). Petrópolis: Vozes.
Massimi, Marina (2001). A psicologia dos jesuítas: uma contribuição à
história das idéias psicológicas. Psicologia: Reflexão e Crítica, 14
(3), 625-633.
Massimi, Marina. (2001a) Identidade, Tempo, Profecia na visão de Padre
Antônio Vieira. Memorandum, 1, 13-31. Retirado em 10/05/2002, do
World Wide Web:
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos01/massimi01.htm.
Merleau-Ponty, Maurice (1973). Ciências do homem e fenomenologia.
(S.T. Muchail, Trad.). São Paulo: Saraiva. (Edição original de 1951).
Nascimento, Carlos Arthur (1992a). O que é filosofia medieval. São
Paulo: Ed. Brasiliense. (Coleção Primeiros Passos).
Nascimento, Carlos Arthur (1992b). Santo Tomás de Aquino: o boi muda da
Sicília. São Paulo: EDUC.
Tomás de Aquino (1951). Summa Theologiae. (ed. latina, com
suplemento e índices).
Madrid: B.A.C. 5
vols. (Original latino do séc.XIII)
Tomás de Aquino
(1952). Suma contra los gentiles (J.P. Castellano, Trad.).
2 vols. Madrid, BAC.
(Edição
bilíngüe;Original latino do séc.XIII).
Tomás de Aquino (1980). Suma Teológica (A. Corrêa, Trad.). Porto
Alegre: Sulina. (Edição bilíngüe). 11 vols. (Original latino do séc.XIII)
Tomás de Aquino (2001). Suma teológica (C.-J. P. Oliveira e equipe,
Trad.). São Paulo: Loyola. (Edição bilíngüe). 8 vols. (Original latino do
séc.XIII)
Torrell, Jean-Pierre (1999).
Iniciação a Santo Tomás
de Aquino: sua pessoa e sua obra
(L.P. Rouanet, Trad.). São Paulo: Loyola. (Edição original de 1993).