Fernandes, M.L. & Massimi, M. (2004). A memória de um padre exorcista: relatos da colônia de Cascalho. Memorandum, 6, 55-77. Retirado em       /        /    da World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/fernamass01.htm

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A memória de um padre exorcista: relatos da colônia de Cascalho

 The memory of an exorcist priest: narration of the
experience from the colony of Cascalho

 Márcio Luiz Fernandes
Pontificia Università Lateranense
Italia

 Marina Massimi
Universidade de São Paulo
Brasil
 

Resumo

O presente artigo é o resultado de uma pesquisa realizada numa ex-colônia de imigrantes italianos situada em Cascalho, município de Cordeirópolis, estado de São Paulo. A vida religiosa dessa colônia organizou-se em torno do padre Luis Stefanello (1878-1964), que foi o formador e orientador de várias gerações de fiéis. A fama de exorcista espalhou-se por todo o interior do Estado de São Paulo, transformando Cascalho em lugar de romarias. A pesquisa revela o que sobrevive da imagem do padre Stefanello na memória dos mais velhos da comunidade e a ação de um homem ”cheio de poder” por meio de suas bênçãos e exorcismos, mostrando as ressonâncias dela no comportamento populacional. Por outro lado, o artigo examina as relações entre a história e memória do grupo social, evidenciando que a experiência do relacionamento entre o padre e o povo de Cascalho foi geradora de um elo que perdura até o presente.

Palavras-chave:história e memória; exorcismo; imigração italiana; cultura popular; Luis Stefanello

Abstract

This article is the result of a research done in an ex-colony of Italian immigrants in the village of Cascalho, of the municipal district of Cordeirópolis (São Paulo, Brazil). The religious life of this colony has been organized around Father Luis Stefanello (1878-1964), who was the mentor and guide of generations of believers. The Exorcist’s fame spread through the State of São Paulo, turning Cascalho into a place of pilgrimages. The research reveals that the reminiscence of Father Stefanello’s image still lives in the memory of the elderly of the community and in the action of a man “full of power” manifested in his blessings and exorcisms. This article examines the relationship between the history and the memory of the this social group putting in evidence the experience of the relationship between the priest and the people of Cascalho which has created a bond that remains up to the present.

Keywords:history and memory; exorcism; italian migration; popular culture; Luis Stefanello

 

Introdução

Foi a partir de uma antiga fazenda de café do Sr. José Ferraz de Campos, chamado Barão de Cascalho, que o governo do Estado de São Paulo, no final do século XIX, criou o núcleo colonial de Cascalho. A fazenda foi dividida em lotes que foram doados aos imigrantes. Em Cascalho, as escrituras foram passadas no ano de 1884 e, logo em seguida, começaram a chegar as primeiras expedições de imigrantes de diversas nacionalidades: alemães, suecos e dinamarqueses, que se instalaram, mas não se estabeleceram por não conseguir se adaptar às condições de vida da colônia. Em seguida, vieram os imigrantes italianos do Vêneto, que logo se fixaram (Livro do Tombo da Paróquia de Cascalho, 1904-1983, p. 4).

O núcleo de Cascalho, atualmente pertencente ao município de Cordeirópolis, tornou-se uma típica colônia italiana, na qual cada família possuía um pedaço de terra como propriedade, realizando-se assim uma das primeiras experiências de reforma agrária do Estado de São Paulo.

A vida religiosa desta comunidade foi desde sempre muito cultivada. A adaptação dos imigrantes passava pela tentativa de reproduzir condições de vida similares às de sua terra natal. A assistência religiosa foi um dos fatores fundamentais para ajudar os imigrantes italianos a se adaptarem ao estilo de vida no Brasil. A colônia de Cascalho nos seus primórdios foi assistida pelos Missionários Escalabrinianos, cujo objetivo era “manter viva a fé católica no coração dos compatriotas emigrados e, na medida do possível, buscar o seu bem-estar moral, social e econômico” (Rizzardo, 1974, p. 243).

Em 1911 chegou a Cascalho o missionário escalabriniano Pe. Luis Stefanello, que intensificou o trabalho junto às famílias dos imigrantes. Aconteceu uma verdadeira identificação da população com este sacerdote. No decorrer dos anos o padre Stefanello mostrou que há um carisma particular e que foi sendo identificado pela comunidade. Posteriormente, adquiriu fama por várias regiões do Brasil, como “um padre cheio de poder”, sobretudo na luta contra as forças demoníacas.

Para apreender a experiência que a colônia de Cascalho teve no seu relacionamento com o padre Stefanello e tentar reconstruir essa história, foram utilizados dois tipos de fontes que são importantes tanto para a história quanto para a memória. Em primeiro lugar, as fontes de tipo oral, com entrevistas abertas, utilizando-se o recurso da história de vida, e, em segundo lugar, as fontes documentárias escritas referentes à história do padre Luis e da comunidade paroquial de Cascalho, em dois arquivos específicos: 1) Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora da Assunção, 2) Arquivo Geral da Congregação Escalabriniana – Roma-Itália. Para as entrevistas foram escolhidos quinze sujeitos e, preferencialmente, os anciãos do bairro, na faixa de setenta a noventa e cinco anos. Interessava-nos à pesquisa apreender as experiências vividas na convivência com o padre Stefanello, por isso, nosso caminho foi o de estabelecer um diálogo partindo do que eles sabiam nos contar quanto ao padre, pois todos eram pessoas que, de alguma forma, conheceram o referido sacerdote e presenciaram os exorcismos em Cascalho. Deve-se ainda esclarecer que as entrevistas podem ser divididas em dois blocos: um primeiro, referente ao tópico “a luta com o demônio”, cujos depoimentos foram colhidos no ano de 1999; e outro bloco presente no tópico “ressonâncias”, colhidas nos dias 15 de agosto e 14 de setembro de 2003.

Entreguemo-nos, pois, neste pequeno percurso, às reminiscências com que os idosos de Cascalho nos descrevem a ação do padre Luis Stefanello, e procuremos estar atentos para poder perceber a densidade desta presença no hoje da comunidade.

 

A luta com o demônio

“Como vinha gente”. Esta é a expressão que se repete na boca dos moradores mais velhos de Cascalho. É a indicação de que nos tempos do “padre cheio de poder” alguma coisa diferente acontecia. Cascalho foi-se tornando um lugar de romarias. Acorreram peregrinos de todos os cantos. Então, perguntamo-nos: quem era essa gente que vinha a Cascalho? O que eles buscavam? O que poderia acontecer nesse vilarejo tão pacato? O que se modificava?

Segundo nos informou Dona Rosa, vinha bastante gente do Paraná “para tratar exorcismo”. Tratar exorcismo significa, para Dona Rosa, o trabalho do padre Luis para expulsar o diabo do corpo do doente. As pessoas estavam atraídas pelo padre Stefanello justamente pela fama que se espalhava por todo o canto, de que ele era exorcista. Outras pessoas procuravam-no, porque tinham algum problema para resolver. Segundo o Sr. Nardini, “vinham porque tinham problema com familiar e porque atacava o espírito”. Ao padre caberia dar a bênção a essas pessoas “atacadas” pelo espírito do mal. Percorriam distâncias naquela época para se encontrar com Stefanello. Vinha gente não só de São Paulo, mas também de outros estados, como Minas Gerais e Paraná. O que nos contaram os moradores é que o padre exorcizava os espíritos malignos que vinham ali, e o que acontecia às pessoas tinha uma explicação: “era o diabo”. É assim a descrição feita pelo Sr. João:

Gente lá de Minas, do fundo de Minas, de caminhão coberto e encerrado, aparecia cheio de gente. Só que ele tinha posto uma lei: que ele só dava benção a 1:00 hora, antes e depois ele não atendia ninguém mais porque era demais, por causa do serviço dele de atender os doentes. Ele dizia que era o diabo: “-ocê tá com o diabo, mas vai melhorar”. Ele dava a benção, o homem, às vezes, se jogava no chão, às vezes, queria fazer..., passava aquilo, e o padre ia lá colocava as vestes da missa e ia rezar a missa e o homem ali ninguém punha a mão.

A pacata colônia ficava agitada nos finais de semana (1). Muita gente de outros lugares. Chegavam muitos doentes, gente “atacada pelo diabo” que, segundo Stefanello, poderia encontrar a cura e a salvação, poderia mesmo melhorar. O fato é que algo irrompia no horizonte da vida dos habitantes de Cascalho e passava a fazer parte do cotidiano. Por outro lado, esse algo quebrava a ordem natural das coisas, de forma que era necessária uma organização, porque, do contrário, o padre não conseguiria atender a todos. Por isso, estabeleceu-se uma lei: “ele (o padre) só dava a benção a 1 hora”. Ainda assim o movimento era grande e difícil de organizar: “eles vinham de fora. Qualquer dia. Vinha de semana, vinha de domingo, vinha de sábado, vinha qualquer hora, qualquer dia” (Dona Santa). A população passou a conviver com essa “anarquia” e a sua reação, segundo os relatos, era de medo:

Vinham tudo de fora. Vinham de longe. Até do Paraná. Vinham de caminhão, às vezes de carro. Se você visse que anarquia que tinha!!! Dava até medo. Era tudo dia, era tudo dia. Eu assisti uns par deles, depois a minha mãe não deixou mais não, porque ela achava que nós ficávamos nervosos, né? Você precisava ver que nervoso que dava (Dona Augusta).

O que poderia causar tais reações? Seria apenas o fato da população perceber tanta gente chegando à sua pequena vila? Ou a forma como via as pessoas, já as assustava?

Na porta da igreja, antes mesmo de começarem as missas dominicais, já havia gente esperando pelo padre Stefanello. Todo domingo era assim. O fato que assustava é que “chegava romeiro dentro de um caminhão, assim, acorrentado. Espera lá!!! Coisa fora de série. Acorrentado e ele dava a benção e saía andando” (Sr. José). Ou, como disse Dona Santa, “tinha gente que vinha numa cama”.

O fato de ver os doentes acorrerem a Stefanello era algo que sensibilizava a comunidade. Os moradores vinham até a igreja para assistir, para ver o que o padre faria com os doentes. Sempre havia uma novidade para ser contada, se você fizesse parte e estivesse atento aos fatos da vida da colônia. Descrever essas “reuniões” dos finais de semana em Cascalho parece bastante difícil para quem não presenciou. Mas, para quem assistiu tudo, o que é que tinha?

Eu assisti ele. Ele dava a bênção e rezava. E, às vezes, vinham gente com caminhão trazer gente amarrado. Tinha exorcismos, tinha espírito, tinha não sei o quê, traziam aqui. Aqui fazia fila. Cascalho era, Nossa Senhora!!! Era uma reuniões todo sábado e domingo que o senhor não podia ir, que tava cheio de gente (Sr. Guilherme).

O que aconteceu naqueles tempos é ainda hoje um elemento identificador e que permanece no tempo. As pessoas de Cascalho, quando viajam, ainda podem encontrar outras que dizem: “-Ah, você é daquele lugar que tinha o padre exorcista”. Cascalho vê-se ligada ao padre que benze e, por outro lado, as pessoas de outras localidades podem igualmente se reconhecer porque, de algum modo, se sentem pertencentes ao lugar, por terem recebido dali alguma graça. É Dona Emília que disse :

Ele tinha muita fama longe, viu. Até hoje tem gente que pergunta se eu sou daquele lugar que morava aquele padre que dava aquela benção. Até hoje, quando eu vou lá em Lindóia, tem gente de longe, que pergunta: a senhora mora onde morava aquele padre que dava a bênção? Esses antigos ainda lembra, né?

“Morar no mesmo lugar que o padre que dava a bênção” é habitar um lugar já conhecido. É um passo para uma relação amistosa com o outro que antes era, para mim, um desconhecido. Esse “lugar” é especial. O elo invade o tempo, faz com que sua fama perdure até no tempo que se chama hoje. E isso é importante do ponto de vista dos moradores de Cascalho. Já pensou quem foi esse padre? Tão famoso que até agora há pessoas que não o esquecem. Torna-se motivo de admiração se os mais velhos, das cidades circunvizinhas, não tiverem ainda ouvido falar de Stefanello.

No frontispício da igreja há uma alusão aos viajantes, aos peregrinos e a todos os que passam por Cascalho. É um alerta. É um pedido. É uma lembrança de que aquele “lugar” pertence a todos. Há a seguinte inscrição latina: “Siste viator et ora Mariam”, ou seja, viajante pare e ore a Maria. Segundo a tradição, Maria é a Nova Eva, aquela que venceu o tentador, e que ficou para esmagar a cabeça da serpente, para proteger os novos filhos de Deus. Os viajantes em Cascalho eram encomendados a Virgem Maria, no título de Assunta ao céu. Nesta frase temos um pouco da auto compreensão da comunidade de Cascalho: é um lugar de passagem e oração.

Muitos eram os que passavam e paravam ali para se libertarem. Para Dona Rosa, ficou marcado o dia em que ela estava na frente da igreja e chegou um homem, em cima de um caminhão, e outros cinco homens tentando segurá-lo. Ele queria pular do caminhão. Quase que cinco homens não foram capazes de segurá-lo. Depois do encontro com Stefanello, que chegou e foi mandando tirar as mãos de cima do doente, o homem ficou bom e ele mesmo disse ao padre: “-olha, eu tô bom, padre. Agora eu tô bom”. E o padre perguntou: “- E primeiro o que você tinha?”. E ele respondeu: “-Ah, eu não sei o que eu tinha, eu não queria obedecer a ninguém, eu acho que eu não tava bom, não”. Para Dona Rosa, a teimosia daquele homem, é indicação de que há algo que não está bem, pois o desobediente por excelência é o diabo. Ninguém mais é capaz de segurar. Não adianta a força dos homens, precisa de um outro poder aí.

Ao terminar de contar o caso, Dona Rosa fez uma pequena pausa e interrogou-me: “-Você nunca soube?”. A pergunta foi feita com um certo espanto, supondo que o interlocutor, por ser do próprio município de Cordeirópolis, deveria ter conhecimento dos fatos de Cascalho, pelo menos de algumas histórias. Era impossível não saber, pois todo mundo sabe, até mesmo aqueles que são “de longe”. Como é que “alguém”, aqui do lugar, não ouviu nunca ninguém contar? Um acontecimento desses é grande. Não saber é como não pertencer ao grupo. Esse acontecimento passou a fazer parte das tradições das famílias do bairro e de todos os descendentes de italianos.

De qualquer forma, para todos, a sensação de que estavam diante de algo que não davam conta de explicar era evidente. A sensação de que no horizonte da história de Cascalho entram outras pessoas, que buscavam um bem para a sua vida e que pareciam ver surgir na peregrinação a Cascalho uma certa resposta, fez quebrar a rotina das famílias do lugar. Os doentes eram trazidos por suas famílias e seus conhecidos. Mas, nessas pessoas, advertia-se a presença de um intruso.

Para os de Cascalho é fácil descrever quais as características mais evidentes desse intruso que tomava as pessoas. Como nos falava Dona Rosa, “ele não queria obedecer”. Era, portanto, desobediente.

Mesmo diante do padre e das orações que ele fazia, o demônio recusava sair, persistindo na desobediência: “Meu sogro que viu o padre Luis dar a bênção, tirar o espírito dessa gente que vinha e que tinha demônio. Coisa horrível. Não queria sair” (Dona Aparecida). Além disso, o demônio deixava a pessoa ruim:

É veio um moço do Paraná que vivia sempre doente. Achava que ele tinha um espírito mal e coisa e outra. E ficou morando bastante anos com o padre Luis. Depois, quando o padre Luis foi embora, eu acho que ele foi morrer lá no Paraná. Eu sei que ele morou bastante anos aí, com ele. De vez em quando ele ficava ruim, esse moço. Eu sei que o padre Luis dava a benção nele, mas nem assim. De vez em quando ele ficava ruim (Dona Rosa).

O laço estabelecido com “os que vinham de longe” tornava-se mais forte. A necessidade de ver o demônio vencido, fez com que Stefanello trouxesse esse moço para viver com ele e, assim, tentar curá-lo. Esse jovem visitou pelo menos umas três vezes Cascalho, sendo apresentado pelos seus pais. Era “curado”, mas depois voltava a sofrer suas crises. Até que Stefanello resolveu deixá-lo morar consigo, na casa canônica. Inclusive dona Yolanda lembra que, uma vez, teve de cozinhar para o padre, pois a empregada tinha viajado e acabou ficando sozinha na casa com esse moço, um tal de Alexandre. Um dia, ele aproximou-se dela e disse: “- Hoje eu não tô bom, viu?”. Bastou falar isso para dona Yolanda deixar de cozinhar na canônica. Não se arriscava, porque pressentia que aquilo não era só doença, o moço podia estar com algum espírito demoníaco.

Aliás, é muito comum você ouvir esse tipo de história, um pouco tensa, cheia de receios, produzindo nos ouvintes um certo temor, e que revela a “anarquia” instaurada pela presença desse intruso, que, por vezes, adquiria a fisionomia animal. A animalidade era o outro rosto do demônio. Não era mais o homem, era um animal que aparecia:

Uma vez, veio um homem arrastado. Assim, como uma cobra. Eu tava no banco, assim na beirada, então veio perto e eu comecei a ficar com medo. E então, eu falei pra minha cunhada: “- meu Deus, o homem ta aqui e o quê que eu faço”. E aí, o padre viu que tudo tinha medo, então ele falou assim: “-me pega esse homem e leva pra fora. Só 1 hora eu dou a bênção”. E aí, 1 hora ele deu a bênção. E ele, depois, tirou o espírito do homem. Fazia seis meses que andava de arrasto, por causa de uma moça. Diz que ele largou dela e ela fez mal pra ele não andar mais.(Dona Augusta).

É natural que um homem que venha arrastando-se como uma cobra cause medo. O medo era vencido pela intervenção de Stefanello. O padre enfrentava o mal. E a que mal estava submetido esse homem? Parece ser um mal feito por alguém: “-andava de arrasto por causa de uma moça”. E esse era um dos problemas mais comuns que Stefanello enfrentava com aqueles que iam implorar sua bênção: que retirasse o mau-olhado, o mau desejado por outrem que acarretava dificuldades no cotidiano. Ainda Dona Augusta conta-nos o caso do marido que levou sua mulher, a qual – “sem juízo nenhum”, tomada por um espírito – parecia um macaco:

E depois, o homem levou embora a mulher. Ela tinha cinco filhos. Dizia que ela subia em árvore. Lá em Cascalho, ela subia em árvore, parecia um macaco. Já pensou uma mulher subir em árvore? Pra ver que não tem juízo nenhum. Ele falou que tinha ainda cinco filhos em casa. Ele chorava. Parece que eu tô vendo, viu. Eu fui assistir muito espírito, e às vezes, vinha quando nós estávamos na missa. Então, eles entravam na igreja e a gente via.

Esses espíritos entravam na igreja e ficavam ali. Segundo Dona Augusta, junto com as pessoas doentes havia os espíritos que as possuíam. Ela viu um mudo que o padre curou. A família dizia ao padre que ele tinha ficado mudo depois que havia largado de uma moça. A explicação dada é a de que a moça tinha feito ele ficar mudo. Com tudo o que representava coisas mal feitas por um outro, como no caso de um mau-olhado, de feitiçaria, de encosto, de bruxaria etc, o padre conseguia lidar com facilidade. Mas, os que apresentam maior dificuldade eram os que procuravam anteriormente um auxílio indevido, por exemplo, ficava mais difícil livrar uma pessoa que antes já tivesse passado por uma sessão espírita. Neste sentido Stefanello observava estritamente o que o próprio Ritual Romano recomendava a respeito dos espíritos demoníacos: "Alguns mostram um malefício feito e por quem foi feito, como também o modo como deve ser retirado: para isso porém, não deve-se recorrer a magos, ou a feiticeiras ou a outros como ministros da igreja, ou outra superstição, ou qualquer modo ilícito”(2).

O demônio ficava ali na igreja. Vinha até à missa, como quando, conta-nos a tradição, em redor dos mosteiros, havia uma multidão de demônios esperando qualquer vacilação por parte dos monges. Eles são atraídos também pela força da oração e querem mesmo enganar os que são firmes na fé.

Stefanello, porém, nunca desistiu de lutar. Ele era mesmo fascinado, em certo sentido, pelo enfrentamento com o demônio. Sobre isso nos informa um outro sacerdote, chamado Pe. Frederico, que tinha muitas ligações com o Pe. Stefanello, no tempo em que este estava vivendo em Águas de Santa Bárbara. O sacerdote procurou Stefanello também motivado por sua fama e queria aprender as técnicas para abençoar as pessoas, mas sua decepção foi constatar que para Stefanello tudo era explicado pelo demônio. Esse sacerdote dizia que o padre Stefanello tinha uma energia enorme, e que, mexendo um pêndulo, ao falar o nome do padre Luis Stefanello, o pêndulo em suas mãos girava para cima, com uma força tão incrível, que chegava mesmo a doer-lhe o braço. Confidenciou ainda que muitas das mulheres que foram limpar o quarto do padre, após seu enterro, se sentiram mal e desmaiaram, tamanha era ainda a força de sua presença.

Uma das primeiras lutas que o demônio travou com Stefanello foi aquela dos quatorze espíritos que dominavam duas moças. Foi uma luta tremenda. Os demônios subiam pela parede da igreja:

Então, a primeira vez que tirou, que veio ali, foi umas moças do Coletta, duas irmãs que moravam em Araras. Diz que elas tinham 7 espíritos cada uma. Elas vieram aí 7 noites. Toda a noite enchia a igreja de gente, porque a primeira vez, elas “trepavam” pra parede. Até na parede. Mas eram... pra ele difícil, ele molhava a camisa. Ele trocava, ele molhava de novo. Ele lutou tanto, mas tanto pra tirar” (Dona Emília).

Como considerar esses acontecimentos? Parecem mesmo mostrar uma luta, envolvendo as pessoas, e exigindo por parte do exorcista um trabalho. Qual era a fisionomia do padre cheio de poder, do padre exorcista de Cascalho? Certamente era a de um homem que trabalhava, que lutava, que rezava, que pedia a Deus para ajudar a tirar o espírito que tomava a pessoa. Por outro lado, como vemos nessa luta com os 14 espíritos, era algo que exigia suor do seu rosto, tinha até de trocar de roupa, chegava a molhar a camisa. Não era uma luta solitária. Ele convocava os que estavam na igreja para ajudá-lo, deviam manter-se de joelhos e rezando. O padre não só contava com a sua força para tirar os espíritos, mas necessitava da ajuda da comunidade para que Deus se convencesse a intervir. Assim, contou dona Augusta: “-ele, quando tirava o espírito assim, ele mandava todo mundo se ajoelhar e rezar, pra pedir a Deus pra ajudar a tirar”. Para dona Augusta contam os fatos: um mudo que recuperou a fala e até cego que saiu daqui enxergando.

Cascalho era um lugar encantado, cheio de espíritos, de demônios que rondavam a igreja, de pessoas doentes, cuja presença, aos olhos dos cascalhenses, ia tornando-se quase normal. A rotina de trabalho era quebrada pelo movimento de romeiros que esperavam a missa e a bênção dada nas tardes de domingo. Entretanto, não era tão tranqüilo ir à missa. Por vezes, durante a celebração, é que os espíritos se manifestavam. Difícil era escolher o lugar certo para se assentar, pois era possível estar bem ao lado do inimigo. Era necessário estar preparado para o susto. Contudo, sempre que os espíritos se manifestavam, o padre começava o trabalho, pedindo para que levassem as pessoas à frente, para perto do altar. A bênção é um dos primeiros trabalhos do exorcista:

E daí, quando a gente tava na igreja e, às vezes, quase só tinha gente de fora. Mas, na segunda missa, já tinha mais gente, quase só gente de fora, porque vinha tomar a bênção. Então, às vezes, a gente tava assim e não sabia o que tinham, porque estavam quietos; quando o padre dava a bênção, começavam a levantar e gritar. E a gente se assustava, ficava com medo. Já que a gente sentava no banco, já via, tinha gente perto, já ficava com medo, porque vamos que tá com alguma coisa e a gente não sabe né? E a gente ficava com medo, mas ele não fazia nada pra gente, né? E depois, o padre mandava levar lá, e daí eles iam lá na frente e ele trabalhava, até que tirava” (Dona Emília).

Nessa hora, em que Stefanello trabalhava com o espírito, a orientação aos coroinhas era que ficassem atrás dele, que não se atrevessem a ficar perto de quem estava dominado pelo demônio. Ninguém podia colocar a mão. O momento era delicado. Assim é descrito por Dona Aparecida:

O padre gritava, batia, xingava: “-Você não vai sair?” e o padre perguntava o porquê. E ele respondia: “-Não, porque eu tô bem aqui”. Dá medo, viu? Dava medo de ver. Mas tirava. Gritava, batia, mas a pessoa não sentia nada, não sentia nada.

Mas a pergunta que resta é: se a pessoa sobre quem Stefanello trabalhava não sentia nada, então, sobre quem recaia os efeitos de toda essa luta? Assim responde Dona Santa:

Claro que ele batia. Ele batia, mas diz que o corpo da pessoa não sentia nada, porque ele tava batendo no demônio. Era o demônio que tava sentindo. Ele tinha um poder que só vendo. Todos os padres têm esse poder, só que precisa ter força. E ele tirava mesmo, mas vinha gente de longe, e ele curava.

E que instrumentos ele utilizava para lutar com o demônio? Quem responde é Dona Rosa:

O crucifixo era grande, e ele dizia: “-Eu te bato com o crucifixo se você não vai embora dessa pessoa aí”. Então, disse que saía desse homem um espírito, mas ninguém de nós via, mas ele, eu acho que via. E aí, ele dava a bênção, tudo, em nome de Jesus, e tudo ficavam bom.

Não apenas o crucifixo, mas, “dizem os moradores”, o padre tomava o asperge da caldeira de água benta e ia em cima da pessoa com toda a força. Era uma verdadeira luta, mas só o demônio é que apanhava. Depois dos golpes recebidos, ao contrário, do que se pensa, a pessoa dizia que estava sentindo-se muito bem. O espírito finalmente a havia deixado em paz.

Como podemos perceber pelos relatos, a prática de expulsar o mal em Cascalho, seguia um certo ritual que os moradores conseguiram nos descrever:

(...) o crucifixo, a água benta, e jogava em cima da pessoa que estava... às vezes, ele começava a falar, às vezes uma pessoa lá do fundo (da igreja) também ficava ruim, então vinha na frente. O padre dava a bênção, com crucifixo e a água benta, e melhorava (Dona Yolanda).

E quanto ao poder da água benta? “A água benta queimava que nem brasa pra ele, pro diabo. A água benta queimava” (Sr. Paulo). Imaginemos o quanto sofria esse pobre “diabo” nas mãos de Stefanello: a água benta era como uma água fervente que caia sobre o corpo, mais; os golpes com o crucifixo e o hissope; depois as orações e as palavras de ordem para que o espírito se retirasse. Na verdade, como disse o Sr. José: “A água benta pr’aquele que tem o espírito no corpo, o mal, ele não quer saber da água benta. Joga água benta ele encolhe, né?”. A água benta tornava-se o sinal mais terrível, porque diante dela o espírito do mal tendia a recuar.

As pessoas possuídas não ficavam passivas. Havia reações fortíssimas: gritavam, xingavam, encolhiam-se, queriam fugir, subiam pelas paredes, recusavam-se a ver o crucifixo e a escutar as orações. Vejamos no relato de Dona Santa como se dá a reação do possuído. No início a agressividade. Em seguida, a ação do padre. Finalmente, os gestos leves de quem se recuperou:

Ele ia com o crucifixo na frente dele, né? E a pessoa que tava com o demônio não queria ver, não queria nem ver. Ela se jogava. Ele precisava de dois a três homens para segurar ele, a pessoa que tava com o espírito, e daí o padre ia falando, falando, dando a bênção e falando. Aí, começava a bater, bater, bater, até que o espírito saía e ele ficava bom. A pessoa ficava boa. Beijava a mão do padre. Aí, o padre falava: “-pode levar, tá bom”. Olha que coisa, não? Eu vi bastante disso. Ia de monte lá em Cascalho.

Por outro lado, o mal poderia possuir a pessoa não só pela ação direta dos espíritos demoníacos, mas seria provocado pelo feitiço, mau olhado e inveja das pessoas, ou  ainda, ser ingerido por meio dos alimentos. Para os de Cascalho, quando se come, é mais difícil de livrar-se do mal. Por isso, quando os entrevistados se referiam ao jovem Alexandre, que vivia com Stefanello, explicavam a dificuldade de curá-lo pelo fato dele ter ingerido o mal por meio de uma fruta:

Mas fizeram mal pra ele numa fruta... Tem negócio de namoro... Ele comeu. Então, aquilo, cada vez que o padre tirava o espírito, ele vomitava aquilo, mas ele não largava dele, porque ele comeu aquele mal e, comendo, é mais difícil de livrar. Então, ele vomitava, coisava, depois ia embora, depois voltava de novo (Dona Emília).

Algumas pessoas da colônia não acreditavam naquilo que Stefanello realizava. E como o padre não conseguia curar o Alexandre, reforçava-se a tese (para os opositores) de que não era mesmo o demônio, mas uma doença, que o moço era um epilético. Já para outros, como Dona Emília, a cura não vinha porque era difícil livrar-se do mal que se come; desse modo, de forma alguma, tal fato estaria ligado a um fracasso do padre.

O fato de muitas pessoas ficarem boas depois do encontro com Stefanello, é que levava a maioria dos cascalhenses a acreditar no seu poder. Ser testemunha do que aconteceu e a convivência com Stefanello, é que fazem com que muitos não duvidem do seu poder: “Ah, eu acredito, né? Porque eu via as pessoas ficar bem melhor, muita gente doente ficavam boas, e eu era nova, mas eu acredito. E depois, ele fez o meu casamento também. Ele ficou aqui 42 anos, o padre Luis” (Dona Rosa).

Por conseguinte, aquelas pessoas que conseguiam livrar-se do mal e do demônio, tornavam-se gratas. O dinheiro para construir a igreja nova, por exemplo, vinha dessa gratidão:

Aqueles que tava livre, não dá um dinheiro? O negócio assim de fazer a igreja, a questão do dinheiro: ah, se fosse só o pessoal de Cascalho, ele (o padre) não fazia, não. Vê lá. É tudo gente que vinha aí. Chegava lá de tarde, a bandeja enchia. Colocavam lá. Todo mundo ia pondo lá (Dona Emília).

Ao lado do trabalho de luta de Stefanello com o demônio, foi se estabelecendo toda uma economia,tanto para a igreja, como, para os próprios moradores da colônia. É o caso dos que preparavam o almoço para os que vinham, como o bar na frente da igreja: “E o Rosolem fazia almoço pra turma que vinha. Ele tinha que nem um bar. Ele tinha sempre aquele bar e ele servia almoço e janta pra turma” (Sr. Guilherme). Por outro lado, como não se lembrar do Hotel “Viaduto”, que recebia os peregrinos que vinham buscar o auxílio do Padre Luis. Além disso, havia o movimento dos carros de praça, que levavam as pessoas de Cordeirópolis a Cascalho: “Em Cordeirópolis, tinha os automóveis, que tinha aquele Rocha e o Romano. Eles viviam só de trazer gente aqui. Traziam aqui, em Cascalho, pro padre dar a bênção” (Sr. Guilherme).

O padre Stefanello, com o seu talento pessoal, com sua força extraordinária e carisma, atraía multidões a seu redor. Essa fama trazia muitas tentações, e o padre reconhecia que o demônio podia aproveitar-se dessas ocasiões para tentar confundi-lo. O povo de Cascalho sabia que, quando o padre ficava nervoso, ou soltava algumas palavras indiscretas no sermão, ou se chateava com alguém, não era ele que estava agindo, mas o tentador: “... a minha mãe falava: ‘- acho que não era ele que fazia, acho que ele era muito atentado. Porque ele tirava os espíritos, eu acho que o demônio tentava ele. Ele mesmo falava que ele era muito tentado pelo demônio” (Dona Santa).

Com um último relato, pode-se resumir todo o caminho percorrido juntamente com o povo de Cascalho descrevendo o poderoso padre Luis Stefanello. Neste último trecho, Dona Santa fala das pessoas doentes que eram levadas à presença de Stefanello, da realidade do demônio, do poder do exorcista e das tentações que ele sofre:

Ah, eu lembro de uma nora desse Coletta, que morreu. Ela vinha na missa e ficava ruim na igreja, então ela gritava, mas gritava... Ai, pegava, levava ela pra fora, levava embora e, quando era no outro dia, levava ela pro padre dar a bênção. O padre benzia e ela ficava boa. É, ele tinha poder. Diz que tem o demônio. Mas tem mesmo o demônio, viu. E os padres são os mais perseguidos, são os mais tentados. Ele mesmo falava:” -nós, padres, somos mais tentados”. A tentação não falta.

 

Discussão dos resultados

 A potência

Como não ficar surpreendido com a experiência da comunidade frente ao padre que para eles é tão poderoso? Como pode uma pessoa abrir o horizonte de significado para os acontecimentos do modo como fez Stefanello? Pela interpretação da comunidade, percebe-se que isso só é possível na medida em que se está diante de alguém que foi tomado por uma potência superior e utiliza esse poder em favor dos que o procuram.

Foi van der Leeuw (1992) quem, na sua obra Fenomenologia da Religião, mostrou a dinâmica da potência na experiência religiosa. Nessa obra, ele descreve, compreende e interpreta as ações e os relacionamentos que se formam entre o homem e a potência religiosa. Segundo van der Leeuw, a religião define-se como este grande encontro entre o ser humano, na sua imanência, e alguma coisa que tem uma proveniência misteriosa. Trata-se do fenômeno religioso. Portanto, para van der Leeuw, em todas as religiões pode-se verificar esse fenômeno no qual “alguma coisa” vem ao encontro do homem. E esta “alguma coisa” permanece indeterminada exatamente porque assume uma determinação particular de acordo com as características próprias de cada religião. Contudo, esta “coisa” não será jamais conhecida pelo ser humano de maneira total, porque é exatamente “alguma coisa” que o transcende. É o encontro com “alguma coisa” que não deriva do ser humano e que não se pode reduzir em termos humanos. O grande desafio que assume van der Leeuw é o de mostrar que no fenômeno religioso, se nós o examinamos com atenção, aparece a relação entre um sujeito humano e um objeto que vem ao seu encontro e que é totalmente estranho, grande, misterioso. O homem encontra “alguma coisa” de extraordinário. Ele utiliza, como já se disse, a categoria de potência que, do ponto de vista humano e em senso religioso profundo, orienta a vida religiosa, de maneira que o homem se confia a quem é potente e que pode ajudá-lo nos dois níveis: seja no imanente, seja no da transcendência. As suas reflexões iluminam os dados expostos acima, bem como, oferecem quadros mais amplos para entender toda a ação de Stefanello. Segundo van der Leeuw, a experiência religiosa caracteriza-se pela busca de algo infinito, maior e potente que explique a vida:

A religião implica que o homem não se limite a aceitar a vida que lhe é dada. Na vida, ele procura potência. Se não a encontrar, ou a encontrar numa medida para ele insuficiente, ele tenta fazer penetrar em sua vida a potência na qual ele acredita, busca enaltecer sua vida, fazê-la crescer, conquistar um sentido mais profundo e amplo. Neste sentido, a religião é a ampliação da vida até o limite máximo. O homem religioso deseja uma vida mais rica, mais profunda, mais ampla, deseja potência (...). O homem que não somente aceita a vida, mas pede algo dela – a potência –, busca a totalidade significativa: assim nasce a civilização. Assim, o homem transforma a pedra numa estátua, o impulso em mandamento, a solidão da selva num campo. Desse modo, ele manifesta potência. Mas o homem não pára: persiste em buscar um sentido cada vez mais profundo e abrangente, cada vez mais além (1992, p. 536).

Na abordagem fenomenológica de van der Leeuw (1992), essa busca pela vida sacra, cheia de potência, é garantida ao homem pelo rito, no qual procura a própria salvação. Por meio do rito, o homem encontra um auxílio à sua fragilidade e suplica para que haja um acréscimo de força para a vida. Nos ritos de passagem – batismo, matrimônio, exorcismo – a vida é tocada por uma potência e volta-se para ela (3). A dinâmica é ir ao encontro de um poder que supere o próprio homem. O sacerdote, o curador, o taumaturgo e o rei, carregam essa potência e podem transmiti-la. Desse modo, a vida humana, na sua relação com a potência, não é, em principio, vida individual, é a vida da comunidade.

A potência de que fala van der Leeuw (1992) não se refere a algo sobrenatural, e sim a algo extraordinário, diverso. Se analisamos as religiões primitivas, perceberemos que as coisas mais simples têm uma potencialidade: uma pedra, uma cadeira, um cajado, etc. O mesmo dá-se com a água benta utilizada nas bênçãos para os doentes. É sinal contra as influências nefastas, preserva da ação do demônio, afasta fantasmas, sara as doenças, protege a entrada e a saída. Em síntese, a água potente ajuda o homem a superar o momento critico que vive, neutralizando a potência perturbadora (no caso, o demônio), assegurando um andamento tranqüilo da vida.

Além disso, a potência faz aparecer na alma humana um certo receio ou temor. Este produz certas reações, tais como o medo, o respeito, a humildade e tantas outras. A pessoa nem mesmo se atreve a falar do sujeito de tal poder ou chegar perto dele a fim de criar certa familiaridade. Para van der Leeuw (1992), não há religião sem medo, como não existe religião sem amor. O temor faz emergir na vida da pessoa o movimento de repulsa e, ao mesmo tempo, de atração.

Outro elemento não menos importante é a palavra daquele que representa essa potência. A potência impele a falar, e a palavra por ele pronunciada tem como conseqüência trazer a salvação. A palavra do padre cheio de poder, em Cascalho, é objeto de muita atenção. Por sua palavra e ação as coisas se transformam. A sua palavra ou mensagem é carregada de potência (4). No domínio dos poderes malignos, a palavra tem o poder de expulsar o espírito mal. Por fim, percebemos nitidamente a função de mediador que Stefanello exerce, garantindo assim o contato entre a potência e o homem. O mediador dá a própria vida neste trabalho. Todavia, o que não podemos determinar aqui é a intensidade da experiência vivida pelas pessoas no contato com Stefanello. Essa experiência é profundamente religiosa, é um acontecimento. Os fenômenos externos têm um elemento objetivo que podemos alcançar. Mas a experiência vivida não é inteiramente acessível. Se pensarmos, por exemplo, em Dona Vitória dizendo que Cascalho está linda porque o padre Stefanello zela ainda pelo lugar, estamos no nível de uma experiência pessoal que reconhece no padre um poder de tornar o lugar bonito, mas o que se mostra a nós é apenas uma parte opaca de um acontecimento ainda maior, de profundo significado para os moradores. Segundo van der Leeuw (1992): “a experiência religiosa vivida é de natureza escatológica, supera a si mesma (...), resta assim um resíduo, incompreensível como princípio, mas no qual a religião vê a condição para a sua própria compreensão” (p. 359).

 

O mal e a cura

Mas é necessário ainda refletir sobre o problema do mal. Por isso, parece importante considerar essa questão a partir das provocações que faz Ricoeur (1988), para quem o mal é antes de tudo uma problemática que diz respeito à liberdade humana. Ele diz respeito ao ser responsável. Por isso, o homem é chamado à missão de combater e enfrentar o mal. Para Ricoeur, a ordem da ação é aquela que impõe uma nova pergunta ao problema do mal, deslocando a preocupação do plano especulativo para o prático, no qual caberia a pergunta: “que fazer contra o mal?”. Diz Ricoeur:“pela ação, o mal é antes de tudo o que não deveria ser, mas deve ser combatido” (p. 48). O homem, portanto, tem uma tarefa frente ao mal: combatê-lo. Pode parecer que por meio disso o homem se esqueça de todo o sofrimento que o mal traz; contudo, o contrário é verdadeiro: ele se dá conta mais nitidamente que todo mal cometido a um ser humano é um mal que um outro sofre. Pela ação, o homem percebe o sofrimento, porém, ele entende que pode fazer diminuir o grau de violência e diminuir assim o sofrimento no mundo. Não se trata de evidenciar uma perfeição de uma ordem, com se apresenta em muitas filosofias, mas de mostrar que no humano há uma liberdade que combate e que subsiste mesmo diante das derrotas. A resposta prática, da ordem que chamamos ética, é na verdade de um âmbito diverso no qual o homem empreende um caminho de repulsa a um debate que reste apenas no plano especulativo. No nível ético aparecem as questões que vão desde a acusação de Deus até as interrogações sobre a origem demoníaca do mal no próprio Deus. Tal perspectiva prática nos faz perceber que há espaço de atuação ética e política no combate do mal.

Podemos exemplificar utilizando-nos de um relato feito pelo próprio Stefanello. Este é o único manuscrito em que Stefanello fala de sua forma de relacionar-se com o mal e, do seu combate e em que revela a busca por entender de onde vem o mal. Esta pergunta faz com que ele busque respostas. A carta é endereçada ao Padre Faustino Consoni, Superior Provincial dos Padres Escalabrinianos, datada de 22 de março de 1916, no quinto ano de sua estadia em Cascalho:

Caríssimo Pe. Faustino,

Fiquei muito contente com a sua tão esperada carta. Há pouco tempo aconteceu o fato, me chamaram e imediatamente percebi que era de duvidar, mas a coisa, ao contrário era. Revelaram-se coisas que eu nunca havia pensado, por exemplo, que um tal há roubado e como fez e porque, quem ficou e como fizeram para fazer o mal e tantas outras coisas de não se dizer. Diante disto chamei o Pe. Enrico que veio e imediatamente disse que era possuído pelo demônio, então eu deveria ir ao Bispo lhe contar tudo, para que me desse a permissão, e também a Vossa Revma. e ao Pe. Enrico, que vem terça-feira, que esperava Vossa Revma. começar às duas e o Pe. Enrico que ficou até as três, me disse para continuar e que fizesse até as oito. Fez tantos movimentos e gritos de fino assobio que eu quase não podia resistir, mas com confiança no crucifixo continuei por seis horas, fazendo sempre aqueles sinais como indicados no ritual, todavia ficou mais quieto, porém esta manhã não queria vir a Igreja, fugiram da casa e pela estrada quase o pegaram. Caríssimo Padre Faustino, eu rezo ao Senhor dia e noite e procuro que todos rezem, talvez seja como o Senhor que, para expulsar certos demônios, é preciso a oração e o jejum, por isso me recomendo às suas orações e faça rezar. Seguro desta tão grande caridade, o agradeço, não sei mais o que lhe dizer. Receba minhas saudações e com toda a estima e humildade lhe beijo a sagrada mão e (...) humilde filho,

Pe. Luis Stefanello” (Doc. 403, do Arquivo Geral da Congregação Escalabriniana).

Nesse relato alguns elementos merecem destaque. Aqui temos um dos primeiros casos com que se defronta Stefanello. Ele está diante de uma situação nova. Por isso, o padre pede ajuda a um outro sacerdote amigo, para que possa discernir do que se tratava. O padre amigo sugere ser um caso típico de possessão demoníaca (5), além disso, pede que ele consulte o bispo a fim de que possa certificar-se de que seja mesmo um caso de exorcismo (6). O bispo dá a concessão a outros sacerdotes que estão próximos a Stefanello para que realizem o exorcismo. A luta contra o mal não é uma batalha que se enfrenta solitariamente, mas é um compromisso que se assume com toda a Igreja. A Igreja toda sente-se convocada a combater o mal e, por isso, é uma ação comunitária.

A carta indica que o padre faz uso de algum objeto, tal como o crucifixo,  além disso utilizou algumas orações que estavam indicadas no Ritual. No que diz respeito à descrição do sujeito que estava sendo exorcizado, vemos a menção de que fazia diversos “movimentos e gritos”. Na carta, porém, não encontramos a menção de nenhum tipo de doença. Há indicações de que o fenômeno deveria ser tratado como uma possessão do espírito do mal sobre a pessoa.

Esta carta, por outro lado, ajuda a perceber o quanto Stefanello estava interessado em aprender o método para combater o mal. Certamente ele é movido por um desejo de bem. O bem é justamente a necessidade de sair de si-mesmo direcionando nossa energia para um outro diverso de nós. Stefanello não mede esforços para compreender o fenômeno. Reconhece que precisa de ajuda e pede conselhos, indicando que sua resposta frente ao mal é dada dentro de um contexto maior: o contexto da comunidade a que pertence.

O documento apresentado converge com o que foi dito pelas entrevistas e nos dá o sinal da atividade exorcística de Stefanello. Essa carta apresenta-nos sua procura para agir eticamente contra o mal, movido por um desejo do que fazer contra ele. A atividade de Stefanello vai ser sinal de uma luta contra as forças sobrenaturais, e isto vai representar para a comunidade e para os que o procuram uma oportunidade para a libertação e a cura. O povo de Cascalho e, sobretudo, os que vêm de fora à procura de sua bênção, passam a reconhecer que, por meio daquele gesto ritual, uma outra realidade chega a se instaurar na sua vida: a realidade da saúde, a cura, a resposta para o mal.

A pergunta já não é “de onde vem o mal?”, mas passa para outro nível, que Ricoeur (1988) chama do “nível da ação prática”. O que se pode fazer para diminuir a taxa de sofrimento? Só pela ação. É o agir responsável que faz diminuir as violências no mundo e transformar os homens em protagonistas da história. Neste nível é que Stefanello atua. Em Cascalho, as histórias que o povo conta são as mais diversas: pessoas acorrentadas, outras que subiam pelas paredes do templo, outras ainda que rastejavam, outras que gritavam, doentes de todos os tipos e uma diversidade de casos que atingem singularmente cada família que se põe a relatar. Para o padre Stefanello, é o demônio o autor de todo esse mal, por isso, como recomenda a Igreja é preciso exorcizá-lo, entrar em combate.

O homem não pode viver sem suas construções simbólicas. Ele sente-se fragilizado quando não encontra os referenciais de apoio. O mundo humano é frágil, e qualquer acontecimento que coloque em xeque sua unidade é motivo de angústia e torna intolerável o caminho. O mal e a morte parecem ser um único elemento, que coloca o homem em crise frente a seu projeto existencial. Por isso, são necessários processos de legitimação que passam sobretudo e principalmente pela religião. O processo ritual para exorcizar o mal aparece como uma forma de dominar o caos e, portanto, de reduzir a impotência do ser humano.

Segundo nos dizem os moradores de Cascalho, o padre Stefanello tinha consciência de que mal nenhum tem o poder de mando. O mal não manda. O que conta, de fato, é o desejo de salvar a pessoa. Um exemplo disso é o caso que mostramos aqui, do Alexandre, que o padre trouxe para morar com ele e que tinha muitos problemas de saúde. O padre coloca esse doente – que ele acreditava estar possuído pelo demônio – na sua própria casa. Muitos o criticam por esse gesto, ao que Stefanello respondia: “-Vocês não tem dó de ninguém. Eu quero salvar. É o demônio que manda no cristão? Eu quero salvar essa pessoa” (Sr. Paulo). A qualidade de bondade e a capacidade de sacrifício que se reconhecem em Stefanello têm uma função terapêutica, uma vez que “a bondade funciona como um pólo do sagrado que, por si só, mantem afastado o seu pólo oposto: a maldade” (Quintana, 1999, p. 176).

O caso do Alexandre é curioso e paradigmático, desde o fato de morar com o padre até a controvérsia sobre sua doença. Todos os entrevistados falam do Alexandre. Alguns preferem dizer que se tratava de um epilético. Outros – a maioria – aceitam aquilo que o padre dizia: que era um espírito maligno que prejudicava a vida desse moço. Interessa-nos mostrar como, na perspectiva dos moradores de Cascalho, o gesto de acolhida e a tentativa de ser uma resposta para o caso foi decisivo para Stefanello.

Qual era o mal que acometia o Alexandre? Para o Sr. Fausto Stefanello – sobrinho do padre Luis – tratava-se de uma doença, mas o padre insistia em considerar como espírito maligno:

Esse moço que tava lá junto com ele, um tal de Alexandre, que falam que ele tinha o diabo. Não tinha o diabo, não. Era epilético. Era doente da cabeça. Era doente. Era epilético. E o padre pegou ele pra tratar dele: “-Não, eu vou curar, eu vou curar ele, eu vou curar ele”.

O que é certo para o sobrinho do padre é a vontade deste de curar, a determinação em querer oferecer a cura. Porém, se de um lado há uma clara percepção de que o estado atual do Alexandre é de uma doença, por outro lado, a forma como se conta a origem dessa doença é bastante próxima de um castigo por haver desrespeitado uma cerimônia religiosa. É o Sr. Fausto que nos conta:

Não sei como foi descoberto. Esse tal de Alexandre, lá na terra dele, lá, pra lá de Águas de Santa Bárbara, lá em Avaré... teve uma procissão lá, festa de Santo Antonio, tinha umas par de rapaziada e ele também. Então, ele pegou e atravessou a procissão a cavalo. Cortou a procissão a cavalo e foi embora. Isso foi o que aconteceu. Certo? E ele daquela vez pra cá ficou ruim, ficou ruim, e esse pai desse Alexandre e a mãe, e vai pra aqui e vai pra lá. E então, descobriram desse padre Luis, que fazia a bênção, foram e foram que vieram aí. A primeira vez deu a bênção, e foram embora. Depois, na segunda vez, daí um tempo e voltaram outra vez. Foi onde que ele falou: “-Deixa ele aqui, porque eu vou dar a bênção, vou tratar e vou curar ele”. Bom, não curou, não.

Mas a insistência de Stefanello por trazer um doente para perto e tratar pessoalmente dele, relatado pelos entrevistados, não pode ser vista apenas como um gesto de bondade, ou como uma atitude voluntarista. O “coração de ouro” de Stefanello não elimina o fato dele considerar atentamente as regras indicadas pelo Ritual Romano (1880). Neste encontramos que, nos casos de possessão, o exorcista deve acompanhar o fiel, a fim de se certificar de que está realmente livre, porque o demônio é o pai da mentira, e costuma proporcionar a aparência de cura e libertação, mas depois de algum tempo as crises retornam. O gesto de Stefanello pode ser entendido dentro do contexto da sétima regra do ritual (7), que diz:

Às vezes também, os demônios podem apresentar alguns obstáculos para que o enfermo não se submeta aos exorcismos, ou tentam persuadir que a enfermidade é natural; para tanto, fazem o enfermo dormir durante o exorcismo e apresentam-lhe alguma visão, ocultando-se, para que o enfermo se sinta libertado (1880, p. 322).

Por outro lado, é possível considerar as semelhanças da terapêutica exorcística com outros tipos de terapia que põem o acento na relação paciente-analista, o doente e o médico, o possesso e o exorcista. Assim, o cirurgião, o psicanalista e o exorcista, procuram de alguma forma, por meio do relacionamento próximo com o paciente, extrair o mal que o aflige. No estudo que faz Ellenberger (1994) sobre a história da psiquiatria vem sublinhado claramente como na prática exorcística há o esforço da extração do espírito que passou a habitar a pessoa, e vem indicado a parentela desta forma de “cura primitiva” com a moderna terapia dinâmica e científica (p. 55). Quintana (1999) nos diz que esta ação (do psicanalista, do exorcista) é do mesmo teor das benzedeiras: elas procuram recuperar uma ordem, reconstruir um sentido através do qual o cliente adquire condições de pensar e, assim, o paciente, em interação com o terapeuta, aprende uma linguagem e, com ela, a possibilidade de representar aquilo que lhe está acontecendo. Mas, sobretudo, quando se tem diante de si uma existência psicótica (depressiva ou dissociativa), é necessário que se possa testemunhar – como mostramos com Stefanello – uma capacidade humana de acolhida que passa pela fronteira da amizade. Segundo o juízo que dá o psiquiatra italiano Eugenio Borgna (2003):

Escutar uma pessoa, saber escutá-la com uma radical disponibilidade humana, significa em alguns casos curá-la. Muitos agressivos problemas psicológicos e psicopatológicos estabilizam-se, e chegam a extinguir-se, se antes de qualquer outra coisa, consegue-se tomar consciência e escutar as pessoas. Quando V. E. von Gebsattel, este grande psiquiatra alemão de intuições fulminantes, defende que não se dá relação terapêutica e nem diagnóstica, em psiquiatria, que não seja precedida de uma simples e imediata vizinhança entre médico e paciente, no fundo não faz senão re-sublinhar a necessidade de vir ao encontro de cada paciente na esteira de uma atitude de acolhida e, de certo modo, de amizade (p. 176).

Segundo o depoimento do Sr. Fausto, o padre não teria conseguido curar o Alexandre. Todavia, assumindo a responsabilidade da vida dele sobre si e procurando proporcionar um ambiente em que sua doença pudesse se manifestar, Stefanello oferece um espaço verdadeiramente terapêutico para ele. Os pais do Alexandre, ao procurarem o padre, estavam buscando a cura, alguém que pudesse tirar o mal que ele adquiriu a partir daquele dia em que, num gesto de desrespeito, atravessou a cavalo a procissão de Santo Antônio. O que, na verdade, o Alexandre encontra é alguém que se tornou um verdadeiro pai, protetor e amigo. Muitos nos relatam que o Alexandre tinha crises violentas e por diversas vezes chegou a agredir o padre, mas este não o despedia, ao contrário, colocava-se na defesa do Alexandre e, por vezes, reagia contra aqueles que o maltratassem. Enfim, estes exemplos parecem suficientes para esclarecer a modalidade pela qual se combate o mal em Cascalho.

O mal, conforme o pensamento de Ricoeur (1988), para ser entendido, exige a convergência de pensamento, a ação e a transformação espiritual dos sentimentos. Esta última é o plano da lamentação e da queixa, é o do protesto contra a idéia da permissão divina. Aqui, a pergunta diante do mal é a seguinte: até quando, Senhor? Contudo, é na convergência de perguntas que nascem no plano emocional e dos caminhos que encontramos a nível prático que se cria o espaço para novas significações. Um espaço que se traduz como uma procura de sentido.

Verificando o livro do tombo da paróquia de Cascalho e observando os relatórios das atividades anuais, notamos como era intensa a atividade em torno das pessoas doentes e mais idosas da comunidade. De outra parte, nas entrevistas transparece o zelo com que o padre tratava alguém da família que estava doente. A seguir, o relato de Dona Yolanda, mostra como que, para Stefanello, a dor – que significa sentir, sofrer junto - está muito presente frente ao mal:

Esse meu irmão mais velho, ele teve um problema de coração. Antigamente não tinha a medicina, não tinha a experiência que tem hoje. E ele ficou doente. Eu morava em Cascalho, mas ele morava lá na fazenda. E um dia o padre falou pro Antonio: “-Vamos visitar o Arlindo, seu cunhado”. O Antonio falou:“-Vamos”. E eu fui também, e passamos o dia lá, com o padre e meu irmão que já tava bem ruinzinho. E depois, quando nós vinha vindo de volta, o padre falou assim: “-Por que Deus não me tira eu em vez de tirar essa criatura?”. E eu gravei aquilo, sabe? Que achou que, por ele ser jovem, ele tinha vinte e seis anos, morreu jovem, jovem de tudo. E o padre falou: “-Por que Deus não me tira eu, em vez de tirar essa criatura?”. É, ele gostava muito dos meus irmãos, viu.

A frase: “Por que Deus não me tira eu, em vez de tirar essa criatura?”, ficou gravada para Dona Yolanda como manifestação do oferecimento de Stefanello em favor do doente. A lamentação e a queixa diante da doença, da dor e da morte, provocam o ordenamento da situação. Essa frase do padre não foi mais esquecida pela irmã do Sr. Arlindo. A doença aqui é re-significada, porque se expandiu numa queixa contra Deus, tal como encontramos no grito do salmista: “Até quando, Senhor?”.

Este último plano, do qual fala Ricoeur (1988), é o do sentimento. Nesse, o homem é levado a dar uma nova significação ao problema do mal que o atinge pessoalmente. O autor propõe a re-significação do mal como algo inelutável da condição humana. A lamentação e a queixa frente ao mal podem também, tal como o exercício de desligamento do trabalho de luto, ser re-significadas. Esse trabalho, que visa uma mudança qualitativa da lamentação e da queixa, permite que o pensar, o agir e o sentir, possam ser integrados. O primeiro desses estágios é o da afirmação da existência do acaso no mundo e o de que o mal não é uma punição a nenhum pecado do homem. O segundo estágio é mesmo o da acusação de Deus, deixando emergir a queixa: “Até quando, Senhor?”. Este “até quando?” mostra a dramaticidade do problema do mal para cada pessoa. O terceiro e último estágio apontado por Ricoeur é o de “descobrir que as razões de acreditar em Deus nada têm em comum com a necessidade de explicar a origem do sofrimento” (1988, p. 51), porque, para quem crê em Deus como fonte de todo o bem, o sofrimento é algo escandaloso e inclui a vontade e a coragem de suportá-lo. Por isso, o trabalho de luto diz-nos que é preciso acreditar em Deus, apesar de. Esse “apesar de” é caminho de superação da revolta que se instala no humano contra o Deus bondoso e faz entender, pela chamada teologia da cruz, que Deus também sofre. O homem sofre, mas Deus junto com ele. Há uma solidariedade. Todos esses estágios dizem-nos que a ordem do sentir é a da transmutação, da nova significação frente ao irredutível sofrimento da condição humana.

A questão do mal, como vemos, é bastante complexa. E pensá-la dentro do contexto da cultura popular é ainda mais exigente. Tudo o que foi dito acima ilumina parcialmente os dados apresentados neste artigo, mas é necessário prestar atenção no fato de que não se trata só das formas encontradas pelo exorcista para responder, pelo seu comportamento e agir, ao problema do mal. É preciso colher as imagens que o povo utiliza para falar do mal. Então, deparamo-nos com uma concepção do mal muito mais como entidade, do que com uma concepção tal como aparece no pensamento de Ricoeur, orientada por preocupações de um combate ao mal e de reorientação da vida.  O mal tende a ter personalidade, tende a ser visto como uma entidade exterior e não como uma questão internalizada de responsabilidade moral, como uma questão de ética. O que é claro é que a temática do mal é mais ampla do que a ética, fazendo, no entanto, parte dela. No caso de Cascalho isso é bem evidente: não é possível pensar o bem sem mostrar o mal. Inclusive, o padre Stefanello diz que construiu a igreja com o dinheiro do diabo. O interessante é notar como, por meio de toda uma simbologia construída em torno do diabo, revela-se o funcionamento e expressam-se as reações de toda a comunidade de Cascalho.

No relato bíblico do pecado de Adão, por exemplo, está evidenciado o mito antropológico por excelência. Nesse mito, o mal aparece relacionado com o homem. Nele se narra o surgimento, no seio de uma criação boa, daquela constituição má que faz o homem perder o paraíso. É no espaço de liberdade que existe entre Deus e o homem que se situa a ação do demônio, que é o anjo decaído. Este mito antropológico, segundo Ricoeur (1960), mostra que o único homem, num único instante e num único ato, instaura o acontecimento da queda. A má escolha e a desobediência do primeiro homem são também mito da tentação, da vertigem e da atração pelo mal. Esse mito introduz, por exemplo, a figura da serpente, que é a que tem a função de seduzir e atrair o homem. Com a figura da serpente, pode-se compreender que o mal não tenha começado pelo homem, mas que este o encontre: a serpente é o outro do mal humano. O mal exterioriza-se, e tem uma fisionomia inumana. Ricoeur insiste em pensar neste símbolo da serpente porque ela nos indica que o mal é o ceder, isto é, cair nas malhas do sedutor. Tal como afirmou o Papa Paulo VI na audiência geral de 15 de novembro de 1972:

O mal não é mais somente uma deficiência, mas uma eficiência, um ser vivo, espiritual, pervertido e perversor. Terrível realidade. Misteriosa e temerosa. Sai do quadro do ensinamento bíblico e eclesiástico quem se recusa reconhecê-la existente (1972, p. 1169).

A vida cristã, por sua natureza, possui essa dimensão de luta tal como aqui descrita. Para demonstrar a vivacidade dessa dramática batalha, encontramos em Santo Agostinho a descrição das duas cidades, em Santo Inácio de Loyola a famosa meditação sobre as duas bandeiras que, no fundo, nos indicam que a salvação do homem e a vitória sobre o mal não são automáticas, mas relacionam-se com o movimento da liberdade do ser humano. Do ponto de vista teológico, trata-se de uma abertura à confiança Naquele que venceu, pelo poder da sua morte em cruz, o poder demoníaco. O que nos ensina a comunidade de Cascalho, tal como recebeu do Pe. Stefanello, é que a sedução do mal se vence na atenção aos gestos cotidianos: pertença fiel à comunidade eclesial, a celebração dos sacramentos, a oração, a caridade operosa e a atenção ao sofrimento dos outros.

 

Ressonâncias

Deve-se dizer que a pesquisa desenvolvida na comunidade de Cascalho a partir do ano de 1999 e levada a cabo em 2001, continua suscitando um movimento muito interessante por parte dos moradores que, pela primeira vez, tem acesso a uma publicação a respeito do próprio lugar e, do personagem padre Luis, e puderam, por meio do método da história oral, contar as suas próprias histórias de vida e os costumes do lugar. Aqui quer-se mostrar quais são as ressonâncias do trabalho com a memória. O que se vê é a elaboração de significados que mobilizam a vida das pessoas, um processo que agora vai por conta própria e, está em função da vida do próprio grupo.

Um primeiro aspecto surpreendente e que representou uma conquista para a comunidade: foi a possibilidade de trazer uma relíquia, parte do corpo do padre Luis Stefanello, para a igreja de Cascalho. A pesquisa revelou a luta que os cascalhenses e a família de Stefanello tiveram de enfrentar junto à justiça para trazer os restos mortais do padre de Águas de Santa Bárbara para Cascalho. O padre Stefanello deixou Cascalho no ano de 1953 e, veio a falecer em Águas de Santa Bárbara em 1964, onde também deixou suas marcas como exorcista, sendo ali considerado um verdadeiro “padre Cícero” do oeste paulista.  A batalha judicial nos anos setentas foi perdida. Mas, graças sobretudo ao movimento que a pesquisa foi suscitando, surgiu a idéia de fazer o pedido ao pároco de Águas de Santa Bárbara para poder trazer, senão todo o corpo do padre, ao menos uma parte dele. Havendo comunicado a resolução ao bispo local e colocando-se em acordo com a comunidade de Cascalho, o referido pároco respondeu positivamente ao pedido, reconhecendo a importância da memória do padre Stefanello, que por 42 anos viveu em Cascalho, e do quanto era significativo para a comunidade manter ao menos um pequeno sinal dessa presença: deu seu aval ao pedido que a comunidade fez de trasladar o braço direito do padre para a paróquia de Cascalho, município de Cordeirópolis. Mas a escolha de trazer o braço direito não é aleatória. O braço direito é aquele que abençoava, que expulsava o demônio, era, enfim, trazer o braço poderoso para Cascalho. A comunidade celebrou solenemente esse evento. A comunidade de águas de Santa Bárbara veio em romaria à Cascalho para prestar sua homenagem. No altar lateral da Igreja, dedicado ao Sagrado Coração de Jesus, foi deposta a urna, e desde aquela ocasião os fiéis mantêm ali suas velas acessas, param para rezar e fazer seus pedidos. É causa de admiração a forma como os mais velhos relacionam os acontecimentos de hoje a essa presença de Stefanello. Prestemos atenção àquilo que diz o Sr. Paulo, numa recente entrevista, realizada no dia 15 de agosto de 2003, portanto, durante a festa da padroeira de Cascalho, Nossa Senhora da Assunção, ocasião em que o bairro recebe tantos fiéis e peregrinos. Depois de terminada a missa solene, pergunto ao Sr. Paulo o que estava acontecendo, e me responde:

O senhor não viu? Eu já falei hoje cedo. O lugar mais bonito do que esse que nós vimos hoje aqui, só no céu. Essa palavra eu já falei umas duas ou três vezes.

O mais curioso é que a Assunção é a festa na qual se celebra a entronização de Nossa Senhora, de corpo e alma no céu. Essa sintonia da resposta do Sr. Paulo indica que ele estava vivendo plenamente o rito e a festa. O céu não é lugar distante, mas se vive e se vê aqui: neste lugar bonito que é Cascalho no dia da festa da sua padroeira. Devemos considerar que a jornada da festa da padroeira começa cedo em Cascalho. O Sr. Paulo, nosso entrevistado, estava participando de todos os eventos programados para esse dia. Quando na primeira missa matinal perguntei o que estava acontecendo ele, com uma só palavra, respondeu-me: “o céu”. No final da jornada, depois da procissão, missa e coroação de Nossa Senhora, volto a interrogar o Sr. Paulo e obtenho a resposta de que aquela jornada é viver o céu no nosso hoje. Mas, ao ver tanta gente na festa, o Sr. Paulo faz algumas conexões entre presente, passado e futuro que são interessantes acompanhar:

E aqui agora eu não sei o que vai acontecer no Cascalho. Tá enchendo de casa. Tudo as ruas tem casa. Primeiro não tinha nada. E estão fazendo cada coisa com esse padre Luis Botteon aqui (...). O que tá acontecendo aqui eu até admiro. Eu que moro aqui até admiro. Ele (o atual pároco) chama padres de todos os lados, aqui vem bispo, vem tudo. Bom, o padre Luis Stefanello também foi baluarte. Foi uma pena que ele saiu daqui, mas o braço dele tá ai (se referindo ao altar do Sagrado Coração de Jesus onde está depositado os restos de Stefanello).

Para o Sr. Paulo, dois padres representam uma coluna para a comunidade – o padre Luis Botteon, que no tempo presente está realizando uma obra extraordinária, e também o padre Luis Stefanello, que foi baluarte, mas que continua presente, pois seu braço direito está agora na igreja que ele mesmo construiu.

Em segundo lugar, devemos considerar o movimento de conservação e preservação da história local. É importante constatar o quanto as denominadas “festas italianas” se tem tornado evento comum no interior do Estado de São Paulo. Contudo, em determinados lugares, como por exemplo em Cascalho, tais eventos têm produzido um movimento de interesse e desejo de conhecer as raízes familiares. A paróquia de Cascalho tem levado adiante uma proposta de resgate desses elementos, e junto com o fator religioso, com toda a sua articulada estruturação no campo micro-social (mundo da família, das relações pessoais) continua a ser, nas suas várias manifestações, ”topos” fundamental para tantas pessoas poderem reencontrar e afirmar a sua identidade. No ano de 2003, por exemplo, no qual a comunidade celebrava os 110 anos da chegada dos imigrantes italianos, fixou-se uma programação na qual foram possíveis realizar o encontro de todas as famílias do bairro. As famílias foram divididas em 4 grupos (composto de 16 a 18 nomes de famílias), que se reuniram durante o ano de 2003. Nessa ocasião puderam expor sua história, trocar informações, estar juntos com os parentes próximos e distantes. Mas o que precisa ser destacado é a preocupação com a coleta de material e documentos dessas famílias todas. O convite para a festa das famílias comportava, portanto, um convite a disponibilizar: fotos, documentos, objetos que estivessem ligados ao passado familiar. A idéia fundamental é manter um banco de dados na Paróquia referentes a todas essas famílias. Vale a pena destacar alguns aspectos que tornam aquela “simples festa” um evento de construção de significados, em que participar da festa comporta um trabalho de escavo nas raízes familiares. A atmosfera da festa é de perguntas, de surpresas, de encontros, de descobertas de familiares e de curiosidade que vai contagiando as diversas gerações ali presentes. A praça da igreja, nos quatro encontros promovidos, era um verdadeiro laboratório de pesquisa: exposição das genealogias de famílias; fotos antigas e recentes dos grupos familiares; posto de cadastramento das pessoas e um grupo especializado em informática que tratava de recolher os documentos, fotografar e cadastrar os participantes. Quando penso na praça de Cascalho por ocasião desses eventos, vem-me a tentação de qualificá-la de praça da história e da memória. Ouçamos o testemunho daqueles que participaram:

O Cascalho melhorou um 150%. É uma maravilha aqui agora. Esse ano, todo o mês uma festa. Reunião de famílias. Este ano tem mais dois grupos ainda. Nós vamos terminar o ano com festa. Festa!!! Graças a Deus. Quando esse padre Luis Botteon veio aqui... veio do céu. E não duvido (pausa): foi mandado. Foi mandado aqui. Isso eu falo a verdade, fazer o que ele fez, o que está fazendo e que faz agora em pouco tempo? (Sr. Fausto).

Para o Sr. Fausto, o trabalho que realiza o atual vigário de Cascalho só é possível ser compreendido na dinâmica do “mistério” no qual está envolvida toda a comunidade. O Sr. Fausto ama chamar Stefanello de “abençoado padre”, enquanto ao atual dá a qualificação de “enviado”. Foi mandado ali mas para quê? Talvez para realizar uma obra em continuidade com a obra de Stefanello e, assim, Cascalho vai melhorando cada vez mais.

O juízo que dá o Sr. Geraldo Picollini a respeito das reuniões de família nos parece bastante lúcido. No fundo, o que transparece é a preocupação pela família. Aqui o Sr. Geraldo fala da importância do encontro entre as gerações:

Eu tô achando muito bom, mesmo de verdade. Pelo seguinte: eu já falei com vários parentes e alguns não puderam vir e outros não tem muita vontade. E eu falei: “-vocês estão perdendo uma oportunidade tremenda, porque depois dessa nós podemos ter a despedida. Aquela é um pouco mais triste, mas não vamos morrer, vamos viver”. E então eu falei: “-vamos nessa aí, porque encontramos pessoas de segundo, terceiro, quarto grau e vocês se conhecem, e isso é bonito”. Porque podemos ter a diminuição do sangue no corpo da pessoa, mas o nome não vai parar”. (Sr. Geraldo).

O laço familiar, desse modo, ao lado daquilo que referia o Sr. Geraldo Picollini sobre o significado da cadeia de gerações, começa a produzir um novo sentido para a própria realidade individual. Um sentido que abre o horizonte contra a tendência individualista do homem pós-moderno. Tal percepção de que a história não nasce nem termina com o próprio si mesmo, mas nos precede e nos supera, é fundamental em uma sociedade na qual as diversas modificações sociais, políticas e econômicas estão produzindo uma transformação substancial no que diz respeito à situação geracional. Podemos falar de uma perda de identidade ou crise da própria ascendência. As famílias tendem a não fazer mais memória histórica, o que produz graves danos no nível que tange às biografias individuais e, conseqüentemente, à vida da sociedade. Por isso, parece-nos fundamental sublinhar o que vem ocorrendo hoje em Cascalho como conseqüência de uma retomada da biografia do padre Stefanello e, junto dele, das histórias dos grupos familiares.

É evidente o movimento que se está provocando, e que nasce em uma comunidade que quer manter vivo os aspectos da própria identidade cultural. Conforme indicamos em nossa dissertação de mestrado (2001), defendida na Universidade de São Paulo sobre “As bênçãos e a prática de exorcismos na paróquia de Cascalho”, na qual se afirmava que os gestos e as realizações em Cascalho são pensados de maneira educativa. Desse modo, quando se propõe uma festa ao redor do coreto e se convida a banda, é para reviver algo que acontecia de fato ali, nos tempos em que o Pe. Stefanello organizava a banda para tocar no coreto a fim de que as pessoas pudessem estar juntas nas noites de sábado e domingo. Ou ainda: quando recentemente se propôs a construção do clube de esportes, foi lembrado aquilo que o próprio Stefanello pensava a respeito de manter e fazer com que o povo possa se divertir sadiamente no próprio ambiente que vive. Assim, o que se vê é que a memória desse “padre poderoso” possibilita à comunidade um contínuo repensar dos gestos e obras que se devem realizar no presente. Assim, as festas das famílias e a preocupação com manter e recolher os documentos, de registrar bem os eventos e,   com o cultivar a escuta dos mais velhos por meio de registros áudios-visuais, nascem a partir da divulgação de nosso trabalho no seio desta comunidade. Certamente trata-se de um marco divisor, sobretudo, no modo com o qual a Paróquia, as pessoas individualmente e as famílias de Cascalho – e oriundas dali - passaram a lidar com as recordações e a dar atenção à voz dos mais velhos, bem como, a valorizar a documentação de que dispunham.

Estes são apenas dois elementos que assinalamos do que um trabalho com a memória pode produzir no interior de certas comunidades. O pesquisador não pode deixar de colher as ressonâncias do seu trabalho quando esse se refere aos elementos estruturantes da comunidade, tal como foi expresso, pelos moradores de Cascalho na experiência religiosa em torno ao Pe. Luis Stefanello.

 

Conclusão

É graças a essa câmara vasta e infinita da memória que se efetiva um processo de contato entre o presente e o passado. Por um lado, como diz Mahfoud (2003) retomando as contribuições de Halbwachs, a memória é reconhecimento, porque traz o “sentimento do já visto” e é reconstrução, porque faz um resgate dos acontecimentos passados no quadro das preocupações e interesses atuais (p. 134). O trabalho da memória, portanto, coloca-me diante de uma dependência antecedente: “eu posso porque dependo da herança”. O que dá consistência ao meu próprio existir é a consciência de que dependo de meu grupo, dos elementos da tradição, de que tenho uma hipótese inicial para o trabalho. É a memória coletiva, nas suas funções, que, de um lado, assegura a continuidade temporal permitindo ao sujeito deslocar-se sob o eixo do tempo e, por outro, possibilita o próprio reconhecimento de si.

O trabalho da memória converge com o da história, uma vez que esta busca reconstruir e reconstituir os elos entre o passado e o presente, através da distância histórica. Pelos testemunhos das pessoas que conviveram diretamente com o padre Stefanello e pelo movimento de transmissão dos acontecimentos, quando se dá ouvido aos relatos, notamos uma nítida tensão entre a experiência do passado transmitida e o presente. Esse seria o movimento próprio e vivo daquilo que chamamos de “tradição”, que vem a ser uma busca constante de encontrar e atualizar a experiência de significado do mundo. Por isso, o trabalho com os relatos da memória é bastante enriquecedor. O movimento de ir entrevistar e sentar-se ao pé de outros para ouvir, cumpre uma finalidade social essencial, que é devolver às pessoas que fizeram e vivenciaram a história um lugar fundamental, mediante suas próprias palavras. Segundo Thompson (1992, p. 42), todas as vidas são interessantes, e a partir da abordagem oral, temos a possibilidade de ouvir a voz humana, viva e pessoal, que faz o passado surgir no presente de maneira imediata. Por outro lado, torna-se claro o tema da responsabilidade histórica, tendo como perigo permanente o fato de que, se não fazemos a história, cada vez mais perdemos a ocasião de sermos feitos por ela. Assim, ser responsável pelo passado recebido é torná-lo gerador de novos sentidos. A necessidade de recolher os documentos, objetos, fotos, cartas, e conservá-los, passa a criar na vida da comunidade um horizonte de expectativa. Isso significa que em Cascalho se vai compreendendo que o mal é esquecer, e trazer vida ao passado significa dar esperanças para o futuro. Assim, ao exorcizar o mal, esta comunidade abre-se cada vez mais às bençãos do presente.

 

Referências Bibliográficas

Fontes Primárias

Stefanello, L. (1916). Carta: documento 403. Arquivo Geral da Congregação Escalabriniana, Roma, Itália.

Livro do tombo (1904-1983). Arquivo da Paróquia de Nossa Senhora da Assunção, Cascalho, Município de Cordeirópolis, São Paulo.

 

Fontes Secundárias

Azzi, R. (1987). A Igreja e os Migrantes: a imigração italiana e os primórdios da obra escalabriniana no Brasil. v. I. São Paulo: Paulinas.

Borgna, E. (2003). Le intermittenze del cuore. Feltrinelli: Milano.

Ellenberger, H. F. (1976). La scoperta dell’inconscio: storia della psichiatria dinamica. Boringhieri: Torino.

Fernandes, M. L. (2001). As bênçãos e a prática de exorcismos na primeira metade do século XX na paróquia de Cascalho. Tese (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Ciências de Letras – Departamento de Psicologia e Educação da USP- Ribeirão Preto.

Florenskij, P. (2001). Il valore magico della parola.(G. Lingua, Trad. It) Medusa: Milano (Publicacao original dos manuscritos de 1920).

Mahfoud, M. (2003). Folia de Reis, festa raiz: psicologia e experiência religiosa na Estação Ecológica Juréia-Itatins. São Paulo: Companhia Ilimitada; Campinas: Centro de Memória da Unicamp.

Paolo VI (1973). Liberaci dal male. Insegnamenti di Paolo VI, 10, 1168-1173 (original de 1972).

Quintana, A. M. (1999). A ciência da benzedura: mau olhado, simpatias e uma pitada de psicanálise. Bauru, SP: Edusc.

Ricoeur, P. (1988). O mal: desafio à filosofia e à teologia. (M.P. Eça de Almeida, Trad.). Campinas: Papirus.

Ricoeur, P. (1960). Philosophie de la volonté, finitude et culpabilité: la Symbolique du mal. v. 2, tomo 2. Aubier: Paris.

Rizzardo, R. (1974). João Batista Scalabrini. Petrópolis, RJ: Vozes.

Rituale Romamun (1880). Editio prima, Roma: Augustae Taurinorum.

Thompson, P. (1992). A voz do passado: história oral. (L. L. Oliveira, Trad.). Rio de Janeiro: Paz e Terra. (Publicação original de 1978)

Van der Leeuw, G. (1992). Fenomenologia della religione.(V. Vacca, Trad.). Torino: Bollati Boringhieri. (Publicação original de 1933).

 

Notas
(1)
As relações de abertura da comunidade de Cascalho – tipicamente marcada pelos italianos – com outros elementos que não faziam parte de sua cultura, encontraram no Pe. Stefanello um veiculo facilitador, pois com suas bênçãos ele atraía peregrinos de todas as partes do país, que passavam a conviver com os italianos de Cascalho. A idéia de diálogo com os elementos culturais brasileiros é, segundo estudo realizado por Azzi (1987), uma característica das colônias italianas no Estado de São Paulo, que difere da forma como se organizaram as colônias do Paraná e Rio Grande do Sul, onde diversos fatores colaboraram para que se formassem “guetos culturais”. (volta).

(2)Aliqui ostendunt factum maleficium, et a quibus sit factum, et modum ad illud dissipandum: sed caveat, ne ob hoc ad magos, vel ad sagas, vel ad alios, quam ad Ecclesiae ministros confugiat, aut ulla superstitione, aut alio modo illicito utatur” (1880, p. 323). (volta).

(3) Compreendemos o exorcismo como rito de passagem na medida em que este aparece dentro da dinâmica litúrgica da vida da Igreja. Pensando, por exemplo, no sacramento do batismo, que é um dos sacramentos da iniciação cristã, encontramos o pequeno exorcismo antes que o catecúmeno faça a sua profissão de fé e seja batizado. Por outro lado, precisamos observar que a prática de afastar as forças malignas é presente também na própria celebração da eucaristia, e sobretudo, se pensamos que uma vez ao ano, por ocasião da Páscoa, renova-se as promessas batismais em seu dinamismo de renúncia ao demônio e aceitação da verdade salvífica oferecida por Cristo na cruz a toda a humanidade, pode-se perceber com maior facilidade que a perspectiva tanto do sacramento como dos sacramentais possui esse valor de passagem e de renovação para poder empreender com novo vigor as tarefas cotidianas.(volta).

(4) O teólogo russo Pavel Florenskij (2001) fala do valor mágico, místico e potente da palavra. Esse aspecto mágico da palavra possibilita ao homem compreender profundamente o que significa agir no mundo através da palavra. Na palavra está condensada uma energia humana. E, além disso, quando é pronunciada dentro de ritos, seja na magia, seja no exorcismo, esta adquiri uma energia espiritual por si mesma potente. Vejamos o que diz nosso autor: “Uma benzedeira, com as suas fórmulas murmuradas, cujo significado nem mesmo ela compreende, ou um sacerdote que pronuncia orações parte das quais são a ele mesmo incompreensíveis, não são a nosso juízo fenômenos absurdos, como superficialmente pode parecer. Não somente aquela fórmula vem pronunciada, é indicada e fixada a relativa intenção – o propósito de pronunciar a fórmula. Estabelecendo-se, assim, o contato entre a palavra e a pessoa, temos, portanto, finalizado o ato mais importante. O resto acontece por si, como conseqüência do fato de que a palavra já existe como organismo vivente, com estrutura e energia própria” (p. 76).(volta).

(5) Podemos dizer que a caracterização como possessão está norteada pelas categorias que definem estes casos, segundo o antigo Ritual de exorcismo, que põe os três sinais tradicionais para se reconhecer o caso, como: 1) o uso de línguas desconhecidas, 2) revelação de coisas ocultas, que nenhum meio natural pode explicar e 3) a exibição de forças que ultrapassam notavelmente as forças naturais do sujeito (Rituale Romanum, 1880, p. 322).(volta).

(6) Sobre a autorização do Bispo ou ordinário local ver Rituale Romanum (1880), p. 323.(volta).

(7) O latino original recita: “Aliquando etiam daemones ponunt quaecumque possunt impedimenta, ne infirmus se subjiciat exorcismis, vel conantur persuadere infirmitatem esse naturalem; interdum in medio exorcismi faciunt dormire infirmum, et ei visionem aliquam ostendunt, subtrahendo se, ut infirmus liberatus videatur” (Rituale Romanum, 1880, p. 322).(volta).

 

Nota sobre os autores
Marcio Luiz Fernandes
é mestre em Psicologia pela USP-Ribeirão Preto e mestre em Teologia Fundamental pela Pontifícia Universidade Lateranense de Roma, Itália. Atualmente continua o doutorado de pesquisa em Roma. Contatos: pemlf@libero.it

Marina Massimi é Livre Docente e trabalha junto ao Departamento de Psicologia e Educação na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Campus de Ribeirão Preto, Brasil. Especialista na área de História das Idéias Psicológicas na Cultura Luso-Brasileira. Contatos: mmarina@ffclrp.usp.br

Data de recebimento: 26/02/2004
Data de aceite: 23/04/2004

  Memorandum 6, abril/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/fernamass01.htm

 

 

 

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