Introdução
Foi a partir de uma
antiga fazenda de café do Sr. José Ferraz de Campos, chamado Barão de
Cascalho, que o governo do Estado de São Paulo, no final do século XIX,
criou o núcleo colonial de Cascalho. A fazenda foi dividida em lotes que
foram doados aos imigrantes. Em Cascalho, as escrituras foram passadas no
ano de 1884 e, logo em seguida, começaram a chegar as primeiras expedições
de imigrantes de diversas nacionalidades: alemães, suecos e dinamarqueses,
que se instalaram, mas não se estabeleceram por não conseguir se adaptar
às condições de vida da colônia. Em seguida, vieram os imigrantes
italianos do Vêneto, que logo se fixaram (Livro do Tombo da Paróquia de
Cascalho, 1904-1983, p. 4).
O núcleo de
Cascalho, atualmente pertencente ao município de Cordeirópolis, tornou-se
uma típica colônia italiana, na qual cada família possuía um pedaço de
terra como propriedade, realizando-se assim uma das primeiras experiências
de reforma agrária do Estado de São Paulo.
A vida religiosa
desta comunidade foi desde sempre muito cultivada. A adaptação dos
imigrantes passava pela tentativa de reproduzir condições de vida
similares às de sua terra natal. A assistência religiosa foi um dos
fatores fundamentais para ajudar os imigrantes italianos a se adaptarem ao
estilo de vida no Brasil. A colônia de Cascalho nos seus primórdios foi
assistida pelos Missionários Escalabrinianos, cujo objetivo era “manter
viva a fé católica no coração dos compatriotas emigrados e, na medida do
possível, buscar o seu bem-estar moral, social e econômico” (Rizzardo,
1974, p. 243).
Em 1911 chegou a
Cascalho o missionário escalabriniano Pe. Luis Stefanello, que
intensificou o trabalho junto às famílias dos imigrantes. Aconteceu uma
verdadeira identificação da população com este sacerdote. No decorrer dos
anos o padre Stefanello mostrou que há um carisma particular e que foi
sendo identificado pela comunidade. Posteriormente, adquiriu fama por
várias regiões do Brasil, como “um padre cheio de poder”, sobretudo na
luta contra as forças demoníacas.
Para apreender a
experiência que a colônia de Cascalho teve no seu relacionamento com o
padre Stefanello e tentar reconstruir essa história, foram utilizados dois
tipos de fontes que são importantes tanto para a história quanto para a
memória. Em primeiro lugar, as fontes de tipo oral, com entrevistas
abertas, utilizando-se o recurso da história de vida, e, em segundo lugar,
as fontes documentárias escritas referentes à história do padre Luis e da
comunidade paroquial de Cascalho, em dois arquivos específicos: 1) Arquivo
da Paróquia de Nossa Senhora da Assunção, 2) Arquivo Geral da Congregação
Escalabriniana – Roma-Itália. Para as entrevistas foram escolhidos quinze
sujeitos e, preferencialmente, os anciãos do bairro, na faixa de setenta a
noventa e cinco anos. Interessava-nos à pesquisa apreender as experiências
vividas na convivência com o padre Stefanello, por isso, nosso caminho foi
o de estabelecer um diálogo partindo do que eles sabiam nos contar quanto
ao padre, pois todos eram pessoas que, de alguma forma, conheceram o
referido sacerdote e presenciaram os exorcismos em Cascalho. Deve-se ainda
esclarecer que as entrevistas podem ser divididas em dois blocos: um
primeiro, referente ao tópico “a luta com o demônio”, cujos depoimentos
foram colhidos no ano de 1999; e outro bloco presente no tópico
“ressonâncias”, colhidas nos dias 15 de agosto e 14 de setembro de 2003.
Entreguemo-nos,
pois, neste pequeno percurso, às reminiscências com que os idosos de
Cascalho nos descrevem a ação do padre Luis Stefanello, e procuremos estar
atentos para poder perceber a densidade desta presença no hoje da
comunidade.
A luta com o demônio
“Como vinha gente”.
Esta é a expressão que se repete na boca dos moradores mais velhos de
Cascalho. É a indicação de que nos tempos do “padre cheio de poder” alguma
coisa diferente acontecia. Cascalho foi-se tornando um lugar de romarias.
Acorreram peregrinos de todos os cantos. Então, perguntamo-nos: quem era
essa gente que vinha a Cascalho? O que eles buscavam? O que poderia
acontecer nesse vilarejo tão pacato? O que se modificava?
Segundo nos informou
Dona Rosa, vinha bastante gente do Paraná “para tratar exorcismo”.
Tratar
exorcismo significa, para Dona Rosa, o trabalho do padre Luis para
expulsar o diabo do corpo do doente.
As pessoas estavam
atraídas pelo padre Stefanello justamente pela fama que se espalhava por
todo o canto, de que ele era exorcista. Outras pessoas procuravam-no,
porque tinham algum problema para resolver. Segundo o Sr. Nardini, “vinham
porque tinham problema com familiar e porque atacava o espírito”. Ao padre
caberia dar a bênção a essas pessoas “atacadas” pelo espírito do mal.
Percorriam distâncias naquela época para se encontrar com Stefanello.
Vinha gente não só de São Paulo, mas também de outros estados, como Minas
Gerais e Paraná. O que nos contaram os moradores é que o padre exorcizava
os espíritos malignos que vinham ali, e o que acontecia às pessoas tinha
uma explicação: “era o diabo”. É assim a descrição feita pelo Sr. João:
Gente lá de Minas, do fundo
de Minas, de caminhão coberto e encerrado, aparecia cheio de gente. Só que
ele tinha posto uma lei: que ele só dava benção a 1:00 hora, antes e
depois ele não atendia ninguém mais porque era demais, por causa do
serviço dele de atender os doentes. Ele dizia que era o diabo: “-ocê tá
com o diabo, mas vai melhorar”. Ele dava a benção, o homem, às vezes, se
jogava no chão, às vezes, queria fazer..., passava aquilo, e o padre ia lá
colocava as vestes da missa e ia rezar a missa e o homem ali ninguém punha
a mão.
A pacata colônia
ficava agitada nos finais de semana
(1).
Muita gente de outros lugares. Chegavam muitos doentes, gente “atacada
pelo diabo” que, segundo Stefanello, poderia encontrar a cura e a
salvação, poderia mesmo melhorar. O fato é que algo irrompia no horizonte
da vida dos habitantes de Cascalho e passava a fazer parte do cotidiano.
Por outro lado, esse algo quebrava a ordem natural das coisas, de forma
que era necessária uma organização, porque, do contrário, o padre não
conseguiria atender a todos. Por isso, estabeleceu-se uma lei: “ele (o
padre) só dava a benção a 1 hora”. Ainda assim o movimento era grande e
difícil de organizar: “eles vinham de fora. Qualquer dia. Vinha de semana,
vinha de domingo, vinha de sábado, vinha qualquer hora, qualquer dia”
(Dona Santa). A população passou a conviver com essa “anarquia” e a sua
reação, segundo os relatos, era de medo:
Vinham tudo de fora. Vinham
de longe. Até do Paraná. Vinham de caminhão, às vezes de carro. Se você
visse que anarquia que tinha!!! Dava até medo. Era tudo dia, era tudo dia.
Eu assisti uns par deles, depois a minha mãe não deixou mais não, porque
ela achava que nós ficávamos nervosos, né? Você precisava ver que nervoso
que dava (Dona Augusta).
O que poderia causar
tais reações? Seria apenas o fato da população perceber tanta gente
chegando à sua pequena vila? Ou a forma como via as pessoas, já as
assustava?
Na porta da igreja,
antes mesmo de começarem as missas dominicais, já havia gente esperando
pelo padre Stefanello. Todo domingo era assim. O fato que assustava é que
“chegava romeiro dentro de um caminhão, assim, acorrentado. Espera lá!!!
Coisa fora de série. Acorrentado e ele dava a benção e saía andando” (Sr.
José). Ou, como disse Dona Santa, “tinha gente que vinha numa cama”.
O fato de ver os
doentes acorrerem a Stefanello era algo que sensibilizava a comunidade. Os
moradores vinham até a igreja para assistir, para ver o que o padre faria
com os doentes. Sempre havia uma novidade para ser contada, se você
fizesse parte e estivesse atento aos fatos da vida da colônia. Descrever
essas “reuniões” dos finais de semana em Cascalho parece bastante difícil
para quem não presenciou. Mas, para quem assistiu tudo, o que é que tinha?
Eu assisti ele. Ele dava a
bênção e rezava. E, às vezes, vinham gente com caminhão trazer gente
amarrado. Tinha exorcismos, tinha espírito, tinha não sei o quê, traziam
aqui. Aqui fazia fila. Cascalho era, Nossa Senhora!!! Era uma reuniões
todo sábado e domingo que o senhor não podia ir, que tava cheio de gente
(Sr. Guilherme).
O que aconteceu
naqueles tempos é ainda hoje um elemento identificador e que permanece no
tempo. As pessoas de Cascalho, quando viajam, ainda podem encontrar outras
que dizem: “-Ah, você é daquele lugar que tinha o padre exorcista”.
Cascalho vê-se ligada ao padre que benze e, por outro lado, as pessoas de
outras localidades podem igualmente se reconhecer porque, de algum modo,
se sentem pertencentes ao lugar, por terem recebido dali alguma graça. É
Dona Emília que disse :
Ele tinha muita fama longe,
viu. Até hoje tem gente que pergunta se eu sou daquele lugar que morava
aquele padre que dava aquela benção. Até hoje, quando eu vou lá em
Lindóia, tem gente de longe, que pergunta: a senhora mora onde morava
aquele padre que dava a bênção? Esses antigos ainda lembra, né?
“Morar no mesmo
lugar que o padre que dava a bênção” é habitar um lugar já conhecido. É um
passo para uma relação amistosa com o outro que antes era, para mim, um
desconhecido. Esse “lugar” é especial. O elo invade o tempo, faz com que
sua fama perdure até no tempo que se chama hoje. E isso é importante do
ponto de vista dos moradores de Cascalho. Já pensou quem foi esse padre?
Tão famoso que até agora há pessoas que não o esquecem. Torna-se motivo de
admiração se os mais velhos, das cidades circunvizinhas, não tiverem ainda
ouvido falar de Stefanello.
No frontispício da
igreja há uma alusão aos viajantes, aos peregrinos e a todos os que passam
por Cascalho. É um alerta. É um pedido. É uma lembrança de que aquele
“lugar” pertence a todos. Há a seguinte inscrição latina: “Siste viator
et ora Mariam”, ou seja, viajante pare e ore a Maria. Segundo a
tradição, Maria é a Nova Eva, aquela que venceu o tentador, e que ficou
para esmagar a cabeça da serpente, para proteger os novos filhos de Deus.
Os viajantes em Cascalho eram encomendados a Virgem Maria, no título de
Assunta ao céu. Nesta frase temos um pouco da auto compreensão da
comunidade de Cascalho: é um lugar de passagem e oração.
Muitos eram os que
passavam e paravam ali para se libertarem. Para Dona Rosa, ficou marcado o
dia em que ela estava na frente da igreja e chegou um homem, em cima de um
caminhão, e outros cinco homens tentando segurá-lo. Ele queria pular do
caminhão. Quase que cinco homens não foram capazes de segurá-lo. Depois do
encontro com Stefanello, que chegou e foi mandando tirar as mãos de cima
do doente, o homem ficou bom e ele mesmo disse ao padre: “-olha, eu tô
bom, padre. Agora eu tô bom”. E o padre perguntou: “- E primeiro o que
você tinha?”. E ele respondeu: “-Ah, eu não sei o que eu tinha, eu não
queria obedecer a ninguém, eu acho que eu não tava bom, não”. Para Dona
Rosa, a teimosia daquele homem, é indicação de que há algo que não está
bem, pois o desobediente por excelência é o diabo. Ninguém mais é capaz de
segurar. Não adianta a força dos homens, precisa de um outro poder aí.
Ao terminar de
contar o caso, Dona Rosa fez uma pequena pausa e interrogou-me: “-Você
nunca soube?”. A pergunta foi feita com um certo espanto, supondo que o
interlocutor, por ser do próprio município de Cordeirópolis, deveria ter
conhecimento dos fatos de Cascalho, pelo menos de algumas histórias. Era
impossível não saber, pois todo mundo sabe, até mesmo aqueles que são “de
longe”. Como é que “alguém”, aqui do lugar, não ouviu nunca ninguém
contar? Um acontecimento desses é grande. Não saber é como não pertencer
ao grupo. Esse acontecimento passou a fazer parte das tradições das
famílias do bairro e de todos os descendentes de italianos.
De qualquer forma,
para todos, a sensação de que estavam diante de algo que não davam conta
de explicar era evidente. A sensação de que no horizonte da história de
Cascalho entram outras pessoas, que buscavam um bem para a sua vida e que
pareciam ver surgir na peregrinação a Cascalho uma certa resposta, fez
quebrar a rotina das famílias do lugar. Os doentes eram trazidos por suas
famílias e seus conhecidos. Mas, nessas pessoas, advertia-se a presença de
um intruso.
Para os de Cascalho
é fácil descrever quais as características mais evidentes desse intruso
que tomava as pessoas. Como nos falava Dona Rosa, “ele não queria
obedecer”. Era, portanto, desobediente.
Mesmo diante do
padre e das orações que ele fazia, o demônio recusava sair, persistindo na
desobediência: “Meu sogro que viu o padre Luis dar a bênção, tirar o
espírito dessa gente que vinha e que tinha demônio. Coisa horrível. Não
queria sair” (Dona Aparecida). Além disso, o demônio deixava a pessoa
ruim:
É veio um moço do Paraná que
vivia sempre doente. Achava que ele tinha um espírito mal e coisa e outra.
E ficou morando bastante anos com o padre Luis. Depois, quando o padre
Luis foi embora, eu acho que ele foi morrer lá no Paraná. Eu sei que ele
morou bastante anos aí, com ele. De vez em quando ele ficava ruim, esse
moço. Eu sei que o padre Luis dava a benção nele, mas nem assim. De vez em
quando ele ficava ruim (Dona Rosa).
O laço estabelecido
com “os que vinham de longe” tornava-se mais forte. A necessidade de ver o
demônio vencido, fez com que Stefanello trouxesse esse moço para viver com
ele e, assim, tentar curá-lo. Esse jovem visitou pelo menos umas três
vezes Cascalho, sendo apresentado pelos seus pais. Era “curado”, mas
depois voltava a sofrer suas crises. Até que Stefanello resolveu deixá-lo
morar consigo, na casa canônica. Inclusive dona Yolanda lembra que, uma
vez, teve de cozinhar para o padre, pois a empregada tinha viajado e
acabou ficando sozinha na casa com esse moço, um tal de Alexandre. Um dia,
ele aproximou-se dela e disse: “- Hoje eu não tô bom, viu?”. Bastou falar
isso para dona Yolanda deixar de cozinhar na canônica. Não se arriscava,
porque pressentia que aquilo não era só doença, o moço podia estar com
algum espírito demoníaco.
Aliás, é muito comum
você ouvir esse tipo de história, um pouco tensa, cheia de receios,
produzindo nos ouvintes um certo temor, e que revela a “anarquia”
instaurada pela presença desse intruso, que, por vezes, adquiria a
fisionomia animal. A animalidade era o outro rosto do demônio. Não era
mais o homem, era um animal que aparecia:
Uma vez, veio um homem
arrastado. Assim, como uma cobra. Eu tava no banco, assim na beirada,
então veio perto e eu comecei a ficar com medo. E então, eu falei pra
minha cunhada: “- meu Deus, o homem ta aqui e o quê que eu faço”. E aí, o
padre viu que tudo tinha medo, então ele falou assim: “-me pega esse homem
e leva pra fora. Só 1 hora eu dou a bênção”. E aí, 1 hora ele deu a
bênção. E ele, depois, tirou o espírito do homem. Fazia seis meses que
andava de arrasto, por causa de uma moça. Diz que ele largou dela e ela
fez mal pra ele não andar mais.(Dona Augusta).
É natural que um
homem que venha arrastando-se como uma cobra cause medo. O medo era
vencido pela intervenção de Stefanello. O padre enfrentava o mal. E a que
mal estava submetido esse homem? Parece ser um mal feito por alguém:
“-andava de arrasto por causa de uma moça”. E esse era um dos problemas
mais comuns que Stefanello enfrentava com aqueles que iam implorar sua
bênção: que retirasse o mau-olhado, o mau desejado por outrem que
acarretava dificuldades no cotidiano. Ainda Dona Augusta conta-nos o caso
do marido que levou sua mulher, a qual – “sem juízo nenhum”, tomada por um
espírito – parecia um macaco:
E depois, o homem levou
embora a mulher. Ela tinha cinco filhos. Dizia que ela subia em árvore. Lá
em Cascalho, ela subia em árvore, parecia um macaco. Já pensou uma mulher
subir em árvore? Pra ver que não tem juízo nenhum. Ele falou que tinha
ainda cinco filhos em casa. Ele chorava. Parece que eu tô vendo, viu. Eu
fui assistir muito espírito, e às vezes, vinha quando nós estávamos na
missa. Então, eles entravam na igreja e a gente via.
Esses espíritos
entravam na igreja e ficavam ali. Segundo Dona Augusta, junto com as
pessoas doentes havia os espíritos que as possuíam. Ela viu um mudo que o
padre curou. A família dizia ao padre que ele tinha ficado mudo depois que
havia largado de uma moça. A explicação dada é a de que a moça tinha feito
ele ficar mudo. Com tudo o que representava coisas mal feitas por um
outro, como no caso de um mau-olhado, de feitiçaria, de encosto, de
bruxaria etc, o padre conseguia lidar com facilidade. Mas, os que
apresentam maior dificuldade eram os que procuravam anteriormente um
auxílio indevido, por exemplo, ficava mais difícil livrar uma pessoa que
antes já tivesse passado por uma sessão espírita. Neste sentido Stefanello
observava estritamente o que o próprio Ritual Romano recomendava a
respeito dos espíritos demoníacos: "Alguns mostram um malefício feito e
por quem foi feito, como também o modo como deve ser retirado: para isso
porém, não deve-se recorrer a magos, ou a feiticeiras ou a outros como
ministros da igreja, ou outra superstição, ou qualquer modo ilícito”(2).
O demônio ficava ali
na igreja. Vinha até à missa, como quando, conta-nos a tradição, em redor
dos mosteiros, havia uma multidão de demônios esperando qualquer vacilação
por parte dos monges. Eles são atraídos também pela força da oração e
querem mesmo enganar os que são firmes na fé.
Stefanello, porém,
nunca desistiu de lutar. Ele era mesmo fascinado, em certo sentido, pelo
enfrentamento com o demônio. Sobre isso nos informa um outro sacerdote,
chamado Pe. Frederico, que tinha muitas ligações com o Pe. Stefanello, no
tempo em que este estava vivendo em Águas de Santa Bárbara. O sacerdote
procurou Stefanello também motivado por sua fama e queria aprender as
técnicas para abençoar as pessoas, mas sua decepção foi constatar que para
Stefanello tudo era explicado pelo demônio. Esse sacerdote dizia que o
padre Stefanello tinha uma energia enorme, e que, mexendo um pêndulo, ao
falar o nome do padre Luis Stefanello, o pêndulo em suas mãos girava para
cima, com uma força tão incrível, que chegava mesmo a doer-lhe o braço.
Confidenciou ainda que muitas das mulheres que foram limpar o quarto do
padre, após seu enterro, se sentiram mal e desmaiaram, tamanha era ainda a
força de sua presença.
Uma das primeiras
lutas que o demônio travou com Stefanello foi aquela dos quatorze
espíritos que dominavam duas moças. Foi uma luta tremenda. Os demônios
subiam pela parede da igreja:
Então, a primeira vez que
tirou, que veio ali, foi umas moças do Coletta, duas irmãs que moravam em
Araras. Diz que elas tinham 7 espíritos cada uma. Elas vieram aí 7 noites.
Toda a noite enchia a igreja de gente, porque a primeira vez, elas
“trepavam” pra parede. Até na parede. Mas eram... pra ele difícil, ele
molhava a camisa. Ele trocava, ele molhava de novo. Ele lutou tanto, mas
tanto pra tirar” (Dona Emília).
Como considerar
esses acontecimentos? Parecem mesmo mostrar uma luta, envolvendo as
pessoas, e exigindo por parte do exorcista um trabalho. Qual era a
fisionomia do padre cheio de poder, do padre exorcista de Cascalho?
Certamente era a de um homem que trabalhava, que lutava, que rezava, que
pedia a Deus para ajudar a tirar o espírito que tomava a pessoa. Por outro
lado, como vemos nessa luta com os 14 espíritos, era algo que exigia suor
do seu rosto, tinha até de trocar de roupa, chegava a molhar a camisa. Não
era uma luta solitária. Ele convocava os que estavam na igreja para
ajudá-lo, deviam manter-se de joelhos e rezando. O padre não só contava
com a sua força para tirar os espíritos, mas necessitava da ajuda da
comunidade para que Deus se convencesse a intervir. Assim, contou dona
Augusta: “-ele, quando tirava o espírito assim, ele mandava todo mundo se
ajoelhar e rezar, pra pedir a Deus pra ajudar a tirar”. Para dona Augusta
contam os fatos: um mudo que recuperou a fala e até cego que saiu daqui
enxergando.
Cascalho era um
lugar encantado, cheio de espíritos, de demônios que rondavam a igreja, de
pessoas doentes, cuja presença, aos olhos dos cascalhenses, ia tornando-se
quase normal. A rotina de trabalho era quebrada pelo movimento de romeiros
que esperavam a missa e a bênção dada nas tardes de domingo. Entretanto,
não era tão tranqüilo ir à missa. Por vezes, durante a celebração, é que
os espíritos se manifestavam. Difícil era escolher o lugar certo para se
assentar, pois era possível estar bem ao lado do inimigo. Era necessário
estar preparado para o susto. Contudo, sempre que os espíritos se
manifestavam, o padre começava o trabalho, pedindo para que levassem as
pessoas à frente, para perto do altar. A bênção é um dos primeiros
trabalhos do exorcista:
E daí, quando a gente tava
na igreja e, às vezes, quase só tinha gente de fora. Mas, na segunda
missa, já tinha mais gente, quase só gente de fora, porque vinha tomar a
bênção. Então, às vezes, a gente tava assim e não sabia o que tinham,
porque estavam quietos; quando o padre dava a bênção, começavam a levantar
e gritar. E a gente se assustava, ficava com medo. Já que a gente sentava
no banco, já via, tinha gente perto, já ficava com medo, porque vamos que
tá com alguma coisa e a gente não sabe né? E a gente ficava com medo, mas
ele não fazia nada pra gente, né? E depois, o padre mandava levar lá, e
daí eles iam lá na frente e ele trabalhava, até que tirava” (Dona Emília).
Nessa hora, em que
Stefanello trabalhava com o espírito, a orientação aos coroinhas era que
ficassem atrás dele, que não se atrevessem a ficar perto de quem estava
dominado pelo demônio. Ninguém podia colocar a mão. O momento era
delicado. Assim é descrito por Dona Aparecida:
O padre gritava, batia,
xingava: “-Você não vai sair?” e o padre perguntava o porquê. E ele
respondia: “-Não, porque eu tô bem aqui”. Dá medo, viu? Dava medo de ver.
Mas tirava. Gritava, batia, mas a pessoa não sentia nada, não sentia nada.
Mas a pergunta que
resta é: se a pessoa sobre quem Stefanello trabalhava não sentia nada,
então, sobre quem recaia os efeitos de toda essa luta? Assim responde Dona
Santa:
Claro que ele batia. Ele
batia, mas diz que o corpo da pessoa não sentia nada, porque ele tava
batendo no demônio. Era o demônio que tava sentindo. Ele tinha um poder
que só vendo. Todos os padres têm esse poder, só que precisa ter força. E
ele tirava mesmo, mas vinha gente de longe, e ele curava.
E que instrumentos
ele utilizava para lutar com o demônio? Quem responde é Dona Rosa:
O crucifixo era grande, e
ele dizia: “-Eu te bato com o crucifixo se você não vai embora dessa
pessoa aí”. Então, disse que saía desse homem um espírito, mas ninguém de
nós via, mas ele, eu acho que via. E aí, ele dava a bênção, tudo, em nome
de Jesus, e tudo ficavam bom.
Não apenas o
crucifixo, mas, “dizem os moradores”, o padre tomava o asperge da caldeira
de água benta e ia em cima da pessoa com toda a força. Era uma verdadeira
luta, mas só o demônio é que apanhava. Depois dos golpes recebidos, ao
contrário, do que se pensa, a pessoa dizia que estava sentindo-se muito
bem. O espírito finalmente a havia deixado em paz.
Como podemos
perceber pelos relatos, a prática de expulsar o mal em Cascalho, seguia um
certo ritual que os moradores conseguiram nos descrever:
(...) o crucifixo, a água
benta, e jogava em cima da pessoa que estava... às vezes, ele começava a
falar, às vezes uma pessoa lá do fundo (da igreja) também ficava ruim,
então vinha na frente. O padre dava a bênção, com crucifixo e a água
benta, e melhorava (Dona Yolanda).
E quanto ao poder da
água benta? “A água benta queimava que nem brasa pra ele, pro diabo. A
água benta queimava” (Sr. Paulo). Imaginemos o quanto sofria esse pobre
“diabo” nas mãos de Stefanello: a água benta era como uma água fervente
que caia sobre o corpo, mais; os golpes com o crucifixo e o hissope;
depois as orações e as palavras de ordem para que o espírito se retirasse.
Na verdade, como disse o Sr. José: “A água benta pr’aquele que tem o
espírito no corpo, o mal, ele não quer saber da água benta. Joga água
benta ele encolhe, né?”. A água benta tornava-se o sinal mais terrível,
porque diante dela o espírito do mal tendia a recuar.
As pessoas possuídas
não ficavam passivas. Havia reações fortíssimas: gritavam, xingavam,
encolhiam-se, queriam fugir, subiam pelas paredes, recusavam-se a ver o
crucifixo e a escutar as orações. Vejamos no relato de Dona Santa como se
dá a reação do possuído. No início a agressividade. Em seguida, a ação do
padre. Finalmente, os gestos leves de quem se recuperou:
Ele ia com o crucifixo na
frente dele, né? E a pessoa que tava com o demônio não queria ver, não
queria nem ver. Ela se jogava. Ele precisava de dois a três homens para
segurar ele, a pessoa que tava com o espírito, e daí o padre ia falando,
falando, dando a bênção e falando. Aí, começava a bater, bater, bater, até
que o espírito saía e ele ficava bom. A pessoa ficava boa. Beijava a mão
do padre. Aí, o padre falava: “-pode levar, tá bom”. Olha que coisa, não?
Eu vi bastante disso. Ia de monte lá em Cascalho.
Por outro lado, o
mal poderia possuir a pessoa não só pela ação direta dos espíritos
demoníacos, mas seria provocado pelo feitiço, mau olhado e inveja das
pessoas, ou ainda, ser ingerido por meio dos alimentos. Para os de
Cascalho, quando se come, é mais difícil de livrar-se do mal. Por isso,
quando os entrevistados se referiam ao jovem Alexandre, que vivia com
Stefanello, explicavam a dificuldade de curá-lo pelo fato dele ter
ingerido o mal por meio de uma fruta:
Mas fizeram mal pra ele numa
fruta... Tem negócio de namoro... Ele comeu. Então, aquilo, cada vez que o
padre tirava o espírito, ele vomitava aquilo, mas ele não largava dele,
porque ele comeu aquele mal e, comendo, é mais difícil de livrar. Então,
ele vomitava, coisava, depois ia embora, depois voltava de novo (Dona
Emília).
Algumas pessoas da
colônia não acreditavam naquilo que Stefanello realizava. E como o padre
não conseguia curar o Alexandre, reforçava-se a tese (para os opositores)
de que não era mesmo o demônio, mas uma doença, que o moço era um
epilético. Já para outros, como Dona Emília, a cura não vinha porque era
difícil livrar-se do mal que se come; desse modo, de forma alguma, tal
fato estaria ligado a um fracasso do padre.
O fato de muitas
pessoas ficarem boas depois do encontro com Stefanello, é que levava a
maioria dos cascalhenses a acreditar no seu poder. Ser testemunha do que
aconteceu e a convivência com Stefanello, é que fazem com que muitos não
duvidem do seu poder: “Ah, eu acredito, né? Porque eu via as pessoas ficar
bem melhor, muita gente doente ficavam boas, e eu era nova, mas eu
acredito. E depois, ele fez o meu casamento também. Ele ficou aqui 42
anos, o padre Luis” (Dona Rosa).
Por conseguinte,
aquelas pessoas que conseguiam livrar-se do mal e do demônio, tornavam-se
gratas. O dinheiro para construir a igreja nova, por exemplo, vinha dessa
gratidão:
Aqueles que tava livre, não
dá um dinheiro? O negócio assim de fazer a igreja, a questão do dinheiro:
ah, se fosse só o pessoal de Cascalho, ele (o padre) não fazia, não. Vê
lá. É tudo gente que vinha aí. Chegava lá de tarde, a bandeja enchia.
Colocavam lá. Todo mundo ia pondo lá (Dona Emília).
Ao lado do trabalho
de luta de Stefanello com o demônio, foi se estabelecendo toda uma
economia,tanto para a igreja, como, para os próprios moradores da colônia.
É o caso dos que preparavam o almoço para os que vinham, como o bar na
frente da igreja: “E o Rosolem fazia almoço pra turma que vinha. Ele tinha
que nem um bar. Ele tinha sempre aquele bar e ele servia almoço e janta
pra turma” (Sr. Guilherme). Por outro lado, como não se lembrar do Hotel
“Viaduto”, que recebia os peregrinos que vinham buscar o auxílio do Padre
Luis. Além disso, havia o movimento dos carros de praça, que levavam as
pessoas de Cordeirópolis a Cascalho: “Em Cordeirópolis, tinha os
automóveis, que tinha aquele Rocha e o Romano. Eles viviam só de trazer
gente aqui. Traziam aqui, em Cascalho, pro padre dar a bênção” (Sr.
Guilherme).
O padre Stefanello,
com o seu talento pessoal, com sua força extraordinária e carisma, atraía
multidões a seu redor. Essa fama trazia muitas tentações, e o padre
reconhecia que o demônio podia aproveitar-se dessas ocasiões para tentar
confundi-lo. O povo de Cascalho sabia que, quando o padre ficava nervoso,
ou soltava algumas palavras indiscretas no sermão, ou se chateava com
alguém, não era ele que estava agindo, mas o tentador: “... a minha mãe
falava: ‘- acho que não era ele que fazia, acho que ele era muito
atentado. Porque ele tirava os espíritos, eu acho que o demônio tentava
ele. Ele mesmo falava que ele era muito tentado pelo demônio” (Dona
Santa).
Com um último
relato, pode-se resumir todo o caminho percorrido juntamente com o povo de
Cascalho descrevendo o poderoso padre Luis Stefanello. Neste último
trecho, Dona Santa fala das pessoas doentes que eram levadas à presença de
Stefanello, da realidade do demônio, do poder do exorcista e das tentações
que ele sofre:
Ah, eu lembro de uma nora
desse Coletta, que morreu. Ela vinha na missa e ficava ruim na igreja,
então ela gritava, mas gritava... Ai, pegava, levava ela pra fora, levava
embora e, quando era no outro dia, levava ela pro padre dar a bênção. O
padre benzia e ela ficava boa. É, ele tinha poder. Diz que tem o demônio.
Mas tem mesmo o demônio, viu. E os padres são os mais perseguidos, são os
mais tentados. Ele mesmo falava:” -nós, padres, somos mais tentados”. A
tentação não falta.
Discussão dos
resultados
A potência
Como não ficar
surpreendido com a experiência da comunidade frente ao padre que para eles
é tão poderoso? Como pode uma pessoa abrir o horizonte de significado para
os acontecimentos do modo como fez Stefanello? Pela interpretação da
comunidade, percebe-se que isso só é possível na medida em que se está
diante de alguém que foi tomado por uma potência superior e utiliza esse
poder em favor dos que o procuram.
Foi van der Leeuw
(1992) quem, na sua obra Fenomenologia da Religião, mostrou a dinâmica da
potência na experiência religiosa. Nessa obra, ele descreve, compreende e
interpreta as ações e os relacionamentos que se formam entre o homem e a
potência religiosa. Segundo van der Leeuw, a religião define-se como este
grande encontro entre o ser humano, na sua imanência, e alguma coisa que
tem uma proveniência misteriosa.
Trata-se do fenômeno religioso.
Portanto, para van
der Leeuw, em todas as religiões pode-se verificar esse fenômeno no qual
“alguma coisa” vem ao encontro do homem. E esta “alguma coisa” permanece
indeterminada exatamente porque assume uma determinação particular de
acordo com as características próprias de cada religião.
Contudo, esta “coisa” não será jamais conhecida pelo ser humano de maneira
total, porque é exatamente “alguma coisa” que o transcende. É o encontro
com “alguma coisa” que não deriva do ser humano e que não se pode reduzir
em termos humanos. O grande desafio que assume van der Leeuw é o de
mostrar que no fenômeno religioso, se nós o examinamos com atenção,
aparece a relação entre um sujeito humano e um objeto que vem ao seu
encontro e que é totalmente estranho, grande, misterioso. O homem encontra
“alguma coisa” de extraordinário.
Ele utiliza, como já
se disse, a categoria de potência que, do ponto de vista humano e em senso
religioso profundo, orienta a vida religiosa, de maneira que o homem se
confia a quem é potente e que pode ajudá-lo nos dois níveis: seja no
imanente, seja no da transcendência. As suas reflexões iluminam os dados
expostos acima, bem como, oferecem quadros mais amplos para entender toda
a ação de Stefanello. Segundo van der Leeuw, a experiência religiosa
caracteriza-se pela busca de algo infinito, maior e potente que explique a
vida:
A religião implica que o
homem não se limite a aceitar a vida que lhe é dada. Na vida, ele procura
potência. Se não a encontrar, ou a encontrar numa medida para ele
insuficiente, ele tenta fazer penetrar em sua vida a potência na qual ele
acredita, busca enaltecer sua vida, fazê-la crescer, conquistar um sentido
mais profundo e amplo. Neste sentido, a religião é a ampliação da vida até
o limite máximo. O homem religioso deseja uma vida mais rica, mais
profunda, mais ampla, deseja potência (...). O homem que não somente
aceita a vida, mas pede algo dela – a potência –, busca a totalidade
significativa: assim nasce a civilização. Assim, o homem transforma a
pedra numa estátua, o impulso em mandamento, a solidão da selva num campo.
Desse modo, ele manifesta potência. Mas o homem não pára: persiste em
buscar um sentido cada vez mais profundo e abrangente, cada vez mais além
(1992, p. 536).
Na abordagem
fenomenológica de van der Leeuw (1992), essa busca pela vida sacra, cheia
de potência, é garantida ao homem pelo rito, no qual procura a própria
salvação. Por meio do rito, o homem encontra um auxílio à sua fragilidade
e suplica para que haja um acréscimo de força para a vida. Nos ritos de
passagem – batismo, matrimônio, exorcismo – a vida é tocada por uma
potência e volta-se para ela
(3). A
dinâmica é ir ao encontro de um poder que supere o próprio homem. O
sacerdote, o curador, o taumaturgo e o rei, carregam essa potência e podem
transmiti-la. Desse modo, a vida humana, na sua relação com a potência,
não é, em principio, vida individual, é a vida da comunidade.
A potência de que
fala van der Leeuw (1992) não se refere a algo sobrenatural, e sim a algo
extraordinário, diverso. Se analisamos as religiões primitivas,
perceberemos que as coisas mais simples têm uma potencialidade: uma pedra,
uma cadeira, um cajado, etc. O mesmo dá-se com a água benta utilizada nas
bênçãos para os doentes. É sinal contra as influências nefastas, preserva
da ação do demônio, afasta fantasmas, sara as doenças, protege a entrada e
a saída. Em síntese, a água potente ajuda o homem a superar o momento
critico que vive, neutralizando a potência perturbadora (no caso, o
demônio), assegurando um andamento tranqüilo da vida.
Além disso, a
potência faz aparecer na alma humana um certo receio ou temor. Este produz
certas reações, tais como o medo, o respeito, a humildade e tantas outras.
A pessoa nem mesmo se atreve a falar do sujeito de tal poder ou chegar
perto dele a fim de criar certa familiaridade. Para van der Leeuw (1992),
não há religião sem medo, como não existe religião sem amor. O temor faz
emergir na vida da pessoa o movimento de repulsa e, ao mesmo tempo, de
atração.
Outro elemento não
menos importante é a palavra daquele que representa essa potência. A
potência impele a falar, e a palavra por ele pronunciada tem como
conseqüência trazer a salvação. A palavra do padre cheio de poder, em
Cascalho, é objeto de muita atenção. Por sua palavra e ação as coisas se
transformam. A sua palavra ou mensagem é carregada de potência
(4).
No domínio dos poderes malignos, a palavra tem o poder de expulsar o
espírito mal. Por fim, percebemos nitidamente a função de mediador que Stefanello exerce, garantindo assim o contato entre a potência e o homem.
O mediador dá a própria vida neste trabalho. Todavia, o que não podemos
determinar aqui é a intensidade da experiência vivida pelas pessoas no
contato com Stefanello. Essa experiência é profundamente religiosa, é um
acontecimento. Os fenômenos externos têm um elemento objetivo que podemos
alcançar. Mas a experiência vivida não é inteiramente acessível. Se
pensarmos, por exemplo, em Dona Vitória dizendo que Cascalho está linda
porque o padre Stefanello zela ainda pelo lugar, estamos no nível de uma
experiência pessoal que reconhece no padre um poder de tornar o lugar
bonito, mas o que se mostra a nós é apenas uma parte opaca de um
acontecimento ainda maior, de profundo significado para os moradores.
Segundo van der Leeuw (1992): “a experiência religiosa vivida é de
natureza escatológica, supera a si mesma (...), resta assim um resíduo,
incompreensível como princípio, mas no qual a religião vê a condição para
a sua própria compreensão” (p. 359).
O mal e a cura
Mas é necessário
ainda refletir sobre o problema do mal. Por isso, parece importante
considerar essa questão a partir das provocações que faz Ricoeur (1988),
para quem o mal é antes de tudo uma problemática que diz respeito à
liberdade humana. Ele diz respeito ao ser responsável. Por isso, o homem é
chamado à missão de combater e enfrentar o mal. Para Ricoeur, a ordem da
ação é aquela que impõe uma nova pergunta ao problema do mal, deslocando a
preocupação do plano especulativo para o prático, no qual caberia a
pergunta: “que fazer contra o mal?”. Diz Ricoeur:“pela ação, o mal é antes
de tudo o que não deveria ser, mas deve ser combatido” (p. 48). O homem,
portanto, tem uma tarefa frente ao mal: combatê-lo. Pode parecer que por
meio disso o homem se esqueça de todo o sofrimento que o mal traz;
contudo, o contrário é verdadeiro: ele se dá conta mais nitidamente que
todo mal cometido a um ser humano é um mal que um outro sofre. Pela ação,
o homem percebe o sofrimento, porém, ele entende que pode fazer diminuir o
grau de violência e diminuir assim o sofrimento no mundo. Não se trata de
evidenciar uma perfeição de uma ordem, com se apresenta em muitas
filosofias, mas de mostrar que no humano há uma liberdade que combate e
que subsiste mesmo diante das derrotas. A resposta prática, da ordem que
chamamos ética, é na verdade de um âmbito diverso no qual o homem
empreende um caminho de repulsa a um debate que reste apenas no plano
especulativo. No nível ético aparecem as questões que vão desde a acusação
de Deus até as interrogações sobre a origem demoníaca do mal no próprio
Deus. Tal perspectiva prática nos faz perceber que há espaço de atuação
ética e política no combate do mal.
Podemos exemplificar
utilizando-nos de um relato feito pelo próprio Stefanello. Este é o único
manuscrito em que Stefanello fala de sua forma de relacionar-se com o mal
e, do seu combate e em que revela a busca por entender de onde vem o mal.
Esta pergunta faz com que ele busque respostas. A carta é endereçada ao
Padre Faustino Consoni, Superior Provincial dos Padres Escalabrinianos,
datada de 22 de março de 1916, no quinto ano de sua estadia em Cascalho:
Caríssimo Pe. Faustino,
Fiquei muito contente com a
sua tão esperada carta. Há pouco tempo aconteceu o fato, me chamaram e
imediatamente percebi que era de duvidar, mas a coisa, ao contrário era.
Revelaram-se coisas que eu nunca havia pensado, por exemplo, que um tal há
roubado e como fez e porque, quem ficou e como fizeram para fazer o mal e
tantas outras coisas de não se dizer. Diante disto chamei o Pe. Enrico que
veio e imediatamente disse que era possuído pelo demônio, então eu deveria
ir ao Bispo lhe contar tudo, para que me desse a permissão, e também a
Vossa Revma. e ao Pe. Enrico, que vem terça-feira, que esperava Vossa
Revma. começar às duas e o Pe. Enrico que ficou até as três, me disse para
continuar e que fizesse até as oito. Fez tantos movimentos e gritos de
fino assobio que eu quase não podia resistir, mas com confiança no
crucifixo continuei por seis horas, fazendo sempre aqueles sinais como
indicados no ritual, todavia ficou mais quieto, porém esta manhã não
queria vir a Igreja, fugiram da casa e pela estrada quase o pegaram.
Caríssimo Padre Faustino, eu rezo ao Senhor dia e noite e procuro que
todos rezem, talvez seja como o Senhor que, para expulsar certos demônios,
é preciso a oração e o jejum, por isso me recomendo às suas orações e faça
rezar. Seguro desta tão grande caridade, o agradeço, não sei mais o que
lhe dizer. Receba minhas saudações e com toda a estima e humildade lhe
beijo a sagrada mão e (...) humilde filho,
Pe. Luis Stefanello” (Doc.
403, do Arquivo Geral da Congregação Escalabriniana).
Nesse relato alguns
elementos merecem destaque. Aqui temos um dos primeiros casos com que se
defronta Stefanello. Ele está diante de uma situação nova. Por isso, o
padre pede ajuda a um outro sacerdote amigo, para que possa discernir do
que se tratava. O padre amigo sugere ser um caso típico de possessão
demoníaca
(5), além disso, pede que
ele consulte o bispo a fim de que possa certificar-se de que seja mesmo um
caso de exorcismo
(6). O bispo dá a
concessão a outros sacerdotes que estão próximos a Stefanello para que
realizem o exorcismo. A luta contra o mal não é uma batalha que se
enfrenta solitariamente, mas é um compromisso que se assume com toda a
Igreja. A Igreja toda sente-se convocada a combater o mal e, por isso, é
uma ação comunitária.
A carta indica que o
padre faz uso de algum objeto, tal como o crucifixo, além disso utilizou
algumas orações que estavam indicadas no Ritual. No que diz respeito à
descrição do sujeito que estava sendo exorcizado, vemos a menção de que
fazia diversos “movimentos e gritos”. Na carta, porém, não encontramos a
menção de nenhum tipo de doença. Há indicações de que o fenômeno deveria
ser tratado como uma possessão do espírito do mal sobre a pessoa.
Esta carta, por
outro lado, ajuda a perceber o quanto Stefanello estava interessado em
aprender o método para combater o mal. Certamente ele é movido por um
desejo de bem. O bem é justamente a necessidade de sair de si-mesmo
direcionando nossa energia para um outro diverso de nós. Stefanello não
mede esforços para compreender o fenômeno. Reconhece que precisa de ajuda
e pede conselhos, indicando que sua resposta frente ao mal é dada dentro
de um contexto maior: o contexto da comunidade a que pertence.
O documento
apresentado converge com o que foi dito pelas entrevistas e nos dá o sinal
da atividade exorcística de Stefanello. Essa carta apresenta-nos sua
procura para agir eticamente contra o mal, movido por um desejo do que
fazer contra ele. A atividade de Stefanello vai ser sinal de uma luta
contra as forças sobrenaturais, e isto vai representar para a comunidade e
para os que o procuram uma oportunidade para a libertação e a cura. O povo
de Cascalho e, sobretudo, os que vêm de fora à procura de sua bênção,
passam a reconhecer que, por meio daquele gesto ritual, uma outra
realidade chega a se instaurar na sua vida: a realidade da saúde, a cura,
a resposta para o mal.
A pergunta já não é
“de onde vem o mal?”, mas passa para outro nível, que Ricoeur (1988) chama
do “nível da ação prática”. O que se pode fazer para diminuir a taxa de
sofrimento? Só pela ação. É o agir responsável que faz diminuir as
violências no mundo e transformar os homens em protagonistas da história.
Neste nível é que Stefanello atua. Em Cascalho, as histórias que o povo
conta são as mais diversas: pessoas acorrentadas, outras que subiam pelas
paredes do templo, outras ainda que rastejavam, outras que gritavam,
doentes de todos os tipos e uma diversidade de casos que atingem
singularmente cada família que se põe a relatar. Para o padre Stefanello,
é o demônio o autor de todo esse mal, por isso, como recomenda a Igreja é
preciso exorcizá-lo, entrar em combate.
O homem não pode
viver sem suas construções simbólicas. Ele sente-se fragilizado quando não
encontra os referenciais de apoio. O mundo humano é frágil, e qualquer
acontecimento que coloque em xeque sua unidade é motivo de angústia e
torna intolerável o caminho. O mal e a morte parecem ser um único
elemento, que coloca o homem em crise frente a seu projeto existencial.
Por isso, são necessários processos de legitimação que passam sobretudo e
principalmente pela religião. O processo ritual para exorcizar o mal
aparece como uma forma de dominar o caos e, portanto, de reduzir a
impotência do ser humano.
Segundo nos dizem os
moradores de Cascalho, o padre Stefanello tinha consciência de que mal
nenhum tem o poder de mando. O mal não manda. O que conta, de fato, é o
desejo de salvar a pessoa. Um exemplo disso é o caso que mostramos aqui,
do Alexandre, que o padre trouxe para morar com ele e que tinha muitos
problemas de saúde. O padre coloca esse doente – que ele acreditava estar
possuído pelo demônio – na sua própria casa. Muitos o criticam por esse
gesto, ao que Stefanello respondia: “-Vocês não tem dó de ninguém. Eu
quero salvar. É o demônio que manda no cristão? Eu quero salvar essa
pessoa” (Sr. Paulo). A qualidade de bondade e a capacidade de sacrifício
que se reconhecem em Stefanello têm uma função terapêutica, uma vez que “a
bondade funciona como um pólo do sagrado que, por si só, mantem afastado o
seu pólo oposto: a maldade” (Quintana, 1999, p. 176).
O caso do Alexandre
é curioso e paradigmático, desde o fato de morar com o padre até a
controvérsia sobre sua doença. Todos os entrevistados falam do Alexandre.
Alguns preferem dizer que se tratava de um epilético. Outros – a maioria –
aceitam aquilo que o padre dizia: que era um espírito maligno que
prejudicava a vida desse moço. Interessa-nos mostrar como, na perspectiva
dos moradores de Cascalho, o gesto de acolhida e a tentativa de ser uma
resposta para o caso foi decisivo para Stefanello.
Qual era o mal que
acometia o Alexandre? Para o Sr. Fausto Stefanello – sobrinho do padre
Luis – tratava-se de uma doença, mas o padre insistia em considerar como
espírito maligno:
Esse moço que tava lá junto
com ele, um tal de Alexandre, que falam que ele tinha o diabo. Não tinha o
diabo, não. Era epilético. Era doente da cabeça. Era doente. Era
epilético. E o padre pegou ele pra tratar dele: “-Não, eu vou curar, eu
vou curar ele, eu vou curar ele”.
O que é certo para o
sobrinho do padre é a vontade deste de curar, a determinação em querer
oferecer a cura. Porém, se de um lado há uma clara percepção de que o
estado atual do Alexandre é de uma doença, por outro lado, a forma como se
conta a origem dessa doença é bastante próxima de um castigo por haver
desrespeitado uma cerimônia religiosa. É o Sr. Fausto que nos conta:
Não sei como foi descoberto.
Esse tal de Alexandre, lá na terra dele, lá, pra lá de Águas de Santa
Bárbara, lá em Avaré... teve uma procissão lá, festa de Santo Antonio,
tinha umas par de rapaziada e ele também. Então, ele pegou e atravessou a
procissão a cavalo. Cortou a procissão a cavalo e foi embora. Isso foi o
que aconteceu. Certo? E ele daquela vez pra cá ficou ruim, ficou ruim, e
esse pai desse Alexandre e a mãe, e vai pra aqui e vai pra lá. E então,
descobriram desse padre Luis, que fazia a bênção, foram e foram que vieram
aí. A primeira vez deu a bênção, e foram embora. Depois, na segunda vez,
daí um tempo e voltaram outra vez. Foi onde que ele falou: “-Deixa ele
aqui, porque eu vou dar a bênção, vou tratar e vou curar ele”. Bom, não
curou, não.
Mas a insistência de
Stefanello por trazer um doente para perto e tratar pessoalmente dele,
relatado pelos entrevistados, não pode ser vista apenas como um gesto de
bondade, ou como uma atitude voluntarista. O “coração de ouro” de
Stefanello não elimina o fato dele considerar atentamente as regras
indicadas pelo Ritual Romano (1880). Neste encontramos que, nos casos de
possessão, o exorcista deve acompanhar o fiel, a fim de se certificar de
que está realmente livre, porque o demônio é o pai da mentira, e costuma
proporcionar a aparência de cura e libertação, mas depois de algum tempo
as crises retornam. O gesto de Stefanello pode ser entendido dentro do
contexto da sétima regra do ritual
(7), que diz:
Às vezes também, os demônios
podem apresentar alguns obstáculos para que o enfermo não se submeta aos
exorcismos, ou tentam persuadir que a enfermidade é natural; para tanto,
fazem o enfermo dormir durante o exorcismo e apresentam-lhe alguma visão,
ocultando-se, para que o enfermo se sinta libertado (1880, p. 322).
Por outro lado, é
possível considerar as semelhanças da terapêutica exorcística com outros
tipos de terapia que põem o acento na relação paciente-analista, o doente
e o médico, o possesso e o exorcista. Assim, o cirurgião, o psicanalista e
o exorcista, procuram de alguma forma, por meio do relacionamento próximo
com o paciente, extrair o mal que o aflige. No estudo que faz Ellenberger
(1994) sobre a história da psiquiatria vem sublinhado claramente como na
prática exorcística há o esforço da extração do espírito que passou a
habitar a pessoa, e vem indicado a parentela desta forma de “cura
primitiva” com a moderna terapia dinâmica e científica (p. 55). Quintana
(1999) nos diz que esta ação (do psicanalista, do exorcista) é do mesmo
teor das benzedeiras: elas procuram recuperar uma ordem, reconstruir um
sentido através do qual o cliente adquire condições de pensar e, assim, o
paciente, em interação com o terapeuta, aprende uma linguagem e, com ela,
a possibilidade de representar aquilo que lhe está acontecendo. Mas,
sobretudo, quando se tem diante de si uma existência psicótica (depressiva
ou dissociativa), é necessário que se possa testemunhar – como mostramos
com Stefanello – uma capacidade humana de acolhida que passa pela
fronteira da amizade. Segundo o juízo que dá o psiquiatra italiano Eugenio
Borgna (2003):
Escutar uma pessoa, saber
escutá-la com uma radical disponibilidade humana, significa em alguns
casos curá-la. Muitos agressivos problemas psicológicos e psicopatológicos
estabilizam-se, e chegam a extinguir-se, se antes de qualquer outra coisa,
consegue-se tomar consciência e escutar as pessoas. Quando V. E. von
Gebsattel, este grande psiquiatra alemão de intuições fulminantes, defende
que não se dá relação terapêutica e nem diagnóstica, em psiquiatria, que
não seja precedida de uma simples e imediata vizinhança entre médico e
paciente, no fundo não faz senão re-sublinhar a necessidade de vir ao
encontro de cada paciente na esteira de uma atitude de acolhida e, de
certo modo, de amizade (p. 176).
Segundo o depoimento
do Sr. Fausto, o padre não teria conseguido curar o Alexandre. Todavia,
assumindo a responsabilidade da vida dele sobre si e procurando
proporcionar um ambiente em que sua doença pudesse se manifestar,
Stefanello oferece um espaço verdadeiramente terapêutico para ele. Os pais
do Alexandre, ao procurarem o padre, estavam buscando a cura, alguém que
pudesse tirar o mal que ele adquiriu a partir daquele dia em que, num
gesto de desrespeito, atravessou a cavalo a procissão de Santo Antônio. O
que, na verdade, o Alexandre encontra é alguém que se tornou um verdadeiro
pai, protetor e amigo. Muitos nos relatam que o Alexandre tinha crises
violentas e por diversas vezes chegou a agredir o padre, mas este não o
despedia, ao contrário, colocava-se na defesa do Alexandre e, por vezes,
reagia contra aqueles que o maltratassem. Enfim, estes exemplos parecem
suficientes para esclarecer a modalidade pela qual se combate o mal em
Cascalho.
O mal, conforme o
pensamento de Ricoeur (1988), para ser entendido, exige a convergência de
pensamento, a ação e a transformação espiritual dos sentimentos. Esta
última é o plano da lamentação e da queixa, é o do protesto contra a idéia
da permissão divina. Aqui, a pergunta diante do mal é a seguinte: até
quando, Senhor? Contudo, é na convergência de perguntas que nascem no
plano emocional e dos caminhos que encontramos a nível prático que se cria
o espaço para novas significações. Um espaço que se traduz como uma
procura de sentido.
Verificando o livro
do tombo da paróquia de Cascalho e observando os relatórios das atividades
anuais, notamos como era intensa a atividade em torno das pessoas doentes
e mais idosas da comunidade. De outra parte, nas entrevistas transparece o
zelo com que o padre tratava alguém da família que estava doente. A
seguir, o relato de Dona Yolanda, mostra como que, para Stefanello, a dor
– que significa sentir, sofrer junto - está muito presente frente ao mal:
Esse meu irmão mais velho,
ele teve um problema de coração. Antigamente não tinha a medicina, não
tinha a experiência que tem hoje. E ele ficou doente. Eu morava em
Cascalho, mas ele morava lá na fazenda. E um dia o padre falou pro
Antonio: “-Vamos visitar o Arlindo, seu cunhado”. O Antonio
falou:“-Vamos”. E eu fui também, e passamos o dia lá, com o padre e meu
irmão que já tava bem ruinzinho. E depois, quando nós vinha vindo de
volta, o padre falou assim: “-Por que Deus não me tira eu em vez de tirar
essa criatura?”. E eu gravei aquilo, sabe? Que achou que, por ele ser
jovem, ele tinha vinte e seis anos, morreu jovem, jovem de tudo. E o padre
falou: “-Por que Deus não me tira eu, em vez de tirar essa criatura?”. É,
ele gostava muito dos meus irmãos, viu.
A frase: “Por que
Deus não me tira eu, em vez de tirar essa criatura?”, ficou gravada para
Dona Yolanda como manifestação do oferecimento de Stefanello em favor do
doente. A lamentação e a queixa diante da doença, da dor e da morte,
provocam o ordenamento da situação. Essa frase do padre não foi mais
esquecida pela irmã do Sr. Arlindo. A doença aqui é re-significada, porque
se expandiu numa queixa contra Deus, tal como encontramos no grito do
salmista: “Até quando, Senhor?”.
Este último plano,
do qual fala Ricoeur (1988), é o do sentimento. Nesse, o homem é levado a
dar uma nova significação ao problema do mal que o atinge pessoalmente. O
autor propõe a re-significação do mal como algo inelutável da condição
humana. A lamentação e a queixa frente ao mal podem também, tal como o
exercício de desligamento do trabalho de luto, ser re-significadas. Esse
trabalho, que visa uma mudança qualitativa da lamentação e da queixa,
permite que o pensar, o agir e o sentir, possam ser integrados. O primeiro
desses estágios é o da afirmação da existência do acaso no mundo e o de
que o mal não é uma punição a nenhum pecado do homem. O segundo estágio é
mesmo o da acusação de Deus, deixando emergir a queixa: “Até quando,
Senhor?”. Este “até quando?” mostra a dramaticidade do problema do mal
para cada pessoa. O terceiro e último estágio apontado por Ricoeur é o de
“descobrir que as razões de acreditar em Deus nada têm em comum com a
necessidade de explicar a origem do sofrimento” (1988, p. 51), porque,
para quem crê em Deus como fonte de todo o bem, o sofrimento é algo
escandaloso e inclui a vontade e a coragem de suportá-lo. Por isso, o
trabalho de luto diz-nos que é preciso acreditar em Deus, apesar de. Esse
“apesar de” é caminho de superação da revolta que se instala no humano
contra o Deus bondoso e faz entender, pela chamada teologia da cruz, que
Deus também sofre. O homem sofre, mas Deus junto com ele. Há uma
solidariedade. Todos esses estágios dizem-nos que a ordem do sentir é a da
transmutação, da nova significação frente ao irredutível sofrimento da
condição humana.
A questão do mal,
como vemos, é bastante complexa. E pensá-la dentro do contexto da cultura
popular é ainda mais exigente. Tudo o que foi dito acima ilumina
parcialmente os dados apresentados neste artigo, mas é necessário prestar
atenção no fato de que não se trata só das formas encontradas pelo
exorcista para responder, pelo seu comportamento e agir, ao problema do
mal. É preciso colher as imagens que o povo utiliza para falar do mal.
Então, deparamo-nos com uma concepção do mal muito mais como entidade, do
que com uma concepção tal como aparece no pensamento de Ricoeur, orientada
por preocupações de um combate ao mal e de reorientação da vida. O mal
tende a ter personalidade, tende a ser visto como uma entidade exterior e
não como uma questão internalizada de responsabilidade moral, como uma
questão de ética. O que é claro é que a temática do mal é mais ampla do
que a ética, fazendo, no entanto, parte dela. No caso de Cascalho isso é
bem evidente: não é possível pensar o bem sem mostrar o mal. Inclusive, o
padre Stefanello diz que construiu a igreja com o dinheiro do diabo. O
interessante é notar como, por meio de toda uma simbologia construída em
torno do diabo, revela-se o funcionamento e expressam-se as reações de
toda a comunidade de Cascalho.
No relato bíblico do
pecado de Adão, por exemplo, está evidenciado o mito antropológico por
excelência. Nesse mito, o mal aparece relacionado com o homem. Nele se
narra o surgimento, no seio de uma criação boa, daquela constituição má
que faz o homem perder o paraíso. É no espaço de liberdade que existe
entre Deus e o homem que se situa a ação do demônio, que é o anjo decaído.
Este mito antropológico, segundo Ricoeur (1960), mostra que o único homem,
num único instante e num único ato, instaura o acontecimento da queda. A
má escolha e a desobediência do primeiro homem são também mito da
tentação, da vertigem e da atração pelo mal. Esse mito introduz, por
exemplo, a figura da serpente, que é a que tem a função de seduzir e
atrair o homem. Com a figura da serpente, pode-se compreender que o mal
não tenha começado pelo homem, mas que este o encontre: a serpente é o
outro do mal humano. O mal exterioriza-se, e tem uma fisionomia inumana.
Ricoeur insiste em pensar neste símbolo da serpente porque ela nos indica
que o mal é o ceder, isto é, cair nas malhas do sedutor. Tal como afirmou
o Papa Paulo VI na audiência geral de 15 de novembro de 1972:
O mal não é mais somente uma
deficiência, mas uma eficiência, um ser vivo, espiritual, pervertido e
perversor. Terrível realidade. Misteriosa e temerosa. Sai do quadro do
ensinamento bíblico e eclesiástico quem se recusa reconhecê-la existente
(1972, p. 1169).
A vida cristã, por
sua natureza, possui essa dimensão de luta tal como aqui descrita. Para
demonstrar a vivacidade dessa dramática batalha, encontramos em Santo
Agostinho a descrição das duas cidades, em Santo Inácio de Loyola a famosa
meditação sobre as duas bandeiras que, no fundo, nos indicam que a
salvação do homem e a vitória sobre o mal não são automáticas, mas
relacionam-se com o movimento da liberdade do ser humano.
Do
ponto de vista teológico, trata-se de uma abertura à confiança Naquele que
venceu, pelo poder da sua morte em cruz, o poder demoníaco.
O que nos ensina a
comunidade de Cascalho, tal como recebeu do Pe. Stefanello, é que a
sedução do mal se vence na atenção aos gestos cotidianos: pertença fiel à
comunidade eclesial, a celebração dos sacramentos, a oração, a caridade
operosa e a atenção ao sofrimento dos outros.
Ressonâncias
Deve-se dizer que a
pesquisa desenvolvida na comunidade de Cascalho a partir do ano de 1999 e
levada a cabo em 2001, continua suscitando um movimento muito interessante
por parte dos moradores que, pela primeira vez, tem acesso a uma
publicação a respeito do próprio lugar e, do personagem padre Luis, e
puderam, por meio do método da história oral, contar as suas próprias
histórias de vida e os costumes do lugar. Aqui quer-se mostrar quais são
as ressonâncias do trabalho com a memória. O que se vê é a elaboração de
significados que mobilizam a vida das pessoas, um processo que agora vai
por conta própria e, está em função da vida do próprio grupo.
Um primeiro aspecto
surpreendente e que representou uma conquista para a comunidade: foi a
possibilidade de trazer uma relíquia, parte do corpo do padre Luis
Stefanello, para a igreja de Cascalho. A pesquisa revelou a luta que os
cascalhenses e a família de Stefanello tiveram de enfrentar junto à
justiça para trazer os restos mortais do padre de Águas de Santa Bárbara
para Cascalho. O padre Stefanello deixou Cascalho no ano de 1953 e, veio a
falecer em Águas de Santa Bárbara em 1964, onde também deixou suas marcas
como exorcista, sendo ali considerado um verdadeiro “padre Cícero” do
oeste paulista. A batalha judicial nos anos setentas foi perdida. Mas,
graças sobretudo ao movimento que a pesquisa foi suscitando, surgiu a
idéia de fazer o pedido ao pároco de Águas de Santa Bárbara para poder
trazer, senão todo o corpo do padre, ao menos uma parte dele. Havendo
comunicado a resolução ao bispo local e colocando-se em acordo com a
comunidade de Cascalho, o referido pároco respondeu positivamente ao
pedido, reconhecendo a importância da memória do padre Stefanello, que por
42 anos viveu em Cascalho, e do quanto era significativo para a comunidade
manter ao menos um pequeno sinal dessa presença: deu seu aval ao pedido
que a comunidade fez de trasladar o braço direito do padre para a paróquia
de Cascalho, município de Cordeirópolis. Mas a escolha de trazer o braço
direito não é aleatória. O braço direito é aquele que abençoava, que
expulsava o demônio, era, enfim, trazer o braço poderoso para Cascalho. A
comunidade celebrou solenemente esse evento. A comunidade de águas de
Santa Bárbara veio em romaria à Cascalho para prestar sua homenagem. No
altar lateral da Igreja, dedicado ao Sagrado Coração de Jesus, foi deposta
a urna, e desde aquela ocasião os fiéis mantêm ali suas velas acessas,
param para rezar e fazer seus pedidos. É causa de admiração a forma como
os mais velhos relacionam os acontecimentos de hoje a essa presença de
Stefanello. Prestemos atenção àquilo que diz o Sr. Paulo, numa recente
entrevista, realizada no dia 15 de agosto de 2003, portanto, durante a
festa da padroeira de Cascalho, Nossa Senhora da Assunção, ocasião em que
o bairro recebe tantos fiéis e peregrinos. Depois de terminada a missa
solene, pergunto ao Sr. Paulo o que estava acontecendo, e me responde:
O senhor não viu? Eu já
falei hoje cedo. O lugar mais bonito do que esse que nós vimos hoje aqui,
só no céu. Essa palavra eu já falei umas duas ou três vezes.
O mais curioso é que
a Assunção é a festa na qual se celebra a entronização de Nossa Senhora,
de corpo e alma no céu. Essa sintonia da resposta do Sr. Paulo indica que
ele estava vivendo plenamente o rito e a festa. O céu não é lugar
distante, mas se vive e se vê aqui: neste lugar bonito que é Cascalho no
dia da festa da sua padroeira. Devemos considerar que a jornada da festa
da padroeira começa cedo em Cascalho. O Sr. Paulo, nosso entrevistado,
estava participando de todos os eventos programados para esse dia. Quando
na primeira missa matinal perguntei o que estava acontecendo ele, com uma
só palavra, respondeu-me: “o céu”. No final da jornada, depois da
procissão, missa e coroação de Nossa Senhora, volto a interrogar o Sr.
Paulo e obtenho a resposta de que aquela jornada é viver o céu no nosso
hoje. Mas, ao ver tanta gente na festa, o Sr. Paulo faz algumas conexões
entre presente, passado e futuro que são interessantes acompanhar:
E aqui agora eu não sei o
que vai acontecer no Cascalho. Tá enchendo de casa. Tudo as ruas tem casa.
Primeiro não tinha nada. E estão fazendo cada coisa com esse padre Luis
Botteon aqui (...). O que tá acontecendo aqui eu até admiro. Eu que moro
aqui até admiro. Ele (o atual pároco) chama padres de todos os lados, aqui
vem bispo, vem tudo. Bom, o padre Luis Stefanello também foi baluarte. Foi
uma pena que ele saiu daqui, mas o braço dele tá ai (se referindo ao altar
do Sagrado Coração de Jesus onde está depositado os restos de Stefanello).
Para o Sr. Paulo,
dois padres representam uma coluna para a comunidade – o padre Luis
Botteon, que no tempo presente está realizando uma obra extraordinária, e
também o padre Luis Stefanello, que foi baluarte, mas que continua
presente, pois seu braço direito está agora na igreja que ele mesmo
construiu.
Em segundo lugar,
devemos considerar o movimento de conservação e preservação da história
local. É importante constatar o quanto as denominadas “festas italianas”
se tem tornado evento comum no interior do Estado de São Paulo. Contudo,
em determinados lugares, como por exemplo em Cascalho, tais eventos têm
produzido um movimento de interesse e desejo de conhecer as raízes
familiares. A paróquia de Cascalho tem levado adiante uma proposta de
resgate desses elementos, e junto com o fator religioso, com toda a sua
articulada estruturação no campo micro-social (mundo da família, das
relações pessoais) continua a ser, nas suas várias manifestações, ”topos”
fundamental para tantas pessoas poderem reencontrar e afirmar a sua
identidade. No ano de 2003, por exemplo, no qual a comunidade celebrava os
110 anos da chegada dos imigrantes italianos, fixou-se uma programação na
qual foram possíveis realizar o encontro de todas as famílias do bairro.
As famílias foram divididas em 4 grupos (composto de 16 a 18 nomes de
famílias), que se reuniram durante o ano de 2003. Nessa ocasião puderam
expor sua história, trocar informações, estar juntos com os parentes
próximos e distantes. Mas o que precisa ser destacado é a preocupação com
a coleta de material e documentos dessas famílias todas. O convite para a
festa das famílias comportava, portanto, um convite a disponibilizar:
fotos, documentos, objetos que estivessem ligados ao passado familiar. A
idéia fundamental é manter um banco de dados na Paróquia referentes a
todas essas famílias. Vale a pena destacar alguns aspectos que tornam
aquela “simples festa” um evento de construção de significados, em que
participar da festa comporta um trabalho de escavo nas raízes familiares.
A atmosfera da festa é de perguntas, de surpresas, de encontros, de
descobertas de familiares e de curiosidade que vai contagiando as diversas
gerações ali presentes. A praça da igreja, nos quatro encontros
promovidos, era um verdadeiro laboratório de pesquisa: exposição das
genealogias de famílias; fotos antigas e recentes dos grupos familiares;
posto de cadastramento das pessoas e um grupo especializado em informática
que tratava de recolher os documentos, fotografar e cadastrar os
participantes. Quando penso na praça de Cascalho por ocasião desses
eventos, vem-me a tentação de qualificá-la de praça da história e da
memória. Ouçamos o testemunho daqueles que participaram:
O Cascalho melhorou um 150%.
É uma maravilha aqui agora. Esse ano, todo o mês uma festa. Reunião de
famílias. Este ano tem mais dois grupos ainda. Nós vamos terminar o ano
com festa. Festa!!! Graças a Deus. Quando esse padre Luis Botteon veio
aqui... veio do céu. E não duvido (pausa): foi mandado. Foi mandado aqui.
Isso eu falo a verdade, fazer o que ele fez, o que está fazendo e que faz
agora em pouco tempo? (Sr. Fausto).
Para o Sr. Fausto, o
trabalho que realiza o atual vigário de Cascalho só é possível ser
compreendido na dinâmica do “mistério” no qual está envolvida toda a
comunidade. O Sr. Fausto ama chamar Stefanello de “abençoado padre”,
enquanto ao atual dá a qualificação de “enviado”. Foi mandado ali mas para
quê? Talvez para realizar uma obra em continuidade com a obra de
Stefanello e, assim, Cascalho vai melhorando cada vez mais.
O juízo que dá o Sr.
Geraldo Picollini a respeito das reuniões de família nos parece bastante
lúcido. No fundo, o que transparece é a preocupação pela família. Aqui o
Sr. Geraldo fala da importância do encontro entre as gerações:
Eu tô achando muito bom,
mesmo de verdade. Pelo seguinte: eu já falei com vários parentes e alguns
não puderam vir e outros não tem muita vontade. E eu falei: “-vocês estão
perdendo uma oportunidade tremenda, porque depois dessa nós podemos ter a
despedida. Aquela é um pouco mais triste, mas não vamos morrer, vamos
viver”. E então eu falei: “-vamos nessa aí, porque encontramos pessoas de
segundo, terceiro, quarto grau e vocês se conhecem, e isso é bonito”.
Porque podemos ter a diminuição do sangue no corpo da pessoa, mas o nome
não vai parar”. (Sr. Geraldo).
O laço familiar,
desse modo, ao lado daquilo que referia o Sr. Geraldo Picollini sobre o
significado da cadeia de gerações, começa a produzir um novo sentido para
a própria realidade individual. Um sentido que abre o horizonte contra a
tendência individualista do homem pós-moderno. Tal percepção de que a
história não nasce nem termina com o próprio si mesmo, mas nos precede e
nos supera, é fundamental em uma sociedade na qual as diversas
modificações sociais, políticas e econômicas estão produzindo uma
transformação substancial no que diz respeito à situação geracional.
Podemos falar de uma perda de identidade ou crise da própria ascendência.
As famílias tendem a não fazer mais memória histórica, o que produz graves
danos no nível que tange às biografias individuais e, conseqüentemente, à
vida da sociedade. Por isso, parece-nos fundamental sublinhar o que vem
ocorrendo hoje em Cascalho como conseqüência de uma retomada da biografia
do padre Stefanello e, junto dele, das histórias dos grupos familiares.
É evidente o
movimento que se está provocando, e que nasce em uma comunidade que quer
manter vivo os aspectos da própria identidade cultural. Conforme indicamos
em nossa dissertação de mestrado (2001), defendida na Universidade de São
Paulo sobre “As bênçãos e a prática de exorcismos na paróquia de
Cascalho”, na qual se afirmava que os gestos e as realizações em Cascalho
são pensados de maneira educativa. Desse modo, quando se propõe uma festa
ao redor do coreto e se convida a banda, é para reviver algo que acontecia
de fato ali, nos tempos em que o Pe. Stefanello organizava a banda para
tocar no coreto a fim de que as pessoas pudessem estar juntas nas noites
de sábado e domingo.
Ou
ainda: quando recentemente se propôs a construção do clube de esportes,
foi lembrado aquilo que o próprio Stefanello pensava a respeito de manter
e fazer com que o povo possa se divertir sadiamente no próprio ambiente
que vive. Assim, o que se vê é que a memória desse “padre poderoso”
possibilita à comunidade um contínuo repensar dos gestos e obras que se
devem realizar no presente.
Assim, as festas das
famílias e a preocupação com manter e recolher os documentos, de registrar
bem os eventos e, com o cultivar a escuta dos mais velhos por meio de
registros áudios-visuais, nascem a partir da divulgação de nosso trabalho
no seio desta comunidade. Certamente trata-se de um marco divisor,
sobretudo, no modo com o qual a Paróquia, as pessoas individualmente e as
famílias de Cascalho – e oriundas dali - passaram a lidar com as
recordações e a dar atenção à voz dos mais velhos, bem como, a valorizar a
documentação de que dispunham.
Estes são apenas
dois elementos que assinalamos do que um trabalho com a memória pode
produzir no interior de certas comunidades. O pesquisador não pode deixar
de colher as ressonâncias do seu trabalho quando esse se refere aos
elementos estruturantes da comunidade, tal como foi expresso, pelos
moradores de Cascalho na experiência religiosa em torno ao Pe. Luis
Stefanello.
Conclusão
É graças a essa
câmara vasta e infinita da memória que se efetiva um processo de contato
entre o presente e o passado. Por um lado, como diz Mahfoud (2003)
retomando as contribuições de Halbwachs, a memória é reconhecimento,
porque traz o “sentimento do já visto” e é reconstrução, porque faz um
resgate dos acontecimentos passados no quadro das preocupações e
interesses atuais (p. 134). O trabalho da memória, portanto, coloca-me
diante de uma dependência antecedente: “eu posso porque dependo da
herança”. O que dá consistência ao meu próprio existir é a consciência de
que dependo de meu grupo, dos elementos da tradição, de que tenho uma
hipótese inicial para o trabalho. É a memória coletiva, nas suas funções,
que, de um lado, assegura a continuidade temporal permitindo ao sujeito
deslocar-se sob o eixo do tempo e, por outro, possibilita o próprio
reconhecimento de si.
O
trabalho da memória converge com o da história, uma vez que esta busca
reconstruir e reconstituir os elos entre o passado e o presente, através
da distância histórica. Pelos testemunhos das pessoas que conviveram
diretamente com o padre Stefanello e pelo movimento de transmissão dos
acontecimentos, quando se dá ouvido aos relatos, notamos uma nítida tensão
entre a experiência do passado transmitida e o presente.
Esse seria o
movimento próprio e vivo daquilo que chamamos de “tradição”, que vem a ser
uma busca constante de encontrar e atualizar a experiência de significado
do mundo.
Por
isso, o trabalho com os relatos da memória é bastante enriquecedor. O
movimento de ir entrevistar e sentar-se ao pé de outros para ouvir, cumpre
uma finalidade social essencial, que é devolver às pessoas que fizeram e
vivenciaram a história um lugar fundamental, mediante suas próprias
palavras.
Segundo Thompson (1992, p. 42), todas as vidas são interessantes, e a
partir da abordagem oral, temos a possibilidade de ouvir a voz humana,
viva e pessoal, que faz o passado surgir no presente de maneira imediata.
Por outro lado, torna-se claro o tema da responsabilidade histórica, tendo
como perigo permanente o fato de que, se não fazemos a história, cada vez
mais perdemos a ocasião de sermos feitos por ela. Assim, ser responsável
pelo passado recebido é torná-lo gerador de novos sentidos. A necessidade
de recolher os documentos, objetos, fotos, cartas, e conservá-los, passa a
criar na vida da comunidade um horizonte de expectativa. Isso significa
que em Cascalho se vai compreendendo que o mal é esquecer, e trazer vida
ao passado significa dar esperanças para o futuro. Assim, ao exorcizar o
mal, esta comunidade abre-se cada vez mais às bençãos do presente.
Referências
Bibliográficas
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de 1933).
Notas
(1)
As relações de abertura da comunidade de Cascalho – tipicamente marcada
pelos italianos – com outros elementos que não faziam parte de sua
cultura, encontraram no Pe. Stefanello um veiculo facilitador, pois com
suas bênçãos ele atraía peregrinos de todas as partes do país, que
passavam a conviver com os italianos de Cascalho. A idéia de diálogo com
os elementos culturais brasileiros é, segundo estudo realizado por Azzi
(1987), uma característica das colônias italianas no Estado de São Paulo,
que difere da forma como se organizaram as colônias do Paraná e Rio Grande
do Sul, onde diversos fatores colaboraram para que se formassem “guetos
culturais”.
(volta).
(2)
“Aliqui ostendunt factum maleficium, et a quibus sit factum, et modum
ad illud dissipandum: sed caveat, ne ob hoc ad magos, vel ad sagas, vel ad
alios, quam ad Ecclesiae ministros confugiat, aut ulla superstitione, aut
alio modo illicito utatur” (1880, p. 323).
(volta).
(3)
Compreendemos o exorcismo como rito de passagem na medida em que este
aparece dentro da dinâmica litúrgica da vida da Igreja. Pensando, por
exemplo, no sacramento do batismo, que é um dos sacramentos da iniciação
cristã, encontramos o pequeno exorcismo antes que o catecúmeno faça a sua
profissão de fé e seja batizado. Por outro lado, precisamos observar que a
prática de afastar as forças malignas é presente também na própria
celebração da eucaristia, e sobretudo, se pensamos que uma vez ao ano, por
ocasião da Páscoa, renova-se as promessas batismais em seu dinamismo de
renúncia ao demônio e aceitação da verdade salvífica oferecida por Cristo
na cruz a toda a humanidade, pode-se perceber com maior facilidade que a
perspectiva tanto do sacramento como dos sacramentais possui esse valor de
passagem e de renovação para poder empreender com novo vigor as tarefas
cotidianas.(volta).
(4)
O teólogo russo Pavel Florenskij (2001) fala do valor mágico, místico e
potente da palavra. Esse aspecto mágico da palavra possibilita ao homem
compreender profundamente o que significa agir no mundo através da
palavra. Na palavra está condensada uma energia humana. E, além disso,
quando é pronunciada dentro de ritos, seja na magia, seja no exorcismo,
esta adquiri uma energia espiritual por si mesma potente. Vejamos o que
diz nosso autor: “Uma benzedeira, com as suas fórmulas murmuradas, cujo
significado nem mesmo ela compreende, ou um sacerdote que pronuncia
orações parte das quais são a ele mesmo incompreensíveis, não são a nosso
juízo fenômenos absurdos, como superficialmente pode parecer. Não somente
aquela fórmula vem pronunciada, é indicada e fixada a relativa intenção –
o propósito de pronunciar a fórmula. Estabelecendo-se, assim, o contato
entre a palavra e a pessoa, temos, portanto, finalizado o ato mais
importante. O resto acontece por si, como conseqüência do fato de que a
palavra já existe como organismo vivente, com estrutura e energia própria”
(p. 76).(volta).
(5)
Podemos dizer que a caracterização como possessão está norteada pelas
categorias que definem estes casos, segundo o antigo Ritual de exorcismo,
que põe os três sinais tradicionais para se reconhecer o caso, como: 1) o
uso de línguas desconhecidas, 2) revelação de coisas ocultas, que nenhum
meio natural pode explicar e 3) a exibição de forças que ultrapassam
notavelmente as forças naturais do sujeito (Rituale Romanum, 1880,
p. 322).(volta).
(6)
Sobre a autorização do Bispo ou ordinário local ver Rituale Romanum
(1880), p. 323.(volta).
(7)
O latino original recita: “Aliquando etiam daemones ponunt quaecumque
possunt impedimenta, ne infirmus se subjiciat exorcismis, vel conantur
persuadere infirmitatem esse naturalem; interdum in medio exorcismi
faciunt dormire infirmum, et ei visionem aliquam ostendunt, subtrahendo
se, ut infirmus liberatus videatur” (Rituale Romanum, 1880, p. 322).(volta).
Nota sobre os
autores
Marcio Luiz
Fernandes
é mestre em Psicologia pela USP-Ribeirão Preto e mestre em Teologia
Fundamental pela Pontifícia Universidade Lateranense de Roma, Itália.
Atualmente continua o doutorado de pesquisa em Roma. Contatos:
pemlf@libero.it
Marina Massimi
é Livre Docente e trabalha junto ao Departamento de Psicologia e Educação
na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo,
Campus de Ribeirão Preto, Brasil. Especialista na área de História das
Idéias Psicológicas na Cultura Luso-Brasileira. Contatos:
mmarina@ffclrp.usp.br
Data de recebimento: 26/02/2004
Data de aceite: 23/04/2004
Memorandum 6, abril/2004
Belo
Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/fernamass01.htm