Introdução
A investigação
filosófica (1)
sobre experiência mística remete à relação dinâmica e recíproca
Eu-Tu e à sua verdade vivida, atuada e conhecida, isto é,
considerada em suas implicações filosófico-fenomenológicas e
epistemológicas (Manganaro, 2002). Assim, o campo de pesquisa se focaliza
no mistério pessoal da experiência mística cristã, com sua
peculiaridade dentro de um campo comum mais vasto. Como atestam estudos
comparados – dentre os mais respeitados citamos Ancilli & Paparozzi, 1984;
Gardet & Lacombe, 1988; AA.VV., 1996 – nem toda experiência mística é
experiência de Deus: muito menos do Tu pessoal e trinitário que,
enquanto tal, já contém em si a alteridade. Considera-se a situação
paradoxal de falar daquilo que, por sua natureza, é um excedente
não-conceituável, inexprimível, mas tal paradoxo (Fabris, 2002; Lorizio,
2001) não conduz necessariamente a abandono da investigação: ao contrário,
é uma ocasião para identificação das linhas-mestras e métodos. Para
ilustrá-los adequadamente, apresentamos algumas indicações preliminares.
O século XX
filosófico colocou em crise três noções particularmente incisivas: a
pessoa, ofuscada pelo Eu absoluto, este fechado em sua
identidade-majestade monádica e portanto con-centrado no seu abstrato
subjetivismo; a experiência, diminuída a verificação “positiva”
segundo a lógica da medida, da quantidade, do cálculo e, na melhor das
hipóteses, da funcionalidade; e, por fim, a verdade, insignificante
em sua pretensão epistemológica numa postura relativista e/ou cética,
“fraca” em sua constituição, renuncia a si mesma.
Em contraste com
essa tendência bastante difusa, há muitos sinais de uma revisão do papel
da filosofia, que foi se delineando sempre mais como serviço. O olhar é
dirigido aos ganhos que ela, assim entendida, possibilita. Não iluminismo,
mas razão iluminada: a filosofia examina a experiência com consciência
refletida, “crítica”, sem que esse aspecto se torne hegemônico; pelo
contrário, deixando os fenômenos “falarem” em sua simples manifestação.
Neste sentido, a investigação teórica não se dá sem a uma postura de
“escuta”; nem ela perde sua estrutura autônoma, o que tornaria opaco o seu
caráter gnosiológico constitutivo e fundante. À pergunta “O que é a
filosofia?” pode-se, então, responder deixando emergir livremente aquela
dimensão de “amor” da qual ela é guardiã. Não é por acaso que sua
etimologia faz precisa referência à “sabedoria”.
Sugere-se aqui uma
leitura alternativa do tema alteridade: no habitual comércio lingüístico
das diversas disciplinas, de fato, “outro” é um termo de uso quotidiano,
que se manifesta na experiência ordinária da diferença. Mas a filosofia,
especificamente, oferece instrumentos metodológicos para que a leitura
proposta seja não só alternativa, mas, sobretudo, fundamentada e
consistente. Também ao se tratar da relação entre alteridade e experiência
mística, esta freqüentemente enquadrada como irracional, emocional,
intimista e até mesmo patológica. Fenomenologia e epistemologia oferecem
sua contribuição para dissipar esse equívoco. Freqüentemente elas se
apresentam entrelaçadas mas não confundidas entre si, cada qual
ressaltando um modo particular de interrogar, sem trair a economia do
conjunto. Além disso, ambas trazem um sentido realista à pesquisa,
articulando de modo concreto as complexas nuances ligadas à “vida
interior” de tipo agostiniano.
Trata-se de um
“viver” que se modula no “sentir”. “Sentir o outro dentro de si” é, de
fato, o significado mais próprio da Einfühlung (Stein, 1917/1998;
Ales Bello, 1992; Manganaro, 2000), que analisa a modalidade com a qual a
alteridade pessoal se apresenta a uma consciência que conhece e apreende o
“tu” como alter-ego, outro mas análogo a mim: partindo deste ponto
nodal, e mantendo a tripartição constitutiva da pessoa humana de matriz
paulina (Stein, 1932-33/2000) (2),
perguntamo-nos se o ato de conhecimento empático se aplica também ao Tu
com T maiúsculo, que é Deus; qual é o sentido da relação Eu-Tu
fundamentada nestes termos, e, particularmente, qual é o sentido da
criatura humana como imagem de Deus e analogia Trinitatis; e,
finalmente, qual é o estatuto epistemológico e gnoseológico desse “sentir”
e da linguagem que legitimamente o exprime.
Nas pegadas de
Agostinho, a investigação fenomenológica de Edith Stein toma a dimensão
interior como “sede” privilegiada da
experiência da
verdade.
Isso se dá entre interioridade, alteridade/ulterioridade e transcendência
(Stein, 1936/1999). Mas é graças ao único dado objetivável da alteridade
pessoal, o corpo vivo sensível, que se constitui a complexa relação entre
físico, psíquico e espiritual. O
Leib
permite o conhecimento aperceptivo do espírito e da psique de outros Eu; é
o veículo privilegiado através do qual se apreende a alteridade pessoal na
sua inteireza; carrega consigo os sinais visíveis da verdade da criatura
humana. A corporeidade viva fala de todo o ser que a habita e o seu dizer
pertence àquele extraordinário
modus
comunicativo que utiliza o alfabeto dos símbolos.
O símbolo – sinal
concreto que evoca sem revelar – não permite uma apreensão totalizante
daquilo que indica: pelo contrário, respeita seu silêncio e nesse sentido
remete a outro; além disso, rejeita a imobilidade e a resistência do
objeto – o que Martin Buber (1933/1993) polemicamente definiu “mundo do
isso” – gerando tensão, aspiração, vida. Observa-se, inclusive, que as
operações da imaginação se dão no ponto de encontro entre a consciência e
a corporeidade, esta envolvida no “sentir” místico também como palavra que
se faz gesto, práxis, ato. O nexo dinâmico palavra / ação resulta eficaz
na práxis litúrgica, na “lógica” sacramental e na Palavra que provém do Tu
eterno, Palavra que faz ser o que diz (3).
Pode-se também
observar que a noção filosófica de “experiência” não é unívoca: ela não
pode se separar do
Erleben
fenomenológico, tão sintonizado com a “vida interior” de Agostinho. É,
então, oportuno investigar a instância da consciência primariamente
interessada pela percepção mística de Deus, que é também o “sentido” da
sua presença. Quem é esse Eu, capaz de identificar o seu “centro” como
Self
e, além disso, capaz de relação com o Outro, com o Tu trascendente? O que
significa que a verdade habita a interioridade? E como explicar que Deus é
uma transcendência interior?
A questão da
subjetividade: vida interior,
Erleben,
verdade
Emerge a questão do
Eu, do
Self e do
Tu. O Eu individual pessoalmente relacionado, ao delinear-se – longe de
re-propor o
cogito
cartesiano ou a mônada sem janelas de Leibniz – significa acontecimento do
ser na concreteza de um mistério: o Eu é dado a si mesmo; o Eu é, mas não
por si mesmo. Aquilo que o Eu experimenta como mais próprio e pessoal não
é originariamente uma posse, mas o recebe de outros, do Outro, como um
dom: portanto o ser humano se constitui numa relação que diversifica. O
sujeito que interroga a si mesmo – segundo a tradição agostiniana – não é
aquele exaltado pelas modernas filosofias do Eu ou pelos vários idealismos
e positivismos, nem aquele disperso em vivências fragmentárias, delimitado
pela retórica contemporânea da cultura do nada ou da morte. Ao invés, é
uma subjetividade real, finita, concreta, não anônima, cônscia de sua
vocação assim como de seu limite: um Eu criativo, sem ser criador, aquele
Self
que cada um pode atribuir a si mesmo e ao alter-ego no momento em que se
re-conhece constituído de passividade e de atividade, como um ser pessoal
que age e sofre a ação, capaz de advertir e de indagar sobre o seu agir e
sobre o seu sofrer a ação. A reflexão filosófica ainda hesitante entre a
nostalgia de uma unidade monádica auto-referencial e o abandono a uma
complexidade fenomênica irredutível e, em muitos aspectos, devorante,
aceita um diverso “preenchimento”, abre-se em explorações outras, se
aproxima do Outro. O
ex-per-iri
da vida interior, portanto, não é mergulho do Eu no próprio
Self,
mas busca do Tu inexaurível que é, a um só tempo, subir e descer:
transcendência e imanência remetem uma à outra reciprocamente. Nota-se,
assim, que a noção moderna de
Self
pode ser aproximada ao que os clássicos indicam com o termo “alma” ou
melhor, “centro (ou fundo) da alma”, quando usado no contexto da
auto-consciência. A esse respeito, são preciosos os estudos de Jacques
Maritain sobre o conhecimento místico natural, conduzidos na trilha do
tomismo (Maritain, 1938/1978), as pesquisas de mística comparada de Louis
Gardet sobre a experiência indiana de Self, as de Olivier Lacombe
sobre a criatividade da poesia (Gardet & Lacombe, 1988) e as análises de
Carl G. Jung (1928/1967, 1940/1966) sobre Selbst, arquétipo
intemporal existente antes de qualquer nascimento e identificado com o
“Deus interior” do monoteísmo.
Mas é Agostinho o
interlocutor privilegiado nos estudos filosóficos sobre a experiência
mística cristã, cuja especificidade é a experiência da Alteridade que é
Amor. Para conhecer o “sentido” da presença de Deus é preciso aderir ao
próprio autêntico Eu. Assim já se delineia a primeira diferenciação
qualitativa entre uma verdade “especulativa” e uma verdade vivida,
experimentada, ligada ao campo da ação, testemunhada na concreta
experiência pessoal. Nesse contexto se insere a verdade da
scientia crucis,
sabedoria que é a intersecção dinâmica de amor, conhecimento e verdade,
como testemunhou São João da Cruz (Stein, 1950/1982). E já se configuram
as intricadas relações entre filosofia e mística na busca da verdade: a
gama de possibilidades varia desde a sua simples identificação, em uma
assimilação buscada em nome de uma sabedoria superior, até a denúncia
recíproca de uma contraposição insuperável devido ao racionalismo
programático da primeira e ao entusiasmo desvirtuante da segunda (Molinaro
& Salmann, 1997). Evitando esses extremismos, o ponto de vista aqui
proposto considera a oportunidade de uma relação complementar mais
equilibrada ao iluminar as conexões de imediatez/mediação, tempo/espaço,
presença/ausência, imanência/transcendência, revelando-se mais fértil ao
tender “para” a verdade. Filosofia e mística se encontram mas não
coincidem: ambas estão ancoradas no “concreto” do mundo interior e da
criatividade da pessoa humana, mas uma coisa é filosofia e outra é mística
(cf. Molinaro, 2003). A filosofia, como operação reflexiva, pode se voltar
para o valor gnosiológico do “sentir” comunicado pelos místicos, e pode
expor com sua própria linguagem o que a mística apreende na “visão”
vivenciada e exprime com linguagem simbólica e poética. Um modelo exemplar
do encontro entre elas é oferecido pelas investigações de Stein,
confirmadas na descrição da passagem pelos aposentos da alma de Santa
Teresa d’Ávila. Uma filósofa fenomenóloga e uma mística carmelita que
certamente conheceram Agostinho, cada uma desde sua própria perspectiva.
Mas o pensamento
ocidental moderno herdou a noção cristã de “interioridade” quase tirando,
dissociando a profundidade e a densidade que originalmente lhe era
própria. De fato, desde Descartes a interioridade resultou em
subjetividade, tornando-se sempre mais “sistemática” e egológica.
Voltar-se
ad intus,
como se delineia no realismo da fenomenologia que recupera o valor
cognitivo da intencionalidade da consciência, não é fuga do mundo nem dos
outros, muito menos perda do “sentido” do concreto, mas caminho na direção
que conduz ao encontro com o Tu eterno. Onde
intencionalidade
e
interioridade
mostram a sua estrutural co-pertença: trata-se da retomada do motivo
agostiniano, filosoficamente decisivo para a busca da verdade.
Mais em geral,
delineia-se, então, uma revisão da relação entre filosofia e cristianismo,
e da possibilidade de uma “filosofia cristã”. Em seu exercício crítico, a
filosofia pretende que a fé não recue frente à inteligência, enquanto ela
mesma se deixa investir pelo pensar na fé: isto comporta uma renovação
tanto da pesquisa sobre a experiência religiosa (constitutiva do ser
humano) quanto da postura da razão filosófica (não redutível ao modelo de
racionalidade das ciências positivas, antes, solicitada ao confronto e ao
diálogo com a teologia). De fato, o desejo de conhecimento pode ser
“preenchido” de diversas maneiras; cônscios que somos de se tratar de um
empreendimento inexaurível.
A pesquisa
filosófica expõe o sinal a força da qual emerge o termo “experiência
mística” como experiência da Alteridade que é Amor: sinal alimentado pela
dúplice raiz, hebraico-cristã e grega.
Manlio
Somonetti (1983) escreve:
A mensagem cristã
tomou forma inicial em categorias semíticas porque foi inicialmente
formulada em área semítica. Depois, aspirando a uma propagação universal e
difundindo-se em áreas de cultura grega, teve necessariamente de ser
novamente formulada segundo categorias de pensamento tipicamente
helenistas. Por isso, considero ter mais razão quem vê na helenização da
mensagem cristã não uma deformação devida à influência da cultura grega,
mas o resultado de um processo de adaptação. Processo inevitável e
natural, ainda que muito laborioso e sofrido, por ter se dado na dialética
entre tensões fortíssimas, buscando, por um lado, os indispensáveis
vínculos com o mundo circundante e, por outro lado, revelar a novidade dos
conteúdos e a identidade mesma da nova comunidade (pp. 7-8).
Contra o lugar comum
que indica a origem do pensamento filosófico exclusivamente nos frutos
intelectuais da civilização helênica - re-proposto na Itália por Marco
Vannini (1996) –, é oportuno ressaltar tanto o papel decisivo quanto a
novidade do cristianismo na cultura ocidental: na realidade, a fé cristã
logo contestou a sabedoria grega enquanto tentava apropriar-se de algumas
categorias suas; e a filosofia assumiu uma postura crítica frente ao
anúncio cristão, do qual não compreendeu a dimensão (não irracional mas)
anti-especulativa
da crença. Apesar disso, o confronto/choque transformou-se em cruzamento,
e cruzamento produtivo, não só sofrido. Nesse contexto, compreende-se a
misteriosa adesão ao eterno, que se realiza no amor e “por” amor: ela é
consentida ao Eu em virtude da
participação
à vida íntima do Deus trinitário, que se multiplica em si, que quer ser
também fora de si, e que transmite à alma humana um toque da Alteridade e
da Eternidade que a habitam. Então, a alma conhece como é conhecida e, na
medida em que conhece, ama assim como é amada, em um mútuo reforço de
conhecimento e amor. Daqui a peculiaridade da mística cristã,
extraordinária síntese, na novidade, de elementos veterotestamentários e
gregos.
Quer-se evitar uma
dúplice postura: a de negar qualquer valor à experiência mística não
cristã, acabando por ver nela uma espécie de árida introspecção ou mero
tecnicismo psicológico; e a de negar qualquer transcendência à experiência
mística cristã, fazendo dela um improvável panteísmo ou paganismo. Ambas
são rejeitadas: ou porque absolutizam as diferenças, ou porque não as
respeitam. Enquanto leitura filosófica da alteridade pessoal em sua
relação com o “sentir” místico, a investigação se concentra,
inevitavelmente, na experiência do Outro como
união transformante,
e não como mística da identidade/unidade indiferenciada. O ato unitivo não
elimina a diferença, antes, a reforça: é sempre um
ex-per-iri,
um “ir-através”, ou seja, um “ir-de” “passando-por”. O “fato” místico
cristão não nasce somente pela busca de Deus por parte do Eu finito, mas
pela experiência objetiva da irrupção do Tu eterno na
história
e, particularmente, na história de cada indivíduo: é então profundamente
ligado ao mistério da relação dinâmica Eu-Tu, pessoal e recíproca, em uma
espécie atravessamento do tempo que se anuncia como acontecimento tenso
entre o “já” e o “ainda não”.
A mística e as
místicas
A leitura filosófica
do mistério das relações mais profundas entre o ser humano e Deus é um
campo minado pelas históricas acusações de irracionalismo, intimismo e
sentimentalismos por parte de uma filosofia reduzida a verificação e
quantificação, a exercício categorial e pensamento calculador; e, no
entanto, trata-se de um campo a ser cultivado pelo filósofo que ainda
saiba e queira exercitar a capacidade de maravilhar-se frente às amplas
possibilidades de que ele dispõe. É significativo que isso tenha
acontecido no século XX, que freqüente e insistentemente se auto-proclamou
a-teu e a-gnóstico. De fato, são muitos os pensadores ocidentais “sem
Deus” que (mesmo não compartilhando certas perspectivas) têm de alguma
forma cultivado a abertura à alteridade ulterior, ao
plus,
isto é àquela dimensão de tácita excedência, subterrânea, escondida e,
todavia, reinante, que é portadora de sentido (4).
Às vezes esta
experiência se configurou como intimismo espiritual e ascético, que de
fato acaba fazendo coincidir o “centro” do Eu e o “centro” do Absolsuto,
em uma identidde experimentada como originariamente in-diferenciada, pura,
intacta, sem resíduos: como nas
Upanishad,
quando é pronunciada a fórmula que significa a identidade do
atman
individual e do
Brahman
absoluto. Tal conhecimento, supremo e imediato, é chamado
advaita,
termo sânscrito que significa “não dualidade” e remete ao saber místico
sobre a realidade absoluta: trata-se da chamada mística in-stática ou
monista, que provoca fortemente o interesse do filósofo (5).
Outras vezes ela foi percebida como experiência do Nada, do Vazio, do
Abismo, além ou acima do Ser: é o caso de
Grund der Seele,
“fundo da alma”, expressão com que Meister Eckhart designa a realidade
mais verdadeira e profunda do ser humano (6).
Em outros casos, a experiência mística foi tomada como gozo estetizante do
universo, do Todo cósmico, da natureza e da beleza. Como é sabido, os
místicos do Todo cósmico se
ek-stasiam,
se dilatam além de si mesmos, além do espaço e do tempo, até sentirem-se
ontologicamente idênticos à universalidade da existência (nela se
dissolvendo ou sendo absorvidos): trata-se de abolição dos limites entre o
eu e o mundo, por acompanhar uma espécie de unidade-identidade
substancial, obtida através da anulação de qualquer distinção; ou então
eles a acolhem como imersão no reino do não-temporal e como imediato
contato com a imensidade. Este último tipo de experiência revela a
capacidade criativa do sujeito: a poesia é um exemplo típico, cujo dom
pressupõe um certo recolhimento da alma voltado à escuta do ser secreto
das coisas: a esse respeito, Maritain (1983) fala de um “pré-consciente
espiritual”, cujo descuido, em favor do inconsciente surdo e automático de
Freud, é para o filósofo francês, um sinal da insensibilidade dos tempos
modernos (7).
Para ele, a intuição criativa, ainda que movendo-se desde o
supra-consciente do espírito, se realiza através da virtude da arte: ela é
uma virtude intelectual, mas não uma pura forma intelectual (só Deus, de
fato, é perfeito criador). Desse modo, a poesia abre à mística, mas o
simples gozo da beleza ainda não é a experiência mística autenticamente
entendida.
Em outras tradições,
ainda, a experiência mística foi entendida como experiência do profundo do
Self ou da substância da alma, apreendida em ato-primo da existência, por
meio de um vazio intelectual (8):
são as várias místicas, cuja descrição foi geralmente confiada a uma
linguagem simbólica, alusiva, poetizante, memorizante. Pesquisas em
história comparada das culturas e das religiões ofereceu, a esse respeito,
densas contribuições: emergiram importantes afinidades com os fenômenos
descritos pelos grandes místicos cristãos. De fato, são conhecidos também
pelos não-especialistas os surpreendentes resultados a que chegaram
ascetas indianos, budistas e muçulmanos, mediante antigas e refinadas
disciplinas do corpo e do espírito: só em alguns casos, todavia,
encontramo-nos diante de fenômenos de comprovada autenticidade religiosa e
mística. Como afirmou Henri de Lubac (1996, p.20), “é uma tese muito
difundida a de que não só o misticismo está em toda parte, mas que em todo
lugar é igual. E esta tese é apoiada por muitas aparências”. Torna-se,
então, necessária uma busca séria, analítica e minuciosa, que saiba
distinguir, separar, cindir. Desde já é oportuno remarcar a peneira
existente entre “mística” e “misticismo”. Peneira essa, ao mesmo tempo,
conceitual e axiológica, indicando em um caso a experiência da presença de
Deus, que está e permanece ligada ao “mistério”, e, no outro, uma postura
de vaga religiosidade estetizante ou então uma disposição a apreender a
dimensão interior, sentimental e espiritual da existência (9).
Obviamente, o mistério é e permanece tal: mas tendo sido pelo menos
parcialmente revelado, torna-se possível indagá-lo, cônscios de que
re-velar-se é também um velar-se novamente (10),
ou seja – dizendo em termos mais propriamente filosóficos –, que o sentido
último é também limite de sentido.
A experiência
mística entre fenomenologia e epistemologia
A leitura filosófica
do tema aqui examinado, que analisa a intencionalidade da consciência em
seu vínculo com a experiência mística, se define por um lado como
investigação epistemológica – pode-se aqui falar de “experiência”? e de
que tipo de experiência se trata? Tal “experienciar” consiste em um
conhecimento? Com que tipo de linguagem é possível exprimi-la? Que tipo de
“presença” é aquela que se manifesta no Self e/ou na alma? Que tipo de
“participação”? e, por fim, quem é o verdadeiro sujeito ativo da relação
Eu-Tu que acontece e desenvolve no tempo? – e por outro lado como pesquisa
fenomenológica
– colocando em evidência as vivências (Erlebnisse)
que subjazem a tais experiências e no rigor do método essencial, capaz de
uma legítima fundamentação filosófico-ontológica da alteridade pessoal.
Em relação a este
último aspecto, pode-se rapidamente afirmar que o pensamento ocidental
moderno e contemporâneo se caracteriza como filosofia do eu ou do sujeito.
Este é o ponto focal do qual partem, para depois se diversificarem pelos
diversos caminhos da filosofia. Desde o
cogito
cartesiano até a revolução copernicana de Kant, das estruturas essenciais
da consciência indagadas por Husserl até o existencialismo, o
personalismo, as filosóficas éticas do rosto, desde a relação e diálogo
até as teorias sociais da ação comunicativa, a questão do sujeito se
delineou com insistência sempre crescente. Trata-se de um sujeito, sem
dúvida, pensante, conhecedor, ético, intencionalmente interrogante: mas
pensante, conhecedor, ético e intencionalmente interrogante porque
vivo.
Ao invés de um idealismo e solipsismo estritos, a questão moderna do
sujeito me parece,
mutatis mutandis,
uma retomada do tema agostiniano, revisitado e re-atualizado por uma
contemporaneidade freqüentemente em crise com relação à presumida
exaustividade da ciência e da técnica. Do íntimo da civilização do
progresso pessoal ressoam contínuos apelos a uma experiência de plenitude
que nenhuma práxis, nenhuma eficiência operativa tem condições de nos dar.
À pesquisa filosófica hodierna, que tenha a intenção de interrogar a
complexa questão da mística, impõe-se então uma séria reflexão sobre o Eu,
o Self e sobre o Tu, que pode também ser chamada de investigação sobre
identidade, alteridade e reciprocidade – ou então sobre pessoa, indivíduo
e relação. Interessa-me assinalar, por um lado, a não redutibilidade do
ser humano a sujeito ou ao Eu; e por outro lado, a sua dinâmica
intencionalidade experiencial, que é o cerne do ser voltado-para, como
postura constitutiva da pessoa humana.
Porponho, portanto,
uma leitura da questão filosófica do sujeito da mais recente aquisição
como redescoberta da dimensão interior do ser humano, segundo a indicação
do bispo de Ipona em
De Trinitate
(XV, 12): “Intima
scientia est qua nos vivere scimus”.
Nós vivemos, sabemos que vivemos, e o sabemos com íntima certeza: onde o
nos
agostiniado supera, em muito, o
ego
cartesiano pela abertura à intersubjetividade. Na
vida interior
de Agostinho, como na
Erleben
da fenomenologia, encontra-se uma pluralidade de experiências, de atos, de
vivências, entre as quais o pensar. Ao invés, em Descartes essa rica
multiplicidade é enfraquecida, se não esmagada, pelo núcleo monolítico
constituído pelo
cogito.
É, em suma, o ser humano vivo, mais que pensante, com relacionamento
experiencial em que se volta para o mundo circunstante comum, para as
coisas outras, para os seres humanos e para a Alteridade (com A maiúsculo)
– o que definitivamente leva o filósofo contemporâneo à interrogação
itinerante. Itinerante, note-se bem: porque aqui está o sentido próprio do
ex-per-iri
que deve ser ampliado.
A experiência
entendida em seu sentido etimológico e semântico como per-curso
cognitivamente dinâmico encontra uma precisa correspondência no termo
alemão
Erfahrung,
onde fica claro o vínculo com o verbo
fahren,
“viajar”. Trata-se, nota Adriano Fabris (1997), do
nexo com a
experiência que se faz percorrendo lugares novos e com o tempo, a
paciência, que a viagem mesma requer.
Erfahrung
indica, assim, uma espécie de necessária abertura, exprime o ímpeto de
sair dos lugares familiares – e antes de mais nada de si mesmos – para
aventurar-se em lugares desconhecidos, dispostos à maravilha e à surpresa
(p. 17).
A lição dada pela
questão etimológico-semântica da palavra “experiência” é justamente o
tema-guia da articulada reflexão de Fabris, que com propriedade ressalta a
“sabedoria insconsciente” da língua latina que com o único termo
experientia
consegue sintetizar o significado que no Livro
A
da
Metafísica
aristotélica vinha expresso com três diferentes vocábulos gregos: 1)
aisthesis
(sensação, sentimento, intuição), como relação imediata, passiva, com uma
alteridade pela qual somos afetados na sensação; 2)
empeiria
(habilidade, prática), como capacidade de ordenar, catalogar, memorizar as
impressões pelas quais fomos passivamente golpeados; 3) e, finalmente,
peira
(experimento, prova) como possibilidade de ampliar tal cognição, tanto
para fins práticos quanto para o puro amor à ciência e ao saber. Mas
depois, assinala Fabris, dá-se conta de que a experiência em seu conjunto
não resulta da simples soma de sensações provadas, de experimentos feitos
colocando à prova nossas cognições e pelo desenvolvimento de um
conhecimento a ser aplicado ou contemplado, porque
ex-per-iri,
articular uma experiência, significa primariamente realizar a conexão de
todos esses aspectos, em um per-curso dinâmico presente, como dizia também
do alemão
Erfahrung.
Tudo isso resulta evidentemente ligado ao outro termo alemão,
Erlebnis,
que dizendo a experiência vivida indica não somente o sujeito conhecedor,
mas também todo o ser humano, vivo e intencional.
Ex-per-iri,
então, como disposição, como vocação à alteridade? A noção abstrata de
“sujeito”, com efeito, não coincide com a noção concreta de “eu”. E o ser
humano não é gnoseologicamente sujeito, nem eticamente pessoa, se não for
marcado pela diferença, pela relação e pelo encontro com o que é outro e,
em última análise, pela vida mesma, com suas correntes e fluxos temporais,
dos quais não há como se esquivar. É óbvio que o lugar privilegiado para a
investigação sobre a mística é o sujeito místico, aquele que pessoalmente
vive – e depois expressa e descreve – essa experiência peculiar de um
contato com algo que tem sido chamado de o Sagrado, o Numinoso, o
Transcendente, o Divino, o Absoluto, o Totalmente Outro. Determinando o
significado mais rico e profundo da existência humana, essa vivência se
configura como evento pessoal. Então a filosofia – não iluminismo, mas
razão iluminada – poderá fornecer uma lúcida leitura de tal fenômeno, que
só aparentemente está distante do âmbito de pesquisa que lhe é mais
próprio.
A estrutura da
pessoa humana
O délfico “conhece a
ti mesmo” ganhou um significado novo. A ciência positiva vale na dispersão
mundana. É preciso, primeiro, perder o mundo mediante a
epoché,
para reavê-lo depois com a tomada universal de sentido de si.
Noli foras ire,
diz Agostinho,
in te redi, in
interiore homine habitat veritas.
Com estas palavras
Edmund Husserl (1963 /1990, pp. 210-211) esclarece que conhecer a si mesmo
adquiriu um significado mais amplo: agora é um conhecer que não pode mais
prescindir do encontro com um rosto, está sempre dirigido a um “tu”, o
qual – agostinianamente – vem a ser experienciado, sentido, vivido na
inteireza do próprio ser. Este é o significado mais profundo da
intencionalidade, do “voltar-se para”, assim como foi enfatizado pela
escola fenomenológica: neste sentido, a consciência é sempre consciência
de, movimento e orientação para, mesmo quando se trate do
percurso interior, da viagem pelos aposentos recônditos da alma.
Assim, a experiência
mística considerada na sua valência específica de mistério pessoal
dirigido ao Tu (com T maiúsculo) que é Deus, vem a ser lida
filosoficamente por meio de uma análise fenomenológica regressiva que,
acompanhada pela precisão epistemológica e etimológico-semântica dos
termos-chave em questão, permite apreender o fenômeno em seu
oferecer-se/manifestar-se “em carne e osso”.
A antropologia
filosófica proposta por Edith Stein identifica na pessoa humana os
elementos da corporeidade, da psique e do espírito como agregados
constitutivos, aos quais correspondem grupos de vivências qualitativamente
homogêneos (cf. Pezzella, 2003). Ela se move em base husserliana: a
exigência comum é a de intender à unidade da estrutura do ser humano não
obstante a complexidade de sua constituição. Husserl havia descrito as
três esferas essenciais como nuances de uma única, profunda realidade. São
elas: o
Leib, o
corpo próprio vivo, cuidadosamente diferenciado do
Körper
material; a
Seele
ou atividade psíquica; e, por fim, o
Geist,
a esfera espiritual (11).
Através de pacientes operações de escavação fenomenológica, Husserl havia
habilmente recuperado a tradicional partição corpo / alma, porém
identificando com mais detalhes certas funções e momentos que haviam sido
apenas esboçados. Em particular, a definição da corporeidade como “viva”
remete a um profundo vínculo com a atividade psíquica,
Seele,
clarificada em sua peculiaridade com relação ao momento especificamente
espiritual,
Geist.
Husserl retomou as vivências presentes atrás e/ou sob as determinações
tradicionais de alma e corpo, sem negá-las, mas indagando analiticamente
em um longo processo de esclarecimento (12).
Stein continua as
pesquisas do mestre e destaca do conjunto das capacidades psíquicas um
“núcleo” da personalidade (Persönlichkeitskern)
– determinado causalmente – que, completamente desvinculado das
influências do processo psíquico, todavia, tem condições de cumprir um
papel decisivo em todos os vários eventos psíquicos: trata-se daquela
consistência, imutável e originária, que determina a vida espiritual de
cada indivíduo. Como já indicado, isso não é uma novidade na área dos
estudos fenomenológicos: algo semelhante já havia sido assinalado pelo
próprio Husserl quando afirmara que a pessoa é a individualidade de uma
subjetividade (Husserl, 1973), ou seja, o “centro” da atividade subjetiva
e espiritual.
Stein retoma esses
motivos e os submete a uma intensa análise fenomenológica. É
particularmente impressionante a sua reflexão sobre a presença da
corporeidade na vida da alma e do espírito e suas considerações sobre
ascese e êxtase. Este último é o estado em que o corpo, não obstante a sua
miséria e precariedade, recebe e acolhe a luz que inunda a alma: não se
trata de um “fato” mecânico, mas de um acontecimento, de um evento
misterioso no qual se manifesta a ação divina. Disso – observa a filósofa
– é hipotizável que a salvação não se refira somente à alma, mas também ao
corpo. De fato,
Somente o afluxo da
Graça é capaz de transformar a via da ascese em caminho da salvação. [...]
A ascese sacrifica a saúde e a beleza do corpo vivo e também a liberdade
natural,
que ele pode garantir [...]. Perguntemo-nos se este é o único modo de
chegar à liberdade. Certamente é a única via que o ser humano é capaz de
percorrer
por si mesmo
[...]. Quanto mais a alma é preenchida pelo espírito da luz, tanto mais
desaparece dela todo o resto, o inteiro mundo terreno e o próprio corpo
vivo que dele faz parte. Esta separação pode, no
êxtase,
culminar em completa insensibilidade e em um rapto total. Este é um puro
efeito da Graça que desde o interior vai para o exterior e não há outra
atividade própria além de abandonar-se a ela (Stein, 1930-32/1997a, p. 94)
(13).
Mas a separação do
corpo vivo não é o único efeito da Graça. Antes, o
Leib
não pode ser considerado uma espécie de “prisão” da alma, que lhe coloca
obstáculo impedindo que se eleve; é como o seu “espelho”, no qual a vida
interior se reflete e através do qual a alma entra no mundo visível. O
corpo vivo animado vem a ser iluminado: a mesma luz que preenche a alma o
penetra e se irradia nele; trata-se do que a filósofa define “santificação
do corpo vivo através da alma” (Idem, p.95). Então o corpo vivo
santificado não oprime a alma, antes é sua morada encarregada de atualizar
uma vida concretamente livre. Neste ponto Edith Stein introduz o
importante discurso sobre a experiência sacramental, especialmente a
eucarística: aquele/aquela que recebe em si o corpo de Cristo vê
santificado o próprio corpo vivo; assim se restitui a relação originária
entre a alma e o
Leib
e se recompõe toda ruptura, desagregação ou separação. Stein termina com
uma afirmação extraordinária, densa de implicações: a participação à vida
sacramental favorece, ou eventualmente restabelece, o equilíbrio
psico-físico dos ser humano.
A pessoa humana,
observada como um todo, se apresenta como uma unidade de características
qualitativas formada por um núcleo (Kern).
A investigação de Stein parece ter uma pergunta subtendida: estamos aqui
realmente diante do que a tradição chama de “alma”? A filósofa
fenomenóloga afirma que “a consciência do núcleo da personalidade é, com
relação ao conhecimento da vida espiritual, algo novo e característico” (Stein,
1922/1996, p. 126). Por um lado, com o termo “alma” entende-se a atividade
psíquica; por outro, é possível colocar em evidência uma conexão mais
profunda com a dimensão espiritual: este é o motivo pelo qual a noção de
“alma” é geralmente referida ao vínculo psíquico-espiritual constituído
por este “núcleo” absolutamente independente de qualquer outra realidade.
Stein oferece uma aguda descrição essencial das esferas da psique e do
espírito, identificando suas afinidades e distinções. O ponto é que a alma
está ligada tanto à dimensão psicofísica quanto à espiritual, e isso causa
uma certa dificuldade de exposição. Com relação a isso, ela afirma:
É a alma que vive em
todos os atos espirituais e sua vida interior é uma vida espiritual.
Contrastamos espírito e alma, mas isso não deve ser entendido como
excludente, do tipo um ou outro. A “alma da alma” é uma realidade
espiritual e a alma como totalidade é um ser espiritual cuja
característica é a de ter uma interioridade, no centro, do qual ela deve
sair para encontrar os objetos e ao qual ela conuz tudo o que recebe do
exterior; um centro do qual pode doar si mesma também para o exterior.
Aqui encontramos o centro da existência humana (Stein, 1930-32/2000, p.
122).
Então, a alma que
por um lado está ligada ao
Leib
apresenta uma parte propriamente espiritual. Com o espírito dirigimo-nos
intencionalmente para o mundo; ao invés, a alma o acolhe completamente em
si e liga-se a ele. Cada alma individual é um modo peculiar, próprio. Mas
essa diferença corre o risco de desaparecer: de fato, aquele pleno
acolhimento deve consistir em um apreender na alma e com a alma, ou seja,
em um emergir da alma de si mesma. Trata-se, na realidade, de uma ação
propriamente espiritual: os limites entre a alma e o espírito, então,
correm o risco de anularem-se. A vida da alma é, então, uma atualidade
espiritual (Stein, 1922/1996, p. 248): aqui acontece o encontro com a
Alteridade-Verdade.
Como se vê, a
antropologia filosófica de Edith Stein caracteriza-se por um precioso
equilíbrio, lendo a alma como núcleo vital de um ser
corpóreo-psíquico-espiritual: trata-se do mesmo equilíbrio que permite
harmonizar busca espiritual, teologia e filosofia no caminho que conduz à
verdade.
Busca agostiniana,
mística carmelita, análise fenomenológica da alma
Agostinho indica a
investigação interior como estrada-mestra em direção à verdade,
percorrendo-a pessoalmente, descrevendo a fecundidade de seus
desenvolvimentos ao mesmo tempo experienciais, espirituais e existenciais.
Neste sentido, trata-se de um pensamento “forte”, que fundamenta e
orienta. Voltar o olhar para Agostinho significa repensar, hoje, um dos
gestos mais eficazes da filosofia cristã: o da viagem da alma, ou melhor,
o de empreender a viagem em busca da verdade na própria alma. Onde desejo
e conhecimento, transcendência e imanência confluem ao atravessarem o
enigma, o fundo misterioso: “Deum
et animam scire cupio”
afirma Agostino em
Soliloquia
(I, II, 7), não
distinguindo a busca do Ser eterno e transcentende da exploração das
profundezas do ser finito, cuja vida interior é “experimentável”,
“concreta” e “dizível”. No primado da busca interior se chega ao desejo do
conhecimento: Agostinho quer conhecer Deus assim como é conhecido por
Deus, por dentro, intimamente, com um conhecimento criador, que provém do
amor. A alma e Deus: compreende-se agora que a interiorização perfeita é
possível somente em função de uma transcendência suprema, de uma
Alteridade pessoal suprema. Por um lado, conhecer Deus significa, em
última análise, penetrar na vida íntima da Trindade; por outro, a alma é
enigma, e que o Outro habite no “fundo” da alma é um enigma dentro do
enigma, que, todavia, o transcende e supera. O Tu (com T maiúsculo) e o
ser humano individuado no seu “centro” são colocados no mesmo “lugar” e
reciprocamente ligados na experiência que tende não à posse mas à visão da
verdade – verdade essa que é e permanece inexaurível. Trata-se do mistério
abissal da alma: está “dentro” do ser humano e, todavia, está fudamentada
em um Outro, que a transcende. Neste sentido, não é, certamente, possível
colocar as mãos em Deus, possui-lo, apreendê-lo sem resíduos; mas é
possível encontrá-lo em uma experiência de relação pessoal recíproca,
vivida e dinâmica. O que significa, de fato, que o ser humano é
imago Dei?
Qual são os traços visíveis do invisível que nele foram impressos?
No
ex-per-iri
descrito nas
Confissões,
a alma se abre ao mistério inexaurível do Outro: do ponto de vista
filosófico, isto significa que o esforço de Agostinho volta-se para a
dimensão interior como legítima “sede” da experiência da verdade. E
justamente a Agostinho, filósofo da vida interior, Edith Stein se refere
na conclusão do seu estudo
Die Seelenburg,
dedicado à experiência mística de Santa Teresa d’Ávila:
Ninguém penetra tão
no fundo da alma quanto os homens que abraçaram o mundo com coração
ardente e depois foram libertados de todo obstáculo, pela potente mão de
Deus, e introduzidos na própria esfera interior e em sua mais recôndita
intimidade. Ao lado de nossa santa Madre Teresa devemos colocar aqui, na
primeira fila, Santo Agostinho, tão profundamente afinado com ela e assim
sentido por ela mesma. Por esses mestres de auto-conhecimento e de
auto-descrição as misteriosas profundidades da alma foram iluminadas como
dia: para eles, não somente os
fenômenos
– a superfície agitada pela vida da alma – são fatos inegáveis de
experiência, mas também as forças que pulsam na imediata vida consciente
da alma, e até mesmo a própria essência da alma (Stein, 1936/1997, p.
145).
Mas consideremos que
Stein encontra, na experiência descrita pela mística carmelita, uma
decisiva correspondência com os resultados da análise
fenomenológico-essencial da estrutura da subjetividade, anteriormente
conduzida através da explicitação das noções de consciência, de
Erlebnis,
de intencionalidade, com ênfase nas dimensões constitutivas da
corporeidade, da psique e do espírito (14).
Trata-se de um encontro tão preciso a ponto de se tornar uma verdadeira
validação. Stein, de fato, havia feito uma descrição puramente teórica da
alma como “núcelo” (Kern)
da pessoa humana entendida como conjunto físico, psíquico e espiritual,
mas logo se deu conta de que não poderia conseguir uma definição completa
sem falar também daquilo que
concretamente
constitui a sua vida íntima. A esse respeito, Teresa d’Ávila tinha
utilizado a imagem do castelo de muitos aposentos para esclarecer o
desenvolvimento dinâmico da vida interior – metáfora eficaz que focaliza
os diversos graus ou níveis a serem percorridos pelo ser humano que se
encaminha no desejo de encontrar a verdade: não uma verdade abstrata, mas
uma verdade vivida, além de compreendida, então uma verdade experimentada
pessoalmente. No centro do castelo, no aposento mais interno, é onde mora
o rei, o senhor da alma; em volta do seu aposento e acima dele
encontram-se muitos outros: a capacidade da alma, de fato, supera toda
imaginação humana em amplitude, grandeza, profundidade. Fora das muralhas
que o circundam há o mundo externo: quem habita ali ignora completamente a
vida que se desenvolve no interior do castelo e, acrescenta Stein, “é
mesmo estranho, é uma situação patológica, que uma pessoa não conheça a
própria casa” (Stein, 1936/1997, p. 119). Em torno do aposento mais
interno, o do rei, há outros, ou seja, há seis etapas que o ser humano que
desce ao seu íntimo percorre antes de chegar à última, a sétima, a que
constitui o mais alto grau de vida de graça atingível na terra: ali se dá
a visão da verdade. (15)
A alma não fica
estaticamente imersa na contemplação de Deus, quase excluída do mundo,
solitária e isolada, mergulhada em si; pelo contrário, quer levar o amor
experimentado a outras criaturas: transformada pela união, com a força
recebida leva sua ação ao mundo. Nesta específica passagem é possível
identificar uma importante afinidade com as pesquisas fenomenológicas de
Stein, que tinha delineado uma precisa característica da alma como ligada
à psique e ao espírito. A santa espanhola intui o que Stein explicita
precisamente nos seus estudos filosófico-fenomenológicos, isto é, que o
espírito e a alma apresentam uma leve distinção embora sejam uma só coisa.
Isto significa que há uma diferença formal entre corpo, alma e espírito,
segundo a qual a alma é o elemento escondido pelo lado material ou
“inferior” (como forma do corpo) e pelo espiritual ou superior (no núcleo
onde Deus mora); enquanto que o espírito está na vida evidente, livremente
fluente, irradiante, transbordante.
A leitura do
testemunho de Teresa d’Ávila permite que Stein retome e especifique
analiticamente a distinção entre “alma” e “espírito”. Quanto mais a alma
imerge na fonte secreta do espírito, mais ela se ancora firmemente em seu
“centro”, libertando-se acima da matéria, chegando à ruptura do vínculo
subsistente entre alma e corpo terreno (que acontece sem dúvida com a
morte mas, em um certo sentido, já no êxtase também) e à união plena e
dinâmica com o Tu que a habita. Significativamente a filosofia define a
união do amor como “transformação da alma
viva
em um
espírito doador de vida”
(Stein, 1936/1997, p. 147).
União de amor e
conhecimento “por” amor
A experiência
descrita pelos grandes místicos cristãos é um encontro com o Outro, uma
participação à sua Vida íntima que leva a uma transformação do Eu: uma
alternância de recepção ativa e passiva, de iniciativa humana e dom
divino, de acolhimento e preenchimento, na qual tudo diz ação, dinamismo,
relação, reciprocidade. Trata-se de uma “união de amor”, de uma
scientia crucis.
Mas é preciso estabelecer o estatuto desse conhecimento. Estamos, de fato,
diante de um conhecimento infundido, portanto doado, oferecido,
proveniente (do Outro) e encontrado, recebido e acolhido (pelo Eu): um
conhecimento “atravessado” pelo amor, um conhecimento
por
amor. Somente o amor é capaz de unir e fazer aderir a alma a Deus: uma
realização que acontece na liberdade, cujo início é constituído pelo
acolhimento ativo (voluntário, cônscio, confiante e responsável) de Deus,
e cujo vértice se explica no abandono passivo (mas igualmente voluntário,
cônscio, confiante e responsável) ao operar de Deus. Tal realização
acontece ao longo da
noite escura
dos sentidos e do espírito: depois do desnudar-se extremo da cruz, surge
radiosa a viva chama do amor, a experiência da ressurreição. Isto mostra a
profunda conexão entre a “morte” e a ressurreição, que é o motivo-guia da
noite escura do espírito:
per passionem et
crucem ad resurrectionis gloriam.
Ficam claras as
diversas modalidades de estar desabitado: esclarecimento precioso também
para a conexa distinção entre fé (aceitação das verdades reveladas) e
contemplação (“coisas do coração” ligadas às núpcias místicas, à união do
amor, segundo Stein). A filósofa se detém particularmente no que se refere
a estar desabitado por graça e estar desabitado pela união amorosa
transformadora, ainda segundo as indicações de São João da Cruz. Por meio
da auto-purificação, a vontade humana imerge sempre mais na vontade
divina: o querer divino, porém, não é sentido como uma realidade presente,
mas acolhido com fé firme, cega. Desse modo, “estar desabitado por graça
confere a virtude da fé, isto é, a força de aceitar como real o que
atualmente não se percebe, considerando verdadeiro o que não é
rigorosamente demonstrável ao basear-se em argumentos de razão” (Stein,
1950/1982, p. 199). Na purificadora união dolorosa operada pelo fogo
amoroso de Deus, ao invés, é a vontade do Outro que penetra sempre mais na
vontade do Eu, ao ponto de deixar-se perceber como uma concreta realidade
presente, a ponto de deixar-se encontrar. Aqui acontece uma divinização da
alma, uma co-penetração recíproca, uma fusão essencial de pessoas
espirituais que, todavia, não tolhe a elas a individualidade peculiar,
antes, a pressupõe e mantém. Nesse caso, então, não se trata mais de
desabitação por graça, mas de autêntica vocação mística:
Deus concede um
encontro pessoal mediante um
toque,
que é um contato no íntimo; abre o seu próprio íntimo mediante especiais
graças que iluminam a sua natureza e os seus desígnios secretos; doa o seu
coração, primeiro como fugaz abraço de um instante no curso de um encontro
pessoal (na oração de união), depois como posse estável de noivado, e no
matrimônio místico. (Idem)
Ainda que atendo-se
ao testemunho de São João da Cruz, Edith Stein não deixa de se referir à
união de amor que Teresa d’Ávila magistralmente descrevera no quinto,
sexto e sobretudo no sétimo aposento, onde se dá um conhecimento da
verdade
por amor.
Passando através do amor chega-se ao Outro; através do Amor o Deus Uno e
Trino se comunica à criatura, ao outro. Fica assim explicitado o sentido
daquele “andar-através-de”,
ex-per-iri,
que é o cerne, ao mesmo tempo epistemológico e fenomenológico, da leitura
filosófica aqui tematizada.
Etimologia e
semântica do termo “mística”. A mística cristã: experiência da Alteridade
como Amor
O termo “mística”
nasce na língua grega. Não é fácil abranger em uma definição geral os
vários significados do adjetivo
mystikos:
etimologicamente, a palavra provém da raiz verbal do grego
myéo,
que significa fechar. Trata-se de fechar os olhos para ver o que é
secreto, e de fechar a boca para observar o silêncio: desde a antiguidade
tudo isso foi explicado no sentido esotérico de coisas ouvidas e vistas
que não podem ser divulgadas. O termo
mystikos
está fortemente associado à palavra
mysterion:
como se sabe, originalmente o sufixo
–térion
aludia a um lugar fechado, secreto, acessível somente aos iniciados e sob
determinadas condições, referindo-se então a um conjunto de cultos e ritos
de caráter esotérico-iniciático (16).
Mas a indicação
etimológico-semântica do termo “mística” resulta indispensável sobretudo
pelo aspecto semântico, justamente pela multiplicidade de significados que
a experiência do divino assumiu nos diversos contextos religiosos,
espirituais e culturais: multiplicidade de significados que uma leitura
filosófica da experiência mística deve avaliar atentamente, sobretudo
quanto a remeter às noções de “alteridade” (basta pensar no aspecto
semântico grego e no especificamente hebraico e depois cristão). Nesta
ótica, o teólogo Piero Coda (2003) adverte:
trata-se de
compreender como o termo mística indica, ao mesmo tempo, uma experiência
análoga e
convergente,
mesmo em contextos históricos e culturais diferentes, e uma experiência
distinta e
original
segundo a “qualidade” de experiência do Divino e/ou de Deus a qual ela se
refere (p. 437).
Justamente por isso
é possível concentrar a pesquisa no tema escolhido: a Alteridade
experimentada, vivida e conhecida na mística cristã (cf. Manganaro,
2003a).
Para o
homo viator
que tende para o
Abbá
revelado pelo Filho, o próprio Cristo é o Caminho, e a liberdade da sua
cruz é Sabedoria, Vida e Verdade (17).
Por outro lado, a carne de Maria – e com ela a humanidade inteira – é a
porta através da qual o Verbo de Deus entrou na criação com o nome Jesus.
Desta misteriosa reciprocidade nasce a experiência mística cristã, assim
sintetizada por Stein (1936/1999, p. 535): “A humanidade redimida e
unificada em e por Cristo é o templo no qual habita a Trindade divina”. O
ser humano assim renovado é
capax Dei,
recipiente de amor, morada de Deus, templo que hospeda a Trindade. Esta é
a sua verdade. À sua “vida interior” é oferecida a possibilidade de
participar da vida íntima de Deus. A união em Jesus Cristo entre a
natureza humana e a natureza divina – e então a
participação
recíproca
entre humano e divino – supera a distância, ainda presente nas culturas
pré-cristãs, entre o criador e a criatura, e se expande definitivamente
desde o povo eleito a todas os povos. Um horizonte novo e diverso se
descortina com a vinda de Cristo, verdadeiro homem e verdadeiro Deus. Ele
é, a um só tempo e misteriosamente, a verdade sobre o Eu finito e a
verdade sobre o Tu eterno. Isso significa que a experiência mística cristã
é a experiência da verdade do amor.
Que amor fosse a
“figura” típica do cristianismo já havia sido grandiosamente assinalado
por Gerardus van der Leeuw (1992) no § 101 de sua célebre obra
Fenomenologia da religião; mas que o conhecimento por amor
fosse a via privilegiada para a busca da verdade foi indicado com mais
eficácia pelos estudos fenomenológicos de Edith Stein, nos quais foram
explicitados os dois percursos, o horizontal como tensão do ser finito
dirigido ao Ser eterno com abertura da consciência ao plus, e o
vertical com a re-velação como dimensão pela qual a razão filosófica deve
deixar-se iluminar como pelo mistério, para atingir o equilíbrio com os
vários ganhos oferecidos pelas diversas disciplinas, inclusive pela
teologia.
O ex-per-iri
místico cristão diz, no mistério, o encontro recíproco partecipativo entre
a pessoa humana e as Pessoas divinas, diz a experiência da Alteridade como
um “sentir” atravessado pelo amor: por meio deste amor é possível
empatizar com o Outro (18)
como presença eterna e transcendente. Portanto, não há fusão, fagocitose
ou as-similação anuladora: o ser humano é e permanece criatura, o Eu cujo
centro é o Self, morada do Tu eterno; e Deus é e permanece o Tu
Outro, Criador de todo Eu individual e pessoal. A “vida interior”
agostiniana, assim como o Erleben fenomenológico, não é exclusiva
imersão no próprio Self, mas busca do Tu inexaurível: busca que ao
mesmo tempo se especifica como uma descida e como uma subida, remetendo
reciprocamente da interioridade à transcendência. Neste sentido, a busca
cristã não é, nem poderia ser, puramente egológica nem intimismo
solipsista: ao contrário, quanto mais a vida interior é autêntica,
profunda e intensa, mais comporta o dinamismo da intencionalidade para
a Alteridade.
A linguagem
simbólica
Com que linguagem é
possível exprimir o encontro do Eu finito com o Tu eterno?
Aqui está em jogo a
questão, espinhosa, do estatuto epistemológico da linguagem religiosa,
relançada pela superação do ateísmo semântico, do isomorfismo lógico, do
verificacionismo empírico e da linguistic turn dos anos trinta, com
contribuições diversamente fecundas na área “analítica” e “continental” (Manganaro,
2003).
Como argumentado até
aqui, “sentir o Outro dentro” é um conhecimento e, como todo conhecimento,
é comunicável segundo uma linguagem própria, autônoma, constitutiva. A
experiência do encontro com Deus na união transformadora é dizível segunda
a lógica do símbolo e não do conceito: onde é possível observar que o
racionalismo moderno não confia na linguagem simbólica também quanto à sua
extraordinária conexão com a corporeidade (profundamente envolvida na
experiência de união mística) (19).
O symbolon coloca-se entre o conhecível e o ignorado, remete sempre
a outro, a algo que permanece excedente, ulterior, escondido: consegue
exprimir a alteridade e a transcendência, mantendo suas peculiaridades,
enquanto as torna próximas. A linguagem simbólica é percebida como uma
cifra da sacralidade, através da qual o homo religiosus pode ter
acesso a um plano diverso do natural e responder à sua vocação específica,
isto é, a criatividade (20).
O símbolo, irredutível ao pensamento analítico, não faz referência a
entidades específicas, imediatamente perceptíveis, mas a uma pluralidade
de “sentidos”: ele é epifania do indizível, “não podendo figurar a
irrepresentável transcendência, o símbolo faz aparecer um sentido secreto,
é a epifania de um mistério” (Durand, 1999, p. 22). Tal manifestação não
se resolve em uma exibição sem resíduos, mas se dá somente per speculum
et in aenigmate, segundo a indicação paulina.
A linguagem
simbólica move desde a imagem para passar a um nível significativo
ulterior: para compreendê-la, deve-se então partir da constatação de que
as operações da faculdade imaginativa se colocam no ponto de encontro
entre a consciência e a corporeidade. Foi a sugestão Gilbert Durand: ele
baseia sua tipologia simbólica naqueles reflexos fundamentais pelos quais
o ser humano toma posse do seu espaço vital; e, com efeito, a função
imaginativa se dá no intercâmbio entre as pulsões subjetivas e as
solicitações objetivas provenientes do ambiente natural e social. Para
determinar as estruturas simbólicas, é útil partir da presença do ser
humano no mundo circunstante comum: além do mais, esta origem da atividade
simbólica explica as características fundamentais. Em primeiro lugar, o
gesto aparece como a atividade mais significativa: comporta um dinamismo
intrínseco e imediato, que se re-encontra em toda representação simbólica.
Toda ascensão eleva a alma, e toda elevação convida à ascensão concreta:
quando São João da Cruz representa o Monte Carmelo, por exemplo, o faz
para induzir o leitor ao esforço espiritual da subida. Uma vez que a
atividade simbólica deriva da presença no mundo, ela exprime um valor
também afetivo, entendido como ressonância, na consciência, da situação do
Eu que vive no mundo (21).
Em particular,
nota-se como a relação de aliança Eu-Tu experimentada na vida mística
cristã faz apelo ao símbolo do matrimônio e do amor humano. Seguindo o
ritmo do Cântico dos Cânticos (busca do amado, recíproco
bem-querer, união), os místicos têm escrito sua aventura espiritual
mediante os símbolos desse poema bíblico. Fala-se, portanto, de mística
esponsal: a freqüência do tema levou os doutores místicos, como Santa
Teresa d’Ávila e São João da Cruz, a fazer com que “matrimônio espiritual”
e “noivado espiritual” se tornassem expressões técnicas, definindo graus
específicos de união mística. Mesmo reconhecendo o valor de sua doutrina,
não se deve, porém, restringir o uso daquele símbolo, quase
desnaturalizando-o, mas conservar sua elasticidade e plasticidade
características.
Segundo Gerardus van
der Leeuw (1961), o símbolo encontra na mentalidade arcaica o seu
significado originário de coincidência de duas realidades. Aqui a lógica
da participação permite a conexão negada ao pensamento lógico-categorial:
“Para o primitivo, o símbolo é propriamente o que a palavra exprime, ou
seja, a coincidência de duas realidades. ‘Significa’, na linguagem
primitiva, é o mesmo que ‘é’ ” (p. 35). Isso assume uma importância não
desprezível para a experiência sacramental eucarística e para a hilética
fenomenológica ligada ao estudo do “sagrado complexo”: o pão e o vinho não
simbolizam abstratamente o corpo e o sangue de Cristo, mas são seu
corpo e sangue, e o são realmente, concretamente, efetivamente. Continua o
historiador holandês: “Eles são ‘símbolo’, ou seja, sua realidade encontra
a realidade do corpo e do sangue; pão e vinho por um lado, corpo e sangue
por outro, participam um do outro” (Idem). Os sacramentos revestem-se de
uma forma simbólica ainda que possuindo uma eficácia própria: aqui não é
possível separar rito e palavra que lhe confere plena significação, e isso
indica que os sacramentos significam o que operam e operam enquanto
significam. Quando ensina na sinagoga de Cafarnaum, Jesus fala da sua
pessoa real, inteira, não simbólica, e comunica a sua oferta sacrifical.
Assim, temos a noção de “sagrado complexo” no âmbito da arqueologia
fenomenológica da experiência religiosa (Ales Bello, 1997). O que está
“presente” se manifesta com tamanha força e potência que não pode ser
considerado como algo que “está para” alguma outra coisa: pelo contrário,
o que se apresenta é persuasivo, mostra-se na sua concreta materialidade,
na sua hileticidade, revelando-se em si mesmo sagrado, e não como simples
“sinal” do sagrado.
A situação concreta
do ser humano viandante pelo caminho da mística indica um movimento que se
exprime em vários aspectos vitais: biológico, psíquico, espiritual,
interpessoal. Segundo Charles A. Bernard (1979), o dinamismo da vida
interior é análogo ao da vida natural:
Deus é
verdadeiramente Pai, Filho e Espírito; encarnando-se, o Filho usou a
realidade cósmica para conferir uma nova dignidade na ordem da expressão e
comunicação de vida. A presença da graça santificante em nós e a contínua
ação de Deus, que atrai a si a alma, suscitam um dinamismo espiritual
análogo ao vital natural, e então suscitam uma expressão simbólica do
desejo e do alimento espiritual: assim, dizemos que temos fome e sede de
Deus e que nos aproximamos da dúplice mesa da palavra e da eucaristia (p.
1474).
Como o ser vivo,
também o ser espiritual se nutre, repousa, sente frio ou sede, exprimíveis
com os símbolos da vida natural. A criação de tais símbolos supõe a
percepção de uma realidade objetiva que supera a possibilidade da
expressão conceitual. Compreende-se, então, o dizer do salmista: “A minh’alma
tem sede do Deus vivo” (Sal 42,3), revelador de uma experiência espiritual
pessoal, vivida. Quem não vive o relacionamento pessoal com Deus
dificilmente poderá apreender o significado da expressão simbólica “ter
sede de Deus” porque nesse caso as disposições subjetivas resultam
extremamente relevantes para a própria compreensão lingüística.
Toda experiência
mística se situa além da linguagem lógico-categorial. Como já indicado, o
símbolo exprime a plasticidade do dinamismo espiritual: este é o caráter
que os especialistas ressaltam quando o contrapõem à fisicidade do
logos
conceitual, considerado estático, imóvel, rígido. Mas a experiência
mística, em si mesma, é sem linguagem: ela pede ao símbolo um substituto,
inadequado, de tal inefabilidade, para tentar dizer o indizível. O
símbolo, de fato, é mais próximo do conhecimento advindo do vazio, do que
o são o conceito e a categoria. Está em jogo a questão da criatividade e
da sua expressão lingüística: o que emerge com uma certa eficácia da
relação, historicamente atestada, entre mística e poesia.
Mística e poesia
A atividade
simbólica é sinal de uma reciprocidade concreta já operante: como fica
evidente na literatura mística, o Eu que chega a um grau elevado de
maturidade espiritual considera sua relação com o mundo-outro e como os
tu-outros através do seu relacionamento com o Tu totalmente Outro. A sua
sensibilidade é toda orientada, voltada para a vida espiritual, em uma
espécie de pneumatização da dimensão sensível-natural (daqui a expressão
“sentidos espirituais”): trata-se da experiência documentada e comunicada
pelos místicos, pelos poetas, pelos artistas. Essa valorização do “sentir”
traduz uma dimensão e uma riqueza novas. Como observam alguns psicólogos,
de fato, a vida do homem contemporâneo é caracterizada por um grave
desequilíbrio: enquanto os aspectos técnico-racionais conduzem a um
excesso de abstração, espelhado pela linguagem científica e filosófica,
diminuem de modo preocupante os elementos positivamente ligados à
criatividade. Através das atividades artísticas ligadas à imaginação
produtiva de símbolos, então, ao ser humano é concedido um melhor
equilíbrio entre as diversas componentes da psique e é garantida a
potência edificante da criatividade.
No caso aqui
examinado, encontramo-nos diante do “mistério” do ato de criação poética,
o qual exige tanto recolhimento criador de silêncio e de isolamento
produtivos quanto contato com a presença da imensidão, na consciência do
dom poético. Cada entrada no mundo poético pressupõe um certo silêncio da
alma, e então um transcender o Eu meramente empírico; pressupõe que as
dissonâncias se calem, para que a voz do ser secreto das coisas se faça
entender, em uma sede de reminiscência trans-temporal. Mas a lembrança
atualizada não é a da memória sensível: através do jogo especular da
percepção, uma presença-outra emerge da parte espiritual da alma. Aqui o
recolhimento e a escuta se fazem, em certo sentido, passividade absoluta:
não é o olho do poeta que “vê”, mas o mistério das coisas que penetra
nele. Como o místico, ele recebe o dom do acolhimento-preenchimento no
silêncio. Trata-se então de especificar as afinidades e as diferenças
entre as duas experiências.
Segundo Jacques
Maritain (1983), a intuição poética exerce uma dúplice função: em primeiro
lugar, criativa, mas também cognitiva, dirigindo-se à realidade profunda
do indivíduo pessoal, cuja infinita abertura às riquezas do ser ressoa no
centro da sua alma, revelando a si mesma essa subjetividade em ato de
criatividade. Não é possível, porém, tomar como identificas a experiência
mística e a experiência poética: o símbolo místico tem, certamente, um
valor e uma intenção criativa, mas segundo um aceno negativo, de vazio, de
douta ignorância; enquanto que o símbolo do qual se serve o poeta triunfa
na potência criativa da obra. O símbolo entra na trama da experiência
poética em vista do verbo proferido, enquanto uma experiência mística o
símbolo se torna expressão privilegiada de na medida em que ela tenta se
comunicar, quase balbuciando.
Segundo Gardet e
Lacombe (1988), a experiência do
Self
propiciada pela sabedoria oriental fornece uma chave de acesso à
compreensão das “leis” da criatividade do espírito humano, e às vezes até
mesmo ao emergir gratuito do dom divino. A experiência do
Self
pode comparativamente se ligar ao “sentir” do poeta e à intuição do
filósofo, todavia não é obra poética nem
logos
filosófico. Nem é caminho obrigatório em direção à experiência das
profundezas de Deus: ela, no entanto, não deixa de iluminar o caminho
existencial e o mundo interior de muitos poetas, filósofos e místicos
sedentos do Deus da fé. Lacombe (1988), particularmente, sublinha as
conexões com o tema da temporalidade. Na produção poética, indo além do Eu
superficial aviltado pelo vazio da vida mundana, há a descoberta do
Self
pessoal, supra-mundano, imortal, que permite ao romancista como ao poeta,
depois de vagar longamente, reencontrar a duração ontológica mais
verdadeira do tempo. Ele apreende a diferença entre a sua alma imortal e
Deus, entre a
memoria sui
e a
memoria Dei,
para usar as palavras de Agostinho: sem dizê-lo, sem provar a necessidade
de dizê-lo, mantém-se distante de qualquer interpretação monista da
própria experiência interior.
Segundo Gardet
(1988), quando a poesia revela o Eu do poeta nas suas fontes criativas, se
abre a uma possível experiência mística do
ser
substancial da alma; e às vezes testemunha um outro chamado, um chamado de
graça, que chega ao coração do poeta mas ao qual este não está à altura de
responder apenas com o dom de criação. Não se tratam, de modo algum, de
experiências idênticas. Estamos diante de nó de experiências radicalmente
diversas, que porém têm em comum a origem na vida não-conceitual, vida
noturna já iluminada, segundo Maritain, pelo pré-consciente do espírito. O
poeta serve a beleza em uma obra: a escuta poética, a uma certa
profundidade, não deixa de conjugar-se com a concentração mental; além
disso, dirigir-se às fontes da criatividade artística pode evocar o estado
de recolhimento que é próprio da meditação; todavia, o silêncio do poeta e
o silêncio do místico são qualitativamente diferentes. A experiência
poética, quando escava fundo no “centro” secreto da subjetividade,
constitui, para Gardet, uma forma atípica mas autêntica de experiência do
Self,
que porém se tornou instável pelo choque entre a apofasia mística o
lançar-se
ad extra
de um verbo humano criador de beleza.
A leitura filosófica
de tal experiência desperta algumas importantes interrogações: Neste
lançar-se do verbo poético há uma espécie de chamado à escuta de um
Verbo-Outro, do Deus trinitário? A intenção de Gardet, com efeito, não é
tanto a de falar dos místicos que são poetas, quanto a de focalizar a
misteriosa visita que o poeta recebe. Apresenta-se, então, uma pergunta
ulterior: Os percursos interiores que condicionam o desembocar da obra
podem preparar, desde longe, tal escuta e dispor ao acolhimento de um dom
que provém de outro lugar? O estudioso francês afirma que o recolhimento e
a escuta poética predispõem ao recolhimento místico, e que um certo tipo
de renúncia, colocada a serviço da obra e de sua beleza, apresenta-se como
uma analogia – ainda que inadequada – do desapego do próprio Eu para Deus
e em Deus. Mas o dom da poesia – ele acrescenta – não é a graça
sobrenatural, e não pode direta e eficazmente invocá-la. A experiência
mística das profundezas de Deus, como a experiência do
Self,
como a experiência poética, se erradicam todas no pré-consciente do
espírito, e assim se encontram e podem, às vezes, se sobrepor. Mas,
enquanto um certo tipo de intuição poética se encontra já em consonância
com a apreensão da substância da alma através do gozo, não pode haver
experiência mística sobrenatural se todas as faculdades do Eu, inclusive o
pré-consciente espiritual, não estiverem sobre-elevados pela graça divina.
Experiência mística do
Self
e experiência poética estão ligadas, ainda que de modos diferentes, à
natureza da alma como espírito; sendo que a mística das profundezas de
Deus deita suas raízes nessa mesma natureza, ela se encontra, porém, como
o dom gratuito de um Outro que na alma é mais íntimo do que a própria
alma, mas que transcende todo espírito criado e criável.
Permanece fixo um
fato, isto é, que as harmonias e as respostas que o sentir do poeta
apreende nas coisas são um testemunho da presença divina de imensidão,
mesmo quando o próprio poeta não seja cônscio disso. A mística do
Self,
ao invés, atinge o existir substancial da alma na sua realidade profunda,
e então no seu ser atravessado pelo fluxo criador; ela é, portanto,
“tocada”, não propriamente pelo fluxo criador, mas pelos seus efeitos
criadores. A intuição poética não é tocada por nada – no sentido de
“contato” próprio da experiência mística: ela ilumina o caminho à
distância. A presença da imensidão, conclui Gardet, não pode ser
assimilada à presença da graça.
A apofasia é a lei
de todo contato, com gozo, com o absoluto; mas antes da vida terrena, e
depois dela, na luz da visão, ela é na sua verdade o único Verbo criador
de Deus. O poeta não corre o risco de fazer de sua palavra, enquanto
criador de beleza, quase que uma participação do Verbo divino? O sonho
romântico do poeta-profeta entra em cena, refutando o silêncio que a
Trindade cava na alma. Quaisquer que sejam as experiências do
Self,
e qualquer que seja o chamado dirigido ao poeta no segredo do seu coração,
a poesia enquanto tal não é feita pela experiência mística, mas pela a
recitação. Mesmo a atividade poética testemunha, a seu modo, que a alma é
espírito: e a seu modo é testemunha do mistério do ser, mistério inscrito
na beleza do criado e das criaturas. Segundo Gardet (1988, p. 280),
Sabemos, pela
tradição dos grandes profetas bíblicos, que cada coisa foi feita pela
Palavra criadora. Não se pode falar de apofasia em Deus, mas de um Verbo
único, criador e iluminador. A criação poética é uma sua distante e
imperfeita analogia, e o poeta é um pouco um Prometo que partiu para
raptar a palavra que está além das palavras e dos silêncios humanos. Ele é
também o grande desafiado, acorrentado ao seu dizer e à beleza que criou.
Uma forte e aguda intuição não interromperá o caminho do místico em uma
suprema oscilação na qual a palavra tende a se abolir no silêncio, mas
onde imediatamente o silêncio se renega no esplendor do verbo proferido?
Se não há apofasia em Deus, nem mesmo haverá através do caminho da
apofasia em que o espírito humano – até que permaneça sobre a terra em sua
condição de encarnação – pode viver uma experiência de absoluto.
Ao tender para a
criatura humana, Deus lhe confia a sua Palavra de revelação.
Compreende-se, então, o dom da poesia na sua afinidade/diferença com o dom
de amor infundido: o mistério de presença que ela desvela se coloca a
poucos passos do mistério da Presença que acontece no encontro pessoal de
união transformante.
Referências
bibligráficas
(1)
Tradução de Miguel Mahfoud, do original em italiano.
(2)
Contra qualquer redução positivista, o termo “pessoa”, empregado pela
teologia medieval para indicar as Pessoas divinas, foi aplicado ao ser
humano, com o intento de acentuar a completude das diversas dimensões
constitutivas que remetem umas à outras reciprocamente. Segundo Stein, a
antropologia se configura como disciplina filosófica que, sem dúvida,
utiliza os resultados das ciências naturais e positivas, mas que necessita
em primeiro lugar da contribuição fornecida pela teologia e ontologia, às
quais está indissoluvelmente ligada. Como é sabido, São Paulo fala de
espírito, alma e corpo para designar a constituição da criatura humana na
sua verdade e plenitude (cf. 1Ts 5,23).
Nota sobre a autora
Patrizia Manganaro
é doutora em filosofia, professora de filosofia da linguagem na Pontificia
Universirtà Lateranense, Roma, Itália. Contato:
patriziamanganaro@yahoo.it
Data de recebimento: 16/03/2004
Data de aceite: 15/04/2004
Memorandum 6, abril/2004
Belo
Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/manganaro01.htm