É uma alegria
participar do lançamento deste trabalho
(1). Um trabalho belo (ousaria falar em “obra de arte”) – e
original... Esta qualidade é que os autores dos Prefácios e a
Apresentadora destacam
(2). E
também o fizeram os membros da banca que presidiu a defesa de tese.
Pode-se confiar nestas exigentes opiniões... que qualquer leitor – como
eu o fiz – confirmará. Um filão inovador na abordagem de um universo
simbólico concreto. Quero primeiro tentar dizer porquê.
A.1) Constrói uma
estratégia que visa escapar ao “reducionismo”. Um reducinismo que,
segundo o Prof. Geraldo José de Paiva, orientador e autor de um dos
Prefácios, seria dimensão da psicologia social. Introduzem-se aqui,
então, perspectivas “outras”: a da antropologia, da história , da
ecologia, da fenomenologia... O que não deixa, aliás, de suscitar uma
pergunta. Estas disciplinas todas (menos a fenomenologia, talvez?) se
apresentam como “ciências”. E, na verdade, é a “ciência” que, por
princípio, é “reducionista”. Daí a pergunta: por mais multidisciplinar
que seja, um trabalho que não aceita “reduzir” o seu objeto estaria por
isso situado fora da “ciência”?
Provavelmente, o
Prof. Miguel responderia que só pretende limitar a carga reducionista
que qualquer empreendimento de cunho “científico” implica, graças à
multiplicidade dos pontos de vista e, sobretudo, graças à retotalização
progressiva da “experiência”, operada pelo olhar fenomenológico.
Ou, quem sabe, e
mais radicalmente, questionaria a noção tradicional de “ciência”... Não
estaria sozinho, hoje. Para falar só de antropologia, são vários os
antropólogos “pós-modernos” que não se sentem à vontade quando incluídos
nesta classificação de “ciência”... Para eles, quem sabe, a antropologia
se aproximaria da literatura, articulando com mais liberdade duas (ou
três) sensibilidades – melhor, subjetividades: a do “sujeito” (não mais
“objeto”) da pesquisa, a do próprio pesquisador e até a do leitor. Já há
tempos falava Geertz em “interpretação de interpretações”. Para estes
antropólogos, trata-se de “fusão de horizontes”; para Miguel, longe da
“explicação”, seria leitura (descoberta, epifania) do “implicado” (num
comportamento, num rito, na narrativa mítica, na memória dos sujeitos)
graças ao aparelho já elaborado de sua própria subjetividade /
intelecção.
A.2) Isso
introduziria o segundo aspecto da originalidade sintética do seu
trabalho: o seu olhar – e o seu texto – estabelecem a simbiose, difícil
e preciosa, do singular e do coletivo.
Já a psicologia
social se dá classicamente esta missão. Mas aqui ela é realizada de
maneira mais próxima ao (à totalidade do) vivido. Um vivido coletivo
apreendido no singular (com o nível intermediário, demultiplicado, da
comunidade – fala-se até em “psicologia comunitária”); o passado
cristalizado no presente, o legado existencialmente atualizado – tudo
isso, tanto do lado “deles” quanto do lado pesquisador.
Num certo sentido
poderia se falar em “habitus” (com Bourdieu). Também com esta
perspectiva o antropólogo se sente à vontade, pelo menos em princípio.
Ela articula teoria e participação existencial. O Universo simbólico
constitui-se para ser vivenciado, mas é vivenciado neste processo mesmo
que o constitui. Uma mútua penetração.
A.3) Um terceiro
ponto que chama a atenção sobre a riqueza – e a contemporaneidade – do
livro que se entrega agora ao público, é a afirmação (a exposição) de
que aquilo que realizaria esta síntese no concreto dos grupos humanos
seria a experiência religiosa: “um significado totalizante, que permite
superar as contradições vividas nas comunidades estudadas e articular o
pessoal e o coletivo, o presente e o passado” (p.16).
Falei em
“afirmação”. É preciso frisar a beleza de escritura e o caráter
progressivo, iniciático, revelador e epifânico desta demonstração, ao
longo dos capítulos em crescimento desde a primeira parte. Em resposta à
famosa pergunta, que atravessa todo o texto, como atravessou toda a
pesquisa: “Por que? O que lhes causa tanto impacto? Por que se emocionam
assim? Qual o significado de tudo isso?”.
A.4) Enfim, somos
assim levados a outro caráter original do livro. Ele começa, na sua
primeira parte, pela imersão direta do leitor num oceano de sentido.
Diria: faz o leitor entrar à força (é claro, com a delicadeza calculada
das perguntas sucessivas, como que de dúvida em dúvida) num oceano de
sentido, que vem explodir – também em chave de perguntas e dúvidas - no
capítulo final desta primeira parte: “Perplexidade e gratidão”. Só
depois se abre a caixa de ferramentas, revelando os segredos deste
olhar, suas referências instrumentais, os autores-fonte, a teoria que
está por trás. Não é comum este caminhar. Que exige primeiro a fé, só
depois dá as chaves da justificativa e da compreensão. Amoldamento ao
tema? Em todo o caso, esta injunção ao leitor para que, primeiro, seja
companheiro de indagação e de caminho é parte do encanto da leitura.
Mas por isso será
só no fim que as possíveis inquietações deste mesmo leitor-admirador
acabam sendo, senão totalmente respondidas e sossegadas, pelo menos
esclarecidas.
Quais
inquietações? Precisamente as decorrentes destas mesmas riquezas que
acabamos de enumerar.
B.1) Uma
primeira, precisamente devida ao impacto deste misto de “perplexidade e
gratidão”. Quanta riqueza ali descoberta assalta o leitor! Seria mesmo
isso tudo? Coisas tão simples implicariam “realmente” tal densidade de
significação? Para explicar esta emergência, não haveria, além dos
“dados” feitos “fatos” através da vivência significativa de nossos
sujeitos, outra fonte de inteligibilidade (o próprio mundo simbólico do
pesquisador), talvez demasiado presente e até determinante? O autor se
programa na chave da “Participação”, sim (p.23-24), mas também fala em
“desejo de verdade” (com o caráter “objetivo” que a categoria conota),
tanto para o pesquisador, quanto para o leitor (cf. “Boa leitura!”,
p.27). Até onde, nesta aporia entre a entrega à “participação” e a
procura distanciada da “verdade”, chega o papel da subjetividade? Será
legítimo passar da “participação” para certa “projeção” mútua? Há
momentos de silêncio dos atores. Um deles, em torno da expectativa
diante da porta fechada, foi aludido na Apresentação. Vejam ainda este
trecho: “A caminhada é momento de silêncio, sim, mas também de memória e
de reflexão. Outras vezes, trilhando sozinho, os passos firmes e o olhar
atento daquelas pessoas me faziam companhia e me convidavam igualmente à
memória e à reflexão” (p.33). Mas estes silêncios, no texto, acabam
falando... Riqueza de uma experiência de pesquisa realmente
participante, até com a presença intencional – e eloqüente – dos
efetivamente ausentes. Mas em que medida a voz deste silêncio, a fala
deste olhar, não poderiam repercutir, de fato, o monólogo do
pesquisador, mobilizando sua própria memória e seus próprios quadros
simbólicos? Pessoalmente (“subjetivamente”...) recebi o choque desta
pergunta, logo antes do capítulo da perplexidade e da gratidão, na
p.114, a propósito de São Gonçalo – um santo, e uma devoção, que
conhecia bem por causa das romarias de Portugal, especialmente da
romaria de São Gonçalo de Amarante. Como pular das modestas testemunhas
de um culto tão singelamente orientado para tais profundezas
metafísicas? Fui entender – com luz e cinzenteza, explicação e dúvida -
quando li, citado através de van der Leeuw, a descrição que Kierkegaard
faz do “observador psicólogo” à p.128. Valeria reportá-la inteira...,
mas aqui vai o final: “Ele deve também possuir em sua alma a
espontaneidade de um poeta, para assim extrair e modelar num conjunto
ordenado tudo o que o indivíduo sempre expõe por meio de fragmentos
esparsos e desordenados”. Trabalho de poeta, então (e por que não?), mas
cuja poiesis criadora deveria se adstringir a pôr em forma os
“dados” (sei que já trabalhados na sua própria construção) que ele pôde
recolher. Como saber em que medida o princípio mesmo desta ordenação
(revelação de sentido) foi aqui haurido da fonte ou projetado pelo olhar
do pesquisador poeta? Boa experiência-teste seria uma pesquisa de perfil
semelhante, mas em terreno simbólico totalmente (ou amplamente) estranho
ao universo simbólico-religioso do pesquisador, de modo a tornar menos
evidente a pista de leitura, menos tentadores os prolongamentos
metafísicos, menos compartilhado o horizonte. Seria mais difícil então a
simples “abertura condicionada”, ponto de partida do processo de
(re)conhecimento?
B.2) Outra
“inquietação” poderá surgir no leitor. A “experiência religiosa” seria a
doadora do significado totalizante, a articuladora da memória – do grupo
e do indivíduo – com o concreto de sua existência. Mas tal afirmação não
constituiria precisamente hoje um problema? (Só uma dupla alusão. A um
autor: Gauchet; a um tema: secularização). Sei da reserva explicita às
“comunidades estudadas”, sem generalização indevida. Mas estas
comunidades fazem parte de um universo maior, que a problemática
ecológica, o turismo, a implantação de uma rede viária, as aspirações
para comunicações de massa, os sonhos da juventude acabam tornando
presente ou pelo menos despontado no horizonte. E neste mundo novo não é
tão simples descrever assim o caráter totalizante e doador de sentido da
experiência religiosa. Em todo caso, no nível da sociedade/comunidade:
cultura, memória, imaginação prospectiva. Claro que não se pode dizer
tudo num texto só. O autor escolheu um recorte relativamente sincrônico,
que lhe permite afirmações de caráter quase estrutural (cf. Dumézil,
precisamente no Prefácio a Mircea Eliade, citado: O sagrado do mito “é
um elemento da estrutura da consciência e não uma etapa da história da
consciência”). Mas até estas estruturas estão na história. Talvez a
galeria dos autores-fonte ganhasse com a inclusão de mais um: Marshall
Sahlins, que se dedica a mostrar a resistência das estruturas (cultura,
memória), frente ao correr do tempo, e o seu papel na conformação do
entendimento presente da história, mas também a ameaça de que estas
estruturas são objeto – sua fragilidade e suas transformações – diante
da investida dos acontecimentos. Hoje, na Juréia, diante do advento da
modernidade. Que a “festa” pode acabar – e que esta ameaça está presente
– você o mostra. Mas não analisa como e por que ela será substituída no
seu papel totalizador. Por uma nova experiência religiosa?, pela função
substitutiva de outra realidade social? Ou estaria evanescendo inclusive
a necessidade de um fundamento?
B.3) Mais uma
inquietação? Esta decorre da precedente. E simplesmente reforça umas
notações suas, freqüentes, mas que, em outros momentos, parecem mais
esquecidas. Se o impacto da modernidade é gradativo e diversificado, as
suas conseqüências devem cultivar várias memórias, fomentar várias
festas, criar várias perspectivas de futuro. Não só entre os jovens,
provavelmente, mas conforme a exposição diversificada dos vários grupos
a este impacto (aliás, enquanto a leitura do texto faz surgir imagens de
atores adultos ou mais velhos, as fotografias, pelo contrário, parecem
indicar uma dominância das jovens gerações... ilusão minha?). O autor
fala dos grupos locais, fala dos jovens, às vezes até mostra o
reconhecimento e a reconstrução sendo possíveis graças à folia de um só
(Pradel, cf. p.72). Mas outras vezes parece operar-se certa “fusão”
comunitária: o trabalho de memória é apresentado como realmente coletivo
e comum (por exemplo, p.69). Até nas suas eventuais rupturas. Uma pitada
a mais de sociologia talvez pudesse ter ajudado a diversificar e
caracterizar grupos, experiências, aspirações, destinos. A
fenomenologia, afinal, também teria o seu “quê” de reducionista?
Mas são detalhes.
Que não querem senão apontar pistas para outros trabalhos. Desejo que
todos eles tenham o mesmo encanto, a mesma ousadia criativa; levantem as
mesmas – e outras - dúvidas, e também as respondam.
E que este diálogo
seja com muitos, os muitos leitores que o livro merece – e com certeza
terá.
Notas
(1)
O presente texto é
baseado na apresentação do livro em questão na ocasião de seu lançamento
na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, em novembro de
2003. Optou-se por manter o estilo coloquial.
(volta)
(2)
Os Prefácios são de Regina Helena de Freitas Campos
(UFMG) e Geraldo José de Paiva (USP) e a Apresentação é de Olga R. de
Moraes von Simson (Centro de Memória / Unicamp).
(volta)
Nota
sobre o autor
Pierre Sanchis,
antropólogo, formado na Universidade de Paris VII, com Doutorado na
Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Hoje professor emérito
da Universidade Federal de Minas Gerais (Departamento de sociologia e
antropologia), continua, como pesquisador do CNPq, a estudar o campo
religioso brasileiro, especialmente o catolicismo nas suas relações com
a modernidade. É autor de:
Arraial: a Festa de um Povo.
As romarias portuguesas
(1983. Ed. Francesa, 1997) e coordenador de:
Catolicismo (1991, 3 vol)
e Fiéis e Cidadãos. Percursos de
sincretismo no Brasil (2001).
Contato:
psanchis.bhe@terra.com.br
Data
de recebimento: 22/11/2003
Data
de aceite: 26/02/2004
Memorandum 6,
abril/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/sanchis01.htm