Sanchis. P. (2004). Folias de Reis: festa raiz. Memorandum, 6, 124-127.  
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Resenha

Folia de Reis: festa raiz

 Folia de Reis (King´s Frolic): a root party

 Pierre Sanchis
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil

Mahfoud, M. (2003). Folia de Reis: festa raiz: psicologia e experiência religiosa na estação ecológica Juréia-Itatins. São Paulo: Companhia ilimitada; Campinas: Centro de Memória / Unicamp.

É uma alegria participar do lançamento deste trabalho (1). Um trabalho belo (ousaria falar em “obra de arte”) – e original... Esta qualidade é que os autores dos Prefácios e a Apresentadora destacam (2). E também o fizeram os membros da banca que presidiu a defesa de tese. Pode-se confiar nestas exigentes opiniões... que qualquer leitor – como eu o fiz – confirmará. Um filão inovador na abordagem de um universo simbólico concreto. Quero primeiro tentar dizer porquê.

 A.1) Constrói uma estratégia que visa escapar ao “reducionismo”. Um reducinismo que, segundo o Prof. Geraldo José de Paiva, orientador e autor de um dos Prefácios, seria dimensão da psicologia social. Introduzem-se aqui, então, perspectivas “outras”: a da antropologia, da história , da ecologia, da fenomenologia... O que não deixa, aliás, de suscitar uma pergunta. Estas disciplinas todas (menos a fenomenologia, talvez?) se apresentam como “ciências”. E, na verdade, é a “ciência” que, por princípio, é “reducionista”. Daí a pergunta: por mais multidisciplinar que seja, um trabalho que não aceita “reduzir” o seu objeto estaria por isso situado fora da “ciência”?

Provavelmente, o Prof. Miguel responderia que só pretende limitar a carga reducionista que qualquer empreendimento de cunho “científico” implica, graças à multiplicidade dos pontos de vista e, sobretudo, graças à retotalização progressiva da “experiência”, operada pelo olhar fenomenológico.

Ou, quem sabe, e mais radicalmente, questionaria a noção tradicional de “ciência”... Não estaria sozinho, hoje. Para falar só de antropologia, são vários os antropólogos “pós-modernos” que não se sentem à vontade quando incluídos nesta classificação de “ciência”... Para eles, quem sabe, a antropologia se aproximaria da literatura, articulando com mais liberdade duas (ou três) sensibilidades – melhor, subjetividades: a do “sujeito” (não mais “objeto”) da pesquisa, a do próprio pesquisador e até a do leitor. Já há tempos falava Geertz em “interpretação de interpretações”. Para estes antropólogos, trata-se de “fusão de horizontes”; para Miguel, longe da “explicação”, seria leitura (descoberta, epifania) do “implicado” (num comportamento, num rito, na narrativa mítica, na memória dos sujeitos) graças ao aparelho já elaborado de sua própria subjetividade / intelecção.

 A.2) Isso introduziria o segundo aspecto da originalidade sintética do seu trabalho: o seu olhar – e o seu texto – estabelecem a simbiose, difícil e preciosa, do singular e do coletivo.

Já a psicologia social se dá classicamente esta missão. Mas aqui ela é realizada de maneira mais próxima ao (à totalidade do) vivido. Um vivido coletivo apreendido no singular (com o nível intermediário, demultiplicado, da comunidade – fala-se até em “psicologia comunitária”); o passado cristalizado no presente, o legado existencialmente atualizado – tudo isso, tanto do lado “deles” quanto do lado pesquisador.

Num certo sentido poderia se falar em “habitus” (com Bourdieu). Também com esta perspectiva o antropólogo se sente à vontade, pelo menos em princípio. Ela articula teoria e participação existencial. O Universo simbólico constitui-se para ser vivenciado, mas é vivenciado neste processo mesmo que o constitui. Uma mútua penetração.

 A.3) Um terceiro ponto que chama a atenção sobre a riqueza – e a contemporaneidade – do livro que se entrega agora ao público, é a afirmação (a exposição) de que aquilo que realizaria esta síntese no concreto dos grupos humanos seria a experiência religiosa: “um significado totalizante, que permite superar as contradições vividas nas comunidades estudadas e articular o pessoal e o coletivo, o presente e o passado” (p.16).

Falei em “afirmação”. É preciso frisar a beleza de escritura e o caráter progressivo, iniciático, revelador e epifânico desta demonstração, ao longo dos capítulos em crescimento desde a primeira parte. Em resposta à famosa pergunta, que atravessa todo o texto, como atravessou toda a pesquisa: “Por que? O que lhes causa tanto impacto? Por que se emocionam assim? Qual o significado de tudo isso?”.

 A.4) Enfim, somos assim levados a outro caráter original do livro. Ele começa, na sua primeira parte, pela imersão direta do leitor num oceano de sentido. Diria: faz o leitor entrar à força (é claro, com a delicadeza calculada das perguntas sucessivas, como que de dúvida em dúvida) num oceano de sentido, que vem explodir – também em chave de perguntas e dúvidas - no capítulo final desta primeira parte: “Perplexidade e gratidão”. Só depois se abre a caixa de ferramentas, revelando os segredos deste olhar, suas referências instrumentais, os autores-fonte, a teoria que está por trás. Não é comum este caminhar. Que exige primeiro a fé, só depois dá as chaves da justificativa e da compreensão. Amoldamento ao tema? Em todo o caso, esta injunção ao leitor para que, primeiro, seja companheiro de indagação e de caminho é parte do encanto da leitura.

Mas por isso será só no fim que as possíveis inquietações deste mesmo leitor-admirador acabam sendo, senão totalmente respondidas e sossegadas, pelo menos esclarecidas.

Quais inquietações? Precisamente as decorrentes destas mesmas riquezas que acabamos de enumerar.

 B.1) Uma primeira, precisamente devida ao impacto deste misto de “perplexidade e gratidão”. Quanta riqueza ali descoberta assalta o leitor! Seria mesmo isso tudo? Coisas tão simples implicariam “realmente” tal densidade de significação? Para explicar esta emergência, não haveria, além dos “dados” feitos “fatos” através da vivência significativa de nossos sujeitos, outra fonte de inteligibilidade (o próprio mundo simbólico do pesquisador), talvez demasiado presente e até determinante? O autor se programa na chave da “Participação”, sim (p.23-24), mas também fala em “desejo de verdade” (com o caráter “objetivo” que a categoria conota), tanto para o pesquisador, quanto para o leitor (cf. “Boa leitura!”, p.27). Até onde, nesta aporia entre a entrega à “participação” e a procura distanciada da “verdade”, chega o papel da subjetividade? Será legítimo passar da “participação” para certa “projeção” mútua? Há momentos de silêncio dos atores. Um deles, em torno da expectativa diante da porta fechada, foi aludido na Apresentação. Vejam ainda este trecho: “A caminhada é momento de silêncio, sim, mas também de memória e de reflexão. Outras vezes, trilhando sozinho, os passos firmes e o olhar atento daquelas pessoas me faziam companhia e me convidavam igualmente à memória e à reflexão” (p.33). Mas estes silêncios, no texto, acabam falando... Riqueza de uma experiência de pesquisa realmente participante, até com a presença intencional – e eloqüente – dos efetivamente ausentes. Mas em que medida a voz deste silêncio, a fala deste olhar, não poderiam repercutir, de fato, o monólogo do pesquisador, mobilizando sua própria memória e seus próprios quadros simbólicos? Pessoalmente (“subjetivamente”...) recebi o choque desta pergunta, logo antes do capítulo da perplexidade e da gratidão, na p.114, a propósito de São Gonçalo – um santo, e uma devoção, que conhecia bem por causa das romarias de Portugal, especialmente da romaria de São Gonçalo de Amarante. Como pular das modestas testemunhas de um culto tão singelamente orientado para tais profundezas metafísicas? Fui entender – com luz e cinzenteza, explicação e dúvida - quando li, citado através de van der Leeuw, a descrição que Kierkegaard faz do “observador psicólogo” à p.128. Valeria reportá-la inteira..., mas aqui vai o final: “Ele deve também possuir em sua alma a espontaneidade de um poeta, para assim extrair e modelar num conjunto ordenado tudo o que o indivíduo sempre expõe por meio de fragmentos esparsos e desordenados”. Trabalho de poeta, então (e por que não?), mas cuja poiesis criadora deveria se adstringir a pôr em forma os “dados” (sei que já trabalhados na sua própria construção) que ele pôde recolher. Como saber em que medida o princípio mesmo desta ordenação (revelação de sentido) foi aqui haurido da fonte ou projetado pelo olhar do pesquisador poeta? Boa experiência-teste seria uma pesquisa de perfil semelhante, mas em terreno simbólico totalmente (ou amplamente) estranho ao universo simbólico-religioso do pesquisador, de modo a tornar menos evidente a pista de leitura, menos tentadores os prolongamentos metafísicos, menos compartilhado o horizonte. Seria mais difícil então a simples “abertura condicionada”, ponto de partida do processo de (re)conhecimento?

 B.2) Outra “inquietação” poderá surgir no leitor. A “experiência religiosa” seria a doadora do significado totalizante, a articuladora da memória – do grupo e do indivíduo – com o concreto de sua existência. Mas tal afirmação não constituiria precisamente hoje um problema? (Só uma dupla alusão. A um autor: Gauchet; a um tema: secularização). Sei da reserva explicita às “comunidades estudadas”, sem generalização indevida. Mas estas comunidades fazem parte de um universo maior, que a problemática ecológica, o turismo, a implantação de uma rede viária, as aspirações para comunicações de massa, os sonhos da juventude acabam tornando presente ou pelo menos despontado no horizonte. E neste mundo novo não é tão simples descrever assim o caráter totalizante e doador de sentido da experiência religiosa. Em todo caso, no nível da sociedade/comunidade: cultura, memória, imaginação prospectiva. Claro que não se pode dizer tudo num texto só. O autor escolheu um recorte relativamente sincrônico, que lhe permite afirmações de caráter quase estrutural (cf. Dumézil, precisamente no Prefácio a Mircea Eliade, citado: O sagrado do mito “é um elemento da estrutura da consciência e não uma etapa da história da consciência”). Mas até estas estruturas estão na história. Talvez a galeria dos autores-fonte ganhasse com a inclusão de mais um: Marshall Sahlins, que se dedica a mostrar a resistência das estruturas (cultura, memória), frente ao correr do tempo, e o seu papel na conformação do entendimento presente da história, mas também a ameaça de que estas estruturas são objeto – sua fragilidade e suas transformações – diante da investida dos acontecimentos. Hoje, na Juréia, diante do advento da modernidade. Que a “festa” pode acabar – e que esta ameaça está presente – você o mostra. Mas não analisa como e por que ela será substituída no seu papel totalizador. Por uma nova experiência religiosa?, pela função substitutiva de outra realidade social? Ou estaria evanescendo inclusive a necessidade de um fundamento?

 B.3) Mais uma inquietação? Esta decorre da precedente. E simplesmente reforça umas notações suas, freqüentes, mas que, em outros momentos, parecem mais esquecidas. Se o impacto da modernidade é gradativo e diversificado, as suas conseqüências devem cultivar várias memórias, fomentar várias festas, criar várias perspectivas de futuro. Não só entre os jovens, provavelmente, mas conforme a exposição diversificada dos vários grupos a este impacto (aliás, enquanto a leitura do texto faz surgir imagens de atores adultos ou mais velhos, as fotografias, pelo contrário, parecem indicar uma dominância das jovens gerações... ilusão minha?). O autor fala dos grupos locais, fala dos jovens, às vezes até mostra o reconhecimento e a reconstrução sendo possíveis graças à folia de um só (Pradel, cf. p.72). Mas outras vezes parece operar-se certa “fusão” comunitária: o trabalho de memória é apresentado como realmente coletivo e comum (por exemplo, p.69). Até nas suas eventuais rupturas. Uma pitada a mais de sociologia talvez pudesse ter ajudado a diversificar e caracterizar grupos, experiências, aspirações, destinos. A fenomenologia, afinal, também teria o seu “quê” de reducionista?

 Mas são detalhes. Que não querem senão apontar pistas para outros trabalhos. Desejo que todos eles tenham o mesmo encanto, a mesma ousadia criativa; levantem as mesmas – e outras - dúvidas, e também as respondam.

E que este diálogo seja com muitos, os muitos leitores que o livro merece – e com certeza terá.

 

Notas

(1) O presente texto é baseado na apresentação do livro em questão na ocasião de seu lançamento na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, em novembro de 2003. Optou-se por manter o estilo coloquial. (volta)

(2) Os Prefácios são de Regina Helena de Freitas Campos (UFMG) e Geraldo José de Paiva (USP) e a Apresentação é de Olga R. de Moraes von Simson (Centro de Memória / Unicamp). (volta)

 

 

Nota sobre o autor

Pierre Sanchis, antropólogo, formado na Universidade de Paris VII, com Doutorado na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Hoje professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (Departamento de sociologia e antropologia), continua, como pesquisador do CNPq, a estudar o campo religioso brasileiro, especialmente o catolicismo nas suas relações com a modernidade. É autor de: Arraial: a Festa de um Povo. As romarias portuguesas (1983. Ed. Francesa, 1997) e coordenador de: Catolicismo (1991, 3 vol) e Fiéis e Cidadãos. Percursos de sincretismo no Brasil (2001). Contato: psanchis.bhe@terra.com.br 

 

Data de recebimento: 22/11/2003
Data de aceite: 26/02/2004

  Memorandum 6, abril/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. 

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