D´Ippolito, B. M. (2004). O universo na consciência. Memorandum, 7, 5-7.  Retirado em    /   /  , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/dippolito01.htm

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Resenha

O universo na consciência

 The universe in the consciousness

 Bianca Maria D´Ippolito
Università degli Studi di Salerno

Itália

 Ales Bello, Angela (2003). L´universo nella coscienza: introduzione alla fenomenologia di Edmund Husserl, Edith Stein, Hedwig Conrad-Martius. Pisa: ETS.

Com o título “O universo na consciência: introdução à fenomenologia de Edmund Husserl, Edith Stein, Hedwig Conrad-Martius” Angela Ales Bello anuncia, em seu recente trabalho, um programa bem determinado e ousado. É conhecido que Stein e Conrad-Martius figuram dentre as primeiras discípulas de Husserl, no Grupo de Göttingen, mas não é óbvia a inserção delas no universo interpretativo da “interioridade”. Que se acentue o “universo” já é um passo decisivo no que se refere ao próprio Husserl: retira de sua obra o atributo de “consciencialismo”. (1)

Para Ales Bello, trata-se de mundo – ou melhor, de universo – porque Husserl desenvolve análises que levam às formas viventes – psique, corpo próprio -, à natureza material, ao espaço-tempo e às formas culturais como ciência, estado, comunidade. Enfim, até o que não está incluído do nestas “formações” – o pensamento de Deus – está presente na consciência numa modalidade própria.

O modo com que a Autora aborda o amplo e complexo corpus husserliano é original: o que procura não é tanto lançar luzes sobre as teses do filósofo da Moravia, quanto, em primeiro lugar, seguir os movimentos de seu pensamento. O fio condutor, que delineia o espaço mais abrangente, refere-se à (auto)colocação de Husserl: para a Autora “sua proposta de pesquisa está dentro e fora da cultura ocidental” (p. 8), reconhecendo e atuando em três direções: como investigação epistemológica sobre a configuração do saber, como ideal comunitário da pesquisa e como “monadologia” – reconhecendo o direito da singularidade e da intersubjetividade conjuntamente. E o termo leibniziano conduz à idéia de um universo interior, a uma pluralidade tecida em um vínculo essencial.

Angela Ales Bello segue e ilumina os itinerários husserlianos, atenta à concepção que o próprio Husserl tem deles e às interrogações que surgem. Husserl se refere a Descartes e a Kant, mas “corrigindo” (o que ele acredita ser) a “negação” cartesiana do mundo, e reformando a estética transcendental. À dúvida sobre a existência do mundo ele contrapõe a “suspensão” da tese do mundo – que equivale a fazer emergir o possível, a riqueza dos predicados essenciais que cada “fato” possui.

No ato da “visão da essência” emerge o valor intencional da consciência, mas esta não reabsorve o “teor” do objeto. Ales Bello sublinha a peculiaridade de uma consciência que não se põe fichtianamente: “Estando implicada uma atividade do sujeito, ela é a resposta a uma solicitação, a um apelo. (...) O dado solicita ser compreendido, coloca uma pergunta, revela-se problemático e pretende uma atenção à sua problemática” (p.21). Ao mesmo tempo, a desaprovação da via cartesiana se evidencia na falta de desenvolvimento do tema “cogito” na pura identidade vazia de conteúdo. Pelo contrário – observa Ales Bello -, para Husserl trata-se de um campo de trabalho, imenso; então trata-se de “ajustar a ferramenta e sondar o terreno” (p.36). E eis o trabalho de Husserl: “indagar quase maniacamente o terreno, de novo e sempre de novo” (p.36).

O que Husserl busca na escavação laboriosa, no assíduo trabalho de retirar a crosta sedimentada, de quebrar o gelo do esquecimento que encerra o calor do sentido? “O objetivo – explica a Autora – é compreender profundamente este mundo da práxis para chegar às operações humanas – e divinas? – que o torna possível” (p.37). Assim a nova “estética transcendental” manifesta, também na via kantiana, a dupla postura de Husserl: “às vezes dentro e outras vezes fora da tradição filosófica ocidental” (p.52). A “mania” husserliana consiste no intento de ir mais a fundo no desnudamento das operações subjetivas – porque cada formação de sentido contém a insídia do “fato”, deve ser sempre novamente examinada nas suas fibras intencionais.

Trata-se de um movimento amiúde tomado – erroneamente - como tentativa de atingir uma origem realisticamente última. Oportuna é, portanto, a observação de Ales Bello: “Na realidade, a análise da ‘vida’ não deve se manter no nível ‘natural’; vorwissenschaftlich e vortheoretisch não indicam um modo para remeter-se a uma vida natural ingenuamente considerada” (Idem). O “pré” indica - poderíamos dizer – a estrutura interna que remete, esta pertencente aos tecidos “constituídos” – cujo “sentido” revela uma espessura a ser sempre interrogada. É a riqueza de sentido de cada experiência que se anuncia no experiente – e cada experiente pode, como átomo na fusão nuclear, multiplicar-se no reino do infinitésimo.

A ampliação do “campo de trabalho” sobre o eu leva – segundo Ales Bello – a uma superação interna que Husserl apresenta na passagem intersubjetiva, na duplicação dos atos fundamentais: “a percepção, a lembrança e a empatia. Há uma profunda conexão entre eles e há uma quase progressiva extensão de suas afinidades-diferenças” (p.71). O eu se espelha em um universo de duplicações: o passado, o outro e o termo dos “fluxos mais profundos”, o divino.

Na análise atenta da Autora o percurso husserliano, todavia, aparece como repleto de enigmas. Se o caminho regressivo exige que se dinstinga “o que é dado do que é cosntruído”, como poderemos ter certeza sobre a pureza operativa? Segundo a aguda observação de Ales Bello permanece “o risco de ‘construir’ mesmo na indagação regressiva” (p.57). Novamente emerge uma tensão radical na retomada e no confronto com a tradição ocidental. Revelando o que esta última ignorara ou acobertara – o “pressuposto” – Husserl não propõe um único caminho, mas abre um problema: sendo impensável a volta a um mítico passado pré-científico, trata-se então de “aceitar a ineliminabilidade radical do processo de ‘mecanização’ ” (p.65) e “o método é, então, já uma racionalização?” (p.66). O problema colocado pela Autora representa a inquietação própria da consciência européia nos perigosos cimos da modernidade: o cogito, voltando-se a si mesmo, chega à vertigem de um “profundo” inexaurível, e o fundamentum inconcussum torna-se, por sua vez, enigma. Se nos abstivermos – no sentido fenomenológico – de reificar os “inícios” poderemos escolher “uma dimensão ‘sapiencial’, enquanto conquista e reconquista os elementos originários que estão no fundo de toda cultura”. Neste caso, apresenta-se a ardilosa questão: “Há vivências orignárias ou precategoriais também para nós, homens da civilização ocidental avançada? Ou estamos condenados a nos mover inteiramente em uma dimensão categorial?” (p.69). A resposta se coaduna com a exploração: o “universo na consciência”, o finito-infinito da re-memorização, que em filosofia corresponde aos infinitos matemáticos.

No trabalho de Angela Ales Bello encontramos as discípulas de Husserl – E. Stein e H. Conrad-Martius – em uma unidade temática. A tese é clara: também para elas deve valer a dupla presente no título: universo – consciência. Para Stein, trata-se de retomar e reinterpretar a correlação husserliana, reconhecendo seus momentos “por um lado em uma natureza física absolutamente existente, por outro lado em uma subjetividade com determinadas estruturas” (p.117). O enraizamento da essência na substância acontece sob o signo de Tomás – e em polêmica com Heidegger em sua concepção de Dasein “lançado” na existência (cf. p.121 ss). Stein percorre, então, um caminho que a conduz a desenvolver de modo original a correlação husserliana poético-noemática no sentido das grandes realidades: natureza, Deus, os anjos, mas também massa, comunidade, sociedade, Estado. São endiades ideais-reais.

Mas seu mais belo trabalho é sobre a alma, entendida como um território vasto e ao mesmo tempo profundo, tudo a ser explorado, nos seus núcleos essenciais-substanciais: alma, corpo, espírito. Novamente – como Husserl em relação a Descartes, assim também Stein “contra” e a favor de Husserl – “o que interessa (...) é o contraste superfície-profundidade” (p.135). E mais uma vez, como Husserl, Ales Bello com sutileza evidencia como é acidentado o caminho, como é “solevado” o terreno: tudo tem a ver com o homem “este ser estranhamente discorde” (p.138). O realismo, aqui, não tem uma função de assegurar, pacificar; pelo contrário, evocam-se as “forças do profundo” cuja potência é ímpar com relação à consciência.

Para Ales Bello a obras de Conrad-Martius restitui, enfim, à pesquisa fenomenologia, a sua implícita dimensão cosmológica (cf. p.184 ss) uma vez que re-emerge também a “natureza”, com sua dignidade autônoma, real-ideal. Para ela, “o cômpito da ontologia é a descoberta da constituição fundamental do que é determinante para o mundo real em todas as suas configurações” (p.192).

Como deve ser lido o retorno de uma natureza “autônoma”, depois do idealismo? Para Ales Bello o seu sentido

reside na importância dada à nova física e à nova biologia e, sendo o espírito científico, em última análise, um espírito realista, pode-se afirmar que é justamente a nova cientificidade das ciências experimentais que reforçam a polêmica anti-idealista de Conrad-Martius e que dá a conotação original à sua posição (p.206).

A este ponto, o círculo se abre novamente: Conrad-Martius retoma o tema ciência-filosofia, do qual Husserl tomara impulso: o “solevado” caminho.

 

Notas

(1) Tradução de Miguel Mahfoud do original em italiano. (volta)

 

Nota sobre a autora

Bianca Maria d´Ippolito é doutora em Filosofia, professora da Faculdade de Letras e Filosofia da Università degli Studi di Salerno, Itália. Contatos: Dipartimento di Filosofia – UniSa , Via Ponte Don Melillo, 84084 Fisciano (Salerno) - Itália.

 

 

Data de recebimento: 23/06/2004
Data de aceite: 13/10/2004

Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/dippolito01.htm

 

 

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