Com o título “O universo na consciência: introdução
à fenomenologia de Edmund Husserl, Edith Stein, Hedwig Conrad-Martius”
Angela Ales Bello anuncia, em seu recente trabalho, um programa bem
determinado e ousado. É conhecido que Stein e Conrad-Martius figuram
dentre as primeiras discípulas de Husserl, no Grupo de Göttingen, mas não
é óbvia a inserção delas no universo interpretativo da “interioridade”.
Que se acentue o “universo” já é um passo decisivo no que se refere ao
próprio Husserl: retira de sua obra o atributo de “consciencialismo”.
(1)
Para Ales Bello, trata-se de mundo – ou melhor, de universo
– porque Husserl desenvolve análises que levam às formas viventes –
psique, corpo próprio -, à natureza material, ao espaço-tempo e às formas
culturais como ciência, estado, comunidade. Enfim, até o que não está
incluído do nestas “formações” – o pensamento de Deus – está presente na
consciência numa modalidade própria.
O modo com que a Autora aborda o amplo e complexo corpus
husserliano é original: o que procura não é tanto lançar luzes sobre as
teses do filósofo da Moravia, quanto, em primeiro lugar, seguir os
movimentos de seu pensamento. O fio condutor, que delineia o espaço
mais abrangente, refere-se à (auto)colocação de Husserl: para a Autora
“sua proposta de pesquisa está dentro e fora da cultura ocidental” (p. 8),
reconhecendo e atuando em três direções: como investigação epistemológica
sobre a configuração do saber, como ideal comunitário da pesquisa e como
“monadologia” – reconhecendo o direito da singularidade e da
intersubjetividade conjuntamente. E o termo leibniziano conduz à idéia de
um universo interior, a uma pluralidade tecida em um vínculo essencial.
Angela Ales Bello segue e ilumina os itinerários
husserlianos, atenta à concepção que o próprio Husserl tem deles e às
interrogações que surgem. Husserl se refere a Descartes e a Kant, mas
“corrigindo” (o que ele acredita ser) a “negação” cartesiana do mundo, e
reformando a estética transcendental. À dúvida sobre a existência do mundo
ele contrapõe a “suspensão” da tese do mundo – que equivale a fazer
emergir o possível, a riqueza dos predicados essenciais que cada “fato”
possui.
No ato da “visão da
essência” emerge o valor intencional da consciência, mas esta não
reabsorve o “teor” do objeto. Ales Bello sublinha a peculiaridade de uma
consciência que não se põe fichtianamente: “Estando implicada uma
atividade do sujeito, ela é a resposta a uma solicitação, a um apelo.
(...) O dado solicita ser compreendido, coloca uma pergunta, revela-se
problemático e pretende uma atenção à sua problemática” (p.21). Ao mesmo
tempo, a desaprovação da via cartesiana se evidencia na falta de
desenvolvimento do tema “cogito” na pura identidade vazia de
conteúdo. Pelo contrário – observa Ales Bello -, para Husserl trata-se de
um campo de trabalho, imenso; então trata-se de “ajustar a ferramenta e
sondar o terreno” (p.36). E eis o trabalho de Husserl: “indagar quase
maniacamente o terreno, de novo e sempre de novo” (p.36).
O que Husserl busca na
escavação laboriosa, no assíduo trabalho de retirar a crosta sedimentada,
de quebrar o gelo do esquecimento que encerra o calor do sentido? “O
objetivo – explica a Autora – é compreender profundamente este mundo da
práxis para chegar às operações humanas – e divinas? – que o torna
possível” (p.37). Assim a nova “estética transcendental” manifesta, também
na via kantiana, a dupla postura de Husserl: “às vezes dentro e outras
vezes fora da tradição filosófica ocidental” (p.52). A “mania” husserliana
consiste no intento de ir mais a fundo no desnudamento das operações
subjetivas – porque cada formação de sentido contém a insídia do “fato”,
deve ser sempre novamente examinada nas suas fibras intencionais.
Trata-se de um
movimento amiúde tomado – erroneamente - como tentativa de atingir uma
origem realisticamente última. Oportuna é, portanto, a observação de Ales
Bello: “Na realidade, a análise da ‘vida’ não deve se manter no nível
‘natural’; vorwissenschaftlich e vortheoretisch não indicam
um modo para remeter-se a uma vida natural ingenuamente considerada”
(Idem). O “pré” indica - poderíamos dizer – a estrutura interna que
remete, esta pertencente aos tecidos “constituídos” – cujo “sentido”
revela uma espessura a ser sempre interrogada. É a riqueza de sentido de
cada experiência que se anuncia no experiente – e cada experiente pode,
como átomo na fusão nuclear, multiplicar-se no reino do infinitésimo.
A ampliação do “campo de trabalho” sobre o eu leva –
segundo Ales Bello – a uma superação interna que Husserl apresenta na
passagem intersubjetiva, na duplicação dos atos fundamentais: “a
percepção, a lembrança e a empatia. Há uma profunda conexão entre eles e
há uma quase progressiva extensão de suas afinidades-diferenças” (p.71). O
eu se espelha em um universo de duplicações: o passado, o outro e o termo
dos “fluxos mais profundos”, o divino.
Na análise atenta da Autora o percurso husserliano,
todavia, aparece como repleto de enigmas. Se o caminho regressivo exige
que se dinstinga “o que é dado do que é cosntruído”, como poderemos ter
certeza sobre a pureza operativa? Segundo a aguda observação de Ales Bello
permanece “o risco de ‘construir’ mesmo na indagação regressiva” (p.57).
Novamente emerge uma tensão radical na retomada e no confronto com a
tradição ocidental. Revelando o que esta última ignorara ou acobertara – o
“pressuposto” – Husserl não propõe um único caminho, mas abre um problema:
sendo impensável a volta a um mítico passado pré-científico, trata-se
então de “aceitar a ineliminabilidade radical do processo de ‘mecanização’
” (p.65) e “o método é, então, já uma racionalização?” (p.66). O problema
colocado pela Autora representa a inquietação própria da consciência
européia nos perigosos cimos da modernidade: o cogito, voltando-se
a si mesmo, chega à vertigem de um “profundo” inexaurível, e o
fundamentum inconcussum torna-se, por sua vez, enigma. Se nos
abstivermos – no sentido fenomenológico – de reificar os “inícios”
poderemos escolher “uma dimensão ‘sapiencial’, enquanto conquista e
reconquista os elementos originários que estão no fundo de toda cultura”.
Neste caso, apresenta-se a ardilosa questão: “Há vivências orignárias ou
precategoriais também para nós, homens da civilização ocidental avançada?
Ou estamos condenados a nos mover inteiramente em uma dimensão
categorial?” (p.69). A resposta se coaduna com a exploração: o “universo
na consciência”, o finito-infinito da re-memorização, que em filosofia
corresponde aos infinitos matemáticos.
No trabalho de Angela Ales Bello encontramos as discípulas
de Husserl – E. Stein e H. Conrad-Martius – em uma unidade temática. A
tese é clara: também para elas deve valer a dupla presente no título:
universo – consciência. Para Stein, trata-se de retomar e reinterpretar a
correlação husserliana, reconhecendo seus momentos “por um lado em uma
natureza física absolutamente existente, por outro lado em uma
subjetividade com determinadas estruturas” (p.117). O enraizamento da
essência na substância acontece sob o signo de Tomás – e em polêmica com
Heidegger em sua concepção de Dasein “lançado” na existência (cf.
p.121 ss). Stein percorre, então, um caminho que a conduz a desenvolver de
modo original a correlação husserliana poético-noemática no sentido das
grandes realidades: natureza, Deus, os anjos, mas também massa,
comunidade, sociedade, Estado. São endiades ideais-reais.
Mas seu mais belo trabalho é sobre a alma, entendida
como um território vasto e ao mesmo tempo profundo, tudo a ser explorado,
nos seus núcleos essenciais-substanciais: alma, corpo, espírito. Novamente
– como Husserl em relação a Descartes, assim também Stein “contra” e a
favor de Husserl – “o que interessa (...) é o contraste
superfície-profundidade” (p.135). E mais uma vez, como Husserl, Ales Bello
com sutileza evidencia como é acidentado o caminho, como é “solevado” o
terreno: tudo tem a ver com o homem “este ser estranhamente discorde”
(p.138). O realismo, aqui, não tem uma função de assegurar, pacificar;
pelo contrário, evocam-se as “forças do profundo” cuja potência é ímpar
com relação à consciência.
Para Ales Bello a obras de Conrad-Martius restitui, enfim,
à pesquisa fenomenologia, a sua implícita dimensão cosmológica (cf. p.184
ss) uma vez que re-emerge também a “natureza”, com sua dignidade autônoma,
real-ideal. Para ela, “o cômpito da ontologia é a descoberta da
constituição fundamental do que é determinante para o mundo real em todas
as suas configurações” (p.192).
Como deve ser lido o retorno de uma natureza “autônoma”,
depois do idealismo? Para Ales Bello o seu sentido
reside na importância dada à nova física e à nova biologia e, sendo o
espírito científico, em última análise, um espírito realista, pode-se
afirmar que é justamente a nova cientificidade das ciências experimentais
que reforçam a polêmica anti-idealista de Conrad-Martius e que dá a
conotação original à sua posição (p.206).
A este ponto, o círculo se abre novamente: Conrad-Martius
retoma o tema ciência-filosofia, do qual Husserl tomara impulso: o
“solevado” caminho.
Notas
(1)
Tradução
de Miguel Mahfoud do original em italiano.
(volta)
Nota
sobre a autora
Bianca Maria d´Ippolito
é doutora em Filosofia, professora da Faculdade de Letras e Filosofia da
Università degli Studi di Salerno, Itália. Contatos: Dipartimento
di Filosofia – UniSa , Via
Ponte Don Melillo, 84084 Fisciano (Salerno) - Itália.
Data de recebimento: 23/06/2004
Data de aceite: 13/10/2004
Memorandum
7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/dippolito01.htm