Introdução
O artigo pretende
examinar distinções que podem ser estabelecidas entre a memória
individual, compreendida enquanto processo psicológico básico, e a memória
social / coletiva, entendida enquanto processo de construção grupal.
Entretanto, faz-se necessário esclarecer que a referida análise não tem a
pretensão de fornecer informações exaustivas acerca de tema tão extenso e
complexo. Deste modo, optou-se pela apresentação de comentários, ainda que
introdutórios, a fim de contribuir para o desenvolvimento de futuras
investigações.
Com intuito de
proporcionar maior compreensão acerca do exame de processos mnemônicos,
foram inicialmente expostos comentários sobre a memória episódica e a
memória cotidiana. Em um segundo momento, foram apresentadas consideração
acerca das orientações psicológica e sociológica em Psicologia Social. Por
fim, foram examinadas as formas de compreensão da memória, as quais
concedem destaque, respectivamente, a fatores individuais e coletivos.
Cabe explicar que a escolha deste percurso, no que tange ao estudo da
memória, permite a inclusão de antigas questões preponderantes na
Psicologia. Deste modo, supõe-se que a distinção entre métodos
experimentais de laboratório e métodos ecológicos, permita a recuperação
tanto de discussões sobre procedimentos metodológicos, discussões
desenvolvidas no campo da Psicologia, como também, no que se refere à área
específica da Psicologia Social, do debate entre o caráter básico ou
aplicado da mesma. Ainda no que tange à esfera da Psicologia Social,
acredita-se que a condição acima mencionada tenha oferecido subsídios para
o gradativo delineamento das orientações psicológica e sociológica.
Supõe-se que a configuração destes domínios particulares esteja
contribuindo para a compreensão de processos psicológicos, quer vinculados
à esfera individual, quer coletiva, através de posições extremas e
conflitantes. Assim, pretende-se estimular a aproximação entre estes
posicionamentos, aproximação que assuma compromisso com o respeito e a
manutenção das diferenças, e não com o esgotar das mesmas.
Conforme mencionaram
Neufeld e Stein (2001), houve a tentativa de se entender a memória,
enquanto processo individual, a partir de diferentes perspectivas
teóricas. Entre tais posições, poder-se-ia citar os modelos espacial,
baseado na Teoria dos Esquemas, dos dois processos de recuperação, da
especificidade de codificação, de reconhecimento e do traço difuso.
Entretanto, faz-se necessário esclarecer que a memória individual foi
entendida através do modelo espacial. Davidoff (2001), ao conceder
destaque ao modelo espacial, afirmou que sistemas de memória envolveriam
três procedimentos: reter e codificar, armazenar e recuperar. A retenção
implicaria em que todo conteúdo percebido, antes de ser armazenado,
devesse primeiro passar pelo processo de codificação, onde as informações
seriam preparadas para a estocagem. Durante esse processo poderia haver a
tradução dos conteúdos de uma forma para outra, isto é, em imagens, sons
ou idéias que tivessem significado. Após a codificação da experiência, a
mesma poderia ser armazenada. Entretanto, a autora advertiu que a memória
não seria equivalente a um chip de computador onde os itens de
informação seriam empilhados automaticamente, à espera do momento em que
fossem requisitados. Ao contrário, o depósito parecia revelar um sistema
complexo e dinâmico que mudava com a experiência. Por fim, a recuperação
compreenderia a busca e resgate de informações estocadas.
Ainda no que tange
ao armazenamento, Davidoff (2001) comentou que três tipos de estruturas
possibilitariam tal função - a memória sensorial, de curto prazo e de
longo prazo. Deste modo, quando a informação chegasse aos órgãos dos
sentidos, a mesma seria retida momentaneamente. Os conteúdos retidos pela
memória sensorial seriam como imagens persistentes e, em geral,
desapareceriam em menos de um segundo, a não ser que fossem transferidos
imediatamente para um segundo sistema de memória, a memória de curto
prazo. Esta seria caracterizada como o centro da consciência, como capaz
de conter tudo aquilo que sabemos – pensamentos, informações,
experiências, entre outros fatores. O depósito da memória de curto prazo
abrigaria uma quantidade de dados por tempo limitado (mais ou menos 15
minutos), o qual poderia ser ampliado através da repetição. Além da função
de armazenamento, a memória de curto prazo desempenharia funções como um
executivo central, inserindo e recuperando conteúdos de um terceiro
sistema mais ou menos permanente, a memória de longo prazo. Para a
informação passar do depósito da memória de curto prazo para a memória de
longo prazo não bastariam repetições, pois seria necessário um tratamento
mais profundo, o qual envolvesse maior atenção, reflexão quanto aos
significados e aproveitamento dos itens que já se encontravam na memória
de longo prazo, por parte de quem memorizasse. Embora o processamento
profundo fosse uma forma de recuperar algo da memória, a repetição simples
e desatenta poderia ser suficiente para transferir informações para o
depósito de longo prazo. Embora seja possível classificar a memória
através destas três estruturas, é oportuno salientar a conexão entre as
mesmas.
De acordo com
Gardner (1996), Ebbinghaus proporcionou avanços à Psicologia ao investigar
princípios da memória a partir do uso de sílabas sem sentido. Entretanto,
Gardner (1996) apontou que o destaque a processos individuais de memória e
a materiais sem conteúdo significativo trouxe também sérias limitações ao
referido campo. Esta crítica pode ser melhor compreendida ao situarmos a
mesma nos debates entre memória episódica e memória diária, isto é, entre
investigações que concedem relevo a pesquisas experimentais realizadas em
situações artificiais de laboratório, e procedimentos não experimentais
que visam ao exame de experiências de memória localizadas em contextos
reais de vida. A referida discussão será representada no presente artigo
através da exposição das idéias defendidas por Banaji e Crowder (1989),
acerca da falência do conceito de memória cotidiana, e das reações
manifestadas por diferentes pesquisadores frente a tal afirmação (Aanstoos,
1991; Banaji & Crowder, 1991; Bruce, 1991; Ceci & Bronfenbrenner, 1991;
Conway, 1991; Gruneberg, Morris & Sykes, 1991; Klatzky, 1991; Morton,
1991; Roediger, 1991 e Tulving, 1991).
Apesar da gradativa
inclusão de questões referentes ao contexto, as discussões estabelecidas
ao longo dos artigos não parecem ter contemplado a compreensão da memória
enquanto processo de construção coletiva. Acredita-se que seja possível o
entrelaçamento entre as oposições ora propostas, o que não significa a
anulação de heterogeneidades, uma vez que a referida articulação visa à
instauração de diálogo intra e interpessoal, intra e intergrupal.
Considerações acerca
da Memória Episódica e da Memória Cotidiana
Com base nas
discussões elaboradas no campo da Psicologia, Banaji e Crowder (1989)
estabeleceram diferenças entre o estudo da memória a partir da perspectiva
laboratorial e da perspectiva ecológica. Deste modo, os autores
caracterizaram o primeiro enfoque como mais relacionado com procedimentos
experimentais (voltados para observação de validade interna e externa de
teorias), e com a descoberta de conclusões passíveis de generalização. A
abordagem ecológica, por sua vez, foi apontada como capaz de compreender
contextos naturais em suas pesquisas e como atenta à aplicabilidade dos
resultados alcançados. Entretanto, os autores apresentaram críticas frente
a perspectiva ecológica, uma vez que concederam destaque à generalização
dos resultados de pesquisa; discordaram da aplicação da terminologia
autobiográfica, pois os participantes de investigações experimentais
também recorreriam as suas histórias pessoais para completarem as tarefas
propostas; comentaram a não exposição de procedimentos e resultados
inéditos, entre outros fatores. Embora os autores não tenham identificado
o procedimento experimental como único modelo científico a ser seguido, os
mesmos indicaram tal recurso como sendo o mais adequado para realização de
investigações, uma vez que garantiria controle das variáveis extrínsecas e
generalização de resultados. Por fim, Banaji e Crowder (1989) comentaram
que a oposição entre memória episódica e memória cotidiana não revelava
uma nova discussão na esfera da Psicologia Social, pois parecia retomar a
crise que marcou esta área na década de 70, ou seja, o debate entre o
caráter básico ou aplicado desta disciplina.
Conway (1991)
considerou as críticas elaboradas por Banaji e Crowder (1989) exageradas e
propôs que avanços acerca do estudo da memória humana devessem buscar a
integração e não exclusão de distintas tradições de pesquisa. Conway
(1991), então, defendeu que as investigações relativas à memória episódica
e cotidiana, embora diferentes, fossem respeitadas enquanto esforços
válidos e significativos para promoção de conhecimento. Quanto à crítica
frente à denominação memória cotidiana ou autobiográfica, o autor afirmou
que, enquanto esta envolvia a análise de eventos com sentido para os
participantes da pesquisa, assim como conhecimento prévio e expectativas
destes, a memória episódica delimitava a área de exame de questões sem
sentido a serem memorizadas pelos sujeitos, exame realizado em situações
artificiais de laboratório que visavam ao controle de variáveis
extrínsecas e à possibilidade de generalização dos resultados encontrados.
O autor salientou que a principal distinção entre tais empreendimentos
consistia, respectivamente, na inclusão ou exclusão de conhecimento prévio
e sentido pessoal, por parte do indivíduo investigado, no que tange à
tarefa de memorização.
Conway (1991) ainda
respondeu às acusações de não realização de pesquisas relevantes e de
obtenção de conclusões consensuais por pesquisadores da memória
autobiográfica. Quanto ao último ponto, argumentou que trabalhos sobre
recenticidade também revelavam a falta de concordância entre
investigadores da memória episódica, pois enquanto alguns afirmavam que
materiais recentemente percebidos eram lembrados mais facilmente que
fatores apresentados há mais tempo (efeito de recenticidade), outros
aboliram tal preceito em função da não ocorrência do mesmo, quando houve
introdução de outra atividade entre o momento de exposição e memorização.
No que se refere à elaboração de projetos importantes, o autor destacou
pesquisas acerca dos efeitos de longo prazo da recenticidade; do papel da
recenticidade na conscientização e organização dos homens no plano
temporal e espacial; da confirmação dos resultados laboratoriais sobre a
relação inversa estabelecida entre intervalo de tempo de retenção da
informação e a recuperação da mesma; da não comprovação da dificuldade de
recuperação mnemônica nos cinco primeiros anos de vida (amnésia infantil);
da lembrança de memórias autobiográficas importantes por parte de pessoas
mais velhas, o que não confirmou a teoria da retenção; de considerações
que revelaram que dos 6 aos 40 anos a capacidade de retenção se mostrava
estável e não em gradativo declínio. Por fim, Conway (1991) esclareceu que
pesquisadores da memória cotidiana avaliavam contribuições e limitações
das considerações sobre memória episódica, o que demonstraria a
possibilidade de se estabelecer diálogo e respeito entre defensores de
posições diferentes. Morton (1991) também concordou com esta aproximação,
afirmando que construções teóricas pertinentes poderiam ser oriundas de
situações artificiais de laboratório, como de situações reais de vida.
Entretanto, propôs que o critério de generalização dos dados fosse
cuidadosamente analisado, a fim de verificar se este procedimento
alcançaria contextos que não os envolvidos na esfera laboratorial.
Ceci e
Bronfenbrenner (1991) refutaram as acusações feitas frente à memória
cotidiana mediante quatro justificativas. Em um primeiro momento
discordaram da equivalência proposta entre o funcionamento mental humano e
processos químicos, pois entendiam o ser humano como ativo, agente, capaz
não somente de se adaptar ao contexto, mas de criá-lo e transformá-lo.
Logo, defenderam que investigações em situações reais não consistiriam na
reaplicação de pesquisas laboratoriais em ambientes não artificiais, mas
em alternativas que visariam à complementação ou mudança das mesmas. Em um
segundo momento, negaram a concepção estreita que definia empreendimentos
científicos como procedimentos experimentais controlados realizados em
laboratórios. Em uma terceira etapa, argumentaram que novas descobertas
foram encontradas em dois estudos de campo por eles conduzidos
anteriormente.
Com relação aos
estudos, Ceci e Bronfenbrenner (1991) descreveram investigação na qual
crianças eram convidadas a assar um bolo ou recarregar a bateria de uma
motocicleta durante trinta minutos. Entretanto, durante este período, as
mesmas poderiam brincar com videogame. As crianças foram divididas em três
grupos, de modo que um conjunto era observado em laboratório, o outro na
própria casa do participante, e o último grupo em uma cozinha existente em
uma universidade, sendo que a freqüência e forma das crianças checarem o
tempo em um relógio eram analisadas. Os resultados revelaram que, em
situações de laboratório, tal freqüência era 30% maior que em casa.
Notaram ainda que em casa os participantes olhavam mais para o relógio
durante os dez minutos iniciais, procura que então era reduzida até os
cinco minutos finais, quando também ocorria aumento de freqüência. As
conclusões apontaram para a criação de um relógio interno, ou seja,
as crianças verificavam nos dez minutos iniciais se conseguiam estimar o
tempo subjetivamente com exatidão, de modo a checarem suas estimativas e o
tempo real marcado pelo relógio. Ao ajustarem os dois relógios,
demonstravam maior disponibilidade para execução de uma segunda tarefa,
disponibilidade que era restringida nos cinco minutos finais, quando
exibiam procedimentos mais conscientes e freqüentes de controle de tempo.
No que tange ao
segundo estudo, os referidos autores desenvolveram uma pesquisa em
situação não experimental, onde repetiram as tarefas propostas, mas os
relógios fornecidos eram mais adiantados ou atrasados que a mensuração
real do tempo. Mais uma vez as crianças demonstraram ajuste ao tempo
sugerido. Deste modo, Ceci e Bronfenbrenner (1991) defenderam a
importância de estudos experimentais e não experimentais, advertindo
inclusive que tais esforços não deveriam ser confinados em oposições como
grande ou pequeno poder de generalização, domínios uniformes ou contextos
diferenciados, pesquisa explicativa ou exploratória, procedimento
controlado ou não, e metodologia científica ou não. Por fim, os autores
questionaram a busca de invariância como sinônimo de rigor científico e
concederam ênfase ao desenrolar de estudos referentes à memória
autobiográfica e também à episódica.
Retomando a proposta
apresentada por Banaji e Crowder (1989), cabe mencionar que Klatzky (1991)
concordou com a distinção estabelecida entre as análises de memória
episódica e da memória comum, em função da existência de diferentes níveis
de controle aplicados às variáveis extrínsecas. A autora afirmou ainda que
o exame da memória autobiográfica, ao incluir dados que não poderiam ser
encontrados em situações artificiais de laboratório, se mostrava
significativo. Com o propósito de oferecer maior clarificação conceitual,
Klatzky (1991) rejeitou a definição da memória comum enquanto pesquisa
aplicada contendo material significativo, realizada apenas fora do
laboratório e com quaisquer pessoas. Isto porque, comentou que trabalhos
acerca da memória episódica também revelavam aplicações, uso de material
com sentido e participação de amostra não composta por estudantes de
graduação. Deste modo, explicou que análises em laboratório poderiam
investigar questões cotidianas envolvidas na capacidade mnemônica. Assim,
forneceu uma definição que contemplava a consideração de fenômenos
relevantes à vida diária; o uso de materiais que exibiam sentido prévio
para os sujeitos; utilização de materiais oferecidos pelas histórias
pessoais dos integrantes da amostra; local familiar à amostra para
realização da pesquisa; e participação de quaisquer indivíduos nos
trabalhos. Quanto ao nível de controle das variáveis extrínsecas, Klatzky
(1991) argumentou que, em determinadas análises, a emergência de novas
conclusões em situações não experimentais compensou o menor grau de
controle. Entretanto, advertiu que este comentário não buscava conceder
ênfase à pesquisa em contextos reais em detrimento do exame em
laboratório, mas visava ao questionamento sobre pontos de maior
aproximação e afastamento entre tais empreendimentos.
Bruce (1991)
discordou das críticas negativas, elaboradas por Banaji e Crowder (1989),
acerca da memória comum, as quais se pautavam em não cientificidade, não
generalização dos resultados, entre outros pontos já mencionados. Porém, o
autor recorreu a novos argumentos para defender tal campo de investigação,
argumentos que foram expostos através do contraste entre explicações sobre
os mecanismos e sobre o funcionamento da memória. Enquanto a memória
episódica estaria mais próxima do primeiro plano, a memória
autobiográfica, ao contemplar situações reais de vida, idiossincrasias e
variabilidade, implicaria na abordagem funcional.
Neisser (1991), por
sua vez, justificou sua contraposição ao artigo de Banaji e Crowder (1989)
a partir da exposição de quatro trabalhos que ofereceram conclusões
inéditas, conclusões elaboradas em investigações acerca da memória comum.
Deste modo, concedeu destaque às investigações acerca da lembrança de
características pessoais valorizadas no presente pelos indivíduos, e a
manutenção ou modificação destes fatores ao longo do tempo. Caso houvesse
manutenção, a lembrança da característica no passado viria em função de
sua percepção no momento atual. No caso de mudança, a lembrança do fator
no passado viria antes da indicação da característica no presente, o que
possibilitaria uma maior compreensão quanto ao contraste entre
estabilidade e transformação da questão. O segundo trabalho comentado foi
relativo à memória de crianças pequenas sobre a rotina familiar e
episódios específicos, lembrança que era narrada com maior riqueza de
detalhes em função do desenvolvimento e orientação dos pais quanto ao uso
social da memória. A análise do esquecimento, após longo período de
apresentação do material a ser retido, foi também apontada. Deste modo,
foram observados sujeitos que estudaram espanhol havia muito tempo. As
conclusões indicaram que, decorridos aproximadamente cinco anos da
exposição do material a ser percebido, a proporção de esquecimento caía
automaticamente, de forma a garantir uma performance estável ao longo de
mais ou menos vinte e cinco anos. O trabalho acerca de flashbulb
memories foi citado, sendo que estas não seriam estudadas facilmente
sob condições artificiais de laboratório, já que tais lembranças eram
referentes a episódios marcantes, e revelavam forte carga emocional, longo
período de retenção e recuperação vívida, mas repleta de dados incorretos.
Neisser (1991), então, comentou que tanto a abordagem ecológica, como a
tradicional, poderiam proporcionar avanços ao campo da memória.
Bahrick (1991) deu
continuidade à defesa da abordagem ecológica, afirmando que existiriam
questões que fugiriam ao rigoroso enquadramento experimental, mas poderiam
ser acolhidas por métodos não experimentais de investigação. Entretanto, o
autor advertiu que tal condição não implicaria na prevalência de uma
proposta sobre a outra, mas demonstrava a possibilidade de avanços na área
da memória humana a partir de diferentes enfoques. Aanstoos (1991)
corroborou tal posicionamento ao salientar que, apesar dos problemas
relativos à validade, generalização, objetividade e confiabilidade de
procedimentos e resultados, a abordagem ecológica representaria um rico
campo de discussão na Psicologia, uma vez que revelaria o esforço de
compreender questões mais próximas do real e, consequentemente, menos
restritas a condições artificiais.
Neste sentido,
Gruneberg, Morris e Sykes (1991) identificaram o artigo publicado por
Banaji e Crowder (1989) como um prejuízo aos esforços teóricos e práticos
existentes na área. Isto porque, o referido artigo propunha a cisão entre
investigações experimentais e não experimentais, de modo a desconsiderar a
conexão que parece mover a ciência – a articulação entre questões do mundo
real e do mundo artificial e especializado do laboratório. Gruneberg,
Morris e Sykes (1991) discordaram também da caracterização das análises
sobre memória autobiográfica como pesquisas aplicadas, como da acusação de
falta de contribuições relevantes. Frente ao primeiro ponto, argumentaram
que tanto metodologias experimentais, como não experimentais, poderiam
visar à aplicação prática de seus resultados. Com relação à segunda
crítica, mencionaram a importância de pesquisas sobre metamemória, sobre a
influência de conhecimentos no processo de memória e sobre problemas
práticos de memória.
Embora pareça haver
uma unânime contraposição frente aos comentários apresentados por Banaji e
Crowder (1989), Roediger (1991) advertiu que análises críticas mais
prudentes deveriam incluir observações acerca de severos ataques frente às
pesquisas experimentais sobre memória. Deste modo, Roediger (1991)
classificou as críticas à abordagem ecológica como respostas aos ataques
anteriormente lançados contra investigações sobre a memória episódica,
ataques que afirmaram que estudos de laboratório eram artificiais,
triviais, incapazes de lidar com problemas significativos e de generalizar
seus resultados em situações reais. Tais ataques propuseram a emergência
de pesquisas ecológicas sobre a memória autobiográfica e o abandono de
métodos experimentais. Roediger (1991) não caracterizou a resposta de
Banaji e Crowder (1989) como radical, mas como revelando a defesa de
validade e generalização das conclusões. Logo, citou que, embora os
autores mencionados tenham indicado que o ideal era estudar questões em
situações reais e encontrar resultados válidos e generalizáveis, os mesmos
observaram que, em razão da dificuldade de se realizar investigações que
contemplassem estas condições, seria preferível abrir mão do primeiro
fator.
Quanto aos artigos
acima comentados, Roediger (1991) indicou a inadequação de pontos
assinalados por Gruneberg, Morris e Sykes (1991) – quanto ao ataque à
pesquisa aplicada; por Ceci e Bronfenbrenner (1991) – quanto à restrição à
participação de qualquer pessoa na composição de amostras e à equivalência
entre ciência e método experimental; e por Conway (1991) – quanto a não
inclusão de material com sentido ou de conhecimento prévio nas pesquisas
sobre memória episódica. Por fim, Roediger (1991) ressaltou a pertinência
de serem desenvolvidas análises experimentais e não experimentais acerca
da memória, análises que sejam percebidas enquanto esforços para obtenção
de novos conhecimentos, os quais contenham avanços, embora possam por
igual conter alguma limitação.
Tulving (1991)
também fez referência às acusações extremadas, as quais afirmaram que cem
anos de pesquisa experimental não trouxeram qualquer contribuição ao
estudo da memória, acusações que ainda insinuaram que os responsáveis por
tais empreendimentos não eram criativos, competentes ou preocupados com
questões sociais relevantes. De acordo com Tulving (1991), confrontos
exagerados seriam inadequados, quer fossem expostos em defesa de
procedimentos experimentais ou ecológicos, pois diferentes perspectivas
não deveriam ser classificadas como mutuamente exclusivas, mas como
esforços complementares que buscariam oferecer subsídios a futuras
investigações.
A título de
esclarecimento, Banaji e Crowder (1991) responderam aos ataques frente ao
artigo por eles anteriormente publicado (Banaji e Crowder, 1989),
novamente citando que pesquisas científicas ideais deveriam envolver
contextos reais e generalização de resultados. Entretanto, se houvesse
necessidade de sacrificar uma das condições, a primeira deveria ser
abandonada. Embora defendessem tal posição, não desconsideravam a
importância de pesquisas aplicadas e desenvolvidas em situações naturais.
No que tange a essas
observações, como também aos comentários apresentados por Tulving (1991) e
Roediger (1991), concorda-se com a adoção de posturas mais moderadas,
capazes de revelar o compromisso com o diálogo entre diferentes
interlocutores. Este compromisso não deve ser encarado como um pacto
ingênuo ou superficial de tolerância à diversidade, mas como intenso e
complexo exercício de reflexão sobre possíveis encontros e desencontros
entre propostas que visam ao alcance de um objetivo maior – a construção
de conhecimentos cada vez mais consistentes e coerentes sobre o ser
humano. O convite ao diálogo proposto pela autora deste projeto não
compreende apenas as discussões entre procedimentos experimentais e não
experimentais, memória episódica e memória autobiográfica, mas também
entre as vertentes psicológica e sociológica desenvolvidas em Psicologia
Social, e, mais especificamente, entre a compreensão da memória enquanto
processo psicológico individual e enquanto construção social / coletiva. A
autora propõe um exame que contemple contribuições e limitações de
posições antagônicas, mas que conceda ênfase principalmente aos campos de
intersecção entre estas posições, a fim de que divergências sejam
promotoras de diálogo e não de monólogo, de encontro e não de confronto,
de respeito e não de desconsideração, enfim, de criatividade e não de
repetição de argumentos.
Considerações acerca
das vertentes psicológica e sociológica
Conforme
anteriormente mencionado, o presente artigo visa conceder ênfase a
aspectos individuais, sociais e coletivos da memória, ou seja, contemplar
a condição social / coletiva, mas sem negligenciar ou minimizar a condição
individual. Percebe-se, então, o compromisso com a articulação entre estas
dimensões e com o respeito para com a especificidade das mesmas. Esta
ressalva revela nossa discordância frente à apresentação de condições
diferentes como sendo necessariamente contrárias e implicando na
atribuição de juízos de valor, como: certas ou erradas, melhores ou
piores, entre outras categorizações. Tal dicotomia pode ser introduzida
ingênua e incorretamente quer na discussão a respeito da memória, quer, em
âmbito mais específico, no próprio campo da Psicologia Social. Supõe-se,
inclusive, que a distinção entre memória individual e social / coletiva
tenha recebido maior destaque a partir da configuração das orientações
psicológica e sociológica, delineamento comentado por Farr (1998). Tal
diferenciação se torna mais nítida ao examinarmos as contribuições
oferecidas, respectivamente, por Krüger (1986) e por Sá (1996).
Krüger (1986), ao
investigar o delineamento do campo ora abordado, concedeu ênfase a alguns
aspectos. Assim, citou o individualismo, definindo-o como a orientação
preferencialmente adotada pelos psicólogos sociais na escolha de seus
objetos de pesquisa, isto é, na eleição do estudo do comportamento social
e dos processos cognitivos e afetivos enquanto influenciam e/ou são
influenciados pela presença real, imaginada ou memorizada de outras
pessoas. O experimentalismo também consistiu em um aspecto destacado, uma
vez que experimentos teriam sido desenvolvidos de forma freqüente, o que
não comprometeria a realização de estudos de campo ou outros modos de se
realizar pesquisas. Outro fator pôde ser representado através da
microteorização, já que este contexto não envolveria teorias abrangentes.
Krüger (1986) explicou tal aspecto como sendo conseqüência da falta de
consenso entre os pesquisadores no que tange à concepção de homem adotada;
da significativa dispersão das temáticas focalizadas; da não continuidade
dos programas de pesquisa e, até, do prematuro abandono de programas
promissores. A noção de etnocentrismo contribuiu para caracterização deste
campo de investigação, compreendendo-se este termo como voltado para a
orientação sobretudo norte-americana registrada neste âmbito. Tal contexto
foi apresentado também como uma disciplina científica pragmática, ou que
guardava compromisso com o utilitarismo, pois era direcionada ao
atendimento de expectativas sociais. O cognitivismo foi ainda destacado
como um fator capaz de facilitar o entendimento do campo em questão, já
que a influência deste movimento vinha ganhando considerável relevo neste
âmbito de investigação. Por fim, Krüger (1986) ressaltou o a-historicismo,
definindo este aspecto como sendo o negligenciar da perspectiva histórica,
mencionando a importância de se enfatizar a inclusão de tal dimensão
social, histórica e cultural. Concorda-se com sua ressalva, isto é, que
aspectos socioculturais, considerados em sua evolução temporal, devam ser
levados em conta ao se analisar as condutas humanas.
Por sua vez Sá
(1996), ao caracterizar a Psicologia Social em sua vertente sociológica,
conferiu destaque a aspectos contrários àqueles supracitados. Deste modo,
o individualismo seria combatido através do compromisso ainda mais social
desta vertente, o que pode ser melhor percebido através da introdução de
dois novos níveis de explicação, ou seja, além dos já considerados níveis
intra e interpessoal, a adoção dos níveis posicional e ideológico. Este
pôde ser compreendido como o conjunto de crenças e representações
existentes que serviria para organização da sociedade, enquanto aquele foi
definido como capaz de revelar as diferentes posições sociais ocupadas
pelos sujeitos que estabeleciam relações. No que tange à contraposição ao
experimentalismo, salientou-se a utilização de metodologias mais
diversificadas, cabendo fazer a ressalva de que não se exclui neste
contexto o uso do próprio método experimental. Quanto à amplitude das
teorias elaboradas, percebe-se uma tendência à macroteorização. O
etnocentrismo, assim como o a-historicismo, foram substituídos pela
importância concedida a fatores históricos e culturais no desenvolvimento
de fenômenos psicossociais. No que se refere ao utilitarismo, percebe-se a
exacerbação deste aspecto quando a orientação sociológica estabeleceu o
compromisso de tornar a Psicologia Social ainda mais social. Por fim,
quanto ao cognitivismo, descartou-se a noção de cognição social,
concedendo-se prioridade ao conceito de representação social.
Acredita-se que as
orientações acima assinaladas não devam ser apresentadas como mutuamente
exclusivas, nem mesmo como ocupando a posição de “porta-voz” único e
verdadeiro da Psicologia Social. Isto porque, supõe-se que a diversidade
existente, quer na esfera conceitual, metodológica ou de aplicação, seja a
principal mola propulsora de adequadas discussões e produtivos avanços na
esfera ora tratada. Esta posição revela um convite ao intercâmbio entre
tais orientações, o que não significa a superficial união destas vertentes
através do apagar as ricas diferenças existentes. Assim, cabe registrar
que o presente estudo concebe a memória social enquanto capaz de reunir
aspectos coletivos e aspectos individuais, uma vez que a memória envolve
recursos da ordem cognitiva, emocional e comportamental, localizados em
sujeitos inseridos em contextos sociais. Após a exposição destes breves
comentários sobre as vertentes psicológica e sociológica em Psicologia
Social, faz-se necessário abordar a compreensão da memória enquanto
processo básico individual e enquanto construção social / coletiva.
Considerações acerca
da memória individual e da memória social / coletiva
No que se refere às
oposições acima incluídas, mais especificamente, à memória social /
coletiva, Halbwachs (1990) propôs o exame do homem enquanto sujeito
inserido na trama da vida coletiva, exame este que não pretendia reduzir o
individual ao coletivo. Assim, afirmou a existência da memória individual,
mas destacou que a mesma se inscreveria em quadros sociais. Blondel (1966)
mostrou concordância em seu posicionamento, assinalando que o passado
apresentaria continuidade, consistência e objetividade não em função da
memória individual, mas sim devido à intervenção de fatores sociais. Estes
fatores possibilitariam ao sujeito inscrever sua experiência em quadros
coletivos de memória, onde compartilharia com membros de seu grupo os
acontecimentos vividos. Blondel (1966) esclareceu ainda que, para
Halbwachs, a memória não consistiria em reprodução do passado, envolvendo
sim reconstrução do mesmo a partir de experiências coletivas. Sá (1979)
também comentou tal aspecto construtivo, expondo que a memória humana não
era tão fiel à conservação do passado, fato que podia ser facilmente
verificado através de fragmentos inventados e inseridos em histórias de
vida, com o intuito de garantir, às mesmas, coerência e continuidade.
Deste modo,
observa-se que Halbwachs (1990) se contrapôs à concepção de memória
individual e intacta proposta por Bergson, pois afirmou que lembrar não
consistiria em reviver, mas refazer, reconstruir, com imagens e idéias de
hoje, as experiências do passado. Logo, a memória não seria sonho, mas
trabalho. Tampouco a memória seria individual, pois seria coletiva. A
memória do sujeito dependeria do seu relacionamento com a família, classe
social, escola, enfim, dos grupos de referência e pertencimento do
indivíduo em questão. A lembrança, enquanto conservação total do passado,
tornava-se impossível na medida em que um adulto não poderia manter
intacto o sistema de representações, hábitos e relações sociais da sua
infância. Isto porque, qualquer mudança do ambiente atingiria a qualidade
íntima da memória, amarrando então a memória da pessoa à memória do grupo
e, esta última, à esfera maior da tradição, que representaria a memória
coletiva de cada sociedade. Como disse Halbwachs (1990, p. 26): “Nossas
lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros,
mesmo que se tratando de acontecimentos nos quais só estivemos envolvidos,
e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós”.
Segundo Penna
(2001), Bergson se destacou ao propor dois tipos de memória - memória
hábito e memória souvenir. A primeira consistiria na memória
composta por esquemas de comportamento, dos quais o corpo se valeria,
muitas vezes, automaticamente. Tais esquemas seriam adquiridos pelo
esforço da atenção, repetição de gestos ou palavras, enfim, pelas
exigências da socialização. Já a memória pura, ao se atualizar na
imagem-lembrança, traria à consciência um momento único, singular,
irreversível da vida, o que revelaria seu caráter não mecânico, mas
evocativo.
Ainda no que tange à
ênfase conferida ao aspecto social, Bosi (1979) comentou que Bartlett
também estabeleceu a articulação entre o processo de memória e o contexto
social, sobretudo ao utilizar o conceito de convencionalização.
Este conceito afirmava que materiais (imagens e idéias) recebidos por um
determinado grupo ganhariam formas de expressão condizentes com as
convenções verbais já existentes no mencionado conjunto. O processo de
convencionalização poderia envolver assimilação (simples incorporação
de materiais culturais recebidos), simplificação (desconsideração de
fatores estranhos aos presentes na prática social), retenção parcial com
ênfase no detalhe (manter um ponto não importante no contexto de origem,
conferindo ao mesmo relevância) ou, por fim, a criação de novas formas
simbólicas (resultantes das interações desenvolvidas no conjunto
receptor). Tais procedimentos revelavam o trabalho de construção social da
memória, uma vez que esquemas de narração e interpretação existentes nos
grupos implicariam na elaboração de versões históricas próprias frente ao
conteúdo recebido. Bartlett (1995) explicitou melhor tal posicionamento ao
afirmar que a convencionalização revelaria a influência do passado
sobre o presente. Embora Bartlett tenha indicado este forte componente
social, o mesmo se diferenciou de Halbwachs ao propor a vinculação entre
fatores da personalidade e o modo do sujeito recordar, e ao salientar que
suas investigações eram referentes aos processos de memória no
grupo e não do grupo.
De acordo com
Johnston (2001), seria possível identificar três momentos de releitura das
contribuições oferecidas por Bartlett. A autora definiu o primeiro período
como relacionado à publicação do livro Remembering em 1932, etapa
em que foi concedida ênfase a investigações empíricas. A segunda fase,
época da revolução cognitiva, foi assinalada a partir do destaque
conferido ao conceito de esquema, o qual revelava a não compreensão do
processo de memória através do registro e recuperação de traços. Assim, a
organização da memória era marcada por atitudes, interesses, crenças,
valores, sentimentos, enfim, por experiências pessoais que garantiam
caráter dinâmico à memória. Lembrar era equivalente a reconstituir o
material a ser evocado, podendo ocorrer omissão, acréscimo, transformação,
transposição, elaboração, condensação, entre outros mecanismos que
explicitariam a condição construtiva, e não simplesmente reprodutiva, da
memória. Segundo o modelo de Johnston (2001), o último período implicaria
na concepção social da memória, isto é, na influência de aspectos
socioculturais na reconstrução da memória. Tal etapa seria desenvolvida
contemporaneamente e permitiria a aproximação entre o trabalho de Bartlett
e de outros pesquisadores, o que para Johnston (2001) contribuiria para
elaboração inadequada de releituras sobre o autor ora discutido.
Retomando as
contribuições oferecidas por Halbwachs (1990), cabe mencionar que para
este autor o sujeito apresentaria dois tipos de memória, sendo uma
individual e a outra, coletiva. Entretanto, mais uma vez ressaltou que
aquela poderia se apoiar nesta, pois o indivíduo, ao evocar seu passado,
estabeleceria relações com as lembranças de outros membros de seu grupo
social. Dando prosseguimento a estas categorizações, o autor sugeriu a
diferenciação entre uma memória interna, pessoal, denominada
autobiográfica e uma memória externa, social, intitulada histórica. A
memória histórica não era equivalente à memória coletiva, pois enquanto a
primeira demarcava rígidas linhas de separação temporal, buscando o
alcance de um caráter único, universal, através da ênfase conferida às
diferenças, a segunda contava com limites temporais incertos, revelando
variadas memórias possíveis e destacando as semelhanças existentes entre
as experiências individuais e aquelas referentes aos membros que
compartilhavam quadros sociais.
Jedlowski (1997), ao
discutir a temática da memória coletiva, resumiu as idéias de Halbwachs em
três pontos, sendo eles: a concepção da memória individual enquanto
inscrita em quadros de referência social, podendo-se destacar aí o papel
da linguagem; a noção de construção e seleção do passado, tanto em
processos individuais, como também coletivos de memória; a compreensão da
memória coletiva enquanto função da identidade dos grupos sociais, uma vez
que aquela serviria para integração e continuidade destes, para o
surgimento de sentimentos de pertencimento nos componentes dos mesmos, bem
com para a reconstrução do passado segundo interesses particulares destes
conjuntos.
No que tange à
definição do conceito memória coletiva, Jedlowski (1997) apontou a
vinculação deste à necessidade das sociedades conservarem suas respectivas
heranças culturais e transmiti-las a outras gerações. Tal transmissão
revelaria a aproximação entre o tema ora investigado e processos
comunicacionais, uma vez que existiriam produtores, transmissores e
receptores de memória. Acredita-se que esta questão introduza outro ponto
de reflexão: as relações de poder existentes. O autor mencionou, ainda,
que conflitos e negociações ocorriam em sociedades contemporâneas devido
às relações de poder e ao fato daquelas serem compostas por diferentes
grupos.
Por fim, Jedlowski
(1997) apresentou definições distintas para os conceitos de memória comum,
social e coletiva. Deste modo, esta foi classificada como sendo elaborada
coletivamente, isto é, resultando de interações sociais e processos
comunicacionais, os quais elegiam determinados aspectos do passado de
acordo com as identidades e interesses dos componentes dos grupos em
questão. A memória social foi entendida como fluída e disponível para
qualquer indivíduo pertencente ao grupo social. Por sua vez, a memória
comum foi caracterizada como lembrança que a pessoa teria de si, sem que
houvesse elaboração, discussão ou práticas coletivas. Assim, o autor
afirmou que a memória não envolveria apenas representações do passado,
mas, sobretudo, práticas que permitiriam a vinculação entre presente e
passado. O momento anterior organizaria o atual através de heranças
culturais transmitidas ao longo de gerações. Entretanto, o presente
selecionaria dados herdados, de modo a reconstruir constantemente o que já
passou.
Aproveitando a
classificação acima exposta e as discussões em torno do conceito de
memória, faz-se necessário apresentar a definição de memória social
proposta por Sá (2001). Neste sentido, a memória social envolveria memória
individual, não contrária ao aspecto coletivo, uma vez que a ele estaria
relacionada, sendo o caso da memória autobiográfica; memória coletiva
(haveria concordância com a compreensão de Jedlowski); memória comum, que
seria compartilhada por grupo de pessoas, não havendo elaboração coletiva,
vista por exemplo na memória geracional; memória pública, na qual aspectos
do passado estariam virtualmente disponíveis a qualquer indivíduo, como no
caso da memória documental; memória histórica - fontes históricas reunidas
em memórias coletivas de grupos historicamente demarcados, por exemplo,
memória étnica, nacional e comunitária; e memória prática - práticas,
rituais e normas implícitas estariam envolvidas, sendo exemplificada pela
memória institucional.
Com base nesta
última categorização, questiona-se a possibilidade de arrumação de tais
classes de forma mais inclusiva. Isto é, seria adequado propor uma memória
social que englobasse três esferas, sendo estas respectivamente:
individual, coletiva e comum? Caso a resposta seja afirmativa, acredita-se
que estas esferas poderiam ser apresentadas através de círculos
concêntricos, de modo que a parte mais periférica comportaria a memória
comum, a parte intermediária a memória coletiva e, por fim, a parte
central englobaria a memória individual. Neste sentido, haveria uma esfera
mais ampla que envolveria dados compartilhados por membros de conjuntos
sociais, dados estes que não iriam requerer elaboração coletiva. Em uma
esfera mais próxima ao centro, encontrar-se-iam conteúdos construídos
coletivamente, sobretudo através de práticas verbais (discursivas) e não
verbais. No que tange ao último aspecto, supõe-se que seria pertinente
incluir nesta esfera intermediária – círculo referente à memória coletiva
– a memória prática anteriormente apontada por Sá (2001). Ainda nesta
esfera, poder-se-ia pensar na inclusão de aspectos públicos (memória
pública) e históricos (memória histórica), uma vez que tais dimensões
parecem envolver elaboração coletiva e o destaque a condições específicas.
Embora Halbwachs (1990) tenha estabelecido diferenças entre memória
coletiva (compreendida em seu aspecto dinâmico) e memória histórica
(entendida enquanto demarcada por condições espaço-temporais), concorda-se
com a posição defendida por Silva (2002) quanto à aproximação entre
memória e história. Silva (2002) afirmou que o entrelaçamento entre
memória coletiva e memória histórica revelaria a tentativa daquela
alcançar condição de veracidade, característica atribuída sobretudo à
perspectiva histórica. A citada autora concedeu destaque à rememoração
(definida como processo individual) e à comemoração (apresentada como
atividade coletiva) ao analisar a vinculação entre memória e história,
vinculação que permitiria melhor conexão entre as dimensões temporais
referentes ao passado, presente e futuro. A ênfase conferida à
rememoração e à comemoração parece revelar a importância da memória
prática, esfera também investigada por Connerton (1993), o qual examinou
cerimônias comemorativas e práticas corporais visando ao entendimento dos
processos de transmissão e conservação de conteúdos do passado através de
performances rituais. Silva (2002) salientou que, neste entrelaçamento
entre memória e história, deveria haver constante compromisso com a
reflexão, a fim de que a história fosse examinada enquanto memória
criticada e não simplesmente oficializada. Por fim, cabe mais uma vez
afirmar que tal convite ao entrelaçamento pode e deve perpassar não
somente o campo referente à memória e à história, mas também as outras
discussões apontadas no presente artigo.