Epelboin, S. (2004). Memória individual e memória social / coletiva: considerações à luz da psicologia social. Memorandum, 7, 18-31. Retirado em   /  /  , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.htm

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Memória individual e memória social / coletiva: considerações à luz da psicologia social

 Individual Memory and Social / Collective Memory: considerations in the light of Social Psychology

 Solange Epelboim
Universidade Estácio de Sá
Universidade Católica de Petrópolis
Brasil

Resumo

O artigo visa reunir comentários sobre a memória, de modo a contemplar discussões que se desenrolam nesta esfera.  Embora diferentes caracterizações sejam indicadas em debates específicos, supõe-se que estes fatores contrastantes apenas reeditem antigas dicotomias.  Deste modo, serão apresentadas a seguir considerações acerca da memória enquanto processo básico individual e, depois, enquanto processo de construção social.  Esta distinção parece apontar para necessidade de se retomar o debate sobre memória episódica e memória autobiográfica ou cotidiana.  Acredita-se que, no que tange à Psicologia Social, a questão ora tratada também implique em que sejam estabelecidas diferenças entre as vertentes psicológica e sociológica.  O artigo, ao apresentar uma postura mais inclusiva na reflexão sobre posições contrastantes, ao enfatizar encontros e diálogos entre diferentes propostas, defende que não há, necessariamente, apenas uma perspectiva correta, mas diferentes formas de se compreender um mesmo problema.

Palavras-chave: memória individual; memória social; memória coletiva.

Abstract

This article brings together commentaries concerning memory. Although different characterizations emerge in specific debates, these contrasting factors replay old dichotomies. This article will present considerations concerning memory as seen from the point of view of it being a basic, individual process and a process of social construction. This distinction points to the necessity of taking up the debate concerning episodic memory and autobiographical or daily memory. In terms of Social Psychology, it is believed that the above mentioned question also requires that differences between the psychological and sociological perspectives within Social Psychology be established. Since this article defends the adoption of greater integration whilst analyzing contrasting positions, and this can be done by building up a dialogue between the different proposals, it intends to confirm that there is not, necessarily, a single correct perspective, but, rather, different forms of searching for an understanding of the same problem.

Keywords: individual memory; social memory; collective memory.

Introdução

O artigo pretende examinar distinções que podem ser estabelecidas entre a memória individual, compreendida enquanto processo psicológico básico, e a memória social / coletiva, entendida enquanto processo de construção grupal. Entretanto, faz-se necessário esclarecer que a referida análise não tem a pretensão de fornecer informações exaustivas acerca de tema tão extenso e complexo. Deste modo, optou-se pela apresentação de comentários, ainda que introdutórios, a fim de contribuir para o desenvolvimento de futuras investigações.

Com intuito de proporcionar maior compreensão acerca do exame de processos mnemônicos, foram inicialmente expostos comentários sobre a memória episódica e a memória cotidiana. Em um segundo momento, foram apresentadas consideração acerca das orientações psicológica e sociológica em Psicologia Social. Por fim, foram examinadas as formas de compreensão da memória, as quais concedem destaque, respectivamente, a fatores individuais e coletivos. Cabe explicar que a escolha deste percurso, no que tange ao estudo da memória, permite a inclusão de antigas questões preponderantes na Psicologia. Deste modo, supõe-se que a distinção entre métodos experimentais de laboratório e métodos ecológicos, permita a recuperação tanto de discussões sobre procedimentos metodológicos, discussões desenvolvidas no campo da Psicologia, como também, no que se refere à área específica da Psicologia Social, do debate entre o caráter básico ou aplicado da mesma. Ainda no que tange à esfera da Psicologia Social, acredita-se que a condição acima mencionada tenha oferecido subsídios para o gradativo delineamento das orientações psicológica e sociológica.  Supõe-se que a configuração destes domínios particulares esteja contribuindo para a compreensão de processos psicológicos, quer vinculados à esfera individual, quer coletiva, através de posições extremas e conflitantes. Assim, pretende-se estimular a aproximação entre estes posicionamentos, aproximação que assuma compromisso com o respeito e a manutenção das diferenças, e não com o esgotar das mesmas.

Conforme mencionaram Neufeld e Stein (2001), houve a tentativa de se entender a memória, enquanto processo individual, a partir de diferentes perspectivas teóricas. Entre tais posições, poder-se-ia citar os modelos espacial, baseado na Teoria dos Esquemas, dos dois processos de recuperação, da especificidade de codificação, de reconhecimento e do traço difuso. Entretanto, faz-se necessário esclarecer que a memória individual foi entendida através do modelo espacial. Davidoff (2001), ao conceder destaque ao modelo espacial, afirmou que sistemas de memória envolveriam três procedimentos: reter e codificar, armazenar e recuperar. A retenção implicaria em que todo conteúdo percebido, antes de ser armazenado, devesse primeiro passar pelo processo de codificação, onde as informações seriam preparadas para a estocagem. Durante esse processo poderia haver a tradução dos conteúdos de uma forma para outra, isto é, em imagens, sons ou idéias que tivessem significado. Após a codificação da experiência, a mesma poderia ser armazenada. Entretanto, a autora advertiu que a memória não seria equivalente a um chip de computador onde os itens de informação seriam empilhados automaticamente, à espera do momento em que fossem requisitados. Ao contrário, o depósito parecia revelar um sistema complexo e dinâmico que mudava com a experiência. Por fim, a recuperação compreenderia a busca e resgate de informações estocadas.

Ainda no que tange ao armazenamento, Davidoff (2001) comentou que três tipos de estruturas possibilitariam tal função - a memória sensorial, de curto prazo e de longo prazo. Deste modo, quando a informação chegasse aos órgãos dos sentidos, a mesma seria retida momentaneamente. Os conteúdos retidos pela memória sensorial seriam como imagens persistentes e, em geral, desapareceriam em menos de um segundo, a não ser que fossem transferidos imediatamente para um segundo sistema de memória, a memória de curto prazo. Esta seria caracterizada como o centro da consciência, como capaz de conter tudo aquilo que sabemos – pensamentos, informações, experiências, entre outros fatores. O depósito da memória de curto prazo abrigaria uma quantidade de dados por tempo limitado (mais ou menos 15 minutos), o qual poderia ser ampliado através da repetição. Além da função de armazenamento, a memória de curto prazo desempenharia funções como um executivo central, inserindo e recuperando conteúdos de um terceiro sistema mais ou menos permanente, a memória de longo prazo. Para a informação passar do depósito da memória de curto prazo para a memória de longo prazo não bastariam repetições, pois seria necessário um tratamento mais profundo, o qual envolvesse maior atenção, reflexão quanto aos significados e aproveitamento dos itens que já se encontravam na memória de longo prazo, por parte de quem memorizasse. Embora o processamento profundo fosse uma forma de recuperar algo da memória, a repetição simples e desatenta poderia ser suficiente para transferir informações para o depósito de longo prazo. Embora seja possível classificar a memória através destas três estruturas, é oportuno salientar a conexão entre as mesmas.

De acordo com Gardner (1996), Ebbinghaus proporcionou avanços à Psicologia ao investigar princípios da memória a partir do uso de sílabas sem sentido. Entretanto, Gardner (1996) apontou que o destaque a processos individuais de memória e a materiais sem conteúdo significativo trouxe também sérias limitações ao referido campo. Esta crítica pode ser melhor compreendida ao situarmos a mesma nos debates entre memória episódica e memória diária, isto é, entre investigações que concedem relevo a pesquisas experimentais realizadas em situações artificiais de laboratório, e procedimentos não experimentais que visam ao exame de experiências de memória localizadas em contextos reais de vida. A referida discussão será representada no presente artigo através da exposição das idéias defendidas por Banaji e Crowder (1989), acerca da falência do conceito de memória cotidiana, e das reações manifestadas por diferentes pesquisadores frente a tal afirmação (Aanstoos, 1991; Banaji & Crowder, 1991; Bruce, 1991; Ceci & Bronfenbrenner, 1991; Conway, 1991; Gruneberg, Morris & Sykes, 1991; Klatzky, 1991; Morton, 1991; Roediger, 1991 e Tulving, 1991).

Apesar da gradativa inclusão de questões referentes ao contexto, as discussões estabelecidas ao longo dos artigos não parecem ter contemplado a compreensão da memória enquanto processo de construção coletiva. Acredita-se que seja possível o entrelaçamento entre as oposições ora propostas, o que não significa a anulação de heterogeneidades, uma vez que a referida articulação visa à instauração de diálogo intra e interpessoal, intra e intergrupal.

 

Considerações acerca da Memória Episódica e da Memória Cotidiana

Com base nas discussões elaboradas no campo da Psicologia, Banaji e Crowder (1989) estabeleceram diferenças entre o estudo da memória a partir da perspectiva laboratorial e da perspectiva ecológica. Deste modo, os autores caracterizaram o primeiro enfoque como mais relacionado com procedimentos experimentais (voltados para observação de validade interna e externa de teorias), e com a descoberta de conclusões passíveis de generalização. A abordagem ecológica, por sua vez, foi apontada como capaz de compreender contextos naturais em suas pesquisas e como atenta à aplicabilidade dos resultados alcançados. Entretanto, os autores apresentaram críticas frente a perspectiva ecológica, uma vez que concederam destaque à generalização dos resultados de pesquisa; discordaram da aplicação da terminologia autobiográfica, pois os participantes de investigações experimentais também recorreriam as suas histórias pessoais para completarem as tarefas propostas; comentaram a não exposição de procedimentos e resultados inéditos, entre outros fatores.  Embora os autores não tenham identificado o procedimento experimental como único modelo científico a ser seguido, os mesmos indicaram tal recurso como sendo o mais adequado para realização de investigações, uma vez que garantiria controle das variáveis extrínsecas e generalização de resultados. Por fim, Banaji e Crowder (1989) comentaram que a oposição entre memória episódica e memória cotidiana não revelava uma nova discussão na esfera da Psicologia Social, pois parecia retomar a crise que marcou esta área na década de 70, ou seja, o debate entre o caráter básico ou aplicado desta disciplina.

Conway (1991) considerou as críticas elaboradas por Banaji e Crowder (1989) exageradas e propôs que avanços acerca do estudo da memória humana devessem buscar a integração e não exclusão de distintas tradições de pesquisa. Conway (1991), então, defendeu que as investigações relativas à memória episódica e cotidiana, embora diferentes, fossem respeitadas enquanto esforços válidos e significativos para promoção de conhecimento. Quanto à crítica frente à denominação memória cotidiana ou autobiográfica, o autor afirmou que, enquanto esta envolvia a análise de eventos com sentido para os participantes da pesquisa, assim como conhecimento prévio e expectativas destes, a memória episódica delimitava a área de exame de questões sem sentido a serem memorizadas pelos sujeitos, exame realizado em situações artificiais de laboratório que visavam ao controle de variáveis extrínsecas e à possibilidade de generalização dos resultados encontrados. O autor salientou que a principal distinção entre tais empreendimentos consistia, respectivamente, na inclusão ou exclusão de conhecimento prévio e sentido pessoal, por parte do indivíduo investigado, no que tange à tarefa de memorização.

Conway (1991) ainda respondeu às acusações de não realização de pesquisas relevantes e de obtenção de conclusões consensuais por pesquisadores da memória autobiográfica. Quanto ao último ponto, argumentou que trabalhos sobre recenticidade também revelavam a falta de concordância entre investigadores da memória episódica, pois enquanto alguns afirmavam que materiais recentemente percebidos eram lembrados mais facilmente que fatores apresentados há mais tempo (efeito de recenticidade), outros aboliram tal preceito em função da não ocorrência do mesmo, quando houve introdução de outra atividade entre o momento de exposição e memorização. No que se refere à elaboração de projetos importantes, o autor destacou pesquisas acerca dos efeitos de longo prazo da recenticidade; do papel da recenticidade na conscientização e organização dos homens no plano temporal e espacial; da confirmação dos resultados laboratoriais sobre a relação inversa estabelecida entre intervalo de tempo de retenção da informação e a recuperação da mesma; da não comprovação da dificuldade de recuperação mnemônica nos cinco primeiros anos de vida (amnésia infantil); da lembrança de memórias autobiográficas importantes por parte de pessoas mais velhas, o que não confirmou a teoria da retenção; de considerações que revelaram que dos 6 aos 40 anos a capacidade de retenção se mostrava estável e não em gradativo declínio. Por fim, Conway (1991) esclareceu que pesquisadores da memória cotidiana avaliavam contribuições e limitações das considerações sobre memória episódica, o que demonstraria a possibilidade de se estabelecer diálogo e respeito entre defensores de posições diferentes. Morton (1991) também concordou com esta aproximação, afirmando que construções teóricas pertinentes poderiam ser oriundas de situações artificiais de laboratório, como de situações reais de vida. Entretanto, propôs que o critério de generalização dos dados fosse cuidadosamente analisado, a fim de verificar se este procedimento alcançaria contextos que não os envolvidos na esfera laboratorial.

Ceci e Bronfenbrenner (1991) refutaram as acusações feitas frente à memória cotidiana mediante quatro justificativas. Em um primeiro momento discordaram da equivalência proposta entre o funcionamento mental humano e processos químicos, pois entendiam o ser humano como ativo, agente, capaz não somente de se adaptar ao contexto, mas de criá-lo e transformá-lo. Logo, defenderam que investigações em situações reais não consistiriam na reaplicação de pesquisas laboratoriais em ambientes não artificiais, mas em alternativas que visariam à complementação ou mudança das mesmas. Em um segundo momento, negaram a concepção estreita que definia empreendimentos científicos como procedimentos experimentais controlados realizados em laboratórios. Em uma terceira etapa, argumentaram que novas descobertas foram encontradas em dois estudos de campo por eles conduzidos anteriormente.

Com relação aos estudos, Ceci e Bronfenbrenner (1991) descreveram investigação na qual crianças eram convidadas a assar um bolo ou recarregar a bateria de uma motocicleta durante trinta minutos. Entretanto, durante este período, as mesmas poderiam brincar com videogame. As crianças foram divididas em três grupos, de modo que um conjunto era observado em laboratório, o outro na própria casa do participante, e o último grupo em uma cozinha existente em uma universidade, sendo que a freqüência e forma das crianças checarem o tempo em um relógio eram analisadas. Os resultados revelaram que, em situações de laboratório, tal freqüência era 30% maior que em casa. Notaram ainda que em casa os participantes olhavam mais para o relógio durante os dez minutos iniciais, procura que então era reduzida até os cinco minutos finais, quando também ocorria aumento de freqüência. As conclusões apontaram para a criação de um relógio interno, ou seja, as crianças verificavam nos dez minutos iniciais se conseguiam estimar o tempo subjetivamente com exatidão, de modo a checarem suas estimativas e o tempo real marcado pelo relógio. Ao ajustarem os dois relógios, demonstravam maior disponibilidade para execução de uma segunda tarefa, disponibilidade que era restringida nos cinco minutos finais, quando exibiam procedimentos mais conscientes e freqüentes de controle de tempo.

No que tange ao segundo estudo, os referidos autores desenvolveram uma pesquisa em situação não experimental, onde repetiram as tarefas propostas, mas os relógios fornecidos eram mais adiantados ou atrasados que a mensuração real do tempo. Mais uma vez as crianças demonstraram ajuste ao tempo sugerido. Deste modo, Ceci e Bronfenbrenner (1991) defenderam a importância de estudos experimentais e não experimentais, advertindo inclusive que tais esforços não deveriam ser confinados em oposições como grande ou pequeno poder de generalização, domínios uniformes ou contextos diferenciados, pesquisa explicativa ou exploratória, procedimento controlado ou não, e metodologia científica ou não. Por fim, os autores questionaram a busca de invariância como sinônimo de rigor científico e concederam ênfase ao desenrolar de estudos referentes à memória autobiográfica e também à episódica.

Retomando a proposta apresentada por Banaji e Crowder (1989), cabe mencionar que Klatzky (1991) concordou com a distinção estabelecida entre as análises de memória episódica e da memória comum, em função da existência de diferentes níveis de controle aplicados às variáveis extrínsecas. A autora afirmou ainda que o exame da memória autobiográfica, ao incluir dados que não poderiam ser encontrados em situações artificiais de laboratório, se mostrava significativo. Com o propósito de oferecer maior clarificação conceitual, Klatzky (1991) rejeitou a definição da memória comum enquanto pesquisa aplicada contendo material significativo, realizada apenas fora do laboratório e com quaisquer pessoas. Isto porque, comentou que trabalhos acerca da memória episódica também revelavam aplicações, uso de material com sentido e participação de amostra não composta por estudantes de graduação. Deste modo, explicou que análises em laboratório poderiam investigar questões cotidianas envolvidas na capacidade mnemônica. Assim, forneceu uma definição que contemplava a consideração de fenômenos relevantes à vida diária; o uso de materiais que exibiam sentido prévio para os sujeitos; utilização de materiais oferecidos pelas histórias pessoais dos integrantes da amostra; local familiar à amostra para realização da pesquisa; e participação de quaisquer indivíduos nos trabalhos. Quanto ao nível de controle das variáveis extrínsecas, Klatzky (1991) argumentou que, em determinadas análises, a emergência de novas conclusões em situações não experimentais compensou o menor grau de controle. Entretanto, advertiu que este comentário não buscava conceder ênfase à pesquisa em contextos reais em detrimento do exame em laboratório, mas visava ao questionamento sobre pontos de maior aproximação e afastamento entre tais empreendimentos.

Bruce (1991) discordou das críticas negativas, elaboradas por Banaji e Crowder (1989), acerca da memória comum, as quais se pautavam em não cientificidade, não generalização dos resultados, entre outros pontos já mencionados. Porém, o autor recorreu a novos argumentos para defender tal campo de investigação, argumentos que foram expostos através do contraste entre explicações sobre os mecanismos e sobre o funcionamento da memória. Enquanto a memória episódica estaria mais próxima do primeiro plano, a memória autobiográfica, ao contemplar situações reais de vida, idiossincrasias e variabilidade, implicaria na abordagem funcional.

Neisser (1991), por sua vez, justificou sua contraposição ao artigo de Banaji e Crowder (1989) a partir da exposição de quatro trabalhos que ofereceram conclusões inéditas, conclusões elaboradas em investigações acerca da memória comum. Deste modo, concedeu destaque às investigações acerca da lembrança de características pessoais valorizadas no presente pelos indivíduos, e a manutenção ou modificação destes fatores ao longo do tempo. Caso houvesse manutenção, a lembrança da característica no passado viria em função de sua percepção no momento atual. No caso de mudança, a lembrança do fator no passado viria antes da indicação da característica no presente, o que possibilitaria uma maior compreensão quanto ao contraste entre estabilidade e transformação da questão. O segundo trabalho comentado foi relativo à memória de crianças pequenas sobre a rotina familiar e episódios específicos, lembrança que era narrada com maior riqueza de detalhes em função do desenvolvimento e orientação dos pais quanto ao uso social da memória. A análise do esquecimento, após longo período de apresentação do material a ser retido, foi também apontada. Deste modo, foram observados sujeitos que estudaram espanhol havia muito tempo. As conclusões indicaram que, decorridos aproximadamente cinco anos da exposição do material a ser percebido, a proporção de esquecimento caía automaticamente, de forma a garantir uma performance estável ao longo de mais ou menos vinte e cinco anos. O trabalho acerca de flashbulb memories foi citado, sendo que estas não seriam estudadas facilmente sob condições artificiais de laboratório, já que tais lembranças eram referentes a episódios marcantes, e revelavam forte carga emocional, longo período de retenção e recuperação vívida, mas repleta de dados incorretos. Neisser (1991), então, comentou que tanto a abordagem ecológica, como a tradicional, poderiam proporcionar avanços ao campo da memória.

Bahrick (1991) deu continuidade à defesa da abordagem ecológica, afirmando que existiriam questões que fugiriam ao rigoroso enquadramento experimental, mas poderiam ser acolhidas por métodos não experimentais de investigação. Entretanto, o autor advertiu que tal condição não implicaria na prevalência de uma proposta sobre a outra, mas demonstrava a possibilidade de avanços na área da memória humana a partir de diferentes enfoques. Aanstoos (1991) corroborou tal posicionamento ao salientar que, apesar dos problemas relativos à validade, generalização, objetividade e confiabilidade de procedimentos e resultados, a abordagem ecológica representaria um rico campo de discussão na Psicologia, uma vez que revelaria o esforço de compreender questões mais próximas do real e, consequentemente, menos restritas a condições artificiais.

Neste sentido, Gruneberg, Morris e Sykes (1991) identificaram o artigo publicado por Banaji e Crowder (1989) como um prejuízo aos esforços teóricos e práticos existentes na área. Isto porque, o referido artigo propunha a cisão entre investigações experimentais e não experimentais, de modo a desconsiderar a conexão que parece mover a ciência – a articulação entre questões do mundo real e do mundo artificial e especializado do laboratório. Gruneberg, Morris e Sykes (1991) discordaram também da caracterização das análises sobre memória autobiográfica como pesquisas aplicadas, como da acusação de falta de contribuições relevantes. Frente ao primeiro ponto, argumentaram que tanto metodologias experimentais, como não experimentais, poderiam visar à aplicação prática de seus resultados. Com relação à segunda crítica, mencionaram a importância de pesquisas sobre metamemória, sobre a influência de conhecimentos no processo de memória e sobre problemas práticos de memória.

Embora pareça haver uma unânime contraposição frente aos comentários apresentados por Banaji e Crowder (1989), Roediger (1991) advertiu que análises críticas mais prudentes deveriam incluir observações acerca de severos ataques frente às pesquisas experimentais sobre memória. Deste modo, Roediger (1991) classificou as críticas à abordagem ecológica como respostas aos ataques anteriormente lançados contra investigações sobre a memória episódica, ataques que afirmaram que estudos de laboratório eram artificiais, triviais, incapazes de lidar com problemas significativos e de generalizar seus resultados em situações reais. Tais ataques propuseram a emergência de pesquisas ecológicas sobre a memória autobiográfica e o abandono de métodos experimentais. Roediger (1991) não caracterizou a resposta de Banaji e Crowder (1989) como radical, mas como revelando a defesa de validade e generalização das conclusões. Logo, citou que, embora os autores mencionados tenham indicado que o ideal era estudar questões em situações reais e encontrar resultados válidos e generalizáveis, os mesmos observaram que, em razão da dificuldade de se realizar investigações que contemplassem estas condições, seria preferível abrir mão do primeiro fator.

Quanto aos artigos acima comentados, Roediger (1991) indicou a inadequação de pontos assinalados por Gruneberg, Morris e Sykes (1991) – quanto ao ataque à pesquisa aplicada; por Ceci e Bronfenbrenner (1991) – quanto à restrição à participação de qualquer pessoa na composição de amostras e à equivalência entre ciência e método experimental; e por Conway (1991) – quanto a não inclusão de material com sentido ou de conhecimento prévio nas pesquisas sobre memória episódica. Por fim, Roediger (1991) ressaltou a pertinência de serem desenvolvidas análises experimentais e não experimentais acerca da memória, análises que sejam percebidas enquanto esforços para obtenção de novos conhecimentos, os quais contenham avanços, embora possam por igual conter alguma limitação.

Tulving (1991) também fez referência às acusações extremadas, as quais afirmaram que cem anos de pesquisa experimental não trouxeram qualquer contribuição ao estudo da memória, acusações que ainda insinuaram que os responsáveis por tais empreendimentos não eram criativos, competentes ou preocupados com questões sociais relevantes. De acordo com Tulving (1991), confrontos exagerados seriam inadequados, quer fossem expostos em defesa de procedimentos experimentais ou ecológicos, pois diferentes perspectivas não deveriam ser classificadas como mutuamente exclusivas, mas como esforços complementares que buscariam oferecer subsídios a futuras investigações.

A título de esclarecimento, Banaji e Crowder (1991) responderam aos ataques frente ao artigo por eles anteriormente publicado (Banaji e Crowder, 1989), novamente citando que pesquisas científicas ideais deveriam envolver contextos reais e generalização de resultados. Entretanto, se houvesse necessidade de sacrificar uma das condições, a primeira deveria ser abandonada. Embora defendessem tal posição, não desconsideravam a importância de pesquisas aplicadas e desenvolvidas em situações naturais.

No que tange a essas observações, como também aos comentários apresentados por Tulving (1991) e Roediger (1991), concorda-se com a adoção de posturas mais moderadas, capazes de revelar o compromisso com o diálogo entre diferentes interlocutores. Este compromisso não deve ser encarado como um pacto ingênuo ou superficial de tolerância à diversidade, mas como intenso e complexo exercício de reflexão sobre possíveis encontros e desencontros entre propostas que visam ao alcance de um objetivo maior – a construção de conhecimentos cada vez mais consistentes e coerentes sobre o ser humano. O convite ao diálogo proposto pela autora deste projeto não compreende apenas as discussões entre procedimentos experimentais e não experimentais, memória episódica e memória autobiográfica, mas também entre as vertentes psicológica e sociológica desenvolvidas em Psicologia Social, e, mais especificamente, entre a compreensão da memória enquanto processo psicológico individual e enquanto construção social / coletiva. A autora propõe um exame que contemple contribuições e limitações de posições antagônicas, mas que conceda ênfase principalmente aos campos de intersecção entre estas posições, a fim de que divergências sejam promotoras de diálogo e não de monólogo, de encontro e não de confronto, de respeito e não de desconsideração, enfim, de criatividade e não de repetição de argumentos.

 

Considerações acerca das vertentes psicológica e sociológica

Conforme anteriormente mencionado, o presente artigo visa conceder ênfase a aspectos individuais, sociais e coletivos da memória, ou seja, contemplar a condição social / coletiva, mas sem negligenciar ou minimizar a condição individual. Percebe-se, então, o compromisso com a articulação entre estas dimensões e com o respeito para com a especificidade das mesmas. Esta ressalva revela nossa discordância frente à apresentação de condições diferentes como sendo necessariamente contrárias e implicando na atribuição de juízos de valor, como: certas ou erradas, melhores ou piores, entre outras categorizações. Tal dicotomia pode ser introduzida ingênua e incorretamente quer na discussão a respeito da memória, quer, em âmbito mais específico, no próprio campo da Psicologia Social. Supõe-se, inclusive, que a distinção entre memória individual e social / coletiva tenha recebido maior destaque a partir da configuração das orientações psicológica e sociológica, delineamento comentado por Farr (1998). Tal diferenciação se torna mais nítida ao examinarmos as contribuições oferecidas, respectivamente, por Krüger (1986) e por Sá (1996).

Krüger (1986), ao investigar o delineamento do campo ora abordado, concedeu ênfase a alguns aspectos. Assim, citou o individualismo, definindo-o como a orientação preferencialmente adotada pelos psicólogos sociais na escolha de seus objetos de pesquisa, isto é, na eleição do estudo do comportamento social e dos processos cognitivos e afetivos enquanto influenciam e/ou são influenciados pela presença real, imaginada ou memorizada de outras pessoas. O experimentalismo também consistiu em um aspecto destacado, uma vez que experimentos teriam sido desenvolvidos de forma freqüente, o que não comprometeria a realização de estudos de campo ou outros modos de se realizar pesquisas. Outro fator pôde ser representado através da microteorização, já que este contexto não envolveria teorias abrangentes. Krüger (1986) explicou tal aspecto como sendo conseqüência da falta de consenso entre os pesquisadores no que tange à concepção de homem adotada; da significativa dispersão das temáticas focalizadas; da não continuidade dos programas de pesquisa e, até, do prematuro abandono de programas promissores. A noção de etnocentrismo contribuiu para caracterização deste campo de investigação, compreendendo-se este termo como voltado para a orientação sobretudo norte-americana registrada neste âmbito. Tal contexto foi apresentado também como uma disciplina científica pragmática, ou que guardava compromisso com o utilitarismo, pois era direcionada ao atendimento de expectativas sociais. O cognitivismo foi ainda destacado como um fator capaz de facilitar o entendimento do campo em questão, já que a influência deste movimento vinha ganhando considerável relevo neste âmbito de investigação. Por fim, Krüger (1986) ressaltou o a-historicismo, definindo este aspecto como sendo o negligenciar da perspectiva histórica, mencionando a importância de se enfatizar a inclusão de tal dimensão social, histórica e cultural. Concorda-se com sua ressalva, isto é, que aspectos socioculturais, considerados em sua evolução temporal, devam ser levados em conta ao se analisar as condutas humanas.

Por sua vez Sá (1996), ao caracterizar a Psicologia Social em sua vertente sociológica, conferiu destaque a aspectos contrários àqueles supracitados. Deste modo, o individualismo seria combatido através do compromisso ainda mais social desta vertente, o que pode ser melhor percebido através da introdução de dois novos níveis de explicação, ou seja, além dos já considerados níveis intra e interpessoal, a adoção dos níveis posicional e ideológico. Este pôde ser compreendido como o conjunto de crenças e representações existentes que serviria para organização da sociedade, enquanto aquele foi definido como capaz de revelar as diferentes posições sociais ocupadas pelos sujeitos que estabeleciam relações. No que tange à contraposição ao experimentalismo, salientou-se a utilização de metodologias mais diversificadas, cabendo fazer a ressalva de que não se exclui neste contexto o uso do próprio método experimental. Quanto à amplitude das teorias elaboradas, percebe-se uma tendência à macroteorização. O etnocentrismo, assim como o a-historicismo, foram substituídos pela importância concedida a fatores históricos e culturais no desenvolvimento de fenômenos psicossociais. No que se refere ao utilitarismo, percebe-se a exacerbação deste aspecto quando a orientação sociológica estabeleceu o compromisso de tornar a Psicologia Social ainda mais social. Por fim, quanto ao cognitivismo, descartou-se a noção de cognição social, concedendo-se prioridade ao conceito de representação social.

Acredita-se que as orientações acima assinaladas não devam ser apresentadas como mutuamente exclusivas, nem mesmo como ocupando a posição de “porta-voz” único e verdadeiro da Psicologia Social. Isto porque, supõe-se que a diversidade existente, quer na esfera conceitual, metodológica ou de aplicação, seja a principal mola propulsora de adequadas discussões e produtivos avanços na esfera ora tratada. Esta posição revela um convite ao intercâmbio entre tais orientações, o que não significa a superficial união destas vertentes através do apagar as ricas diferenças existentes. Assim, cabe registrar que o presente estudo concebe a memória social enquanto capaz de reunir aspectos coletivos e aspectos individuais, uma vez que a memória envolve recursos da ordem cognitiva, emocional e comportamental, localizados em sujeitos inseridos em contextos sociais. Após a exposição destes breves comentários sobre as vertentes psicológica e sociológica em Psicologia Social, faz-se necessário abordar a compreensão da memória enquanto processo básico individual e enquanto construção social / coletiva.

 

Considerações acerca da memória individual e da memória social / coletiva

No que se refere às oposições acima incluídas, mais especificamente, à memória social / coletiva, Halbwachs (1990) propôs o exame do homem enquanto sujeito inserido na trama da vida coletiva, exame este que não pretendia reduzir o individual ao coletivo. Assim, afirmou a existência da memória individual, mas destacou que a mesma se inscreveria em quadros sociais. Blondel (1966) mostrou concordância em seu posicionamento, assinalando que o passado apresentaria continuidade, consistência e objetividade não em função da memória individual, mas sim devido à intervenção de fatores sociais. Estes fatores possibilitariam ao sujeito inscrever sua experiência em quadros coletivos de memória, onde compartilharia com membros de seu grupo os acontecimentos vividos. Blondel (1966) esclareceu ainda que, para Halbwachs, a memória não consistiria em reprodução do passado, envolvendo sim reconstrução do mesmo a partir de experiências coletivas. Sá (1979) também comentou tal aspecto construtivo, expondo que a memória humana não era tão fiel à conservação do passado, fato que podia ser facilmente verificado através de fragmentos inventados e inseridos em histórias de vida, com o intuito de garantir, às mesmas, coerência e continuidade.

Deste modo, observa-se que Halbwachs (1990) se contrapôs à concepção de memória individual e intacta proposta por Bergson, pois afirmou que lembrar não consistiria em reviver, mas refazer, reconstruir, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. Logo, a memória não seria sonho, mas trabalho. Tampouco a memória seria individual, pois seria coletiva. A memória do sujeito dependeria do seu relacionamento com a família, classe social, escola, enfim, dos grupos de referência e pertencimento do indivíduo em questão. A lembrança, enquanto conservação total do passado, tornava-se impossível na medida em que um adulto não poderia manter intacto o sistema de representações, hábitos e relações sociais da sua infância. Isto porque, qualquer mudança do ambiente atingiria a qualidade íntima da memória, amarrando então a memória da pessoa à memória do grupo e, esta última, à esfera maior da tradição, que representaria a memória coletiva de cada sociedade. Como disse Halbwachs (1990, p. 26): “Nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se tratando de acontecimentos nos quais só estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós”.

Segundo Penna (2001), Bergson se destacou ao propor dois tipos de memória - memória hábito e memória souvenir. A primeira consistiria na memória composta por esquemas de comportamento, dos quais o corpo se valeria, muitas vezes, automaticamente. Tais esquemas seriam adquiridos pelo esforço da atenção, repetição de gestos ou palavras, enfim, pelas exigências da socialização. Já a memória pura, ao se atualizar na imagem-lembrança, traria à consciência um momento único, singular, irreversível da vida, o que revelaria seu caráter não mecânico, mas evocativo.

Ainda no que tange à ênfase conferida ao aspecto social, Bosi (1979) comentou que Bartlett também estabeleceu a articulação entre o processo de memória e o contexto social, sobretudo ao utilizar o conceito de convencionalização. Este conceito afirmava que materiais (imagens e idéias) recebidos por um determinado grupo ganhariam formas de expressão condizentes com as convenções verbais já existentes no mencionado conjunto. O processo de convencionalização poderia envolver assimilação (simples incorporação de materiais culturais recebidos), simplificação (desconsideração de fatores estranhos aos presentes na prática social), retenção parcial com ênfase no detalhe (manter um ponto não importante no contexto de origem, conferindo ao mesmo relevância) ou, por fim, a criação de novas formas simbólicas (resultantes das interações desenvolvidas no conjunto receptor). Tais procedimentos revelavam o trabalho de construção social da memória, uma vez que esquemas de narração e interpretação existentes nos grupos implicariam na elaboração de versões históricas próprias frente ao conteúdo recebido. Bartlett (1995) explicitou melhor tal posicionamento ao afirmar que a convencionalização revelaria a influência do passado sobre o presente. Embora Bartlett tenha indicado este forte componente social, o mesmo se diferenciou de Halbwachs ao propor a vinculação entre fatores da personalidade e o modo do sujeito recordar, e ao salientar que suas investigações eram referentes aos processos de memória no grupo e não do grupo.

De acordo com Johnston (2001), seria possível identificar três momentos de releitura das contribuições oferecidas por Bartlett. A autora definiu o primeiro período como relacionado à publicação do livro Remembering em 1932, etapa em que foi concedida ênfase a investigações empíricas. A segunda fase, época da revolução cognitiva, foi assinalada a partir do destaque conferido ao conceito de esquema, o qual revelava a não compreensão do processo de memória através do registro e recuperação de traços. Assim, a organização da memória era marcada por atitudes, interesses, crenças, valores, sentimentos, enfim, por experiências pessoais que garantiam caráter dinâmico à memória. Lembrar era equivalente a reconstituir o material a ser evocado, podendo ocorrer omissão, acréscimo, transformação, transposição, elaboração, condensação, entre outros mecanismos que explicitariam a condição construtiva, e não simplesmente reprodutiva, da memória. Segundo o modelo de Johnston (2001), o último período implicaria na concepção social da memória, isto é, na influência de aspectos socioculturais na reconstrução da memória. Tal etapa seria desenvolvida contemporaneamente e permitiria a aproximação entre o trabalho de Bartlett e de outros pesquisadores, o que para Johnston (2001) contribuiria para elaboração inadequada de releituras sobre o autor ora discutido.

Retomando as contribuições oferecidas por Halbwachs (1990), cabe mencionar que para este autor o sujeito apresentaria dois tipos de memória, sendo uma individual e a outra, coletiva. Entretanto, mais uma vez ressaltou que aquela poderia se apoiar nesta, pois o indivíduo, ao evocar seu passado, estabeleceria relações com as lembranças de outros membros de seu grupo social. Dando prosseguimento a estas categorizações, o autor sugeriu a diferenciação entre uma memória interna, pessoal, denominada autobiográfica e uma memória externa, social, intitulada histórica. A memória histórica não era equivalente à memória coletiva, pois enquanto a primeira demarcava rígidas linhas de separação temporal, buscando o alcance de um caráter único, universal, através da ênfase conferida às diferenças, a segunda contava com limites temporais incertos, revelando variadas memórias possíveis e destacando as semelhanças existentes entre as experiências individuais e aquelas referentes aos membros que compartilhavam quadros sociais.

Jedlowski (1997), ao discutir a temática da memória coletiva, resumiu as idéias de Halbwachs em três pontos, sendo eles:  a concepção da memória individual enquanto inscrita em quadros de referência social, podendo-se destacar aí o papel da linguagem;  a noção de construção e seleção do passado, tanto em processos individuais, como também coletivos de memória;  a compreensão da memória coletiva enquanto função da identidade dos grupos sociais, uma vez que aquela serviria para integração e continuidade destes, para o  surgimento de sentimentos de pertencimento nos componentes dos mesmos, bem com para a reconstrução do passado segundo interesses particulares destes conjuntos.

No que tange à definição do conceito memória coletiva, Jedlowski (1997) apontou a vinculação deste à necessidade das sociedades conservarem suas respectivas heranças culturais e transmiti-las a outras gerações. Tal transmissão revelaria a aproximação entre o tema ora investigado e processos comunicacionais, uma vez que existiriam produtores, transmissores e receptores de memória. Acredita-se que esta questão introduza outro ponto de reflexão:  as relações de poder existentes. O autor mencionou, ainda, que conflitos e negociações ocorriam em sociedades contemporâneas devido às relações de poder e ao fato daquelas serem compostas por diferentes grupos.

Por fim, Jedlowski (1997) apresentou definições distintas para os conceitos de memória comum, social e coletiva. Deste modo, esta foi classificada como sendo elaborada coletivamente, isto é, resultando de interações sociais e processos comunicacionais, os quais elegiam determinados aspectos do passado de acordo com as identidades e interesses dos componentes dos grupos em questão. A memória social foi entendida como fluída e disponível para qualquer indivíduo pertencente ao grupo social. Por sua vez, a memória comum foi caracterizada como lembrança que a pessoa teria de si, sem que houvesse elaboração, discussão ou práticas coletivas. Assim, o autor afirmou que a memória não envolveria apenas representações do passado, mas, sobretudo, práticas que permitiriam a vinculação entre presente e passado. O momento anterior organizaria o atual através de heranças culturais transmitidas ao longo de gerações. Entretanto, o presente selecionaria dados herdados, de modo a reconstruir constantemente o que já passou.

Aproveitando a classificação acima exposta e as discussões em torno do conceito de memória, faz-se necessário apresentar a definição de memória social proposta por Sá (2001). Neste sentido, a memória social envolveria memória individual, não contrária ao aspecto coletivo, uma vez que a ele estaria relacionada, sendo o caso da memória autobiográfica; memória coletiva (haveria concordância com a compreensão de Jedlowski); memória comum, que seria compartilhada por grupo de pessoas, não havendo elaboração coletiva, vista por exemplo na memória geracional; memória pública, na qual aspectos do passado estariam virtualmente disponíveis a qualquer indivíduo, como no caso da memória documental; memória histórica - fontes históricas reunidas em memórias coletivas de grupos historicamente demarcados, por exemplo, memória étnica, nacional e comunitária; e memória prática - práticas, rituais e normas implícitas estariam envolvidas, sendo exemplificada pela memória institucional.

Com base nesta última categorização, questiona-se a possibilidade de arrumação de tais classes de forma mais inclusiva. Isto é, seria adequado propor uma memória social que englobasse três esferas, sendo estas respectivamente:  individual, coletiva e comum? Caso a resposta seja afirmativa, acredita-se que estas esferas poderiam ser apresentadas através de círculos concêntricos, de modo que a parte mais periférica comportaria a memória comum, a parte intermediária a memória coletiva e, por fim, a parte central englobaria a memória individual. Neste sentido, haveria uma esfera mais ampla que envolveria dados compartilhados por membros de conjuntos sociais, dados estes que não iriam requerer elaboração coletiva. Em uma esfera mais próxima ao centro, encontrar-se-iam conteúdos construídos coletivamente, sobretudo através de práticas verbais (discursivas) e não verbais. No que tange ao último aspecto, supõe-se que seria pertinente incluir nesta esfera intermediária – círculo referente à memória coletiva – a memória prática anteriormente apontada por Sá (2001). Ainda nesta esfera, poder-se-ia pensar na inclusão de aspectos públicos (memória pública) e históricos (memória histórica), uma vez que tais dimensões parecem envolver elaboração coletiva e o destaque a condições específicas. Embora Halbwachs (1990) tenha estabelecido diferenças entre memória coletiva (compreendida em seu aspecto dinâmico) e memória histórica (entendida enquanto demarcada por condições espaço-temporais), concorda-se com a posição defendida por Silva (2002) quanto à aproximação entre memória e história. Silva (2002) afirmou que o entrelaçamento entre memória coletiva e memória histórica revelaria a tentativa daquela alcançar condição de veracidade, característica atribuída sobretudo à perspectiva histórica. A citada autora concedeu destaque à rememoração (definida como processo individual) e à comemoração (apresentada como atividade coletiva) ao analisar a vinculação entre memória e história, vinculação que permitiria melhor conexão entre as dimensões temporais referentes ao passado, presente e futuro. A ênfase conferida à rememoração e à comemoração parece revelar a importância da memória prática, esfera também investigada por Connerton (1993), o qual examinou cerimônias comemorativas e práticas corporais visando ao entendimento dos processos de transmissão e conservação de conteúdos do passado através de performances rituais. Silva (2002) salientou que, neste entrelaçamento entre memória e história, deveria haver constante compromisso com a reflexão, a fim de que a história fosse examinada enquanto memória criticada e não simplesmente oficializada. Por fim, cabe mais uma vez afirmar que tal convite ao entrelaçamento pode e deve perpassar não somente o campo referente à memória e à história, mas também as outras discussões apontadas no presente artigo.

 

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Nota sobre a autora
Solange Epelboim psicóloga e doutoranda em Psicologia Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É professora na Universidade Estácio de Sá (Unesa) e na Universidade Católica de Petrópolis (UCP). Contato: Avenida Presidente Vargas, 590 / 1812 – Centro – Rio de Janeiro – RJ – Brasil cep 20071-000 - e-mail: epelboim@ig.com.br

 

Data de recebimento: 04/04/2004
Data de aceite: 24/10/2004

Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/epelboim01.htm

 

 

 

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