Pacheco, P.R.A. (2004). Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII). Memorandum, 7, 58-87.  Retirado em   /  /  , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm

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Experiência como fator de conhecimento na psicologia-filosófica aristotélico-tomista da Companhia de Jesus (séculos XVI-XVII)

 Experience as factor of knowledge in the philosophical-psychology Aristotelic-Thomist of the Society of Jesus (16th and 17th centuries)

 Paulo Roberto de Andrada Pacheco
Universidade de São Paulo
Brasil

Resumo

Analisando um tipo específico de correspondência epistolar jesuítica – as Litterae Indipetae –, evidenciou-se um dinamismo de elaboração da experiência, revelador de um modus vivendi baseado no que comumente vem designado sob o nome de psicologia-filosófica aristotélico-tomista. É a este vivido descrito nas cartas e a este modo de viver específico (com suas devidas implicações fundamentais) que se dedica este artigo, buscando responder a uma pergunta: em que medida a experiência (tal como era entendida no âmbito histórico-cultural-institucional próprio da Companhia de Jesus nos séculos XVI e XVII) é fator de conhecimento? E conhecimento de quê? Mostrou-se uma concepção de experiência que parte do pressuposto de que o homem é uma unidade (corpo e alma, razão e fé, sensação e intelecção) e de que, vivendo ordenado (em si mesmo e no mundo que o circunda), realiza-se o seu ser por analogia ao Ser Divino.

Palavras-chave: experiência; Companhia de Jesus; Litterae Indipetae.

Abstract

By the analysis of a specific type of Jesuitical correspondence – the Litterae Indipetae -, a dynamism of the experience’s elaboration was outstanding, revealing a modus vivendi (way of living) based in Aristotelic-Thomist philosophical-psychology, name under which has been usually appointed this praxis. This article is dedicated to this lived experience described in the letters and to this specific modus vivendi (with its due basic implications), searching to answer this question: how the experience (such as was understood in the proper historical-cultural-institutional scope of the Society of Jesus in the 16th and 17th centuries) is a factor of knowledge? And knowledge of what? The conception of experience that was revealed considers man as unit (body and soul, reason and faith, sense and intellect) and that, living in an orderly way (in itself and in the world that surrounds it), he fulfils its being, in analogy to the Holy Being.

Keywords: experience; Society of Jesus; Litterae Indipetae.

I) Introdução

É possível que a experiência seja um fator de conhecimento? (*) Se sim, em que circunstância? A que objeto se debruçaria? Sobre que fundamentos se sustentaria? Qual a epistemologia de fundo? Evidentemente, todas estas são questões, não obstante sua importância, por demais genéricas para merecerem um estudo. No entanto, se se fazem alguns recortes, será possível vislumbrar alguma perspectiva de pesquisa quiçá profícua: como, portanto, a história ou a filosofia podem favorecer à psicologia um olhar mais adequado sobre o tema da experiência? Eis que se delineiam alguns limites. Porém, é preciso especificar ainda mais: período histórico, horizonte cultural e institucional, documentos, ponto de partida.

E, sobretudo, deixar claro que não se trata tanto de uma opção por um saber em detrimento de outro: não se trata de apostar na história em detrimento da psicologia. Tampouco, trata-se de optar por determinada meta de compreensão simplesmente por curiosidade, exotismo, ou porque se pretende um psicologismo interpretativo. O pesquisador parte sempre do presente, afirma o historiador francês Michel de Certeau (2002) (1). Nesse sentido, o pesquisador é sempre um sujeito localizado historicamente no presente, que lança uma pergunta, num espaço-tempo muito bem delimitado, a um interlocutor com traços bastante particulares.

No caso deste artigo, o termo de compreensão são os homens dos séculos XVI e XVII (especificamente os europeus e, ainda mais especificamente, os jesuítas, responsáveis pela construção, transmissão e preservação da cultura brasileira nos níveis antropológico-filosóficos ou teológicos), a fim de descobrir sua concepção de experiência. O objeto ou as fontes documentais primeiras, por sua vez, são as assim chamadas Litterae Indipetae: cartas nas quais jovens jesuítas dos séculos XVI e XVII solicitavam ao Padre Geral da Companhia de Jesus o envio em missão nas “Índias” (2). Atualmente, estas cartas encontram-se conservadas no Archivum Romanum Societatis Iesu (ARSI), em Roma. Pode-se dizer que são fontes que interessam, na medida em que contêm exemplos das modalidades de elaboração da experiência pessoal no que respeita ao processo eletivo a que eram educados os jesuítas; além de dados sobre o indipetente (como idade, escolaridade, atividade que exercia na Ordem etc.); bem como conteúdos edificantes próprios do gênero de documento que são. O objetivo geral é evidenciar as categorias filosóficas, teológicas e  (se assim se pode dizer) “psicológicas” que sustentam – nas cartas – um vivido particular, a encarnação de determinadas normas e teorias. Estas categorias poderiam emergir da análise dos topoi cultural e institucionalmente determinantes do protocolo formal de redação daquelas cartas. Como método optou-se, necessariamente, pela história, já que a alteridade em questão está afastada no tempo. No entanto, a voz se alça de um lugar peculiar – a psicologia –, e assim instaura um “fazer singular”, sem pretensões de “sistematização totalizante”. Esta é uma historiografia (portanto, um fazer que implica dois termos a “história” propriamente dita e a “escrita” de/sobre a história) que considera a “pluralidade” a que chama atenção Certeau (2002) (3).

Na esteira da discussão acerca do real e do discurso sobre o real (4) a que se dedica Certeau (2002) e, com ele, seus discípulos (5), inscreve-se – quiçá pretensiosamente! – também este artigo, que mais que um “psicologismo” que sobrevaloriza a subjetividade, ou um “historicismo” filo-estruturalista ou – por que não? – um “racionalismo” totalitário, é a tentativa de dar voz ao “outro” afastado no tempo, ao “morto”, àquele “fantasma da historiografia”: “objeto que ela busca, que ela honra e que ela sepulta. Um trabalho de separação se efetua com respeito a esta inquietante e fascinante proximidade” (p. 14). Assim sendo, este “discurso sobre o real”, esta “escrita da história”, este “fazer história” singular é mais a transcrição, o relato, de um diálogo que foi se constituindo no dinamismo aparentemente paradoxal da estraneidade à intimidade e vice-versa.

É justamente no âmbito do saber sistematizado em torno do que comumente se chama “psicologia filosófica” aristotélico-tomista, bem como dos estudos dos diferentes gêneros de documentos produzidos neste âmbito (manuais de filosofia, tratados de espiritualidade, cartas etc.) e das pesquisas abrangendo esse saber que se assenta este texto.

Premissa

A julgar simplesmente pelo uso repetido da palavra já desde séculos – como se vê, por exemplo, no trecho extraído de um hino composto por São Bernardo de Claraval, no século XIII –, a experientia já passa a ser fator de interesse bastante significativo:

Jesu, dulcis memoria / Dans vera cordis gaudia

Sed super mel et omnia / Eius dulcis presentia. (...)

Nec lingua valet dicere / Nec littera exprimere

Expertus potest credere / Quid sit Jesum diligere.

Se se pensa, então, a discussão que começa a tomar corpo nos séculos XVI e XVII – experientia x experimentum –, vê-se configurado um cenário cada vez mais significativo. Considerar, finalmente, essa mesma categoria no contexto institucional específico da Companhia de Jesus, ter-se-á algumas razões a mais para apontar a experiência como premissa de trabalho.

Tal como é empregado entre os jesuítas, o termo experiência deve ser entendido a partir de um complexo feixe de influências: além da assumida posição filosófica aristotélico-tomista, é preciso dizer que parece existir também uma influência agostiniana. E, para além do aspecto puramente filosófico, quando se fala de experiência na Companhia de Jesus, se está tratando com uma categoria que também pertence ao universo da regulação tanto espiritual e corporal quanto jurídica e institucional.

Dizer que expertus potest credere, como o diz São Bernardo para declarar que o conhecimento do amor de Jesus não se dá através de lingua ou littera; ou dizer que experientia docet, como repete algumas vezes o Doutor Angélico; ou ainda probatur autem eius veritas tum ipsa experientia, como aparece na obra do jesuíta português Manuel de Góis, responsável pela composição da maior parte dos manuais de filosofia do Curso Conimbricense do Colégio das Artes de Coimbra; enfim, dizer experientia nesse âmbito histórico-cultural e institucionalmente definido pode ser bem compreendido ao ler o que outro padre jesuíta, Alexandre de Gusmão (1629-1724) escreveu no prólogo de sua obra Eleyçam entre o bem e o mal eterno:

Se fosse consideravel hum homem tão simples ou tão ignorante, que duvidasse, se o fogo queymava, y a agua esfriava, este tal, com nenhuma outra razão se poderia desenganar melhor, que com a experiência, pondo huma mão no fogo e outra na agua. Logo se desenganaria, e veria por experiência, que o fogo queymava e a agua esfriava.

Pois has de saber, que destes homens ha muytos neste mundo, e sempre os houve. Não fallo dos Atheistas, os Epicureos, que da outra vida nada curão; fallo dos christãos, que sabendo, e confessando que ha Ceo para bons e Inferno para maos, vivem como se ignorassem, que o fogo do Inferno queymava e a agua do Ceo refugiava. Estes tais, de ordinario se não desenganam nesta vida, até que na outra fazem a experiencia, que o Santo Job diz se costuma fazer no Inferno, que he passar da agua de neve para o calor do fogo. Então com seu mal eterno experimentão, quanto queyma aquelle fogo, e quanto esfria aquella agua. O que importa logo, he fazer nesta vida a experiência que o Espírito Santo nos manda fazer, pelo Ecclesiastico (Gusmão, 1720).

Experientia é pois modo de conhecer, que não se dá simplesmente per modum cogitandi ou somente per modum operandi. A experiência, assim dada a entender, deve ser compreendida como o conhecimento que se adquire após o operari e todas as potências de alma aí envolvidas e o precedente (e/ou consecutivo) cogitare com suas devidas implicações anímicas. Sabendo-se que o “agir” do homem (conforme essa antropologia filosófica específica sobre a qual nos debruçamos: fundamentalmente aristotélico-tomista) – seu operar, seu proceder – só se dá na medida em que seja “para conseguir a coisa desejada intencionada” (Aquino, 1947, p. 166), vê-se uma importante diferença para o que se possa descrever como ação contemporaneamente: não se trata do simples movimento verificado apenas externamente – um “comportamento” –, mas da conjugação de uma série longa de fatores, tais como a intencionalidade, que só nasce se se considera a vontade e o intelecto, os apetites e as faculdades da alma sensitiva (tanto externas quanto internas). Sabendo-se também que o “cogitar” humano – seu modo de pensar, de inteligir – envolve toda uma gama de faculdades anímicas influenciando umas às outras... percebe-se que a visão de homem aqui envolvida, quando se fala de experientia é, digamos assim, uma visão totalizante: não há solução de continuidade entre uma e outra operação, trata-se de um contínuo, onde per experientia implica o homem total – todos os seus cinco gêneros de potências da alma, suas três almas distintas e seus quatro modos de viver diferentes, e suas devidas implicações (6).

O corpus documental

A fim de sistematizar em grupos as fontes utilizadas e visualizar e organizar os diferentes dados que cada uma delas poderia fornecer, elas foram divididas, inicialmente, em três grupos: 1) documentos do universo filosófico e retórico de formação dos Jesuítas; 2) fontes referentes à ordenação e formação da vida espiritual (7) na Companhia de Jesus e 3) documentos descritivos da ordenação e formação da vida institucional. A cada um desses grupos corresponde um aspecto fundante do modus vivendi dos jesuítas, aspectos (ou pólos de análise) que serão aqui definidos, respectivamente, como scholicorum (por designar o fundo teorético presente na filosofia e na retórica seiscentistas), ratio spiritualis (a regra espiritual) e ratio intitutorum (a regra institucional).

No primeiro grupo estão o Comentário à Ética a Nicômaco de Aristóteles (8), escrito pelo padre Manuel de Góis, e publicado em 1593, e algumas importantes obras de referência em retórica utilizadas pelos jesuítas (principalmente Cícero e Quintiliano). Ao segundo grupo pertencem o texto dos Exercícios Espirituais (9) (o texto dos Exercícios nas suas três versões – o texto Autógrafo, de perto dos anos de 1544; o Versio Prima, escrito em latim, de cerca de 1530; e a Vulgata, de cerca de 1547 – em versão sinóptica, comentado por Claude Viard (10), o Diário de Moções Interiores (11) (escrito por Inácio entre 1544 e 1545, e publicado apenas em 1934) e o Relato (12) de Inácio (ditado por Inácio ao Padre Luiz Gonçalves da Câmara entre os anos de 1553 e 1555). E, finalmente, foram agrupadas ao terceiro conjunto de fontes as Constituições (13) (a versão francesa, traduzida do texto de 1556, acrescentada do Exame Geral – um preâmbulo das Constituições – e das Declarações – que nada mais são que comentários ao texto das Constituições), os chamados Documentos de Fundação (14) (uma seleção realizada por Pierre-Antoine Fabre e Maurice Giuliani, que consta dos seguintes documentos: o relatório 1539. Durante três meses. A maneira como se instituiu a Companhia, o Atestado concernente à decisão de fazer voto de obediência, o relatório Determinações da Companhia, a transcrição do Voto de Inácio, o relatório Forma e Oblação da Companhia, e o texto da Summa em versão sinóptica com os dois documentos pontificais de aprovação da Companhia de Jesus, Regimini Militantis, de 1540 e Exposcit Debitum, de 1550) e algumas das Cartas de Inácio.

Além desses três grupos de documentos, acrescentam-se alguns textos de espiritualidade (15) a que tinham acesso os jesuítas do período referente ao generalato do Padre Cláudio Aquaviva (16). Esses textos exprimem os três aspectos fundamentais que, uma vez encarnados num modus vivendi, puderam ser novamente formulados num texto escrito e tornado prescrição de um modelo descritivo lisível. Prescrição de um modus vivendi que toma corpo no período do referido generalato e que vai se estabelecendo, paulatinamente, ao longo dos anos que se seguem: tipo de espiritualidade que começa a tomar uma forma propriamente jesuítica. Portanto, uma prescrição dirigida aos próprios jesuítas. Exemplos desses “modelos descritivos” são alguns diários espirituais produzidos na época (como o de Francisco de Borja e outros (17)). As Indipetae, nesse sentido, também podem ser consideradas exemplos disso.

Tem-se portanto o processo de análise assim desenhado: de um lado aqueles pólos compreensivos, de outro as Indipetae e, entre eles, os textos de espiritualidade. As Indipetae, como fonte documental pouco estruturada do ponto de vista dos aspectos de análise até aqui descritos, não podem ser interpretadas de maneira imediata. São, sim, documentos marcados por aquele aparelho pedagógico de ordenação do homem, mas para identificar os fundamentos desse aparelho é necessário um revelador, algo que torne presente a coisa, que represente, que transpareça essa estrutura subterrânea. Certo, há, nas Indipetae, uma elaboração da experiência, no entanto, não se trata de uma elaboração sistemática, evidente em si mesma. O grau de elaboração – se se pode dizer assim – presente nos textos de espiritualidade, é de uma profundidade tal que permite, se colocado entre um e outro dos tipos de documentos, vir à tona aquela estrutura profunda. Como são documentos que se propõem ao leitor como prescrição de uma espiritualidade com traços jesuíticos, revelam com maior clareza os fundamentos do aparelho pedagógico de ordenação do homem que o sustenta. Esses textos são uma espécie de espelho translúcido: ao mesmo tempo em que revelam a estrutura subterrânea das Indipetae, desvelam a si mesmos, ao espelharem aqueles três pólos de análise supracitados.

 

II) A categoria experiência tal como é usada...

Nas Indipetae, lemos, por exemplo, em carta enviada em 02 de maio de 1583, pelo Irmão Coadjutor Seraphin Bonaventura Coçar:

Pero en semejante caso experimento (...) que ades hora me da devero Dios Nuestro Señor un desseo fervoroso, que como luz del cielo deshaze en mi alma aquellas tinieblas y razones, dexandome muy consolado, y con tal alegria, que me parece bastante para arrostrar a qualquiera dificultad y trabajo que por entonces se me podria ofrecer, y de hecho se me haze todo suave (18).

Joan Sotalell, de Gandía, no dia 20 de maio de 1603, escreve também: “Tengo experimentado que muchas vezes, quando alguna tentacion, o otra cosa alguna me aflige, el medio para vencella, es pensar (...) yr a las Indias (...), y siento despues grande consuelo y facilidad en haser lo que antes me parecia muy pesado” (19). Ou Gabriel Mayo que, um ano depois (10/03/1604), escreve dizendo que “juntamente al desseo (...) experimento facilidad grandissima para todos los trabajos de corazon, que me paracer en comparacion de aquellos, muy pequeños” (20). Também Juan Bravo diz

experimentar muy a la clara que este desseo que me ha dado Nuestro Señor hasta agora ha sido como una lima con la qual gran parte de mys imperfecçiones han desaparecido, y melhorandose my vida notablemente fruto que es argumento claro de que es raiz divina la de donde mana (21).

A categoria experiência, nesses trechos, é colocada ao lado de expressões tais como “Dios Nuestro Señor”, “alma”, “consolado”, “trabajos”, “tentaciones”, “desseo”. Como é possível uma experiência de Deus? Como é possível conhecer desejos, tentações ou a si mesmo e sua alma a partir da experiência? Como o trabalho e a realidade cotidiana e objetiva pode ser lugar de uma experiência?

É preciso, pois, compreender bem como era entendida esta categoria no âmbito cultural e institucional específicos com o qual se está lidando aqui: trata-se de descrever a gramática de uso do termo, o campo semântico no qual está imerso.

 ... No âmbito do scholicorum

Como a filosofia seiscentista de forma geral, mas especialmente a que se desenvolveu em torno do ponto de vista escolástico retomado no período, abordava a questão da experiência?

É bem verdade que o período histórico com o qual lidamos é determinado por uma transição importante – entre uma realidade social que construía seus conhecimentos retoricamente (22) e uma outra que passou a construir cientificamente o conhecimento (23) – onde justamente o debate não só filosófico, mas também científico, quanto ao que respeitava à experiência marcava claramente posições muito distintas (24): experientia X experimentum. Não obstante esta importante transição e as diversas implicações a ela inerentes, interessa mais agudamente aquele modelo construído em torno da manutenção de um pensamento propriamente escolástico.

Exatamente por se estar tratando de um período e de uma realidade institucional e cultural que construíram muito de seu conhecimento retoricamente, e sobretudo pelo fato mesmo de a retórica ser disciplina importante no sistema pedagógico jesuítico, se torna necessário assumir, aqui, algumas questões significativas deste âmbito.

É sabido como Cícero e Quintiliano eram os principais autores estudados quando o assunto era retórica: nihil mutare sine ratione, dizia Cipriano Soares em seu manual de retórica – De arte rethorica – defendendo a razoabilidade no uso de suas obras, ainda que pagãs (Zanlonghi, 2003). E, finalmente, sabe-se também que a retórica, nesse contexto neo-escolástico, era o aprendizado da capacidade argumentativa.

E, tal como foi assumida pelos jesuítas – segundo a filosofia aristotélico-tomista –, a retórica era estudada de forma que se respeitava uma compreensão da pessoa como unidade, irredutível a uma só dimensão – forma ou substância. Dessa forma, vê-se um projeto retórico que não valorizava somente o intelecto em detrimento da paixão ou a racionalidade em detrimento da emotividade. Trata-se de uma antropologia de fundo que compreende o homem como razão encarnada, onde não há solução de continuidade entre matéria e substância e que traz consigo algumas importantes implicações.

Conforme o modelo aristotélico-tomista da topografia da alma (Bergamo, 1994), quatro são os chamados sentidos internos: fantasia, cogitativa, memória e senso comum. À cada um cabe um papel: o senso comum produz a primeira unificação das informações sensíveis, a fantasia inicia o processo de unificação espaço-temporal, a memória armazena e ordena essas informações em imagens, e a cogitativa é responsável pela primeira intelecção dos elementos não sensíveis (cf. Zanlonghi, 2003).

De importante destaque é o papel da cogitativa – ratio particularis – que, além de inteligir os elementos não sensíveis (res non sensatas, como vícios e virtudes), sintetiza as informações sensíveis recolhidas pelos sentidos internos e armazenadas pela memória: é portanto o ponto alto da organização da atividade sensitivo-imaginativa. Apesar de ser de âmbito pré-racional, a cogitativa já está ordenada ao Fim Último, na medida em que faz um primeiro reconhecimento, no sensível, do Universal (25).

Uma importante relação a se compreender é a que existe, nesse projeto retórico, entre memória e prudência: cabe à retórica, como técnica, dar aos elementos recolhidos uma unidade e uma dignidade final, o que só é possível se se compreende que a memória, na medida em que armazena e ordena em loci determinados uma série de phantasmata (o mesmo vale para a representação de elementos invisíveis), e sendo parte da prudência (assim como a escolástica herdou de Cícero), é também um habitus moral que se aperfeiçoa com determinados exercícios de retórica; e que também a prudência, na mesma medida em que tem a memória como uma de suas partes, tem também necessidade de imagens para se exercitar. Conseqüentemente, 1) a prudência se serve da memória como ponto de sustentação, 2) a memória só pode operar com imagens sensíveis e 3) o uso das imagines agentes e, particularmente, das imagens que surpreendem os sentidos acaba sendo vantajoso para o aperfeiçoamento da prudência (26).

É bem verdade que a Renascença é marcada por uma mudança radical na concepção de memória que fora desenvolvida durante a Idade Média (27). Com a Renascença, a memória sofre um processo de laicização, na mesma medida em que começa a ser lida sob a luz do neo-platonismo renascentista (28). No entanto, vale lembrar que, graças à Segunda Escolástica, a Companhia de Jesus manteve a memória como parte da prudência, como virtude do homem moral e do orador.

Outro aspecto a se considerar no ponto de vista filosófico quanto ao que respeita à categoria experiência, é o papel da filosofia agostiniana na definição desta categoria.

Para Santo Agostinho (354-430) fé e razão não têm, entre si, fronteiras ou limites de separação: a razão ajuda o homem a alcançar a fé e a esclarecer seus conteúdos, da mesma forma que a fé orienta e ilumina a razão; os conteúdos da revelação cristã e as verdades acessíveis ao pensamento racional caminham juntos. Sua obra é profundamente enraizada na filosofia de Platão, especialmente nos textos do neo-platônico Plotino, de quem assume, por exemplo o conceito de alma (29).

Uma de suas mais importantes obras é o De Trinitate, texto onde procura sistematizar a filosofia e a teologia cristãs. Esta obra, divulgada entre os anos 400 e 416, em 15 livros, é um tratado não só sobre a Santíssima Trindade, mas sobre o próprio homem, já que ele é uma analogia – imagem e semelhança – da própria Trindade.

No início do primeiro livro do De Trinitate, Agostinho já lança mão da categoria experiência:

com a ajuda de Nosso Deus e Senhor e conforme nossa capacidade, empreenderemos a tarefa que nos pedem, e assim demonstraremos que a Trindade é um só e verdadeiro Deus, e quão retamente se diz, se crê e se entende que o Pai, o Filho e o Espírito Santo possuem uma só e mesma substância ou essência. Assim não poderão afirmar, por assim dizer, que enganamos os adversários com nossas pretensões. Mas que se convençam pela própria experiência de que existe aquele sumo Bem, só visível às mentes puras. E se eles não podem compreender, é porque o limitado olhar da inteligência humana não é capaz de se fixar nessa luz sublime, se não for alimentado pela justiça fortalecida pela fé (Agostinho, 1994, p. 27).

No entanto, é preciso entender bem o que ele quer dizer quando faz uso dessa categoria, sobretudo se se considera o uso freqüente de expressões do tipo “há de entender, com a ajuda do Senhor” (Idem, p. 60), “a alma, segundo penso, deve humilhar-se, para que possa brilhar, iluminada pela graça de Cristo” (p. 82), “fatos em que o Senhor Deus nos anuncia sua ação” (p. 131), “Deus nos envia sinais adequados ao nosso caráter de peregrinos” (p. 147), “Deus é a verdade!” (p. 263) ou ainda “torna-se necessário crer antes de compreender” (p. 270). Em todas estas expressões, bem como em outras tantas, começa-se a compreender como é possível, em Agostinho, que no conhecimento esteja implicada a fé, que já é uma adesão amorosa: credendo diligere, ele diz.

Mas quem ama o que desconhece? Pode-se conhecer algo e não o amar; pergunto, porém, se é possível amar algo que se ignora, porque se isso for possível, ninguém é capaz de amar a Deus antes de o conhecer. E o que é conhecer a Deus, senão o contemplar e perceber com firmeza, com os olhos da mente? Ele não é um corpo para que possamos divisá-lo e percebê-lo com os olhos corporais (p. 267).

Mente conspicere (traduzido por “olhos do espírito” no texto) e firmeque percipere (firme percepção) estão juntas na mesma expressão. O que causa impressão é notar o uso de uma categoria que, a rigor, se conjuga às experiências sensíveis de maneira geral – percipere –, no âmbito de uma certa “atenção do espírito”. Sobretudo quando se sabe que percipere, para Agostinho, significa muitas vezes o conhecimento experimental de Deus. No entanto, o que esclarece toda possível contradição é entender que esse conhecimento experimental, como se viu nos excertos elencados acima, é dado por uma sabedoria sobrenatural, pela graça da fé, enfim. Certa enim fides, utcumque inchoat cognotionem:

De fato, é efeito próprio da fé formar em nós uma imagem de Deus, no melhor conceito possível. Confere ele uma existência mental às coisas propostas à nossa adesão pessoal. (...) Mas, [Agostinho] conhecia muito bem os limites impostos pela nossa condição terrestre à busca racional de Deus. E os limites da experiência mística correspondentes aos limites da exploração teológica (p. 624).

Para Agostinho, o conhecimento das verdades eternas se obtém por meio da iluminação divina: “a iluminação agostiniana é uma luz especial, incorpórea, que nos torna visíveis e compreensíveis as ‘verdades eternas’. Luz essa mediante a qual Deus irradia na mente humana essas verdades absolutas e imutáveis” (p. 637).

Em toda essa discussão o que interessa sobremaneira é perceber a relação entre conhecimento sensível e graça da fé, que, como se verá a seguir, não é estranha à concepção retomada pela pedagogia inaciana, mesmo quando se está simplesmente no âmbito da Filosofia Moral, como é o caso do Manual Conimbricense.

Como o termo experiência aparece nesta obra amplamente divulgada nos séculos XVI e XVII tanto na Europa quanto no Brasil?

Por exemplo na segunda disputa – Acerca do Fim –, Góis (1593) se perguntando se Bem e Fim são iguais, diz que uma coisa só pode ser igual a outra sob dois aspectos: formalmente (ou seja, quando a razão formal de ambas as coisas é idêntica), ou por reciprocidade de fundamento (quando tanto em ato quanto em potências as coisas são iguais). A partir daí, busca responder à pergunta que abriu a disputa, afirmando que: 1) Bem e Fim não são, do ponto de vista formal, idênticos; 2) assim como Bem e Fim não são tampouco idênticos quanto à reciprocidade do fundamento com relação a Deus, quando se tratarem de ações divinas internas; 3) e, finalmente, Bem e Fim, em ato, com relação às criaturas, também não são idênticos quanto a reciprocidade de fundamentos, no entanto, o são, de algum modo, se se consideram segundo a potência. E para provar a segunda parte da asserção, recorrendo à experiência, afirma:

A segunda parte da mesma asserção consta do facto de aquilo que pode tornar-se bem e conveniente com respeito a alguém, embora a princípio, com relação a ele, não seja bem em acto e conveniente, pode, por sua natureza, ser por ele apetecido e ter razão de fim com respeito a ele. E ao contrário, aquilo que pode ser experimentado [quid potest ab aliquo experi] por alguém e alcançar a natureza de fim em relação a alguém, pode ser-lhe bem e conveniente ou ao menos ser apreendido como tal (p. 93).

É interessante notar como, aqui, a categoria experiência é utilizada no âmbito de compreensão do que seja o Bem e o Fim, objetos teleológicos daquele felicem vitae statum a que se dedica a obra de Góis (1593). Demonstrando que, além da abordagem intelectual da temática proposta (30), é possível, com rigor e verdade, compreender diferenças entre as duas categorias, com o uso da experiência; que, neste caso, não tem que ver com experimentum, mas com a reação afetiva e efetiva do “homem como consciência encarnada” (Zanlonghi, 2003, p. 63) diante de uma determinada realidade a ser investigada.

Em seguida, na quarta disputatio, quando discorre acerca dos “três princípios dos actos humanos: vontade, intelecto e apetite sensitivo”, argumentando a partir de obras de Santo Agostinho, São Damasceno, Santo Anselmo e Santo Tomás, Góis (1593) pergunta se a vontade move as outras potências da alma humana e responde assim:

Prova-se esta verdade quer pela experiência própria [probatur autem eius veritas tum ipsa experientia], visto que contemplamos, lemos, movemo-nos de um lugar e fazemos outras obrigações do género quando queremos; quer pela razão, porque é do fim que parte o princípio de moção de qualquer potência ativa, visto que todo o agente opera por causa do fim e do bem em comum que tem a razão de fim, é o objeto da vontade. Donde se conclui que a vontade move todas as outras potências para o exercício dos seus atos (p. 147).

Nas quaestionenes que se seguem a essa, e especialmente naquelas em que a categoria experiência aparece, é notável como praticamente sempre ela virá unida ao conceito de “vontade” (com apenas duas exceções). Ainda no artigo apresentado acima – 1º artigo da 3ª questão –, o autor ajuda a compreender o porquê dessa conjunção:

A acção com que a vontade move formalmente as outras potências é transeunte, visto que não permanece na própria vontade. Com efeito, não se distingue realmente da acção das outras potências. Além disso, este mesmo concurso da vontade umas vezes é algo espiritual, visto a vontade concorrer com a potência imaterial como com o intelecto; outras vezes, material, se, por exemplo, concorre com potência inerente a órgão corpóreo, como com a imaginação (p. 149).

É exatamente por agir no “órgão corpóreo” e no “espiritual” ao mesmo tempo ou separadamente, que a vontade é uma potência que pode ser tanto conhecida do ponto de vista estritamente intelectual, como do ponto de vista da experiência.

Assim, por exemplo, quando se pergunta como é possível à vontade mover os sentidos internos, usando a distinção aristotélica entre poder despótico e político, e argumentando a partir da compreensão tomista da obra do Estagirita, explica que não obstante para Santo Tomás apenas a cogitativa (potência da alma sensitiva, elencada na lista dos sentidos internos) obedecer à razão e à vontade, sendo regida portanto por poder despótico,

a nós, porém, parece-nos que devemos afirmar que não existe nenhum sentido interno que obedeça sempre à vontade. Com efeito, o sentido comum apreende necessariamente o objecto sem mudar a apreensão do sentido externo e, de um modo geral, todos os sentidos internos (sem dúvida, quanto a isso parece ser idêntica a razão de todos). Algumas vezes apreendem o objecto tão tenazmente que a vontade, de nenhum modo ou dificilmente, domina a concepção deles, como ensina a experiência cotidiana [uti docet quotidiana experientia] (p. 151).

E explica que esta “tenacidade de concepções” se deve a muitas causas, entre elas enumera: 1) pela presença real do objeto que se introduz pelos sentidos externos; 2) pela instigação dos “demônios internos”; 3) pela disposição (affectione) do órgão interno (os melancólicos, por exemplo, por terem temperamento frio e seco, persistem muito mais tempo na apreensão de uma mesma coisa, porque o órgão está mais disposto a isso); 4) pelo afeto do apetite sensitivo, “visto se saber que o sentido interno se fixa mais nas cousas para que o apetite é levado com maior ímpeto” (p. 151).

Em seguida, Góis (1593) se pergunta como a vontade move os apetites sensitivos. E, logo de início, explica que a vontade move os apetites com poder político. E se baseia em autores tais como Aristóteles, São Damasceno, São Gregório Nisseno e Santo Tomás. Mas, a argumentação final cabe à experiência:

... que o apetite seja movido pela vontade demonstra-o a experiência [quod appetitus a voluntate moveatur, patet experientia], visto que muitas vezes provocamos ou reprimimos os movimentos dele, segundo o nosso arbítrio. (...) Que tal sujeição não é despótica, aparece claramente no facto de a cada passo o apetite ser levado para o bem sensível contra o juízo da razão e o afecto da vontade (31). (...) Esta repugnância nasce do facto de o apetite sensitivo seguir a apreensão do sentido interino, a qual é de tal modo eficaz que não pode ser coibida pela razão nem pela vontade. Ou ainda porque a moção do apetite sensitivo depende da disposição [dispositione] do órgão (por isso, os que têm temperamento cálido se irritam fàcilmente), a qual disposição [dispositio] ou modificação [sive affectio] não se suborna ao poder (p. 153).

Todavia, o autor lembra que tanto Aristóteles como Santo Tomás afirmam que seja possível ao apetite ser movido pela vontade, dado que, pela ordem e hierarquia de moventes e movidos, superior move inferior, especialmente sabendo-se que nada é objeto de apetição se não for antes objeto de intelecção: “a vontade só move o apetite, imediatamente e por certa redundância, quando no sentido interno já existe notícia do mesmo objeto, de maneira que, sem nova intenção ou aplicação da notícia, o apetite seja mais incitado por causa da inclinação da vontade” (p. 155).

O artigo 4º dessa mesma quaestione se dedica a compreender como a vontade pode mover os membros externos. E, apela para a experiência, logo no início do artigo: “Como se prova pela experiência [ut experimento compertum est], a vontade move os membros externos, com que se exerce o movimento arbitrário, com poder servil e sem qualquer oposição, a não ser que sejam impedidos por alguma doença” (p. 155). Porém, ele ainda se pergunta se, na verdade, não seriam os membros externos movidos antes pelos apetites sensitivos. E diz que não, apelando de novo para a experiência: “o contrário disto ensina a experiência nos santos mártires [docet experientia in sanctis martyribus], que ofereciam os membros a tormentos acerbíssimos” (p. 155). Aqui, no entanto, é importante entender que a vontade só pode mover os membros através de alguma potência média, que, neste caso, serão os apetites: “pede a harmonia e a ordem dos moventes que o supremo não mova o extremo senão com a intervenção do médio” (p. 155). Esclarece finalmente que pode acontecer de os membros serem movidos não pela vontade (mesmo que indeliberada), mas diretamente pelos apetites, como acontece nos movimentos súbitos, entretanto esses não podem ser considerados movimentos humanos, mas “do homem”.

Na quarta quaestione dessa mesma disputa sobre os princípios dos atos humanos, Góis (1593) pergunta se o apetite é capaz de mover a vontade. Faz, então, três afirmações, baseando-se em Aristóteles e Santo Tomás de Aquino: 1) é inegável que o apetite mova a vontade de alguma maneira, como se confirma “também pela experiência [confirmatur quoque experientia]. Ninguém existe, com efeito, que não experimente [qui non experiatur] o movimento do apetite ou da ira ou da dor ou da alegria, inclinar a vontade para si” (p. 159); 2) porém o apetite não move a vontade com poder despótico, como a harmonia e a ordem dos moventes o indica; 3) mas a move por intermédio da notícia intelectiva que propõe acerca de determinado objeto que deve ser aceito ou rejeitado, já que a vontade, seguindo a decisão do intelecto, pode querer ou repudiar o mesmo que o apetite, ou o apetite pode mover a vontade por meio da notícia do sentido interno, na medida em que as imagens dos sentidos determinam o intelecto para a contemplação de uma coisa ou de outra.

Até este ponto da obra, praticamente todas as vezes em que se fez uso da experiência como método de conhecimento, ela estava de algum modo vinculada à categoria “vontade”. Nos dois outros momentos da obra em que a experiência aparece será, uma vez vinculada às “paixões” e outra às “virtudes morais”. Vejamos.

Do debate filosófico, de maneira geral, o que se conclui é que experiência é algo que ajuda o homem a conhecer a verdade. Seja do ponto de vista retórico (na medida em que a retórica conduz o homem pelas sendas dos sentidos internos, identificando, organizando, adaptando, armazendo e ordenando e explicitando segundo sua dignidade os elementos colhidos na realidade), seja do ponto de vista dialético (na medida em que, como dinâmica dialógica que é, se volta adequadamente ao fundo mesmo da realidade), a experiência é sempre entendida, grosso modo, como um aspecto do indivíduo que pode conduzi-lo mais adequadamente à Verdade, ou, nos termos da casuística, ao Bem Último.

... Na ratio spiritualis jesuítica

Como a espiritualidade seiscentista encarava a questão da experiência? E, mais especificamente, como uma espiritualidade com normas muito peculiares – a dos jesuítas – compreendia a relação entre experiência e vida espiritual?

No início deste artigo, a fim de apresentar a premissa deste trabalho, citou-se um trecho de um hino composto no século XIII, por Bernardo de Claraval, monge beneditino – Jesu, dulcis memoria / Dans vera cordis gaudia / Sed super mel et omnia / Eius dulcis presentia. / (...) Nec lingua valet dicere / Nec littera exprimere / Expertus potest credere / Quid sit Jesum diligere.

Esclarece-se, inicialmente, o que pode parecer um anacronismo: como comparar o hino medieval com a então emergente questão renascentista do valor da experiência? Certeau (1982) nos chama a atenção para o fato de que a Renascença é marcada pela retomada da fórmula teológica medieval (32) segundo a qual o relacionamento com Cristo se dá na materialidade da Eucaristia e da Igreja. Ele afirma que, fora dessa objetividade material, corria-se o risco de uma “mystiquerie”. Em poucas palavras: a fé era mais do que a língua podia dizer ou as letras expressarem: somente expertus potest credere. Percebe-se aí que a experiência é fundamental nesse relacionamento com o corpo real (Eucaristia) e místico (Igreja) de Jesus Cristo na terra (33). Tem-se, portanto, um primeiro aspecto relevante: a relação experiência/espiritualidade, que aparece num debate teológico renascentista e que busca recuperar a carnalidade objetiva da experiência mística.

Entra em jogo, nessa concepção de experiência, o binômio visível/invisível (e, por que não?, do audível/inaudível, palpável/impalpável etc.), que Certeau (1982) explica como sendo o lugar do nascimento de uma nova concepção de “mística” (34).

Visível e invisível, fato em si e sentido do fato, experiência e fé, corpo e alma, finito e infinito, acidental e fundamental: a mística renascentista com uma definição escolástica, especialmente a dos jesuítas, retoma (ou mantém) a experiência do sagrado como algo do nível dos sentidos, mais que de uma formulação teórica, teológica ou filosófica. Além de acrescentar algo novo: a prática, que tem como representante mais significativo, no caso da então nascente Companhia de Jesus, os Exercícios Espirituais. É nítido também o fato de que não há solução de continuidade (35) entre um e outro aspectos do relacionamento com o Mistério.

Os Exercícios Espirituais, além disso, demonstram como se dá o conhecimento da realidade: através do transcender a dimensão das operações discursivas e do recorrer à arte da memória e da imaginação (36). O exercitante é convidado a, fazendo uso da memória, construir uma ponte entre o abstrato de uma afirmação e sua imagem concreta na alma. Essa imagem existe na medida em que quem faz os Exercícios, aprende a usar a imaginação. Aqui, se pode apresentar a preocupação de Inácio com a “aplicação dos sentidos” (37). Para ele, a consistência última da realidade é apreendida pelos sentidos – ver, tocar, ouvir, degustar, sentir o cheiro (38) –, e não por um exercício de abstração metafísica – lingua ou littera.

Outros muitos exemplos dessa “experiência sensível”, nos Exercícios Espirituais, podem ser dados: desde a insistência com o pedido de sentir com Cristo sua alegria ou padecimento (39), até os muitos exemplos de uso da aplicação dos sentidos, nos quais Inácio sempre insiste na necessidade de, em seguida, “refletir em si mesmo e tirar proveito” (EE. 124. Loyola, 1991, p. 116), passando inclusive pelos exames e verificações de emenda propostas, por exemplo, logo no início do livro (40).

Todavia, é somente no EE. 176 que aparecerá, pela primeira vez, o termo experiência. Trata-se da parte dos Exercícios Espirituais denominada “Três Tempos para Fazer Boa Eleição”, e Inácio, demonstrando como os conhecimentos filosóficos acerca da alma são aqui aplicados como experiência, afirma: “Deus nosso Senhor move e atrai a vontade de tal forma que, sem duvidar nem poder duvidar, a alma fiel segue o que lhe é indicado” (EE. 175. Idem, p. 142). E, em seguida, explicando quando se há de fazer uma boa eleição, enumera como segundo momento propício aquele no qual “se recebe suficiente luz e conhecimento pela experiência das consolações e desolações, e pela experiência do discernimento dos espíritos” (EE. 176. Idem, p. 142). Mais à frente, nas “Regras para Sentir e Reconhecer de Alguma Maneira as Diversas Moções que se Produzem na Alma, as Boas para as Receber as Más para as Rejeitar”, Inácio explicará o que é consolação e desolação, e dirá:

Existem três causas principais pelas quais nós nos encontramos desolados. A primeira é porque somos mornos, preguiçosos ou negligentes nos nossos exercícios espirituais; de forma que é por causa de nossas faltas que a consolação se afasta de nós. A segunda, para nos fazer experimentar quanto valemos e até onde avançamos no serviço e louvor do Senhor sem o salário das consolações e grandes graças. A terceira, para nos dar verdadeiro saber e conhecimento – de modo a sentir interiormente – do que não depende de nós fazer nascer ou conservar uma grande devoção, um amor intenso, lágrimas, nem nenhuma outra consolação espiritual, mas que tudo é bom e graça de Deus nosso Senhor (EE. 322. Idem, p. 226).

Um pouco mais à frente, nas “Regras Visando Mesmo Efeito com um Maior Discernimento dos Espíritos”, Inácio explica:

Quando o inimigo da natureza humana tiver sido sentido e reconhecido tanto por sua cauda de serpente quanto pelo fim maldoso em direção ao qual impulsiona, é proveitoso, para aquele que foi tentado por ele, olhar em seguida o desenvolvimento dos pensamentos bons que ele lhe apresentou e seu começo, e como, pouco a pouco, ele tentou fazer descer da suavidade e alegria espiritual onde estava, até chegar a sua intenção depravada. Assim, por esta experiência conhecida, e anotada, se guardará no futuro de suas enganações habituais (EE. 334. Idem, p. 234).

No trecho do EE. 176 citado acima, Inácio fala de “experiência de desolação” e “experiência de discernimento dos espíritos”, e com a ajuda dos dois trechos seguintes se pode melhor compreender o que é a categoria experiência dentro desta perspectiva, a partir destas duas experiências particulares: não se trata apenas de uma sensação ou sentimento abstrato (de consolação ou desolação), mas também de uma certa sensibilidade específica (um reconhecimento que se dá pela visão), que juntas dão ao homem uma ciência que lhe permitir evitar as “enganações habituais” do “inimigo da natureza humana”.

Outro aspecto importante a se considerar quanto ao texto dos Exercícios Espirituais, é o uso que Inácio faz – já mencionado acima – de categorias próprias da psicologia filosófica aristotélico-tomista. Um exemplo bastante significativo é o do EE. 50, quando o autor lança mão das potências da alma sensitiva e da alma racional, especialmente da memória, da inteligência e da vontade, para ajudar o exercitante nos passos a que se propõe. Ele diz:

O primeiro ponto será aplicar a memória sobre o primeiro pecado que foi aquele dos anjos; em seguida, exercer a inteligência sobre este mesmo pecado percorrendo o tema, depois a vontade; querendo lembrar e compreender tudo isso para experimentar bastante vergonha e confusão. Fazer a comparação entre o pecado dos anjos e os meus tão grandes pecados (EE. 50. p. 80).

Aqui, as três faculdades da alma correspondem, para Inácio, aos três níveis constitutivos do homem: animal, racional e imagem de Deus. Neste ponto fica claro o papel que o fundador atribui a cada uma das potências:

A memória é a faculdade que o exercitante opera quando deixa retornar nele mesmo aquilo que lhe foi apresentado como matéria para sua meditação ou sua contemplação. Tendo-o encontrado, ele lhe dá toda a atenção. A inteligência lhe permite percorrer o tema, fazendo sobretudo comparações entre aquilo que vivem os personagens contemplados ou considerados e aquilo que ele mesmo vive, entre aquilo que eles fazem e aquilo que ele faz ou quer fazer. A vontade é uma faculdade afetiva. Ele se deixa tocar pelo tema rememorado e aprofundado. É, portanto, a capacidade de ser afetado e, por outro lado, de sentir e responder com amor. Nesse sentido, pode-se traduzir, hoje, este termo por ‘coração’. Mas a vontade aponta também para a capacidade de decidir, de querer: aqui, de tomar a decisão de aplicar a memória ou de fazer trabalhar a inteligência (Loyola, 1991, nota do tradutor, pp. 81-83).

O outro documento da ratio spiritualis jesuítica analisado é o texto do Diário de Moções Interiores, de Inácio. Sabe-se que o Diário, é o resultado do trabalho pessoal de “eleição sobre a pobreza”, que o fundador fez enquanto preparava o texto das Constituições. Para esta eleição, Inácio se utilizou, entre outras coisas, de uma pequena folha de papel dobrada onde anotou uma série de argumentos contra e a favor quanto ao que concerne ao voto de pobreza (Loyola, 1991) (41). No verso da última página, onde se lê Os inconvenientes em não ter nenhuma renda são as vantagens em ter parcial ou totalmente”, encontra-se no terceiro argumento a seguinte observação: “com rendas, eles não experimentarão tantos movimentos interiores e problemas que os levem a uma preocupação desordenada procurando dinheiro (p. 322).

No entanto, o aspecto mais revelador deste maço de folhas autógrafas a que se deu o nome de Diário, é justamente o fato de que se tratam de notas advindas de uma elaboração da experiência pessoal. Assim, a própria linguagem utilizada no texto se torna objeto de atenção. Não é, pois, de se estranhar que os trechos que se seguem às vezes sejam impessoais, ou se caracterizem por uma simples descrição de um estado emocional, ou de uma consideração feita, ou de um sentimento provado etc. Por exemplo, no dia 4 de fevereiro de 1544, uma segunda-feira, Inácio escrevia: “Mesma coisa [referindo-se ao que havia escrito no dia anterior: “abundância de devoção na missa, lágrimas, grande confiança em Nossa Senhora”], e também outros sentimentos” (p. 327), sendo que quando ele faz uso do termo “sentimentos”, não só aqui mas ao longo de todo o Diário, não está prescindindo de uma compreensão intelectual: sentir, em espanhol, é indissociável do intelecto, do afeto e da sensibilidade envolvidos. E isso se pode comprovar, por exemplo, quando escreve, alguns dias mais tarde que “depois do despertar, eu não parava de render graças a Deus nosso Senhor muito intensamente, com inteligência e lágrimas, por um tão grande bem e uma tão grande luz recebida, que não podem ser expressas” (pp. 331-332). Ou mesmo quando faz uso de jogos de palavras tais como “inteligência espiritual”, “sentindo o Filho muito propício para interceder”, “vendo os santos de uma tal maneira que não se pode escrever” (p. 333), ou “tão grandes inteligências que não se pode escrever” (p. 334), ou ainda “esse sentimento ou essa visão”, “sentindo muitas inteligências importantes, saborosas e muito espirituais” (p. 335) e, para não estender por demais esta lista, mesmo quando relata que “um conhecimento me veio de que um tal pensamento era também de Deus” (p. 337), ou que provou “certo sentimento ou visão pelo entendimento” (p. 342) etc.

Encontram-se também referências explícitas à experiência, como é o caso desta nota feita no dia 21 de fevereiro de 1544, na qual Inácio relata que durante a missa daquela segunda-feira

conhecia, sentia ou via, Dominus scit, que falar ao Pai, ver que ele era uma Pessoa da Santíssima trindade, me levava a amá-lo inteiramente, tanto quanto as outras Pessoas estavam nele essencialmente. Experimentava a mesma coisa durante a oração ao Filho, a mesma coisa durante a oração ao Espírito Santo, gozando indiferentemente de uma ou outra Pessoa durante o tempo em que sentia as consolações, as relacionando a todas as três (pp. 340-341).

Além de todos estes exemplos, é preciso ao menos apontar as inúmeras referências (anotadas nas margens das folhas, por mão de Inácio) às visões, lágrimas e loquela (= palavra, em latim; mas, que no caso das anotações de Inácio, se refere à escuta de uma voz interior ou exterior que lhe significa um momento, lhe ajudando num discernimento qualquer).

Com respeito ao Relato de Inácio, Marin (1999), que denomina o texto de “autobiofonia”, explica que se trata de um documento no qual Inácio é dado ao leitor como um “imitável, um modelo”. Este texto permite “reviver a vida do fundador, repetir a vida do fundador” (p. 146), que é mais do que uma série de eventos, mas o tecido dos eventos (“tudo o que se passou em sua alma até o dia de hoje”) dirigidos pelo Senhor “desde a sua conversão” (p. 147):

Mas se o próprio de um modelo é de ser imitável, portanto reiterável e repetível, como repetir uma vida dirigida e formada pelo Senhor? Como repetir as intervenções divinas que (...) constituem a vida do fundador, o legendum singular desta vida? Como fazer da leitura do relato desta vida, um modo de repetição desta vida mesmo depois de seu verdadeiro nascimento até o momento onde ela termina? (...) Trata-se, em uma palavra, de escrever ‘o relato’ no corpo segundo uma modalidade encarnada de sua leitura, ou (...) descobrir a maneira na qual cada companheiro leitor se apropria singularmente, segundo sua vocação, da experiência do fundador (p. 147).

Ler o Relato, portanto, tem, segundo Marin (1999), dignidade sacramental, na medida que pode ser descrito como uma espécie de comunhão eucarística, na medida em que o texto se torna corpo em quem lê: é a experiência pessoal de Inácio que é dada como paradigma de identificação e incorporação (dois termos que não nos são mais estranhos), ou, nos termos próprios da gramática de uso jesuítica, simplesmente imitação. O paradoxo apontado pela pergunta de Marin (1999) – o de ser a vida de Inácio dada à imitação apesar de ter sido uma vida formada e dirigida por Deus – se desfaz na interseção entre Graça Divina e Vontade Humana, que nessa visão de homem é tão presente: a experiência da Graça Divina na vida de Inácio (42), faz dele um modelo, um imitável, um texto vivo para seus companheiros, que, no entanto, têm a liberdade de colocar em operação sua Vontade pessoal para encarnar em suas vidas (ou não) essa “experiência-modelo”.

Desse debate, finalmente, pode-se concluir que experiência é o contraponto de uma mística do abstrato, onde a experiência de relação com Deus se dá apenas na parte nobre da alma humana – alma racional. Mais uma vez, vemos a afirmação da imprenscindibilidade dos sentidos, da experiência sensível. A espiritualidade jesuítica, aqui manifesta especialmente pelo seu texto normativo, reafirma que o conhecimento dedutivo não basta para se chegar a um pleno conhecimento da realidade, ou seja, não basta para chegar a tocar o Sentido, o Bem, a Verdade, o Fim presente, como consistência última, na realidade: é preciso a experiência imediata, é preciso o conhecimento direto proporcionado pelos sentidos e pela consciência de si mesmo, é preciso a experiência das coisas percebidas, que são conhecidas na medida em que as vivemos, as tocamos, ouvimos, experimentamos... sentir y gustar de las cosas internamente” (García-Mateo, 1998, pp. 478-479).

... Na ratio intitutorum jesuítica

Interessa nesse tópico, responder às seguintes questões: qual o conceito de experiência que aparece na norma de um corpo institucional religioso – o da Companhia de Jesus? Que papel desempenha a experiência no processo de identificação/definição do indivíduo com esse corpo institucional?

Inicialmente, deve-se apontar o uso comum, nos primeiros documentos da Companhia de Jesus, da expressão “nossa maneira habitual”, para designar como os primeiros jesuítas agiam em questões muito particulares. Por exemplo, no documento 1539. Durante três meses, A maneira como se instituiu a Companhia, o redator anota que a maneira habitual usada para discutir sobre as questões da fundação era: “refletir e meditar sobre elas durante o dia e as aprofundar em nossas orações” (Loyola, 1991, p. 278). Bem como no Atestado concernente à decisão de fazer voto de obediência: “depois de ter rezado a Deus e pesado maduramente a coisa (...), decidi de pleno grado” (p. 282) etc.

A pergunta que se pode fazer a partir daí é: como um indivíduo pode chegar a assumir para si, a se colocar em primeira pessoa nessa “nossa maneira habitual”? Ou: que dinâmica permite a identificação de um indivíduo à essa modus operandi particular?

Lê-se nas Determinações da Companhia algo que responde a esta pergunta: “Aqueles que estão para ser admitidos devem, antes de serem experimentados durante o ano de provação, passar três meses em exercícios espirituais, em peregrinação e a serviço dos pobres nos hospitais, ou em outra coisa” (p. 285). Aprende-se a ser jesuíta “experimentando” o que seja ser um jesuíta. E o que é ser um jesuíta? Passar por exercícios espirituais, fazer peregrinação, trabalhar a serviço de pobres: o que é isso? É a vida de Inácio: uma experiência-modelo que, aqui, deixa de ser a descrição de uma experiência espiritual, para se tornar a prescrição explícita de um modelo de imitação. É por isso que na Summa os primeiros escrevem: “que ninguém seja recebido nesta Companhia antes que seja, inicialmente, longa e cuidadosamente experimentado, e quando se tiver constatado que é prudente no Cristo e se distingue por sua doutrina ou pela santidade de sua vida” (p. 306).

Quanto ao texto das Constituições, importa, primeiro, que fique claro que mais que um texto normativo strictu sensu, elas são, para os jesuítas, a descrição de um caráter particular, bem definido e com traços muito específicos. É bem verdade que é pelo motivo mesmo de ser descritivo, que o texto tem uma virtude prescritiva, na medida em que ao descrever como “é”, tangencia o como “deve ser” o jesuíta. É esta característica do documento que permite compreender porque é indicado que sejam lidas e meditadas com freqüência, até o ponto de serem sabidas de cor (43).

Neste documento aparecem, com freqüência termos diferentes para designar a categoria analisada neste capítulo: experiência (que, no texto francês, aparece como expérience, quando designa substantivo ou éprouver, para designar um verbo), “provação” (que aparece no texto francês como probation) ou “prova” (épreuve, em francês).

Assim, encontramos, por exemplo no “Exame” (uma espécie de prólogo ao texto jurídico) das Constituições, após explicar a pertinência dos “seis meses de experiências e provas”, a seguinte observação:

Isso para que, de uma e outra partes, aja-se com a maior clareza e conhecimento em nosso Senhor e que, mais sua constância tenha sido experimentada, mais sejam estáveis e firmes no serviço divino e na sua primeira vocação, para a glória e honra de sua divina Majestade (p. 400).

Em seguida, nos parágrafos 64 a 83 do mesmo “Exame” descrevem-se minuciosamente cada uma das experiências que se farão ao longo do período anterior à entrada em casa ou colégio da Companhia de Jesus (trata-se do período denominado “primeiro ano de provação”):

Além disso, antes de entrar na casa ou colégio, ou depois de ter entrado, seis experiências principais são exigidas, sem contar muitas outras sobre as quais se falará mais adiante. Essas experiências poderão ser avançadas, retardadas ou adaptadas e, em certos casos, modificadas por outras com a autorização do superior, segundo a pessoa, os tempos, os lugares e as circunstâncias (p. 409).

São estas experiências: fazer exercícios espirituais durante mais ou menos um mês (§ 65), servir em hospitais ou em um hospital durante um outro mês (§ 66), fazer peregrinação durante um outro mês (§ 67), se aplicar em serviços baixos e humildes (§ 68), expor publicamente a doutrina cristã para crianças ou pessoas ignorantes (§ 69) e pregar e confessar em igrejas indicadas (§ 70). Nos parágrafos que se seguem, procura-se explicar como cada uma delas ajuda a atestar o candidato e ao final diz: “se esses atestados quanto às experiências faltam, deve-se procurar a razão com muito cuidado, com o objetivo de saber a verdade sobre tudo, afim de que se possa melhor prover a tudo, onde convém” (p. 411). Isso porque, nas experiências de provação, o candidato se expõe, se revela, e é, portanto, essencial o papel das testemunhas: o candidato está sempre sob os olhos de uma testemunha. Ao final, cabe ao candidato produzir, diante de seus superiores, o atestado de suas experiências, por isso o comentário do § 79, acima transcrito.

Já no texto das Constituições propriamente dito, na Primeira Parte – que trata de “A admissão à provação” – quando fala daqueles que serão recebidos, se diz:

Para falar de uma maneira geral daqueles que se deverá receber, pode-se dizer que mais alguém tenha recebido de Deus nosso Senhor dons naturais e infundidos para ajudar a Companhia naquilo que ela busca, seu divino serviço, e mais tenha feito a experiência desses dons, mais será apto a ser recebido na Companhia (p. 433).

Serão recebidos na Companhia aqueles que são experimentados naqueles dons que ajudam a Companhia, ou sejam, que distinguem a sua ação da ação das demais Ordens. De novo experiência pode ser colocada lado a lado com o termo “identificação” ou “imitação”. Como se confirma no Capítulo III, desta Primeira Parte – denominado “A dispensa daqueles que foram admitidos e não deram satisfação” – onde se enumeram as justificativas para a dispensa de um membro da Companhia: entre elas se diz que será dispensado quem for “contrário ao bem da Companhia”, ou seja, “se a experiência mostrar que este é de fato inútil e mais próprio a embaraçar a Companhia que a ajudar” (p. 448).

Na Quarta Parte – “A formação nas letras e nos outros meios de ajudar o próximo daqueles que são guardados no seio da Companhia” – das Constituições, mais especificamente no Capítulo III, que trata dos “Estudantes que se deve colocar nos Colégios”, por sua vez, lê-se o seguinte:

No entanto, só serão admitidos como estudantes aprovados aqueles que foram experimentados nas casas ou nos colégios e que, depois de dois anos de experiências e de provação, uma vez feitos os votos e a promessa de entrar na Companhia, são recebidos para nela viver e nela morrer para a glória de Deus nosso Senhor (p. 477).

 

Ou então, o que se lê na Quinta Parte – “O que concerne à admissão ou incorporação na Companhia” – quando logo no Capítulo I (“A admissão. Quem a faz e em que momento”), se diz:

 

Aqueles que foram suficientemente colocados à prova na Companhia e durante bastante tempo para saber, de parte a parte, se convém que eles permaneçam para um maior serviço e uma maior glória de Deus nosso Senhor, devem ser admitidos não mais em provação como antes, mas de uma maneira mais intrínseca, enquanto membros de um mesmo corpo, o da Companhia. É o caso principalmente daqueles que são admitidos para serem professos ou coadjutores formados (p. 515).

 

Pela leitura de todos estes excertos fica clara a identidade experiência/provação. O jesuíta é chamado a viver um período de provas, ao final do qual o indivíduo é definitivamente reconhecido ou não como pertencente ao um corpo institucional. A experiência aqui pode ser definida, pois, como uma série de atividades que garante 1) a identificação do indivíduo com a instituição e 2) a reprodução/manutenção dessa mesma instituição (Fabre, 2000). Importante destacar, portanto, o papel da experiência assim compreendida com o processo de individualização x individualismo (usando termos hodiernos): quem obedece a essa regra integra um corpo institucional e se torna um homem que vive de uma forma que, se descrita, permite-nos conhecer o jesuíta.

 

... Nos textos de espiritualidade

On peut par deux voies savoir les choses de la vie [mystique] future, c’est à savoir par la foi et par l’expérience. La foi est la voie commune que Dieu a établie pour cela à cause que les choses de Dieu et de la vie future ne nous sont connues que par ouï-dire et par la prédication des apôtres. L’expérience est pour peu de personnes. Les apôtres de Jésus-Christ étaient de ce nombre. Aussi disaient-il: Quod vidimus, quod audivimus, quod manus nostrae contrectaverunt de verbo vitae annuntiamus vobis; et ailleurs: Quod scimus loquimur, quod vidimus testamur.

Jean-Joseph Surin (1660)

Science Expérimentale des choses de l’autre vie

 

Assim inicia sua obra – Science expérimentale des choses de l’autre vie –, o padre jesuíta francês Jean-Joseph Surin (1600-1665), que ganhou celebridade dentro e fora da Companhia de Jesus graças a suas virtudes e talentos como diretor espiritual. Quarenta e cinco anos depois da morte do P.e Cláudio Aquaviva, vê-se (com esta e outras tantas obras espirituais) muito mais estabelecida sobre bases seguras uma espiritualidade com feições propriamente jesuíticas.

É bem verdade que, no trecho citado, Surin deixa claro que a experiência é uma forma de conhecimento das coisas futuras (ou místicas) para poucos, como os apóstolos que – note-se – viram, ouviram e tocaram o “verbo vitae”. Mas isso não significa que somente eles puderam fazer uma experiência sensível do Verbo Encarnado ou das coisas futuras ou místicas (para usar os termos que ele usa). Neste ponto, Surin é bastante claro: “os apóstolos de Jesus Cristo eram deste número”, porém, mais à frente no texto inicial da obra, ele se diz parte deste número também e afirma ter a “mesma intenção” dos apóstolos: “que essas coisas que conhecemos (...), e na qual a providência de Deus nos engajou, sejam empregadas neste discurso para tornar firme a fé na qual a profissão da religião católica nos engajou, e para nos tornar melhores cristãos” (Surin, 1990, p. 128).

Eis o ponto capital: o texto-testemunho de Surin – que relata os sofrimentos porque passou e as graças que recebeu no período que se seguiu à sua intervenção junto a um caso de possessão demoníaca de algumas irmãs Ursulinas – ganha estatuto de veracidade porque é uma experiência feita que se comunica com a finalidade de tornar firme a fé de quem leia: annuntiamus vobis, loquimur e testamur que os Demônios existem (44), mas que há um “Deus, tal como a Igreja acredita e anuncia” (Idem, p. 343) e um “Deus que é vingador dos crimes” (p. 347), e também que “uma vontade boa é toda poderosa, e que contra ela o Inferno é como que um quase-nada que, sem ela, se torna um gigante sem tamanho” (p. 377), mas sobretudo que “a providência de Deus foi singular nesta possessão, dando todas as ocasiões e provas suficientes de que eram demônios, e que Deus e a Igreja dominam sobre eles” (p. 414).

Como, nos textos de espiritualidade jesuítica, a questão da experiência se apresenta? Como, no tempo, foi se estabelecendo esta espiritualidade e, sobretudo, como ela se estabelece, no âmbito discutido até aqui, a partir do assumir-se, numa síntese encarnada, todo um horizonte formativo com as características bastante peculiares descritas?

Por exemplo, na carta enviada no dia 29 de setembro de 1583 pelo P.e Aquaviva à toda a Companhia de Jesus – Lettera del Nostro Padre Generale (...) Sopra la Rinovatione dello spirito etc. – se pode ler, depois que ele exorta os padres e irmãos a “metter la mano all’opera”, sua justificativa para este trabalho:

 

sappiamo con l’esperienza, che le arti non s’imparano, se non facendo; & pure occupandosi intorno à materia di fuori, non trovano resistenza: perche ne all’architetto le pietre, ne à gli altri artefici impediscono le materie i suoi disegni; ma la nostra filosofia che consiste nel moderar gli affetti interni, truova molto maggior ripugnanza, & mutatione; poi che se bene nel quadrare, la pietra fa alcuna difficoltà, quadrata però non torna alla prima roizessa; ma gli affetti nostri ben spesso si mutano, come per isperienza proviamo (pp. 23-24).

 

Aquaviva (1583), aqui, insiste no fato de que se renovará o espírito não somente pela graça de Deus, mas pela prática constante dessa renovação. Constante porque, “como por experiência provamos”, os afetos não são como nossas características externas que, quando modificadas não voltam atrás, mas “muito freqüentemente se alteram”. Experiência é, pois, não somente conhecimento adquirido pela prática, mas um saber indutivo acerca de si mesmos, a que eram educados os jesuítas.

Na carta seguinte – Lettera del Nostro Padre Generale (...) Dello studio della perfettione, & carità fraterna –, Aquaviva (1586) explicando o que é este “estudo da perfeição e caridade fraterna”, ou seja, o forçar-se a fazer a vontade do “nosso pai e senhor” (p. 08), tornará a obediência às Constituições e aos Superiores “cada dia mais doce” (p. 08) e, especialmente, “far-nos-á com a experiência saborear e, com uma luz maravilhosa, que não é de lume natural, conhecer claramente, que esta é uma doutrina do céu” (p. 08). Regra espiritual e regra institucional são, aqui, corroboradas pelo conhecimento filosófico das potências da alma (“se nossa vontade não é espoliada de todo amor e afeição particular não poderá buscar a Deus”, como escreve mais à frente na mesma carta); e a interseção se dá exatamente no apelo à experiência.

Também Fazio (1594) faz uso dessa categoria – dentro do mesmo espaço de discussão usado por Aquaviva (1586) – para demonstrar o quão necessário é se aplicar no exercício da “Mortificação santa” das faculdades da alma e, sobretudo, das paixões desordenadas e também no exercício da obediência. Segundo ele, a mortificação e a obediência fazem com que nos deixemos guiar, finalmente, pela vontade de Deus e não pela nossa, que, “por sua natureza é cega” e, dessa forma guiados, não corremos o risco de incorrer no erro “que o Senhor mesmo predisse dizendo: Si coeco coecus ducatum prestet, ambo in foveam cadunt” (p. 49).

Sanchez (1594/1607), fazendo uso de questões próprias da Filosofia Moral, acaba por prescrever a obediência como ajuda para a manutenção da prudência, que, sabidamente, é a virtude dos experimentados. Assim escreve ele, no Capítulo IV, Livro V – que trata da “obediência que é devida aos superiores” – de seu Le Royaume de Dieu et le vray chemin pour y parvenir:

 

Apres qu’un homme aura prins des estudes & exercices suffisans en sa vacation & estat, il a necessité d’une prudence & discretion, par laquelle il se regle, & conduise, car d’autre maniere, les vertus se convertiroient en vices. Et pource que la prudence, est celle-là, qui met le frain & ordonne toutes vertus, parfoy elle est appellée vertu des anciens, qui d’ordinaire s’obtient fort tard, & avec grande experience (à raison de quoy les jeunes superieurs, font tant de folies, & injures mal a propos) pourtant il est três-evident qu’il faut prendre l’obeissance pour bride & guide, qui supplee à la prudence (p. 560).

 

Um a um, todos os padres espirituais apresentados vão se servindo da experiência para prescrever exercícios que auxiliem no engajamento à “religião católica” e no se tornarem “melhores cristãos”: Villanueva (1608), depois de dizer que a oração mental é mais oração que a vocal, lembra, por exemplo, que no entanto se acrescentam as palavras à oração mental quando a alma “se sente caída” (p. 7,1) e coloca que “este aviso (...), cada dia nos é ensinado pela experiência, que vendo caído o nosso espírito na oração, com a voz exterior o reaviva” (p. 7,2); e segue com suas considerações sobre as potências da alma humana. À frente, na mesma obra, Villanueva (1608), falando acerca da especulação e da contemplação, como formas de oração de entendimento, retoma conteúdos próprios dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola: aplicação dos sentidos, composição de lugar, uso da memória, etc. Rodriguez (1609/1834) também, no Ejercicio de perfeccion y virtudes cristianas (45), apela para a experiência com o fim de comprovar como são importantes os votos para a ordenação pessoal e institucional. Assim como Nieremberg (1631/1657, 1640/1957), o qual também faz uso desta categoria para mostrar como a vontade precisa ser bem conduzida pelos preceitos da moral (46), ou pela ordem institucional (47). De tal forma que, nestes textos, pode-se encontrar o teórico, o institucional e o espiritual tornados prescrição não porque sejam documentos normativos, mas porque fazem lisível a descrição de um modus operandi e de um modus cogitandi encarnados numa experiência de caráter necessariamente jesuítico. “Necessariamente” porque se trata de um caráter fundado sobre aquele tripé formativo muito peculiar desta ordem religiosa.

 

III) Conclusão

No início deste artigo, se perguntave como era possível que termos tão diversos e, sobretudo, tão distantes do horizonte cognoscitivo da experiência pudessem ser usados, numa mesma frase, juntos: Deus, a alma, as paixões da alma, os sentimentos etc. Tendo seguido este percurso, a questão parece esclarecer-se.

Escrever que se faz a experiência de que Deus dá um “desejo fervoroso” que, como luz do céu, desfaz as trevas e as falsas razões da alma; ou que se experimenta que, na medida em que os desejos são considerados a partir das falsas razões, parecem vir do demônio, como o afirma Seraphin Bonaventura Coçar (48), é descrever o resultado de um trabalho de discernimento dos espíritos, ou seja, o trabalho do juízo a fim de bem localizar de quem partiu o desejo, quem o concedeu; é também comprovar o trabalho de elaboração pessoal acerca da experiência de “sentir um incendido desejo”. De fato, em sua carta, Seraphin procura deixar claro ao Padre Geral o quão seriamente trabalhou para conhecer a origem desse desejo e sobretudo o quão certo é de que quem o dá é “Dios Nuestro Señor”, já que tem experimentado uma atenção maior na “observância das regras”, depois de se ter encomendado a Deus, nas orações. Vê-se que, a experiência, neste caso, está intimamente ligada a um conhecimento de si mesmo e de Deus, bem como de virtudes morais, indissociavelmente: se o desejo é um desejo honesto, útil e agradável, é um movimento em direção ao sumo Bem; mas não basta a confirmação teórica, é preciso uma experiência sensível de sua honestidade, utilidade e bondade: “un desseo fervoroso, que como luz del cielo deshaze en mi alma aquellas tinieblas y razones, dexandome muy consolado, y con tal alegria, que me parece arrostrar a qualquiera dificultad y trabajo”.

Joan Sotalell experimenta paciência grande diante das tentações, pelo simples pensar “yr a las Indias” (49), além de experimentar consolação e facilidade para fazer o que antes era difícil. No texto que escreve, o jovem jesuíta relata, como os demais indipetentes, o trabalho de discernimento dos espíritos a que se dedicou – oferecimentos, obediências, abnegações, exercícios espirituais, mortificações –, bem como procura demonstrar e comprovar como conhece bem a si mesmo, seus limites, suas virtudes, as graças recebidas. Tudo utilizado como argumento a favor e prova da origem divina de um tal desejo. Além disso, Sotalell explicita seu desejo de fazer sua a vontade de Deus: “davame grande molestia el ver que no podia ser luego, pero conformeme con la voluntad de Dios Nuestro Señor que fuesse quando el quiziesse”; como, por exemplo, Aquaviva (1586) lembrava em sua carta dirigida à Companhia de Jesus: “ne trova il servo di Dio altro riposo, ò altro contento, che il far la volontà di colui, la cui volontà è sola regola d’ogni rettitudine” (p. 7).

A experiência de facilidade para os “trabajos de corazon” a que se refere Gabriel Mayo (50) em sua Indipeta, unida à certeza de sua falta de habilidades que justifiquem o pedido, não se contradizem, porque: “no nace este desseo que tengo de ver en mi algo delo que han de tener los Predicadores”, mas “nace de la sola immensa bondad de Dios, que en mi lo despierta y me tira sin ýo mereçello ni pretendello”. Porém, a comprovação maior é que, junto com o desejo de ira para o Japão para trabalhar na conversão das almas, sente também um “desseo de dar la vida por amor del Señor”. Como pode ser possível que um Bem honesto, útil e agradável dê origem a um desejo de morte? Se e somente se esse desejo é o desejo do Amor de Deus, o desejo do Sumo Bem, da realização da vida a que foi chamado no seio da Companhia de Jesus.

Também Juan Bravo comprova, a partir da experiência, a origem divina do seu desejo, quando apresenta as justificativa nascidas da elaboração pessoal: o desejo corrige suas imperfeições e lhe permite viver firme nas “cosas de Instituto”. E, finalmente, diz: “No creo que rayz de donde brotan tales ramas puede ser o malas, o antojadiza” (51). Em outra carta sua (52), Juan Bravo relata o desejo de dizer à voz tudo o que o Senhor lhe fez conhecer e sentir: desejou estar “a los pies de Vuestra Paternidad para que con la lengua propria diera al Padre que my Dios me ha dado una notiçia de my coraçon y de lo que en el pasa”. Que coisas são essas que Deus lhe faz experimentar? Sempre são confirmações da origem divina do desejo que sente de ir ao Japão, confirmações, inclusive, que lhe dão a segurança de escrever não uma ou duas vezes, mas várias vezes, sempre para refrescar a memória do Padre Geral de seus desejos e, especialmente, do seu trabalho de discernimento e da certeza a que chegou.

 

Experiência: instrumento cognoscitivo? Ponte para aceder a Deus? Critério de identificação/imitação final? Sim, tudo isso, mas num continuum feito carne, num dinamismo particular. A aparente fragmentação da análise desenvolvida ao longo deste texto se desfaz na leitura das cartas Indipetae que não permitem uma compreensão de tipo filo-estruturalista-francesa. Finalmente, é preciso dizer, há uma unidade interna não só a essas fontes, mas à própria Companhia de Jesus: é essa unidade mesma – retórico-filosófico-espiritual-institucional – que permite, na leitura dos documentos identificar uma dinâmica, uma vitalidade, que evidencia um homem e sua experiência de si mesmo, de Deus e do mundo indissociáveis. Uma tal compreensão do homem, enfim, faz o psicólogo se perguntar: quem é o homem para mim? E, quem sabe, aprender com quem, de “morto” que era, se tornou uma voz encarnada.

 

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Notas

* Este artigo é fruto das pesquisas desenvolvidas na tese de doutoramento financiada pela CAPES, na FFCLRP/USP. Agradeço, especialmente, as frutuosas colaborações dos professores Alcir Pécora, Pierre-Antoine Fabre e Marina Massimi.

(1) “...toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócio-econômico, político e cultural. Implica um meio de elaboração circunscrito por determinações próprias: uma profissão liberal, um posto de observação ou de ensino, uma categoria de letrados etc. Ela está, pois, submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma particularidade. É em função deste lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhes serão propostas, se organizam” (Certeau, 2002, pp. 66-67).(volta)

(2) Termo com o qual, genericamente, eram designados os territórios de missão, no âmbito cultural e institucional estudados.(volta)

(3) “Sublinhar a singularidade de cada análise é questionar a possibilidade de uma sistematização totalizante, e considerar como essencial ao problema a necessidade de uma discussão proporcionada a uma pluralidade de procedimentos científicos, de funções sociais e de convicções fundamentais” (Certeau, 2002, p. 32).(volta)

(4) Certeau (2002) afirma: “A historiografia (quer dizer ‘história’ e ‘escrita’) traz inscrito no próprio nome o paradoxo – e quase oximoron – do relacionamento de dois termos antinômicos: o real e o discurso. Ela tem a tarefa de articulá-los e, onde este laço não é pensável, fazer como se os articulasse. Da relação que o discurso mantém com o real, do qual trata, nasceu este livro. Que aliança é esta entre escrita e a história? Ela já era fundamental na concepção judaico-cristã das Escrituras. Daí o papel representado por essa arqueologia religiosa na elaboração moderna da historiografia, que transformou os termos e mesmo o tipo de relação passada, para lhe dar aspecto de fabricação e não mais de leitura ou de interpretação. Desse ponto de vista, o reexame da operatividade historiográfica desemboca, por um lado, num problema político (os procedimentos próprios ao ‘fazer história’) e, por outro lado, na questão do sujeito (do corpo e da palavra enunciadora), questão reprimida ao nível da ficção ou do silêncio pela lei de uma escrita ‘científica’.” (p. 11).(volta)

(5) Trata-se do grupo de pesquisa com o qual tive a oportunidade de trabalhar na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, durante estágio de pesquisa no exterior, realizado no ano 2003/2004. Lembro de modo particular de Pierre-Antoine Fabre, Antonella Romano e Luce Giard, além daqueles que, por intermédio desses últimos, vêm se debruçando sobre o “fazer história” dentro do mesmo horizonte de preocupação de Michel de Certeau.(volta)

(6) Aquino é quem assim divide: cinco categorias de potências (vegetativas, sensitivas, apetitivas, motora e intelectivas), três almas (vegetativa, sensitiva e racional) e quatro modos de viver (vegetativo, sensitivo, motivo e intelectivo). Cf. Aquino, 1991, pp. 159-194 (q. LXXVIII). E ele diz ainda: “ao teólogo pertence indagar, especialmente, só das potências intelectivas e apetitivas, susceptíveis de virtude. Mas, como o conhecimento dessas potências depende de certo modo das outras, por isso a nossa consideração sobre as potências da alma, em especial, será tripartida. Pois, primeiro, devem-se considerar cousas que servem de preâmbulo ao intelecto. Segundo, as potências intelectivas. Terceiro, as potências apetitivas” (pp. 159-160).

(7) Falar de espiritualidade nos séculos XVI e XVII, especialmente falar da Devotio moderna 20, sem dúvida é considerar fatores tais como a retórica, a ética, a política, a teologia etc. Hansen, no prefácio à obra de Pécora (1994) – Teatro do Sacramento – define a Devotio moderna como “metafísica neo-escolástica da Luz difusa” que funda a “história como história sacra” (Pécora, 1994, p. 16), como lugar da epifania da “Luz”. Segundo ele, espiritualidade, experiência religiosa, mística e fé, são re-elaborações ou retomadas de conceitos tomistas, apenas revestidos de roupagens modernas; o que significa uma devoção em nada desvinculada da realidade 21. Porém, é Guibert (1953) quem melhor nos define o que seja espiritualidade, quando explica o que significa uma “espiritualidade inaciana”: segundo ele, o termo designa tanto a vida interior pessoal de um homem, como a maneira como esse homem exerce certas práticas genericamente entendidas como espirituais, ou mesmo uma doutrina espiritual presente em escritos desse mesmo homem. No entanto, quando se trata da “espiritualidade” de uma ordem religiosa, por exemplo, na maioria das vezes “cette spiritualité du groupe aura pour point de départ la spiritualité d’un homme, d’un fondateur ou d’un maître, telle qu’elle ressort de sa vie, de ses enseignements et de sa parole, de ses écrits, de tel écrit considéré comme normatif par la tradition vivante du groupe” (p. XVIII). Por isso, pela expressão “espiritualidade inaciana”, se quer designar esse conjunto de características próprias da experiência pessoal de Inácio, presente em determinados documentos – que serão aqui analisados – que funda um modo próprio de um grupo, no caso a Companhia de Jesus.

(8) Quando se fala de Conimbricenses ou de Curso Conimbricense, está se referindo ao conjunto de textos publicados entre 1592 e 1606 com o título genérico de Comentários do Colégio Conimbricense da Companhia de Jesus. Discute-se freqüentemente a que autores se deve atribuir a responsabilidade da redação dos volumes: sabe-se que a maior parte dos títulos é de autoria do P.e Manuel de Góis; cabendo aos P.es Sebastião Couto e Baltazar Álvares a redação de dois dos seus oito volumes. De forma que as obras do P.e Pedro da Fonseca, especialmente o Comentário à Metafísica de Aristóteles, não podem ser consideradas como parte de sua estrutura. Observando-se o conjunto da obra, é interessante notar que excetuando o pequeno volume sobre a Ética a Nicômaco e o volume dedicado à lógica aristotélica, todo o Curso gira em torno do domínio disciplinar próprio da física (filosofia natural). De maneira geral, pode-se dizer que os comentários estão estruturados em torno do texto aristotélico, sendo que a parte mais significativa é a dedicada às quaestionenes: onde é possível ver um desenvolvimento dos temas propostos pela obra aristotélica, mas sem se fixar à “letra do texto”. Martins (1996) comenta mesmo que “mais do que no comentário propriamente dito (...), é aqui que podemos encontrar as posições doutrinais mais importantes dos Conimbricenses” (p. 489). Especificamente quanto a esse pequeno volume dedicado ao comentário da Ética a Nicômaco, pode-se dizer que não se ocupa de todo o texto aristotélico, mas apenas de “algumas das melhores questões que foram tratadas dispersamente por Aristóteles nos livros da Moral a Nicómaco” (Góis, 1593, p. 59). De fato, este tratado está organizado em torno de nove Disputationes que abordam, sumariamente, apenas alguns dos temas da obra de Aristóteles: as três primeiras giram em torno das noções centrais de Bem, Fim e Felicidade. A quarta se ocupa dos Princípios dos atos humanos, ou seja, da Vontade, do Intelecto e do Apetite Sensitivo. A quinta analisa, genericamente, a questão da bondade e da malícia dos atos humanos. A sexta trata das Paixões e a sétima das Virtudes em geral. A oitava e a nona Disputationes dividem a análise de algumas virtudes em particular: a Prudência, a Justiça, a Temperança e a Fortaleza.

(9) Quantos aos Exercícios Espirituais, são – à primeira vista – uma série de notas práticas, de métodos de exame de consciência, de oração, de deliberação ou eleição, de planos de meditação e de contemplação, divididos em partes que indicam quatro semanas, além de regras etc.; é um conjunto de instruções diversas destinadas a dirigir o cumprimento de um certo número de exercícios interiores sistematicamente ordenados, de forma que se trata de um livro não para ser lido, mas para ser vivido; mas, sobretudo, trata-se de uma obra destinada a quem guia o exercitante (Guibert, 1953). Quanto à compreensão de como este texto nasceu, qual o seu objetivo e portanto seu lugar na vida de espiritualidade da Companhia de Jesus, é o próprio Inácio quem narra – no seu Relato – como os Exercícios foram escritos: não de uma só vez, “mas, na medida em que observava algumas coisas na sua alma e as achava úteis, e lhe parecia que poderiam ser também úteis aos outros; então as punha por escrito” (Loyola, 1991, p. 1072). De forma que o texto dos Exercícios Espirituais é o resultado de uma experiência pessoal, marcada por acontecimentos que são sinais da presença e da ação de Deus, descrita de maneira a ser útil para que outros homens fossem capazes de trilhar um caminho de experiência de encontro com Deus. O objetivo da obra é suscitar e sustentar uma experiência de eleição da vontade de Deus – “sempre conhecer e cumprir sua divina vontade” (Loyola, 1991, p. 693) 28[1] –; uma “escola de oração” (p. 529), para usar a expressão de Guibert (1953). Podemos também dizer que os Exercícios são mesmo o ponto de partida fecundo, no sentido de “princípio de orientação e de desenvolvimento de toda esta espiritualidade nascida da experiência de Santo Inácio” (idem, p. 537). E finalmente, segundo O’Malley (1999), “não se pode compreender os jesuítas sem fazer referência” aos Exercícios Espirituais (p. 9).

(10) Esta versão apareceu em língua francesa no ano de 1991, sob a iniciativa de um grupo de padres jesuítas – Jean-Noël Aletti, Adrien Demoustier, Jean-Claude Dhôtel, Gervais Dumeige, François Évain, Édouard Gueydan, Antoine Lauras, Luc Pareydt e Claude Viard –, dirigidos pelo P.e Maurice Giuliani, sj, com a colaboração de Pierre-Antoine Fabre (da EHESS) e de Luce Giard (do CNRS). Trata-se da obra Loyola, Ignace de (1991). Écrits (M. Giuliani, pres. et dir). Paris: Desclée de Brouwer/Bellarmin (Collection Christus, 76, Textes).

(11) A respeito do Diário de Inácio, podemos dizer que o que temos publicado atualmente é apenas um pequeno fragmento do “grande maço de manuscritos” nos quais Inácio “escrevia cada dia o que se passava em sua alma” (Loyola, 1991, p. 1072), especialmente com respeito à escrita das Constituições. Esse fragmento equivale a dois cadernos inteiramente escritos pela mão de Inácio: o primeiro vai de 02 de fevereiro a 12 de março de 1544, e o segundo se refere aos dias de 13 de março de 1544 à 27 de fevereiro de 1545. Esses manuscritos só foram publicados pela primeira vez em 1934. O Diário, por ser a descrição do que se “passava na alma” de Inácio, descreve a dinâmica da vida mística do fundador.

(12) Finalmente, quanto ao que concerne ao Relato, o que mais nos interessa é seu caráter “testamentário” (Cf. Loyola, 1991, p. 1011), que ajuda a entender como a experiência espiritual de Inácio constituiu-se fundamento da Companhia de Jesus. No Relato, a vida de Inácio é mais que uma seqüência de acontecimentos: é uma vida marcada, constituída e formada pela graça de Deus (Marin, 1999); a vida de Inácio se torna, pois, uma “experiência-modelo”, de forma que ler seu relato significa “reviver a vida do fundador, repetir a vida do fundador como fundador, quer dizer refundar o corpo, reinstituir o instituto que ele fundou a partir de sua conversão”  (idem, p. 147), ou seja, finalmente, é imitar Inácio.

(13) A gênese das Constituições se confude com o nascimento da Companhia de Jesus. Não é inaugural (no sentido de que só aparece como necessidade cerca de cinco anos depois dos votos em Montmartre), mas é fundante da Ordem (na medida em que organiza, define, legisla em nome de uma unidade). Em junho de 1539, os primeiros companheiros de Inácio deliberam o que dá origem à Summa, um conjunto de decisões que fornecerão ao Papa Paulo III o essencial para a edição da bula Regimini Militantis que, em 1540, reconhece a nova Ordem religiosa. Da deliberação de 1539 à versão final das Constituições são passados 19 anos, nos quais o texto é revisado, enriquecido, retomado. A esse período correspondem os Generalatos de Inácio, Laínez e Borgia e o Pontificado de Paulo III e Júlio III. Cada um desses personagens contribuiu de alguma forma com a gênese do texto definitivo, de forma que falar de um autor é sempre uma questão problemática; especialmente quando sabemos também que é a Polanco – secretário dos três primeiros Padres Gerais – que se deve a maior parte do trabalho jurídico. No entanto, é preciso ter claro que, para além das inúmeras contribuições ao texto das Constituições, o ponto de unidade é a experiência pessoal de Inácio (Guibert, 1953). Fabre (1991) lembra que ainda no texto “B” (a última versão, que foi editada em 1558), Inácio teve a oportunidade de deixar várias notas marginais, atestando assim seu trabalho de fundador (Fabre, 1991). Leite (1938) também diz que as Constituições são “a melhor fonte para se conhecer o pensamento explícito e direto de Inácio”. Através desse texto fundador, conhece-se, pois, mais que um sistema jurídico, um texto que tem a característica de constituir a Companhia de Jesus, na medida em que compõe, dá a essência, descreve, estabelece um modo de agir que é o espelho da vida de Inácio e de seus primeiros companheiros.

(14) Apesar de escritos em períodos distintos, os documentos, quando lidos no conjunto, revelam uma cadeia contínua de progressiva legitimidade da Ordem: sua instituição, a eleição do Prepósito, a Summa – texto oficial do “Instituto” – que deverá ser aprovada, mais tarde, pelo Papa Paulo III e, posteriormente, confirmada por Júlio III. A produção desses documentos nada mais é que uma “articulação coletiva do ato fundador, como vínculo, no gesto de uma escritura comum” (Loyola, 1991, p. 269), onde o ponto de unidade do grupo que começa a se dispersar é o próprio Inácio, que aceita se tornar Geral: é justamente porque eles se dispersarão pelas missões “que a união em um Corpo deve ser considerada” (idem, p. 270), daí a necessidade de um selo unitivo – a obediência (que vimos ser uma das questões debatidas no primeiro encontro fundador, entre metade de março e 24 de junho de 1539, em Roma).

(15) Entre os textos editados no período, selecionamos apenas alguns obedecendo basicamente a três critérios: 1) autores e obras mais lidas nos colégios e casas da Companhia de Jesus, conforme o inventário de Gilmont (1961) e o esboço histórico da espiritualidade jesuítica feita por Guibert (1953); 2) disponibilidade de obras nos arquivos pesquisados (basicamente BCS, mas também BCE, BNF e BCR); 3) e, finalmente, aquelas obras, entre as recolhidas, que melhor sintetizassem o conteúdo daqueles três pólos de análise anteriormente descritos – filosófico/teorizado, regrado-espiritual e regrado-institucional. Optamos, então, pelos seguintes textos: uma carta do P.e Aquaviva (1543-1615), de 29 de setembro de 1583, na qual o Padre Geral propõe a “renovação do espírito aos Padres e Irmãos da Companhia” e uma outra carta, do dia 19 de maio de 1586, sobre o “estudo da perfeição e da caridade fraterna”; ambas têm um caráter refundador importante, na medida em que julgam o momento histórico vivido e propõem os novos passos a serem dados. Um texto de Giulio Fazio – Trattato utilissimo della mortificatione delle nostre passioni, & affetti disordinati – de 1594, pela sua importância do ponto de vista da síntese entre conteúdo filosófico aristotélico-tomista e experiência espiritual. Outro texto do mesmo ano, do espanhol Pedro Sanchez – Libro del Reyno de Dios y del camino por donde se alcanza –, do qual encontramos uma tradução francesa de 1607. Dada a significação da obra do ponto de vista da descrição do verdadeiro filho da Companhia de Jesus, demonstrando o valor da obediência como “caminho” para se alcançar o Reino. O Libro de oracion mental, de Melchior de Villanueva, editado em 1608, por ser uma síntese bastante completa do uso de conceitos próprios da psicologia filosófica aristotélico-tomista no âmbito da espiritualidade. O Ejercicio de perfeccion y virtudes cristianas, de Alonso Rodrigues (1533-1617), publicado pela primeira vez em 1609 e que conheceu inúmeras traduções e edições ao longo da história da Companhia de Jesus. Finalmente, como representante de uma espiritualidade completa – um todo orgânico – que amadureceu no tempo, escolhemos algumas obras de Juan Eusebio Nieremberg (1595-1658): o seu De Artes Voluntatis, de 1631 (tivemos acesso a uma tradução francesa de 1657) e o Vida divina y camino real de grande atajo para la perfeccion, de 1633. Esses oito textos são uma síntese daquilo que descrevemos a partir dos três pólos representativos do pensamento e da ação jesuíticos, na medida em que, imersos num ambiente filosófico, pedagógico, espiritual e institucional específicos, se preocupam em estruturar aquilo que se configurará um corpus de espiritualidade com características próprias. Trata-se, nesse caso, de uma genealogia positiva: são textos que só podem ter nascido de um ambiente sustentado minimamente por aquele tripé.

(16) É nesse período, com já vimos, que começa a tomar corpo a realização prática do programa pedagógico (Guerra, 2003) traçado pelas Constituições; é aprovado o Diretório dos Exercícios Espirituais em 1599, o que permite um trabalho aprofundado e sério sobre o texto inaciano; são publicadas inúmeras cartas de Aquaviva (sobre a oração, sobre a renovação do espírito, sobre o estudo da perfeição e outras tantas destinadas a particulares); são editados os primeiros tratados espirituais e instruções sobre oração, aproveitamento espiritual etc. (Lamalle, 2004); os debates nas Congregações Gerais e seus decretos sobre tempo dedicado à oração, noviciado etc. Todos exemplos de uma profícua preocupação com o estabelecimento de uma Espiritualidade “verdadeira, sólida e eficaz” (Guibert, 1953, p. XXV), com traços propriamente jesuíticos.

(17) A julgar pelas indicações oferecidas pelo Diretório dos Exercícios Espirituais: nas “notas transmitidas oralmente”, §8 da II parte, diz-se que “se pode aconselhar àquele que se exercita de anotar por escrito seus pensamentos e suas moções” (Loyola, 1991, p. 265, tradução nossa), obedecendo à tradição iniciada por Inácio e certamente conhecida através do seu Relato.

(18) ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 4 (grifo nosso).

(19) ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 338 (grifo nosso).

(20) ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 379 (grifo nosso).

(21) ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 329 (grifo nosso).

(22) Segundo Mendiola (2003), essas sociedades são aquelas que se constituíram do século V a.C. ao século XVII d.C. Podemos descrever assim essa realidade retórica: a cognição estava construída sobre a oralidade/escritura, de forma que a leitura da realidade era sempre analógico-metafórica; estando baseada na oralidade/escritura, é uma realidade onde importa a interação entre as pessoas, ou seja, exige comunicação e sociabilidade; ainda por estar baseada na oralidade/escritura, era necessário que se normatizasse o falar, tornando-se o processo de aprendizado um processo moralizante e marcadamente cristão. É uma realidade, por fim, teleologicamente orientada.

(23) Para essa assim chamada realidade científica, Mendiola (2003) enumera as seguintes características: se desenvolveu a partir do século XVII e chega aos nossos dias; o processo cognitivo é baseado na depuração da escrita pelas técnicas de impressão, o que faz da leitura da realidade, uma leitura literal-referencial; sendo baseada na escrita/impressão como meio de comunicação, elimina a necessidade de interação e valoriza o discurso analítico e representacional (a palavra suplanta a coisa) e permite a comparação entre textos e opiniões diferenciadas, tornando-se, portanto, uma dinâmica individual e técnico-cognitiva. É uma realidade, por fim, cognitivamente orientada.

(24) Schmitt, em artigo de 1969, discutindo a questão da diferença entre experientia e experimentum em obras de Zabarella e Galileu, diz que “uma das tendências que mais claramente marcam a tendência do século XVII é uma ênfase crescente na experiência” (p. 80, tradução nossa). Uma ênfase que, segundo ele, se encontra tanto no que respeitava à produção filosófica (por exemplo, em Gassendi e Locke), quanto ao que respeitava à produção científica (por exemplo, as obras de Francis Bacon e Newton).

(25) Assim, já é possível distinguir um aspecto importante da antropologia que se constrói a partir dessa concepção da alma: os sentidos não são passivos, na medida em que concorrem ativamente no processo intelectivo. Podemos começar a completar a questão, lembrando: o intelecto age a partir das phantasmata. Se se compreende a unidade intelecto/sensibilidade, que está por trás dessa compreensão, não há contradição: “sensibilidade e intelecto interagem até o ponto que a virtus cogitativa apresenta uma estreita afinidade com o espírito; assiste-se a uma espiritualização da sensibilidade” (Zanlonghi, 2003, p. 69, tradução nossa). Essa “espiritualização” permite a unidade entre razão e sensibilidade: o homem, enquanto razão encarnada que é, necessita dos sentidos para conhecer; sejam os sentidos externos (que recolhem as impressões), sejam os sentidos internos que formam imagens, depositadas e ordenadas na memória, que cumpre o papel de custodiar as impressões unidas aos juízos do intelecto.

(26) Sobre essa passagem cf. Zanlonghi (2003), quando ela afirma: “Todavia, para compreender de que modo a retórica age neste nexo, é preciso refletir sobre a conexão entre prudência e retórica. Muitas, na verdade, são as tangentes e um mesmo estatuto gnosiológico: nem ciência, nem opinião, produzem conhecimento, mas não demonstração, como a retórica desenvolve raciocínios que movem a partir de premissas prováveis e constróem uma razoabilidade orientada para o concreto, assim a prudência é a virtude que, em estreito contato com as paixões, discerne o bem do mal e orienta a escolha do bem concreto. Ambas orientadas para a ação, radicadas nos afetos, mas dirigidas para sua própria normalização, dividem o destino comum de agir naquela zona intermediária entre sentido e intelecto (...). Mesmo a prudência utiliza a cogitativa na sua aplicação na vida cotidiana, recebendo como matéria do raciocínio a variedade das ações possíveis ou a variedade dos aspectos e dos pontos de vista de uma mesma ação. A prudência precisa, para produzir o seu consilium, ver claramente a experiência. De onde tirará o socorro senão pescando da memória, da imaginação e da cogitativa as species que a retórica fundirá em imagens?” (pp. 75-76).

(27) A chamada arte da memória foi, segundo a tradição ciceroniana, “descoberta” por Simónides de Céos, alguns séculos antes da era cristã. Após entender o papel da visão e da ordem no processo memorativo, criam-se regras para facilitar o desenvolvimento do que passa a ser chamado “memória artificial”. Mais tarde, Cícero (1966) enquadra a memória entre as disciplinas da Retórica (que, segundo ele, são cinco: inventio, dispositio, elocutio, memoria e pronuntiatio); e Quintiliano descreve o processo. Platão compreende a memória como sinal da divindade e da imortalidade da alma. Aristóteles também trata da memória e a relaciona à formação do conhecimento, apontando o importante papel da imaginação. Cada um desses pensadores da antigüidade, se tornará, na Idade Média e na Renascença, referência para um passo na compreensão dessa arte. Segundo Yates (1975), na antigüidade clássica é elaborado um “modelo arquitetural da memória”, onde as coisas (para elas a memoria rerum) e as palavras (para elas a memoria verborum) a serem lembradas são ordenadas num espaço (locus ou topos), a partir de imagens (imaginibus ou phantasmata). É na Idade Média, no entanto, que a arte da memória passa a ter uma importante “intenção religiosa”: há uma preocupação por se lembrar das coisas da salvação e da danação da alma, dos artigos da fé, da estrada para o céu (virtudes) e para o inferno (vícios). Essa preocupação com as virtudes e os vícios, faz com que os escolásticos retomem a obra aristotélica, especialmente a Ética à Nicômaco, que enquadra a memória como parte da prudência: “a memória pode ser um habitus moral quando a utilizamos para lembrar das coisas passadas em vista de uma conduta prudente no presente e de um olhar prudente para o futuro” (p. 74, tradução nossa). A “memória artificial” é uma memória aperfeiçoada pela arte: eis o papel da Prudência.

(28) Com o advento da impressão, a memória perde seu lugar, porque não é mais necessário saber par coeur as lições aprendidas. Assim, a “arte da memória” torna-se um jogo curioso, ou um artifício mágico: “Tem-se a impressão que no século XVI a arte da memória começa a declinar. O livro impresso destrói os velhos hábitos da memória” (Yates, 1975, p. 143, tradução nossa). Os principais representantes dessa nova áurea ocultista que aparece em torno à arte da memória são as correntes neo-platônicas renascentistas, especialmente de Pico de la Mirandola e Marcilo Ficino. Também Giordano Bruno envereda pelas sendas da memória e desenvolve o conceito a paritr de uma concepção mágica.

(29) Para Agostinho, o homem é uma alma que faz uso de um corpo. Até naqueles conhecimentos adquiridos pelos sentidos, a alma se mantém em atividade e ultrapassa o corpo. Os sentidos só mostram o imediato e o particular, enquanto que a alma é capaz de tocar o universal e atingir a compreensão pura, porque a alma se confunde com o próprio Deus.

(30) Em disputas e questões anteriores, o autor já havia descrito o que os filósofos e o Filósofo entendem por Bem (aquilo a que tudo apetece; e sendo que o bem é aquilo que é honesto, útil e/ou agradável/deleitável, o Sumo Bem será aquilo que é, ao mesmo tempo, honesto, útil e agradável/deleitável, ou seja, o Amor de Deus) e por Fim (aquilo a que potencialmente toda a criatura se dirige, ou age em direção a, e em havendo, portanto, uma finalidade para toda a ação do homem).

(31) Rm 7,23.

(32) Também Bergamo (1994) aponta a fascinação pelo mundo da interioridade e pela estrutura da alma, presente especialmente no século XVII, na França, e retomado da tradição medieval. Segundo ele, a questão da estrutura da alma tem suas raízes em um problema bastante discutido por autores de séculos anteriores: “Em particular, a aparição, com o desenvolvimento da escolástica no século XIII, de uma antropologia fortemente estruturada que, modelando-se sobre a filosofia aristotélica, comportava uma classificação rigorosa das faculdades da alma, e uam análise minuciosa de seu funcionamento, abriu a via para uma longa série de transposições, até o ponto que conhecimentos maduros sobre o terreno de discussão filosófico poderiam, a qualquer momento, ser transplantados e aplicados no campo da literatura espiritual. Há, em suma, toda uma história da representação da estrutura da alma, que não somente se articula no interior de uma história da espiritualidade, mas ainda cruza a história das relações da espiritualidade com seu contexto, e em particular com o discurso filosófico” (Bergamo, 1994, pp. 32-33, tradução nossa).

(33) Certeau (1982) explica que esta fórmula teológica mantida nos séculos XVI e XVII é no entanto ligeiramente modificada, quando então acontece o temido risco da “mystiquerie”. O risco, segundo Certeau é que a crescente individualização das práticas e o aparecimento cada vez maior das experiências privadas, isto é, o progressivo desvincular-se da instituição, produzisse esta “mystiquerie”: “Torna-se ‘místico’ aquilo que se destaca da instituição” (p. 116, tradução nossa). Por isso a necessidade de se retomar, com clareza maior, a certeza de que a Igreja é o sinal do corpo de Cristo. Esta idéia faz trazer a experiência mística para o campo da instituição visível.

(34) Ele, de fato, diz: “O campo religioso se reorganiza também em função da oposição entre o visível e o invisível, de tal maneira que as experiências ‘escondidas’, que cedo foram reunidas sob o nome de ‘mística’, adquiriram uma pertinência que não tinham” (Certeau, 1982, p. 120, tradução nossa). Ou ainda: “Esta (...) modificação implica uma reestruturação das relações entre o fato e o sentido. Se torna mais difícil pensar que os fatos chamam o sentido – um sentido que seria levado à lisibilidade pelas coisas mesmas –, quanto mais era necessário gerar primeiro uma ‘razão’ por textos, e depois fatos (uma ‘experiência’ e’/ou um corpo) para esta razão (sintoma: ‘produzir’ passado do sentido de ‘manifestar’ para o de ‘criar’)” (p. 121, tradução nossa).

(35) Massimi (1999) afirma, falando da experiência religiosa dos jesuítas: “não há solução de continuidade entre a experiência psicológica e a experiência religiosa, já que ambas são inerentes ao eu do homem. Nem pode haver autonomia entre a esfera psíquica e a esfera espiritual, assim como hoje nós ‘modernos’ concebemos” (p. 51). Segundo a tradição da filosofia aristotélico-tomista, conhece-se o fundamental pelo acidental: “conhecemos a alma por seus efeitos, ou seja, por suas funções psicológicas, ou faculdades que se evidenciam no plano dos fenômenos” (p. 53).

(36) García-Mateo (2000) dá uma descrição detalhada do uso que Inácio fazia das categorias de seu ambiente cultural de forma justa e razoável. Assim, por exemplo no EE. 53, Inácio escreve: “Imaginando Cristo nosso Senhor diante de mim e colocado na cruz, fazer um colóquio: como, de Criador, ele veio a se fazer homem, passar da vida eterna à morte temporal, e assim morrer por meus pecados. Da mesma maneira, olhara para mim: o que eu fiz por Cristo, o que eu faço por Cristo, o que devo fazer por Cristo. Depois, vendo-o nesse estado, suspenso na cruz, percorrer o que se me oferecerá” (EE. 53, p. 84, tradução e grifos nossos). Percebe-se daí que o uso da imaginação tem que ver com o que, mais a frente explicaremos melhor, será chamado “composição de lugar” e “aplicação dos sentidos”.

(37) A aplicação dos sentidos na composição de lugar, por exemplo, aparece pela primeira vez, dentro do texto dos Exercícios Espirituais, no EE. 47: “Aqui é preciso remarcar que na contemplação ou meditação do que é visível, como por exemplo a contemplação de Cristo nosso Senhor, o que é visível, a composição será ver com a vista da imaginação o lugar material onde se encontra a coisa que eu quero contemplar. (...) Na contemplação do que é invisível, como é aqui a dos pecados, a composição será ver com a vista da imaginação e considerar minha alma aprisionada nesse corpo corruptível e todo o composto humano neste vale, como que exilado entre animais privados de razão. Eu digo: todo o composto da alma e do corpo” (EE. 47. Loyola, 1991, pp. 78-80, tradução nossa). E voltará a aparecer outras muitas vezes. Como comentário a esse EE. 47, aparece, na obra sinótica a seguinte nota: “A composição de lugar é uma preparação que tem necessidade da imaginação. Explicando-a aqui, Inácio mostra que a imaginação é uma faculdade a ser colocada em ação: fazer um trabalho que não consiste simplesmente em colocar juntas idéias e palavras, mas os elementos de um quadro. O exercitante torna preciso assim o lugar evangélico no qual ele vai se situar durante o exercício” (p. 79, nota do tradutor, tradução nossa). Outros exemplos de aplicação dos sentidos podem ser encontrados em EE. 53, EE. 66-70, EE. 122-125, EE. 159, EE. 194, EE. 202, EE. 220.

(38) Alguns exemplos retirados dos Exercícios Espirituais: “Verei com os olhos da imaginação” (EE. 122, p. 116, tradução e grifo nossos). “Pelo sentido da audição escutarei” (EE. 123, p. 116, tradução e grifo nossos). “Pelo sentido do olfato e do gosto, hei de sentir e saborear a suavidade e a doçura infinitas da divindade, da alma, de suas virtudes e de tudo o mais” (EE. 124, p. 116, tradução e grifo nossos). “Exercitarei o sentido do tato, abraçando, por exemplo, e beijando os lugares que estas pessoas tocaram com os pés, ou se detiveram” (EE. 125, p. 116, tradução e grifo nossos). Jesu, dulcis memoria: a “doçura infinita da divindade” deve ser experimentada pelos sentidos. Bem como, toda experiência do sagrado passa pelos sentidos.

(39) Cf., por exemplo, EE. 48, EE. 55, EE. 63, EE. 65, EE. 104, EE. 203.

(40) Nos EE. 29 e 30, por exemplo, logo no Exame Particular, Inácio propõe que se compare, depois que se tenha analisado os gráficos cotidianos e semanais, a evolução de um dia para o outro e de uma semana para a outra, a fim de verificar se houve emenda do pecado a que o exercitante se dispôs a emendar.

(41) Esse pequeno documento que, dobrado, comporta quatro páginas, foi classificado entre os manuscritos do AHSI com os números 38 e 39, de forma que temos as páginas 38f, 38v, 39f e 39v.

(42) Apenas a título de exemplo, citamos uma passagem do Relato, quando Inácio relata sua ida para Alcalá: “uma coisa o embaraçava muito, era que quando ele começava a aprender de cor, como era necessário nos inícios da gramática, lhe vinham novas inteligências de coisas espirituais e novos gostos; e isso de tal maneira que ele não podia aprender de cor e não podia as afastar, ainda que lutasse muito contra elas” (Loyola, 1991, p. 1046, § 54).

(43) Nas “Regras Gerais Tiradas das Constituições” se diz que foi a Divina Providência que permitiu que a Companhia de Jesus existisse e, portanto, mais que qualquer constituição exterior é a Ela que se deve recorrer sempre. No entanto, continua, foi a mesma Providência Divina que “pede a cooperação de suas criaturas” e o Papa que “assim ordenou”, que mostraram o quão necessário era “escrever Constituições que ajudem a melhor avançar, conformes ao Instituto da Companhia, na via do serviço divino que começamos a seguir” (Loyola, 1991, p. 608, tradução nossa). No parágrafo seguinte diz: “Assim, e bem mais ainda, é necessário que todos aqueles que entram na Companhia e vivem nela sejam convencidos em nosso Senhor e desejos de guardar integralmente todas as constituições, as regras e a maneira de viver da Companhia e que com sua divina graça se esforcem, de todo seu coração e de todas as suas forças, por as observar perfeitamente” (p. 609, tradução nossa).

(44) No Capítulo I da Primeira Parte do texto Surin (1990) mostra as “provas de que existe verdadeiramente demônios”, a partir das “pistas que deixaram em sua saída dos corpos das pessoas possuídas” (pp. 131-149).

(45) É bem verdade que não se trata de uso explícito, como nos demais exemplos, no entanto, Rodriguez (1609/1834) recorre a exemplos de santos, apóstolos e mártires para mostrar, por exemplo, como é verdade que os votos não tiram a liberdade, pelo contrário a aperfeiçoam, como é o caso deste trecho: “não se tira a liberdade pelos votos, antes se aperfeiçoa mais (...); porque o que fazem os votos é afirmar e fitar nossa vontade no bem (...); como em Deus, e nos bem aventurados que não podem pecar (...) e os apóstolos que foram confirmados em graça e não podiam pecar mortalmente, não por isso perderam a liberdade, antes com isso se aperfeiçoou; porque se afirmou e fixou mas o bem para que foi criada” (p. 100, tradução nossa).

(46) Nieremberg (1631/1657), no decorrer do seu De arte voluntatis, se auxilia de conceitos vindos da psicologia filosófica aristotélico-tomista com a clara finalidade de demostrar como as potência da alma racional têm necessidade dos preceitos morais para se bem ordenarem. Assim, não poucas vezes, fará uso de termos e expressões que implicam um conhecimento por experiência: “a felicidade é um certo silêncio” (p. 118, tradução nossa), “as ações honestas e legítimas, as afeições sãs, as boas obras” (p. 158, tradução nossa), “nós nos privamos voluntariamente dessas duas tão excelentes vantagens” (p. 320, tradução nossa), “lhe represente duro e penível” (p. 377, tradução nossa), “quem ama a paz e deseja adquirir repouso” (p. 475, tradução nossa) etc.

(47) Na obra seguinte, Nieremberg (1640/1957) segue as veredas da regra institucional sob a qual se encontra determinado para mostrar também, pela experiência, como este é um caminho facilitado para chegar a uma “vida divina”.

(48) Cf. ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 4.

(49) Cf. ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 338.

(50) Cf. ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 379.

(51) Cf. ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 329.

(52) Cf. ARSI, Indipetae Hispanae, FG 758, carta n. 404.

 

Nota sobre o autor
Paulo Roberto de Andrada Pacheco é psicólogo formado pela Universidade Federal de Minas Gerais e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto; desenvolvendo pesquisa na área de concentração de História das Idéias Psicológicas na Cultura Luso-Brasileira. Contato: paulopac@yahoo.com.br.

 

Data de recebimento: 20/08/2004
Data de aceite: 20/10/2004

Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/pacheco01.htm

 

 

 

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