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http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos08/ferreira02.htm

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Verdade e Desejo: a hermenêutica confessional como condição de surgimento dos saberes psi

 Truth and Desire: confessional hermeneutics as historical condition of the psychological sciences

Arthur Arruda Leal Ferreira
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Brasil
 

Resumo
Este trabalho busca caracterizar o surgimento da psicologia e da psicanálise segundo a malha conceitual apresentada na última fase do pensamento foucaultiano, condizente às práticas pelas quais os sujeitos tornam-se sujeitos de si mesmos. Trata-se das tecnologias ou técnicas de si, que são divisíveis em elementos como substância, askesis, práticas de si, e teleologia. A partir destes elementos, são distintos alguns sistemas éticos específicos, como uma ética pagã clássica; uma pagã tardia; uma cristã; e uma moderna. Para o surgimento dos saberes psi, Foucault avalia como crucial a ética cristã, a partir da invenção de uma nova substância ética, os nossos desejos, e de uma nova askesis, a hermenêutica de si. A meta deste pensador é mostrar que esta hermenêutica de si nada possui de universal ou necessário. Esta atitude de estranhamento de si será denominada ontologia histórica de nós mesmos, opondo-se à hermenêutica de si presente nos saberes psi.

Palavras-chave: história da psicologia; história da psicanálise; processos de subjetivação; tecnologias de si; pensamento foucaultiano.

Abstract
The aim of this study is to describe the birth of psychology and psychoanalysis according to the conceptual net of the last phase of Foucault´s thought. In this phase are considered the techniques, or the practices through which individuals become masters of themselves, which are divided into four elements: substance, askesis, practices of the self, and teleology. Considering these elements, Foucault described ethical systems: an Early pagan; a Late pagan, a Christian; and a Modern one. To explain the birth of the psi sciences, Foucault considers the Christian system as crucial, especially the invention of a new substance, our desires, and a new askesis: the hermeneutic of the self, which, according to Foucault, has no universal characteristic. This position, questioning all the supposed truths of ourselves, will be called historical ontology of ourselves, which is opposed to the hermeneutic of the self present in the psi sciences.

 Keywords: history of psychology; history of psychoanalysis; process of subjectivation; technologies of the self; Foucaultian thought

 

Introdução: Michel Foucault e o nomadismo no pensamento

A crítica foucaultiana à pretensão de unidade do discurso em função da noção de autor estabelecida em O que é um autor? (1992) talvez não encontre maior pertinência que na reunião de enunciados cunhados pela assinatura do próprio Michel Foucault. Quase impossível detectar um traço qualquer de permanência, que não seja o da constante ultrapassagem de um pensamento, que sempre apaga suas próprias pistas e produz novas evidências. Como se a essência do pensar pudesse ser constantemente se dis-pensar se re-pensar. Impossível falar em nome de Foucault, impossível Ser foucaultiano. Antes de se perguntar “Quem-Foucault?”, é necessário se perguntar “Qual-Foucault?”, na instantaneidade de um certo texto, no conjunto de forças momentâneas que atravessam os enunciados assinados com o seu nome. Daí que sob a máscara foucaultiana podemos encontrar o zumbido de um coletivo. A tarefa deste artigo será tentar captar um dos personagens que se escondem sob esta assinatura, e tentar delinear os possíveis diálogos que se fazem com a psicanálise e a psicologia.

Fica difícil portanto avaliar o conjunto de textos foucaultianos conforme um bloco, ou segundo um conjunto de princípios. Não é possível jamais reconhecer um sistema filosófico delineando os seus textos. Contudo, segundo Márcio Goldman (1998), persistiria ao longo dos trabalhos de Foucault: a) um modo de constituição de objetos, b) um procedimento de exame e c) um conjunto de objetivos.

 Quanto à constituição de objetos, Foucault, segundo Goldman, escreveria conforme Carmelo Bene em seu manifesto do menos, extraindo os personagens maiores da cena, e dando vida aos menores e coadjuvantes. É deste modo que este pensador procederia, retirando de foco, por exemplo, ciência e ideologia como eternos protagonistas, e introduzindo saber e poder (1).

No que tange ao procedimento de exame, o ponto de partida se encontra numa questão, ou numa luta presente. A partir daí, toma-se um determinado objeto em questão como a clínica, a prisão, ou a sexualidade, e dissolve-o em suas condições de possibilidade históricas, acontecimentalizando-o e lançando-o na singularidade de suas múltiplas causas. É deste modo que toda necessidade remontaria a uma contingência objetivada e rarificada ao longo da história.

Por fim, o seu objetivo, como se pode entrever, é político. Mas não no sentido de fornecer diretrizes, e sim instrumentalizando lutas. E isto seria realizado de três modos: 1) tornando crítico o que escapava à crítica através da historicização; 2) problematizando a própria luta, estabelecendo-a tão local e histórica quanto os seus alvos; 3) participando nas próprias lutas através da passagem pela alteridade e pela diferença.

O próprio Foucault sob o pseudônimo de Maurice Florence, escreve no Dictionnaire des philosophes (Paris, PUF, 1984) artigo sobre si próprio, em que destaca três atitudes de seu pensamento voltadas contra qualquer universal antropológico:

1) Evitar até onde se possa, para interrogá-los em sua constituição histórica, os universais antropológicos [...]

2) Inverter o movimento filosófico de ascensão em direção ao sujeito constituinte em que se pede que possa dar conta de qualquer objeto do conhecimento em geral; trata-se, pelo contrário, de se descer em direção ao estudo de práticas concretas nas quais o sujeito é construído na imanência de um domínio de conhecimento.

3) [...] São as práticas entendidas como modo de atuar e de pensar que dão a chave para a inteligibilidade da constituição correlativa do sujeito e do objeto (Citado por Morey, 1996, p.32).

 

Contudo, esta constante proposição de objetos, modos de exame e lutas faz entrever a existência de alguns períodos no pensamento foucaultiano baseado em alguns critérios como: 

1) A influência e parceria de alguns filósofos tomados por Foucault, especialmente Friedrich Nietzsche e Imannuel Kant.

2) Os seus alvos críticos: o positivismo, o humanismo-fenomenológico, o estruturalismo, o marxismo (a comunistologia), e a psicanálise.

3) O que afirma em cada período como alternativa: a literatura e o ser da linguagem, a revolução e os contrapoderes, a liberdade e a possibilidade de estranhamento de nossas formas de subjetivação.

4) A trama conceitual expressa nos principais objetos postulados: saberes e discursos (arqueologias), poderes e governamentalidade (genealogias), cuidados de si ou éticas (subjetivações).

 Através destes critérios é possível mapear cerca de dez períodos no pensamento foucaultiano,  sendo a atribuição dos cinco primeiros inspirada no texto de Roberto Machado, Ciência e Saber (1982):

a)    Um jovem Foucault, referindo-se ao período anterior aos escritos que o consagraram nos anos sessenta (cobrindo os anos de 1953 a 1960).

b)    Um arqueólogo da percepção, , referindo-se ao período próximo à publicação de A História da Loucura (cobrindo os anos de 1961 a 1962).

c)     Um arqueólogo da visão, referindo-se ao período próximo à publicação de O Nascimento da Clínica. (cobrindo os anos de 1963 a 1965).

d)    Um arqueólogo dos saberes, referindo-se ao período próximo à publicação de As Palavras e as Coisas (cobrindo os anos de 1966 a 1967).

e)    Um arqueólogo dos discursos, referindo-se ao período próximo à publicação de A Arqueologia do Saber (cobrindo os anos de 1968 a 1970).

f)      Um genealogista das formas jurídicas, referindo-se ao período anterior à publicação de Vigiar e Punir (cobrindo os anos de 1971 a 1973).

g)    Um genealogista do poder disciplinar, referindo-se ao período próximo à publicação de Vigiar e Punir (cobrindo os anos de 1974 a 1975).

h)    Um genealogista do biopoder, referindo-se ao período próximo à publicação de A Vontade deSaber (cobrindo os anos de 1976 a 1977).

i)      Um genealogista do poder pastoral, referindo-se ao período após à publicação de Vigiar e Punir (cobrindo os anos de 1978 a 1980).

j)      Um historiador das formas de subjetivação ou de cuidado de si, referindo-se ao período da publicação de Os Usos dos Prazeres e O Cuidado de Si (cobrindo os anos de 1981 a 1984).

Examinemos o último extrato do pensamento foucaultiano, buscando uma possível hipótese sobre o surgimento da psicologia e da psicanálise, sempre tendo em mente que, ao longo dos períodos anteriores, Foucault produziu outras hipóteses sobre o surgimento dos saberes psi.

 

A Ética de Si foucaultiana

Como tema principal desta rede conceitual se impõe a Ética, ou Cuidado de Si, ou Tecnologias de Si, ou ainda, o modo como nos constituímos sujeitos. Nunca é demais destacar que este tema, por sua historicidade nada tem a ver com a moderna investigação filosófica do sujeito como sede estática e universal do conhecimento. Contudo, a constituição deste tema histórico em Foucault possui também uma história. Pode-se dizer que Foucault passa do indivíduo passivo ao sujeito ativo governante de si nesta fase. Este tema do sujeito surge no final dos anos setenta, na confluência entre o tema do governo de si (e não mais dos outros) com o da sexualidade, enquanto campo privilegiado da busca da verdade de si (como presente na História da Sexualidade I, 1977). Nos textos iniciais desta fase (de 1980 a 1982), a sobreposição não sintetizada entre sexualidade e governamentalidade é bem patente, gerando este conceito não completamente integrado, que é o de subjetividade
(2). Somente nos anos finais deste período (1983-1984) é que Foucault transforma este governo de si (em que a sexualidade é apenas um de seus possíveis alvos e a verdade um de seus possíveis modos) em ética (3). Poder-se-ia pensar numa subdivisão em dois períodos menores nesta fase subjetivo-ética do pensamento de Foucault em função da renomeação e singularização do objeto de pesquisa, mas os últimos anos (1983-1984) nada mais são do que uma organização sistemática da pesquisa dos primeiros anos da década (1980-1982).

Se a pesquisa da subjetivação tem que ser distinta das abordagens epistemologizantes, a ética tem que ser separada do levantamento dos atos e códigos morais (4). Estes códigos agem ou determinando os atos que são permitidos e proibidos, ou determinando apenas o valor de uma conduta possível. De caráter meramente proibitivo ou prescritivo, teriam permanecido quase os mesmos desde a antigüidade, regulando a freqüência sexual, as relações extraconjugais e o sexo com os jovens (Foucault, 1995b, p. 265; 1984b, p.131). A Ética, ao contrário, diz respeito ao modo de relação consigo mesmo (conferir Foucault, 1995b, pp.254; 262-263). E seria composta de quatro elementos: 1) a substância ética (aspecto do comportamento que se encontra ligado à conduta moral: pode ser a aphrodisia grega, a carne ou desejo dos primeiros cristãos, a sexualidade moderna, a intenção kantiana ou ainda os sentimentos); 2) os modos de sujeição (formas pelas quais as pessoas são chamadas a reconhecer suas obrigações morais: pode ser uma lei natural, uma regra racional, a ordem cosmológica etc.); 3) o ascetismo ou prática de si (meios ou técnicas utilizados para nos transformarmos em sujeitos éticos, como a hermenêutica cristã); e, por último, 4) a teleologia (ou aquilo no que visamos nos transformar no contato com a moral: sujeito político ativo ou portador de uma bela existência conforme os gregos, sujeito purificado de acordo com o cristianismo, ou ainda o indivíduo autêntico para nós, modernos)(5).

Considerando estas categorias éticas, Foucault redelineia o seu projeto de uma História da Sexualidade (nome inadequado dentro dos novos propósitos), demarcando novos períodos históricos neste cuidado de si. A partir daí é possível vislumbrar: A) uma ética grega clássica, tendo como substância a aphrodisia (mais centrada na saúde e na alimentação do que sobre o sexo, visando especialmente a moderação), a sujeição como estético-política (levando a que o indivíduo busque se constituir através da justa medida como uma obra de arte), impondo, dentre as técnicas, a contemplação ontológica de si (trata-se de uma contemplação não-psicológica, pois o que estava em mira era a alma na universalidade das Idéias contempladas, nada pois semelhante à alma individualizada e pessoal) e, como teleologia, a maestria de si (ou domínio de si); B) uma ética greco-romana (correspondendo à antigüidade tardia), mantendo a mesma substância do período anterior, mas tendo como sujeição a imagem do ser humano racional e universal (6), o surgimento de várias técnicas de austeridade (as principais técnicas deste período são: a interpretação dos sonhos, o exame de si, a askesis e a escrita de si, todas enfocando o que se faz e não ainda o que se pensa) e tendo como finalidade um maior domínio de si (que não visa mais o governo dos outros através da política, mas o governo de si enquanto ser racional, buscando uma maior independência do mundo e a preparação para a morte); 3) uma ética cristã , tendo com substância a carne (enquanto ligação entre corpo e alma, conforme termo apresentado por São Paulo e retomado por Santo Agostinho), um modo de sujeição religioso ou legal (a lei divina), através de uma técnica de autodecifração hermenêutica (7), e visando teleologicamente a pureza (a busca de purificação, e seu corolário, a virgindade, passam a cobrir a estética de si) e a imortalidade em um mundo além. Apesar de Foucault não tratar de modo direto, poderia ser pensada uma ética moderna (8), a partir de algumas modificações da ética cristã, como a substituição do aspecto religioso pelo científico (mas ainda se mantendo o legal) quanto ao modo de sujeição, e a autenticidade ou afirmação do eu como thelos (onde antes se buscava a sua purificação e recusa), além da proposição de novas substâncias éticas, como os sentimentos e as intenções (Cf. Foucault, 1995b, p.263). Inclusive, antes dessa busca de afirmação do eu contemporânea, pode ter havido um esforço inicial da modernidade de se trabalhar esta subjetividade buscando a sua depuração do erro, notadamente em Descartes e nos primeiros físicos, como Galileu, gerando um inflacionamento e uma cisão desse espaço interior. Cisão entre uma sede da verdade (sujeito racional) e de uma fonte dos erros (sujeito empírico); inflacionamento dessa substância ética gerada no cristianismo, que se tornará objeto de culto e exame científico na modernidade contemporânea.

Os Saberes Psi e o Cuidado de Si

A partir deste balizamento, desenvolve-se nos trabalhos de Foucault uma hipótese clara sobre a gênese das psicologias e  da psicanálise: elas seriam oriundas de uma forma de subjetivação cristã
(9), a hermenêutica de si, que seria alvo do exame do quarto volume não concluído da História da Sexualidade: As Confissões da Carne. Não há mais referência ao sexo, ou do dispositivo da sexualidade. Para Goldman (1998, p.98), esta mudança se deve à primazia naturalizante do desejo tanto dentro do enfoque psicanalítico (como falta e lei), quanto do micropolítico de Gilles Deleuze e Félix Guattari (como positividade e produção). Como em ambos os casos o sexo seria um caso particular, não privilegiado do desejo, a genealogia de Foucault muda de objeto, ainda que o alvo crítico de Foucault continue a ser a psicanálise. A proximidade com nossa subjetivação psicologizada se daria na manutenção com poucas modificações de uma substância ética (o desejo), e de um modo de sujeição (a hermenêutica (10), visando o constante exame e confissão dos pensamentos mais recônditos) oriundos dos primeiros cristãos. As diferenças podem ser vistas na teleologia (a purificação ou a virgindade como finalidades cristãs) e na negação do eu própria dos primeiros cristãos.

Ao contrário dos primeiros cristãos, para os quais o eu é algo para ser examinado, mas igualmente renunciado, nós, modernos, constituímos um novo eu na sua vigilância e afirmação constantes através de uma ascese científica (e também legal e religiosa):

Ao largo de todo o cristianismo existe uma correlação entre a revelação do eu, dramática ou verbalmente, e a renúncia ao eu. Ao estudar estas duas técnicas, minha hipótese é de que a segunda, a verbalização, se torna mais importante. Desde o século XVIII até o presente, as técnicas de verbalização têm sido reinsertadas em um contexto diferente pelas chama-das ciências humanas para ser utilizadas sem que haja renúncia ao eu, mas para construir positivamente um novo eu (Foucault, 1996a, p. 94).

As ciências humanas, junto com a importância hegemônica do sujeito do conhecimento em filosofia, e com a educação cristã massiva proporcionam um predomínio atual do “conhecimento de si mesmo” sobre o “cuidado de si” de modo desproporcional (Foucault em sua Conferência de Toronto em 1982, citado por Morey, 1996, p. 37). Em oposição a este culto de si, a história nos oferta outros modos de subjetivação, como a estética da existência greco-romana, cuja exposição não possui qualquer valor propositivo que não o de abolir as investiduras universalizantes:

No culto de si da Califórnia, devemos descobrir o verdadeiro si, separá-lo daquilo que deveria obscurecê-lo, aliená-lo; decifrar o verdadeiro reconhecimento à ciência psicológica ou psicana-lítica, supostamente capazes de apontar o que é o verdadeiro eu. Portanto, não apenas não identifico esta antiga cultura de si com aquilo que poderíamos chamar de culto californiano do si; eu acho que são diametral-mente opostos (Foucault, 1995a, p.270).

Apesar destas poucas referências ao que seria o cuidado de si moderno e a conseqüente gênese dos saberes psi, pode ser buscado em outros períodos do pensamento deste filósofo elementos que completem este esquema. Em A Vontade de Saber (1977) Foucault destaca a passagem do dispositivo da carne do cristianismo primitivo para o da sexualidade no século XVIII, como base para a constituição de uma Sciencia Sexualis, em que, mantida a confissão de nossa mais íntima verdade através do sexo, esta passa a ser regulada pelos saberes científicos normatizadores e não mais pela lei ou pelo poder eclesiástico. Contudo, a modificação nos modos de sujeição com que realizamos a nossa hermenêutica de si, pouco nos informa do modo atual com que prescrutamos as nossas verdades mais íntimas. Se é verdade que este exame de nossa interioridade individualizada só é possível dos primeiros mestres cristãos em diante (de acordo com Vernant, 1990) até os dias de hoje, o nosso exame de consciência se modificou bastante.

Para considerarmos a nossa atualidade, será tomado outro texto de Foucault, As Palavras e as Coisas (1966), visando entender a constituição das ciências humanas. Estas são vistas como produto do círculo antropológico moderno, que tem o seu ponto de partida na constituição das ciências do homem (biologia, economia e filologia), que são assim designadas por tomarem pela primeira vez o homem como objeto empírico, enquanto ser que vive, trabalha e se comunica. Contudo, este homem como objeto empírico será duplicado em fundamento transcendental do conhecimento por algumas filosofias antropológicas modernas como os positivismos, as dialéticas e as fenomenologias. É deste modo que estas filosofias, na esteira crítica de Imannuel Kant, acabam por contradizer a sua principal lição, qual seja a da não mistura do nível empírico com o transcendental. Assim o homem torna-se ao mesmo tempo sujeito e objeto dos saberes, na medida em vive, trabalha e fala. Este círculo antropológico daria mais uma volta, quando as ciências humanas como a psicologia, a sociologia e a análise literária religariam as ciências do homem às filosofias antropológicas, estudando como a vida, o trabalho e a linguagem são representados pelos homens.

No estofo da nossa alma, o homem moderno buscaria não mais os signos do bem e do mal, mas os transcendentais-empíricos das ciências do homem (vida, trabalho e linguagem, além de outros mais que porventura surgiram, como os circuitos informacionais do cognitivismo), que dariam o sentido de nossas verdades e balizariam as nossas individualidades. Esse caminho no caso, é operado pela maior parte das psicologias, visando a passagem de nossa experiência vivida a um domínio fundamentante que a explica e a delimita a partir destes transcendentais-empíricos. É assim que a nossa subjetividade moderna cindida e inflacionada é reintegrada, ligando a nossa experiência consciente a um determinado fator transcendental que somente os cientistas humanos poderiam dar conta. É desta forma que encontramos o Inconsciente da Psicanálise, as leis da Gestalt e os invariantes funcionais do construtivismo piagetiano para além da nossa experiência consciente. Esta postura da maior parte das psicologias, Luís Cláudio Figueiredo (1986) designou como meta-psicológica. Mas, como situar o Behaviorismo, esta curiosa psicologia, que recusa a priori o nosso estofo psicológico da experiência vivida? Ele operará de igual modo neste trânsito da experiência vivida ao trans-fenomenal, mas em via inversa, pois partirá não do vivido, mas de um certo transcendental, a Vida em processo de adaptação, entendida como processo de adaptação ao meio através de condicionamentos. Para além do limite dos Behaviorismos Metodológicos, todo Behaviorismo penetrará no que se oculta por debaixo de nossa pele, enxergando aí dentro a mesma natureza do que se revela fora: comportamentos laríngeos e viscerais governados pelos princípios do condicionamento. É assim que são produzidos os “movimentos de nossa alma”, o “nosso vivido”. Nas palavras de Figueiredo (1986), teríamos aqui uma postura para-psicológica, ao partirmos do trans-fenomenal para o empírico. Mas independente da postura ou da direção são os transcendentais-empíricos da psicologia que nos dão uma natureza e nos determinam em nossas mais íntimas verdades, ligando a nossa experiência imediata (vivida) a uma mediata (científica). Que alternativas se impõem a esta hermenêutica de si que vinga do cristianismo primitivo até os dias de hoje, especialmente nos saberes psi?

 

A ontologia de si como alternativa

Foucault neste período reservará ao intelectual o papel de destruidor das evidências
(11), através do estranhamento do modo como nos constituímos sujeitos na atualidade (12), apontando para tal outros modos de subjetivação ao longo da história, como a estética da existência greco-romana, sem constituí-los como modelos para nós mesmos. A base para este pensamento será buscada em Kant, mas não através das grandes críticas, e sim a partir de um pequeno trabalho de 1874 denominado Was ist Aufklärung? (O que é o Esclarecimento?) (13). Foucault detecta que, ao mesmo tempo que Kant delimita suas próprias questões que irão conduzir a uma crítica do conhecimento, ou a uma analítica da verdade, por outro lado, ele irá problematizar a própria atualidade de sua tarefa crítica, abrindo uma reflexão sobre a história em sua atualidade, ou uma ontologia do presente, inédita até então. Se a primeira tarefa diz respeito a uma crítica transcendental, a segunda abre a possibilidade da crítica histórica, visando identificar o que nos é dado como universal e o que nos resta como contingente e arbitrário. Apesar da referência a Kant, Nietzsche (14), talvez mais do que qualquer pensador, tenha transformado esta problematização do atual em uma atitude própria da modernidade.

A finalidade deste processo seria a constituição de uma nova forma de liberdade, nem propositiva nem essencial ao homem, mas ao sabor das flutuações históricas: sabermos que sempre podemos ser outros, estranharmos as nossas figuras mais atuais. Esta seria a nova liberdade (15) trazida por Foucault para a filosofia segundo Rajchmann (1987) (16) e base para uma psicoterapia genealógica, de acordo com Hubert Dreyfus. Este autor (1990, pp. 227-229) propõe a genealogia como terapia histórica, considerando as ressonâncias  de Foucault com os trabalhos existenciais de Maurice Merleau-Ponty, Martin Heidegger e Ludwig Binswanger, em que ela se daria como compreensão da atualidade, de como nos tornamos o que somos e qual o preço que pagamos por tal, chegando-se à conclusão da contingência de nossos universais e da possibilidade de sermos outros.

Conclusão: um outro diálogo com os Saberes Psi

Sob o ponto de vista foucaultiano só nos restaria, a princípio, a caracterização dos saberes psi a partir da perspectiva crítica. Contudo, a sugestão de uma psicoterapia genealógica por Hubert Dreyfus (1990), enquanto problematização dos nossos modos de existência cotidianos, abre a possibilidade de um outro diálogo. Além desta proposta, de que outras maneiras esta ontologia histórica de si mesmo poderia ser encarnada na psicologia? Para Virgínia Kastrup (1999), a psicologia, em especial a cognitiva, segue apenas a via analítica de Kant, deixando intocada a senda histórica. É de resto uma tese isomorfa à de Eduardo Passos (1992), em que, ao dividir as psicologias entre as que seguem um modelo espacial e as que seguem outro temporal, denuncia a massiva opção da primeira alternativa em detrimento da segunda. Na verdade, pode-se enxergar uma carência dos modelos históricos na psicologia, uma vez que se circunscreva estes a uma concepção muito específica do tempo, como operam estes autores; trata-se aqui da noção de devir criativo e imprevisível, tal como se pode extrair das filosofias de Henri Bergson e Gilles Deleuze. Dentro desta concepção tão específica de tempo, pode-se de fato denunciar uma carência de trabalhos psicológicos que considerem a dimensão criativa do devir, ausência esta coberta por teses como as de Kastrup e Passos.

De igual modo, Foucault opta por uma via histórica, a da ontologia do presente, uma vez que ela remete a sua principal questão desta fase de seu trabalho: “como podemos nos tornar diferentes do que somos na atualidade?”. Parece que é a esta questão que o filósofo francês vê ligada a modernidade, e não a uma ontologia do tempo como devir criativo (17). E é esse estranhamento de si que ele propõe como alternativa mais potente a um modo de subjetivação hegemônico marcado pela hermenêutica de si, que persiste desde o início da cristandade, em que buscamos nos relacionar conosco através de uma verdade a ser desencavada a partir de nossa interioridade mais íntima. Enfim, o que Foucault nos aponta é a possibilidade não de nos acoplarmos a uma verdade, mas lançarmo-nos numa deriva de estranhamento de si, intensificando numa escala menor o descolamento que a história já nos revela numa escala maior. Aqui, uma alternativa possível para o nosso campo, tendo a história como ferramenta privilegiada.

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Rajchmann, J. (1987). Foucault: a liberdade da filosofia. (A. Cabral, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Livro original de 1985).

Vernant, J. P. (1990). El individuo en la ciudad. (I. Agoff, Trad.). Em P. Veyne e col. Sobre el individuo. (pp. 25-46). Barcelona: Paidós. (Colóquio de Royaumont de 1987, publicado em 1989)

Veyne, P. (1980). Como se escreve a história & Foucault revoluciona a história (I. Baltar & M. A. Kneipp, Trads.). Brasília: Unb. (Primeira publicação em 1978).

Notas
(1) Paul Veyne (1980) e John Rajchmann (1987) consideram como marca fundamental do pensamento foucaultiano o nominalismo realista, por não partir de unidades tradicionais de exame como ideologia, sujeito, estrutura, verdade, estado etc., sem contudo excluir estes universais, uma vez que eles são abordados como quase-objetos, constituídos historicamente através de práticas sociais raras e descontínuas.(volta).

(2) Foucault sob pseudônimo de M. Florence (citado por Morey, 1996, p.21) esclarece o que entende por subjetividade: “Se trata de uma história da ‘subjetividade’, se entendemos esta palavra como o modo em que o sujeito faz a experiência de si em um jogo de verdade em que está em relação consigo”. Contudo, a subjetivação transforma-se mais adiante em apenas uma das possibilidades de constituição de si: “Chamarei de subjetivação o processo pelo qual se obtém a constituição de um sujeito, mais exatamente de uma subjetividade, que evidentemente é uma das possibilidades dadas de organização de uma consciência de si” (Foucault, 1984b, p.137).(volta).

(3) Da passagem da subjetivação à ética, outras denominações também foram empregadas para designar a pesquisa desta época. Em primeiro lugar, desponta a história do pensamento, enquanto constituição do saber e de seus regimes de verdade (cf. Foucault, 1984c, p.75). Na transição entre o sujeito e a ética, despontam as tecnologias ou técnicas de si:(Cf. Foucault, citado por Morey, 1996, pp.35-36; cf. também Foucault, 1997b, p.109). De igual modo, cuidado de si é igualmente usado, ainda que se refira mais ao princípio de epimeleia heatou, próprio da antigüidade, para opô-lo ao “conhece-te a ti mesmo”, enquanto nosso imperativo ético atual desde a cristandade.(volta).

(4) A idéia inicial de Foucault era contrastar a moral sexual cristã com a da sociedade greco-romana da antigüidade, na suposta liberalidade desta. Mas acaba se deparando na antigüidade com os mesmos temas da austeridade cristã. A diferença não estaria nas regras de autoridade, mas nas diversas técnicas de si ou éticas (conferir Eribon, 1990, p.295; e Foucault, 1995b, p.254). (volta).

(5) O comportamento sexual, como uma parte deste conjunto, é visto conforme três pólos: ato – prazer – desejo, sendo cada um deles predominante ou elidido conforme a cultura em que se manifeste. Se o desejo é elidido pelos estóicos, entre os chineses, o ato é que é excluído.Dentre os cristãos, busca-se excluir o prazer, ao mesmo tempo em que se enfatiza o desejo na busca de erradicá-lo. Os atos estariam a serviço da concepção e do dever conjugal. Quanto a nós, modernos, o desejo é que é enfatizado,  desprezando-se os atos e ignorando-se o que é o prazer (Cf. Foucault, 1995b, p.268). (volta).

(6) Mas este princípio não implica a presença de uma verdade no sujeito que tenha que ser desvelada, mas pelo contrário, o governo de si implica o conhecimento do mundo e de sua verdade, transmitida através do mestre; a dialética grega cede à escuta como modo de conhecimento. Deste modo surge uma nova concepção de verdade: ela está na memória e não na alma; pertence ao mestre e não ao sujeito; este é apenas o ponto onde as regras se agrupam: “Aqui estamos muito longe do que seria uma hermenêutica do sujeito. Trata-se ao contrário, de armar o sujeito de uma verdade que não conhecia e que não residia nele; trata-se de fazer desta verdade aprendida, memorizada, progressivamente aplicada, um quase-sujeito que reina soberano em nós mesmos” (Foucault, 1997c, p.130; conferir também 1996a, pp. 68,71-72,73). (volta).

(7) O exame de si, ou da consciência, é tomado dos antigos com novas finalidades; não mais a descrição das ações em conformidade com as regras racionais e universais. O novo uso do exame da consciência se vale inclusive de técnicas consagradas entre os antigos, como os exercícios de verbalização entre aluno e mestre. Assim tem-se a exomologesis, dada na paradoxal expressão somática e simbólica dos pecados a fim de apagá-los (própria do cristianismo secular), e a exagouresis, exame da consciência por excelência realizado através dos princípios da contemplação de seus pensamentos, e da obediência ao diretor da consciência (Foucault, 1996a pp. 80-94). Trata-se neste último caso de uma prática cristã surgida no interior dos monastérios do final da antigüidade. (volta).

(8) Após a ascensão da cristandade, assiste-se a alguns exemplos de retorno da estética da existência. O primeiro no Renascimento, através da figura do herói como sua própria obra de arte, tal como descrito por Bukhardt (Foucault, 1995b, p.276). Outro exemplo presente na versão francesa deste artigo (1994b, p. 629), opondo a estética da existência dândi, calcada no prazer, às técnicas de si burguesas, calcadas no interesse. (volta).

(9) Um dos raros exemplos de práticas pré-cristãs que dariam ensejo à psicanálise pode ser encontrado em Epíteto em seus exercícios ascéticos (que visam um maior controle de si), notadamente os sofísticos (de perguntas, respostas e lição moral) e éticos (ou ambulatórios, verificando-se por exemplo as reações durante um passeio matinal). Em ambos os casos o objetivo é o controle das representações permitindo-se que se conforme às regras perante uma adversidade, não se buscando o deciframento da verdade. Para Foucault (1996a, p.78), ainda que não haja esta finalidade, constitui-se aqui “palavra por palavra uma verdadeira máquina de censura pré-freudiana”, num auto-exame permanente em que cada qual é o seu próprio censor. (volta).

(10) Um curioso mecanismo de reversão opera-se com a psicanálise. Se ela pôde se originar das práticas cristãs de prospecção do pensamento a fim de rastrear a presença do Inimigo em nosso espírito, hoje tem-se notícia de um novo manual de exorcismo, De exorcismis et supplicationibus quibusdam, expedido pela Congregação do Culto Divino do Vaticano, que recomenda o recurso à psicanálise em casos difíceis (cf. Caderno B do Jornal do Brasil, p.1. Rio de Janeiro, 28 de janeiro de 1999). A psicanálise, que já pôde, nas palavras de Freud, considerar-se uma peste para a civilização ocidental, e avessa a qualquer visão de mundo de natureza religiosa, torna-se um instrumento a mais, junto com a água benta, no combate ao mal em nossos corações. São capturas e reversões impossíveis de serem prevenidas. (volta).

(11) “Meu papel – e esta é uma palavra demasiado enfática – consiste em ensinar às pessoas que são mais livres do que sentem, que se aceita como verdade, como evidência alguns temas que têm sido construídos durante um certo momento na história, e que esta pretensa evidência pode ser criticada e destruída” (Foucault, 1996b, pp.142-143; conferir também 1984c, p.83). (volta).

(12) “Sem dúvida o objetivo principal hoje não é descobrir, mas recusar o que somos” (Foucault, 1995a, p. 239). De igual modo define esta atitude como “hiperativismo pessimista” (1995b, p. 256): “Minha opnião é que nem tudo é ruim, mas tudo é perigoso, o que não significa exatamente o mesmo que ruim. Se tudo é perigoso, sempre há algo a fazer [...] Acho que a principal escolha ético-política que devemos fazer a cada dia é determinar qual é o principal perigo” (este trecho da entrevista é modificado na tradução francesa de Foucault, 1994b, p.612, ao se referir a um otimismo conseqüente à ausência de uma idade de ouro e à necessidade de problematizar quem somos).(volta).

(13) Deve-se apenas observar que Foucault escreve dois textos sobre este trabalho de Kant (1984a e 1994a). Estes dois textos, além de algumas diferenças de conteúdo, possuem diferentes datas e locais de publicação. O primeiro, escrito em francês e publicado em 1984a, visa a relação entre filosofia e presente, enquanto que o segundo, redigido em inglês e lançado igualmente em 1984 (1994a) , foca a ligação entre sujeito e presente. Um bom texto de referência para tratar estas diferenças é o de Kastrup (1997, p.22). (volta).

(14) “Sonho com uma associação de homens absoluta que não conhecem nenhuma concessão e querem ser chamados ‘os destruidores’: aplicam a tudo a medida de sua crítica e se sacrificam à verdade [...] Não queremos construir prematuramente, não sabemos se poderemos construir e se não seria melhor nada construir” (Nietzsche citado por Halévy, 1989, p.140). (volta).

(15) “Isto não significa que tenhamos que eliminar o que chamamos de direitos humanos ou liberdade, mas que não podemos dizer que liberdade ou direitos humanos têm que se limitar a certas fronteiras [...]. Me parece que existem mais segredos, mais liberdades possíveis e mais invenções em nosso futuro do que podemos imaginar no humanismo, tal como está representado dogmaticamente de cada lado do leque político[...]” (Foucault, 1996b, pp.149-150). (volta).

(16) Rajchmann se refere a esta postura como heterotópica, em oposição à utópica, proveniente da noção clássica de liberdade, como marca inerente da natureza humana. A noção de heterotopia estaria em consonância com o nominalismo realista, uma vez que advinda da liberdade produzida pela ausência de qualquer objeto transhistórico, como por exemplo, a natureza humana. (volta).

(17) No período genealógico, Foucault chega inclusive a desdenhar este tema: “A partir de Kant, cabe ao filósofo pensar o tempo. Hegel, Bergson, Heidegger. Com uma desqualificação correlata do espaço, que aparece do lado do analítico, do conceitual, do morto, do imóvel, do inerte. Lembro-me de ter falado, há uns dez anos, destes problemas de uma política dos espaços e de me terem respondido que era bastante reacionário insistir tanto sobre o espaço e que o tempo, o projeto, era a vida e o progresso. É preciso dizer que esta censura foi feita por um psicólogo – verdade e vergonha da filosofia do século XIX” (Foucault, 1982, pp. 212-213). (volta).

 Nota sobre o autor
Arthur Arruda Leal Ferreira
é Professor Adjunto do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil), Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica da São Paulo (Brasil) e pesquisador financiado pela FAPERJ & FUJB. Contato: Rua do Riachuelo 169/405. Rio de Janeiro – RJ, Brasil. CEP: 20.230-014. E-mail: arleal@superig.com.br

Data de recebimento: 06/03/2005
Data de aceite: 29/04/2005

Memorandum 8, abr/2005
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos08/ferreira02.htm

 

 

 

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