Mahfoud, M. (2005). Formação da pessoa e caminho humano: Edith Stein e Martin Buber. Memorandum, 8,  52-61. Retirado em  /   /  , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos08/mahfoud02.htm

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Formação da pessoa e caminho humano:
Edith Stein e Martin Buber

 Formation of person and human path: Edith Stein and Martin Buber

 Miguel Mahfoud
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
 

Resumo
O presente artigo apresenta uma comparação entre a elaboração da essencialista Stein e do existencialista Buber apontando especificidades mas também elementos fortemente convergentes, embora traçados por caminhos independentes, a respeito do constituir-se pessoa. Stein identifica a formação propriamente humana e discute o problema de seu princípio formativo na própria pessoa e de sua relação com ambiente cultural. Buber identifica um itinerário de crescimento no sentido de a pessoa atingir a autenticidade e o destino humano. Para Stein, o mundo espiritual que plasma toda a realidade criada se enriquece por meio de sujeitos que contribuem coerentemente com sua própria estrutura pessoal. Para Buber, essa mesma contribuição autêntica, se dirigida ao absoluto a partir de cada condição limitada e circunscrita, possibilita a realização da pessoa de modo que a história cósmica dá mais um passo em relação ao seu sentido de ser.

Palavras-chave: Edith Stein; Martin Buber; pessoa; formação humana.

Abstract
The present article presents a comparison between the elaboration of the essencialist Stein and the existentialist Buber pointing their specificities but also strongly converging elements, although reached through distinct ways, regarding the constitution of person. Stein identifies the human formation and discusses the problem of its formative principle in the person in the relationship with its cultural environment. Buber identifies an itinerary of growth in the sense that the person reaches autheticity and human destiny. For Stein, the spiritual world that shapes created reality is enriched by subjects that contribute coherently with their own personal structure. For Buber, this same authentic contribution, if directed towards absolute from each limited and circunscribed circumstance, allows for the realization of the person in the sense that cosmic history takes one more step regarding its very sense of being.

 Keywords: Edith Stein; Martin Buber; person; human formation.

“Viena do final do século” – a expressão continua designando um movimento intelectual de grandes repercussões na passagem do séc. XIX para o XX: na ruptura com a tradição filosófica objetivante, o pensamento já não pode prescindir do sujeito. (Baccarini, 2002).

De Franz Brentano com sua “Psicologia do ponto de vista empírico” derivam pelo menos três grandes correntes: (a) a de Freud com seu sujeito submetido a impulsos inconscientes, (b) a da Escola da Gestalt com seu sujeito intencional submetido a precisas leis de percepção e constituição do mundo, (c) e também a de Edmund Husserl que como anti-idealista propõe uma filosofia da essência fundamentada no mundo assim como vivido pelo sujeito, filosofia esta sempre voltada às coisas mesmas em sua constituição intersubjetiva (superando a mera conceituação ou a mera subjetivação).

Afirmando esta ultima corrente, como fenomenologia essencial, realista e personalista, amadurece a contribuição de Edith Stein (cf. Ales Bello, 2000, 2003).

Paralelamente a esses movimentos culturais, na contraposição às posturas objetivante e idealista, Rosenzweig e Ebner propõem a subjetividade dialógica e a filosofia do existente. É sob a influência destes que Martin Buber (1923/2004) chega a formular que só existe o eu da relação Eu-Tu: aquela que faz do homem um homem.

Temos então Edith Stein fazendo, em geral, uma fenomenologia essencial, análises fenomenológicas particulares e detalhadas para mostrar os traços fundamentais de cada objeto de pesquisa – freqüentemente a pessoa humana – buscando respostas a problemas concretos mais do que a questões conceituais; e enunciando teses somente quando os fundamentos chegam a ser clarificados na vivência (cf. Ingarden, 1987). Por outro lado, temos Martin Buber fazendo uma filosofia existencial que para chegar a falar do homem enquanto tal se contrapõe ao essencialismo, afirmando se ocupar “de ti e de mim, da nossa vida e do nosso mundo e não de um Eu em si ou de um ser em si” (1923/2004, p.60).

Stein e Buber: ambos judeus, filhos de seu tempo e por isso fortemente interessados na centralidade do sujeito humano para a constituição do conhecimento em geral e do processo histórico. Ambos, admiradores das grandes expressões culturais (especialmente literárias). Ambos, marcados por um horizonte universal ao mesmo tempo em que estão empenhados na condição cultural, social e política circunscrita à qual pertencem. De fato, ambos inicialmente foram estudar Psicologia e Germanística, ambos em seguida se dirigiram à Filosofia chegando logo a dar contribuições muito significativas afirmando a intersubjetividade como fundante do mundo humano. A concepção do sujeito intencional e inter-relacional foi assumida por ambos como caminho para um juízo crítico em relação aos movimentos sociais e políticos de seu tempo, de tal modo que a Filosofia se constituía como contribuição a lutas políticas muito precisas. Não hesitaram, cada um em seu preciso contexto, em se envolver com movimentos sociais e políticos na defesa da dignidade da própria condição a que pertenciam afirmando a necessária abertura ao outro: uma em movimentos políticos e feministas (Stein, 2002); o outro, no movimento sionista. Em 1920 Stein lança seu “Psicologia e Ciências do Espírito” enfrentando temas fortes numa sociedade que sustentava o avanço do movimento nazista: as possibilidades de se influenciar as vivências humanas, as possibilidades de resistência na dimensão espiritual, de modo tal que a liberdade seja possível; a diferença entre comunidade e massa, identificando a ontologia do indivíduo e das diversas formas associativas. Em 1922-23 Buber lança seu “Eu e Tu” numa crítica à eliminação do outro tida como um bem para a humanidade por parte do nazismo em ascensão, e numa crítica à afirmação da própria identidade de modo separatista, por parte dos judeus sionistas. Assim, tanto Stein quanto Buber colocam sua contribuição filosófica como possibilidade de crítica e de enfrentamento dos grandes temas culturais e políticos de seu tempo, identificando elementos nucleares para que o homem seja homem. Em cada uma daquelas duas obras já estava presente uma semente – facilmente confundida com o solo onde repousa, portanto freqüentemente não considerada –: a experiência religiosa como uma radicalidade das experiências ali examinadas.

A partir daquele momento, de fato, cada um deles torna mais aguda a própria posição. Seja no sentido da crítica (Buber enfatiza que os judeus pertencem também à cultura germânica, Stein publica “Pesquisa sobre o Estado”), seja no sentido de dedicarem-se a temas religiosos como fundamentais para os próprios objetivos filosóficos e como orientadores do posicionamento político e existencial (Stein, convertida ao catolicismo, dedica-se a traduzir Newman e Tomás de Aquino; Buber inicia uma tradução da Bíblia hebraica para o alemão). Em 1933 a perseguição aos judeus se acentua: Husserl é proibido de deixar a Alemanha; Buber, crítico do sionismo, fortalece a resistência ao nazismo; enquanto Stein, radicalizando sua postura de busca da verdade, da essência, apreendida na vivência e na pertença, oferece sua vida pelo povo judeu tornando-se monja carmelita, continuando suas pesquisas filosóficas (a partir de 1934) (cf. “Ser finito e Ser eterno”, entre outras). Em 1938, as perseguições raciais se intensificam por parte dos nazistas: Buber deixa a Alemanha e “sobe” a Jerusalém; Stein “sobe” mais alto seu Monte Carmelo transferindo-se para o Mosteiro de Echt, na Holanda. Em 1942, enquanto Buber publicava sua obra sobre o profetismo na contemporaneidade como paradigma interpretativo da vida intelectual (“A fé dos profetas”), Stein é capturada e morre no campo de concentração de Auschwitz. Finda a Segunda Grande Guerra, Buber permanece em Jerusalém trabalhando por boas relações entre hebreus e árabes, continua seu trabalho filosófico enfatizando as múltiplas e necessárias relações entre homem, Deus e história (“O problema do homem”, 1948; “A mensagem hassídica”, 1952, “O eclipse de Deus”, 1953); conclui sua tradução da Bíblia em 1962. Em 1965, em Jerusalém, Buber morre num sábado.

Confrontando dois textos que esses nossos autores nos legaram sobre o processo de tornar-se propriamente humano, queremos – identificando consonâncias e dissonâncias – chegar a apreender também a característica atuação filosófica de cada um deles. Para tanto analisamos o texto “Sobre a idéia de formação”, conferência proferida a professores por Edith Stein (1930/1999) (1) em 1930 e o texto “O caminho do homem” de Martin Buber (1948/1998) (2), também este originariamente uma conferência de 1947, também a partir de sua pertença religiosa, ou seja, a tradição hassídica.

Os textos escolhidos vêem à luz num momento de produção intelectual particularmente significativo no percurso de cada um dos autores: momento de síntese de um caminho filosófico já constituído, em que os resultados atingidos são oferecidos a um público mais vasto como contribuição a movimentos culturais, sociais e políticos. Neste sentido, o texto de Edith Stein se coloca como crítica às propostas educativas em voga, apoio à educação católica, e testemunho da racionalidade da catolicidade por parte de uma filósofa já de fama internacional. O de Martin Buber surge no pós-guerra frente ao fracasso de várias imagens que o homem formulou sobre si mesmo, enquanto escrevia seu livro “O problema do homem”, tematizando o que seria propriamente humano.

O texto “O caminho do homem” (Buber, 1948/1998) tem como subtítulo “segundo o ensinamento hassídico”. De fato, trata-se de um conjunto de comentários de Buber a contos hassídicos tendo em vista identificar um itinerário de crescimento no sentido de atingir a autenticidade e o destino humano. Todo o percurso proposto pelo autor começa justamente com a pergunta “Onde você está nesse caminho que deve percorrer ao longo de sua vida?”, provocando cada pessoa a um decisivo retorno a si mesmo, isto é, um reconhecimento de uma inautenticidade e de uma responsabilidade para com a própria existência. O tremor do centro do próprio ser é o início de ruptura de um mecanismo de esconderijo, de um beco-sem-saída estruturado pela renovada fuga do auto-exame e pelo sufocamento da suave voz que vem do centro de si mesmo. Voltar-se para si mesmo sem prospectar um retorno à autenticidade, sem que nasça um ardente desejo de o próprio eu vir à tona, faz com que o homem mergulhe na aflição e continue a viver somente em virtude do “orgulho da perversão” (p. 24).

O segundo passo é o de reconhecer que o caminho iniciado é totalmente particular, pessoal, de modo que não se trata de dizer a alguém como percorrê-lo ou de imitar alguém (por maior que seja o seu exemplo). Trata-se, antes, de conhecer para qual caminho o seu coração o atrai e depois escolhê-lo com todas as suas forças. Com cada homem vem ao mundo algo que nunca existiu: a cada um cabe dar corpo a essa unicidade e irrepetibilidade. Cada um encontrará o próprio caminho dirigindo a força do sentimento despertado no mais íntimo do próprio ser diante daquilo que promete preenchê-lo. Do ocasional ao necessário, do relativo ao absoluto: a tomada dessa direção pode ser interrompida pela alternância de tendências e disposições ou por titubear no passo empreendido. O esforço e a ascese, por si mesmos, não são capazes de criar unidade na pessoa. Só uma alma unida (inclusive com seu corpo) pode realizar um gesto unitário, realizando obras unitárias, que gerem, por sua vez, unidade no sujeito. Recolher a alma fragmentada e redirigi-la à meta pessoalmente reconhecida é tudo o que o homem pode fazer; e na medida em que se dirige ao absoluto, a unidade vai se reconstituindo renovadas vezes, tornando-se sempre mais constante. O homem pode se unificar porque no mais íntimo da alma há, subjacente, a força divina. No homem de alma unificada, corpo e espírito estão como que fundidos um ao outro.

Mesmo diante das tão freqüentes dificuldades de relacionamento, Buber indica que o problema é a unidade da própria pessoa: pensamento, palavra e ação. Somente a atenção à totalidade pode levar a uma transformação em termos de unidade em si e entre as pessoas. É preciso considerar todos os pontos, não separadamente, mas em sua conexão vital. Para tanto, ou se começa de si mesmo ou se bloqueia qualquer solução possível. Inclusive a compreensão de motivações dos conflitos podem desresponsabilizar e então dispersar e manter a inautenticidade. Partir de si mesmo não significa partir do eu óbvio de um indivíduo egocêntrico, mas partir do profundo da pessoa que vive no mundo. Trata-se então de começar de si sem que a meta seja si mesmo; conhecer a si mas não se preocupar consigo mesmo. Essas auto-referências, esses sublimes orgulhos dissipam a força do ânimo a ser utilizada na ação no mundo. Trata-se da realização de tarefas particulares, próprias de cada homem. Voltar-se a si mesmo é só um caminho para a realização que implica na transformação da criação através da ação dirigida ao absoluto. Cada alma humana está a serviço de um processo de transformação da criação em Reino de Deus. (Está aí a origem do estranhamento de Buber e de seu eventual distanciamento de um certo cristianismo que fixasse uma meta individual e interior). Voltar-se para fora, com o orgulho redimido, tem também sua regra: respeitar o mistério da alma do outro, abstendo-se de penetrá-lo com indiscrição ou de utilizá-lo para os próprios fins. Mesmo na vida com o mundo é preciso guardar-se de tomar si mesmo como fim.

A condição concreta em que vivemos quotidianamente e os relacionamentos que ela nos traz são a possibilidade concreta de vitalidade, de uma água de vida que irrigue a alma. É na autenticidade do relacionamento com essa realidade concreta e circunscrita que pode se dar a orientação ao infinito pela intenção da ação; e então coisas, pessoas e nós próprios somos introduzidos a uma existência mais autêntica. Tudo tem um significado secreto, tudo tem uma essência espiritual secreta que precisa de nós para atingir a forma perfeita, precisa de nós para se realizar. Ao descuidar de estabelecer um relacionamento autêntico, pensamos somente nos objetivos que estabelecemos de antemão. Ao contrário, trata-se da grande oportunidade supra-humana do gênero humano.

Em “Sobre a idéia de formação” Edith Stein (1930/1999) discute inicialmente diversas possibilidades de compreensão do conceito de formação, no sentido geral. Formar significa plasmar uma matéria de modo a criar uma imagem: a autora então se interroga sobre o problema do modelo (fôrma, forma externa a ser imitada ou modelo na mente de quem plasma) inerente ao processo e também sobre o problema de os vários tipos de matéria caracterizarem processos distintos (com possibilidades e limites característicos) chegando à formação do homem, entendida como educação.

Apoiada na filosofia aristotélico-escolástica, Stein classifica as matérias como inanimadas (matéria bruta e objetos) e animadas (diferenciando plantas, animais e ser humano) analisando (a) a característica modalidade de se deixar forjar de cada uma delas, (b) a questão da origem da ação plasmadora característica de cada tipo de matéria e (c) o problema do modelo pertinente a cada matéria específica.

Tomada no âmbito da experiência vivencial, toda matéria tem já sua forma e também disposição a receber novas formas.

As plantas também são de natureza material mas o que as caracteriza é que nelas se dá uma ação plasmadora desde o interior, transformando-se autonomamente: há nelas um princípio vital tradicionalmente chamado de “alma vegetativa”, que torna possível um processo pelo qual assumem em si as substâncias úteis que as circundam e as elaboram, formando a matéria, organizando-a, constituindo o organismo (forma variante articulada e, no entanto, unitária). As possibilidades de transformação estão ligadas necessariamente a seu princípio vital, ou o organismo se destruiria; e não se pode conseguir nada que não esteja já inscrito na própria planta. Influências (naturais ou ações planejadas) conferem formas variadas, no sentido que podem levar a assumir esta ou aquela variedade.

Quanto à matéria animada dos animais, é possível uma ação puramente externa (tosar uma ovelha, por exemplo), e também intervenções mais profundas – com oportunas condições de vida – que influenciem o processo de crescimento. Mas o que caracteriza a alma animal é que além das funções vegetativas, ela pode dispor da matéria através do próprio corpo, buscando ou evitando substâncias. Isso evidencia uma capacidade de perceber o que é útil ou nocivo: sendo uma alma cinética e sensitiva, pode-se falar em vida psíquica (com alternância de estímulos e reações); e apresentando características diversas segundo cada espécie, pode-se falar em estrutura psíquica. No caso dos animais, no processo formativo a força interior visa dar à alma e ao corpo a forma a eles destinada. Influências podem alterar o comportamento externo (adestrando) ou variar até mesmo o processo formativo interior, co-determinando a estrutura psíquica (domesticando; domando) podendo-se falar em formação psíquica propriamente dita. No caso dos animais a margem de influência é então bem maior se comparada ao da matéria inanimada ou das plantas; mas há também um limite característico: o próprio animal pode oferecer resistência.

A matéria animada humana é unidade de corpo e alma. A alma que a caracteriza, alma intelectiva, é espírito: tem existência própria e superior à do corpo: percebe o que acontece e o que acontecerá a ele, o governa e substancia o corpo de si mesma. A alma intelectiva deve constituir, formar e governar a si mesma e contemporaneamente construir um mundo no qual ela possa viver e operar: seu ambiente é um mundo espiritual. Também esta alma precisa de material constitutivo, de natureza espiritual. O ânimo (conjunto de afetos e sentimentos) percebe o valor dos objetos e assim os absorve ou não utilizando sentidos e intelecto. Assimilando material constitutivo espiritual a alma cresce, se enriquece, se amplia e ao mesmo tempo cresce o mundo que ela explora discernindo. Quando acontece assim, pode-se falar em educação. Nela há formação do ânimo e formação da pessoa inteira, do homem uno, corpo e alma. No caso do homem, a forma interior visa modelar o corpo e a alma segundo o próprio arquétipo.

Um elemento de vida espiritual contido num objeto cultural (produzido pelo espírito humano) é apreendido pela alma e ganha vida naquele relacionamento. A pessoa (e isso é ainda mais evidente na criança) se encontra num mundo de pessoas e de bens espirituais pelos quais a vida flui a ela. Mas cabe a cada um decidir sobre o funcionamento do intelecto (se e como), quanto ampliar o mundo espiritual, o quê dos elementos culturais acolher em si mesmo.

O intelecto, pode ser passivo (absorvendo sem tornar próprio) ou ativo (elaborando a riqueza espiritual, pelo instrumento da vontade).

A alma, no seu íntimo, por ser profundamente associada ao corpo, opera regeneração e fluxo de energia – não por efeito de bens espirituais do mundo externo, mas por um princípio formativo.

Além de receber e crescer, a alma humana tem condições também de organizar o que vai assumindo e se estruturar, se formar, fazer de si uma forma e com-formar-se a uma imagem, e intervir no modo formativo do mundo externo.

Se a alma se forma assim, resulta harmonicamente formada e há quietude, limpidez, paz. Com a nutrição espiritual ela assume o estímulo à ação: sente-se levada a fazer com que a própria essência, aquela que interiormente a plasma, demonstre a própria eficácia no exterior, em atos e obras que a testemunhem: é uma parte essencial da personalidade. (Pode-se treinar dotes práticos e criativos, traduzidos em habilidades concretas, para orientando as ações para o externo, possibilitando essa finalidade). Aqui, então, forças exteriores e interiores cooperam juntas para a formação.

Assim, auto-educação só pode ser entendida no sentido de a própria pessoa colocar em ação as forças a serem amestradas, sem, no entanto, excluir a participação de outros, pois a educação não pode depender somente de quem é educado.

Para todo esse processo é necessário um bom material e que seja acessível para a pessoa. Sem material formativo adequado a ela não pode acontecer a formação para a qual, por natureza, ela é dotada. O ser humano é confiado a outros seres humanos que podem e devem levar a ele materiais dos quais sua formação necessita.

Não há material formativo tomado do âmbito cultural ou pessoal de algum educador que possa mudar a natureza de um ser humano: pode somente contribuir a fazer com que ele tome uma ou outra característica dentre suas possíveis direções no processo de formação. O processo evolutivo depende de uma integração de múltiplos fatores externos, internos e do livre arbítrio das pessoas: seu êxito é imperscrutável.

Quanto à imagem segundo a qual plasmar o ser humano, uma íntima determinação pode se tornar evidente ao próprio sujeito somente quando ele passa a operar sobre si mesmo. Há sempre o perigo de processos imitativos em que o sujeito aspira algo que não é parte do projeto traçado pela sua própria natureza. Portanto, uma autêntica educação se dá somente à medida que aponta para traços humanos gerais, adquiríveis por todo ser humano, ou então quando conta com uma autêntica afinidade entre naturezas. A quê cada homem é destinado nunca é plenamente percebido; mas Deus colocou no íntimo de cada pessoa um anseio pelo próprio destino. Cada criatura porta consigo uma visão imperfeita da imagem divina à qual nos assemelhamos. Esta visão se dá de modo mais completo no mais completo Filho: devemos assumir em nós o quanto podemos desta imagem, de modo que se faça forma íntima e nos plasme desde o íntimo. Devemos também procurar compreender o projeto que nos sustenta, e aquele das pessoas a nós confiadas como educandos. Mas teremos segurança inefável sobre isso se colocarmos todos na mão dAquele que sabe o que será de nós e que tem poder para nos conduzir a nosso destino desde que tenhamos boa vontade.

Por análises próprias, com métodos próprios, segundo suas próprias tradições culturais e religiosas, Buber e Stein chegam a afirmar a unidade da pessoa em sua constituição corpo-alma, e nisso a sua originalidade como indivíduo único e irrepetível mas também portador de uma originalidade no mundo criado e no mundo espiritual. Para ambos os autores a pessoa tem um núcleo central de onde emana a verdade de si mesmo, um centro a ser ouvido, conhecido, acolhido como fonte de autenticidade, como portador de uma verdade sobre a pessoa a ser revelada, como portador de uma estrutura da pessoa a ser respeitada e favorecida. Para Stein, o mundo espiritual que plasma toda a realidade criada se enriquece por meio da contribuição de sujeitos que contribuem autenticamente, originalmente, coerentemente com sua própria estrutura pessoal, que se forma adequadamente à imagem conservada no íntimo da alma. Para Buber, essa mesma contribuição autêntica, se dirigida ao absoluto a partir de cada condição limitada e circunscrita possibilita a realização da pessoa que vive já em relação dialógica com o mundo humano e toda a realidade criada, de modo que a história cósmica é que dá mais uma passo em relação ao seu sentido de ser através do posicionamento autêntico de quem dá passos no próprio caminho humano: o Reino de Deus vai sendo construído com a contribuição do homem que retoma a si mesmo ao sair da inautenticidade; redimido, dirige-se ao outro, e com sua ação intencional dirige tudo ao absoluto.

Aqui se insinua a grande diferenciação entre Buber e Stein. Para o judeu, o motor da história pessoal e cósmica pode entrar em ação pelo despertar-se contínuo da responsabilidade do homem que se reconhece inautêntico mas aceita a provocação que advém da dor de sê-lo, e do íntimo de seu coração emerge um projeto pessoal a ser obedecido, uma palavra suave e misteriosa que permite a integração na História que conduz toda a humanidade para uma realização cósmica no Absoluto. Para a judia-católica o íntimo da alma tem poder formador sobre o próprio sujeito e é garantia de auto-realização porque ligada a uma imagem autêntica, já estruturalmente. Para esta, o processo formativo depende do movimento do sujeito, mas inevitavelmente também da matéria que é oferecida à pessoa para seu processo ativo de assimilação, pelo qual vem a plasmar e constituir o seu próprio ser em corpo e alma; contando com o centro pessoal como séde fundante do ser pessoa na medida em que oferece uma imagem autêntica. Mas sobretudo, o que de mais importante pode ser oferecido para a formação da pessoa, segundo Stein, é a possibilidade de conhecer a correspondência humana experimentada na relação com o Filho de Deus que entrou a fazer parte da história dos homens, de modo tal que sua presença plasme o íntimo da alma que passará a plasmar toda a pessoa, toda sua atividade espiritual, toda relação social, contribuindo a constituir uma cultura marcada por uma certa correspondência com o humano que só algo divino pode proporcionar.

Przywara (1956, 1968, 1995), o filósofo que teve a oportunidade de acompanhar a ambos – Edith Stein e Martin Buber – sublinhou a presença de analogia entis também na obra de Stein. De fato, pode-se identificar o traço agostiniano “Deus dentro de nós e acima de nós” associado a traços tomistas – estes assumidos explicitamente no texto examinado – na objetividade da presença do divino na realidade histórica e circunstancial. Przywara (1956) valorizou o essencialismo radical de Stein e evidenciou como o existencialismo radical também poderia levar à concepção do homem como capaz de Deus e a uma metafísica dentro das relações sociais e condições existenciais. Podemos afirmar o mesmo também no caso de Martin Buber, que do hassidismo aprende a reconhecer uma eficácia da ação humana sobre o destino de Deus que quis entrar em uma relação de recíproca realização na história de Israel.

Tudo isso vem a se confirmar quando confrontamos com a concepção de filosofia em sua relação com a religião que cada um dos nossos autores chega a explicitar. Para Stein (1997; cf. Vanni-Rovighi, 1954) não se trata de reunir filosofia e teologia para constituir uma metafísica (como Przywara desejava) mas de favorecer uma abertura à totalidade tendendo à unidade, constituir um saber que abrace a totalidade, aceitando questões teológicas para serem examinadas filosoficamente. Vemos aqui uma consonância com a análise steiniana do processo de formação baseada principalmente na ação do sujeito que se abre ao que lhe é oferecido, a ser consultado, avaliado e oportunamente assimilado, e nesse processo assimilar o próprio Deus para sua realização e para a participação mais plena na história. Também no que se refere a Buber (2002; cf. Ricci-Sindoni, 2004), que coloca sua filosofia existencial a serviço da provocação de todo homem para assumir uma posição de maior autenticidade e assim participar da missão histórica própria do Povo de Israel na transfiguração de toda a realidade, no avanço do caminho humano no seu conjunto através do avanço do caminho de cada homem.

Tais consonâncias testemunham, por um lado, a raiz comum hebraica de nossos autores que mantêm a tensão entre o indivíduo e suas relações intersubjetivas constitutivas, entre o circunstancial e o histórico. Mas parece-me mais interessante que tais consonâncias tenham surgido de análises metodologicamente distintas, o que vem a confirmar, por um lado, a validade e a profundidade de ambos os métodos no que se refere à formação da pessoa em sua complexidade; por outro lado, vem a confirmar também a validade dos resultados atingidos pelos autores.

As referidas distinções apontam para a contribuição própria do cristianismo (com sua elaboração aristotélico-escolástica) que chega a oferecer fundamentos mais explicitados sobre o dinamismo essencial do processo de formação humana. Sem perder a tensão de responsabilidade para com os sujeitos concretos, oferece critérios para avaliação de processos educativos e relacionais, possibilitando responsabilizar tanto educandos quantos educadores, provocando o respeito pela liberdade de cada pessoa e pelo Mistério que envolve todo o processo.

Em “O intelecto e os intelectuais” Edith Stein (1931/2003) afirma que quanto mais nos elevamos no trabalho intelectual, mais participamos da comunidade humana; e que aquele que chega essa completude, ainda que não ocupe cargos políticos, torna-se guia para seu povo e para a humanidade. Estamos diante de dois grandes guias. Cabe a nós, agora, acolher a provocação à autenticidade de tão grandes testemunhos de vida oferecida e realizada. Cabe a cada um de nós acolher com certeza racional algo do Mistério que chega a nos tocar pela produção intelectual, pela força espiritual e pela vida oferecida por Martin Buber e Edith Stein.

 
Referências bibliográficas

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Notas

(1) Há uma tradução desse texto ao espanhol: Stein, E. (2003). Sobre el concepto de formación. Em E. Stein. Obras completas. v.IV: Escritos antropológicos y pedagógicos. (F.J. Sancho e col., Trad.s). (pp. 177-194). Vitoria: Ed. El Carmen; Madrid: Ed. de Espiritualidad; Burgos: Ed. Monte Carmelo.(volta).

(2) Há uma tradução desse texto ao castelhano incluída em Buber, M. (2004). El camino del hombre. Buenos Aires: Altamira.
Uma tradução ao inglês é
Buber, M. (2002). The way of man. London: Routledge.
(volta).

 

Nota sobre o autor

Miguel Mahfoud é doutor em Psicologia Social, professor adjunto do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, atuando na linha de pesquisa "Cultura e subjetividade". Contato: Caixa Postal 253 - CEP: 31270-901 – Belo Horizonte – MG – Brasil. E-mail: mmahfoud@fafich.ufmg.br

Data de recebimento: 15/12/2004
Data de aceite: 22/04/2005

Memorandum 8, abr/2005
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos08/mahfoud02.htm

 

 

 

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