Apresentação

A Marcelo Pimenta Marques (in memoriam) e a Jacyntho Lins Brandão

O tempo parco, o mundo movediço e mágico.
Seu dever é ver, extrair, extricar, içar, levar a lar.
Sim, aqui os dois, nidulantes, não cessam, os filhos da delicadeza.
(João Guimarães Rosa, Uns inhos engenheiros, in Ave, Palavra)

Bem-vindos/as ao VIII Simpósio Internacional de Estudos Antigos: Sócrates, Eurípides, Aristófanes e Nietzsche – diálogos interdisciplinares, sob os auspícios de Dioniso.

O Simpósio é uma atividade bienal da Linha de Filosofia Antiga e Medieval do Departamento de Filosofia da UFMG e será realizado de 2 a 4 de fevereiro de 2022, em formato virtual (via plataforma Zoom). É uma atividade gratuita e aberta a todos os interessados.

O tema escolhido contempla uma aproximação complexa entre Sócrates e Eurípides, estabelecida pelo filósofo Friedrich Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, em parte seguindo os irmãos August e Friedrich Schlegel, que, por sua vez, partiram da comédia aristofânica para suas análises da literatura grega. A razão da escolha desses autores se deve, também, à intenção de dar visibilidade aos estudos socráticos, promovidos pela recém-fundada International Society for Socratic Studies, e, naturalmente, à própria figura de Sócrates, transmitida principalmente por Platão. Quanto a Dioniso, sua presença aí se deve à importância dessa divindade para a filosofia (antiga e contemporânea), sobretudo a partir de As Bacantes e da leitura nietzschiana desta tragédia na famosa obra supracitada, lançada, em sua primeira versão, com o título O nascimento da tragédia a partir do espírito da música, em 1872, e, portanto,  completando, em 2022, 150 anos. Daí o sentido de estarmos sob seus auspícios e, ainda, celebrarmos a data da obra seminal de Nietzsche.

O impacto da visão de Nietzsche sobre Dioniso, Aristófanes, Eurípides e Sócrates é apenas um dos aspectos a ser discutido. Desnecessário, aqui, defender a importância de analisarmos as ligações (dangereuses?), entre estes autores antigos, da perspectiva nietzschiana. Porém, para compreender de que modo, na história da filosofia e literatura gregas, tais autores aparecem imbricados, cumpre trazer também a perspectiva platônica e o contato com outros textos em que Sócrates e temas “socráticos” aparecem (como em outras peças de Aristófanes e Eurípides).

Destarte, neste Simpósio, alguns aspectos do pensamento de Sócrates serão revisitados à luz, naturalmente, de releituras da filosofia antiga, a partir de novas interpretações, nas últimas décadas, do movimento sofista e da retórica. Como se sabe, a partir de Platão, a ênfase na demarcação entre Sócrates e os Sofistas é notória. Nietzsche não apenas problematiza essa demarcação, mas, para introduzi-la, lança mão da imagem de um Dioniso que vem, principalmente, com As Bacantes: no entanto, associa o dramaturgo aos retores e mostra, na esteira de Aristófanes, nas Nuvens, o próprio Sócrates como um sofista, em uma obra tão instigante quanto complexa, pois, em parte, contraditória.

Conceitos-chave como racionalidade (e irracionalidade), moralidade e experiência emocional são, a nosso ver, necessários para a compreensão da(s) imagem(ns) de Sócrates, a fim de conhecer melhor um dos grandes nomes e modelos de filósofo, na Antiguidade e na sua recepção na contemporaneidade. E, para tanto, analisar a sua conexão com esses outros pensadores (Aristófanes, Eurípides), também à luz de Nietzsche, é de suma importância.

No espírito interdisciplinar do Simpósio, a contribuição de pesquisadores das hoje chamadas áreas de literatura, filosofia, história e arqueologia é fundamental. Se a estrutura universitária e a demarcação disciplinar nos impõem a especialização cada vez maior, os encontros são um modo de, justamente, fazer com que pesquisas sobre temas da Antiguidade possam contribuir, em conjunto, e em diálogo interdisciplinar, para o melhor entendimento de problemas e conceitos deste período.

Vale notar que, na UFMG, já existe uma iniciativa que valoriza essa interação.  Pois, graças à visão dos professores Marcelo Marques (Filosofia, in memoriam) e Jacyntho Brandão (Letras), a quem agradecemos penhoradamente, foi organizada de maneira instigante e cooperativa a interação formal dos cursos de Letras e Filosofia, ao terem criado, como disciplina obrigatória de primeiro semestre para os alunos de Filosofia, os Fundamentos de Literatura Grega, oferecida pelos colegas da FALE/UFMG. Deixo expresso — e tenho certeza de que falo em nome de vários colegas e estudantes — meu agradecimento especial aos dois professores, e, sinal penhorado de gratidão pela vida acadêmica exemplar em defesa da universidade pública e dos estudos da Antiguidade Clássica nela inserido, dedico a ambos este Simpósio. 

Que este encontro, seguindo, em parte, o espírito daquele que é título do diálogo de Platão, em que tantas vozes diferentes se reuniram para discussão de um tema comum — que a ousadia pôs à mesa vários temas —, possa ocasionar boas discussões e avançar nosso conhecimento sobre alguns problemas filosóficos e literários da Antiguidade e de sua recepção.

Sejam todos e todas muito bem-vindos e bem-vindas.

Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho (Filosofia/UFMG)
Coordenadora do Simpósio

Post scriptum:

Seguem os textos escritos pelas professoras Alice Serra e Filomena Hirata, sobre Marcelo e Jacyntho, respectivamente. Pedi às professoras, após a abertura, que me enviassem, para ser publicado aqui.

“Começo”: a Marcelo Marques

Maria Cecília convidou-me a fazer uma pequena homenagem ao Marcelo Marques na ocasião deste evento interdisciplinar entre Filosofia e Letras Clássicas. No momento em que recebi o pedido, além de um certo estranhamento por eu não ser “da área”, a primeira pergunta silenciosa que me ocorreu foi a seguinte: mas o que poderei dizer, pois, pensei, será que aquilo que eu disser estará à altura do acontecimento? – um desses acontecimentos imprevisíveis que nos marcam e os quais se retomam ao longo da vida…

Foi no ano 1999, quando eu já havia concluído meu curso de História na UFMG e frequentava disciplinas do Departamento de Filosofia, que eu fui aluna de Marcelo Marques. Deste período, destaco o entusiasmo com que ele nos introduzia ao pensamento grego – primeiro, fundando-se em Parmênides e em Heráclito; depois, desde o seu tão admirado Platão, que ele nos fazia conhecer, a par de três comentadores para cada texto, também com uma ou outra passagem de Guimarães Rosa, uma ou outra alusão à sua mestre Sônia Viegas. No ano seguinte, pude ter a sorte de atuar ao seu lado como monitora de Filosofia Grega e, ao mesmo tempo, a oportunidade de me encarregar de algumas aulas sobre História Antiga no seu curso de “Cultura Grega”.

Marcelo naturalmente incentivava a interdisciplinaridade, que igualmente me parecia algo natural – como se não houvesse fronteiras na FAFICH nem entre a FAFICH e a FALE – e factualmente não há. Naquele contexto eu esbocei um pequeno projeto sobre Aristóteles, centrado no De Anima, e Marcelo incentivou-me a torná-lo um projeto de mestrado. Mas eis que se afirmaram outras vias que eu concomitantemente trilhava – eu estudava Latim em vez de Grego, e naquele ano iniciava os estudos de língua Alemã. Marcelo permaneceu como meu mestre de Filosofia Grega – e me ocorre particularmente o seu entusiasmo, esta palavra cujo sentido em grego ele tanto gostava de nos lembrar.

Bem mais tarde, depois de nos tornarmos colegas no Departamento de Filosofia, no ano final de sua vida, em 2016, mais propriamente nos meses finais, que nos tornamos, novamente de modo inesperado, próximos. Ele, como coordenador do curso de graduação em Filosofia; eu, como subcoordenadora. Nesta função, Marcelo incansavelmente incentivava as atividades interdisciplinares, a melhoria de nossa Licenciatura e, em geral, da graduação em Filosofia, preocupado que era com a formação de mestres e com o pensamento crítico das novas gerações.

Numa destas ocasiões, quando nos incumbimos de organizar a “Recepção de calouros”, Marcelo disse: poderemos readaptar algo que eu preparei em outra ocasião. O PowerPoint que ele me enviou “começava” com esta imagem:

In: http://marquess56.blogspot.com/search/label/começo

Na época achei interessante a imagem, mas não conversamos sobre o sentido dessa escolha. Ao visitar recentemente seu blog (http://marquess56.blogspot.com), disponível na internet, deparei-me com a mesma imagem, seguida da legenda:

“peixe vira / começa pássaro, painel Portinari, Igreja de São Francisco de Assis, BH, 1944”

“Começo”, assim também se intitula o tópico com o qual Marcelo abre o seu blog e no qual postou essa imagem. Mais adiante, no tópico intitulado “Passos”, ele assim alude analogamente à sua cidade de nascimento:

“Passos, sudoeste de Minas, é minha cidade natal; o nome vem de Senhor Bom Jesus dos Passos, mas a imagem faz pensar em outras coisas: etapas de um caminho, processo, espaços de transição […]
[…] um degrau é inseparavelmente lugar e momento, pouso e movimento, impossível de ser pensado fora do processo […]”
(http://marquess56.blogspot.com/search/label/passos)

Assim concebia Marcelo as atividades de aprendizado e de ensino, pelas quais era apaixonado: começo e devir, espaços de transição, tornar-se outro e necessária conexão entre os saberes. Foi num desses espaços que nos conhecemos e é ainda num deles – neste evento interdisciplinar, ainda que o espaço seja virtual nesse contexto – que a sua memória permanece viva.

Eu talvez devesse ter iniciado falando das obras de Marcelo Pimenta Marques, de sua trajetória acadêmica, mas “começou-se” deste outro modo, cabendo, todavia, mencionar algumas de suas grandes contribuições. Marcelo publicou diversos artigos acadêmicos em revistas nacionais e internacionais, e obras fundamentais para os estudos clássicos, entre as quais estão: O caminho poético de Parmênides (São Paulo: Loyola, 1990) e Platão, pensador da diferença (Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006). Também organizou importantes obras como: Escritos. Filosofia viva de Sônia Viegas (Belo Horizonte: Tessitura, 2009) e Teorias da imagem na Antiguidade (São Paulo: Paulus, 2012).

Em nosso Departamento habita o reconhecimento e a gratidão por sua atuação como professor, pesquisador, chefe, coordenador, editor da Kriterion, entre outras funções; o rastro de alguém que, desde sua área de especialização, Filosofia Antiga, Cultura e Literatura Grega, transitava por diferentes eixos temáticos: Ontologia e Linguagem, Antropologia, Metafísica, Ética, Ensino de Filosofia, Estética e Política. Esta última também era uma de suas importantes preocupações e paixões.

Se Marcelo estivesse por aqui, ele estaria, suponho, buscando os melhores caminhos para transitarmos por estes momentos difíceis. Como ele nos faz lembrar no mesmo tópico de seu blog intitulado “começo”, em que cita Hannah Arendt: “[…] todo fim na história constitui necessariamente um novo começo; esse começo é a promessa, a única “mensagem” que o fim pode produzir. […]” (ARENDT, H. Origens do Totalitarismo. (1951). Trad. R. Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 530-531. Apud: http://marquess56.blogspot.com/search/label/começo )

Ainda me lembro do primeiro e do último dia em que nos vimos, um momento certamente difícil para Marcelo. Seus olhos traziam a mesma força da ágora, no incentivo ao diálogo no espaço comum, no acolhimento às diferenças e diversidades, na afirmação da atitude crítica, na infindável tarefa do pensar. Obrigada, Mestre!

Alice Mara Serra
Professora de Filosofia Contemporânea na Universidade Federal de Minas Gerais
31 de janeiro de 2022

Jacyntho

jacyntho
Jacyntho José Lins Brandão

Quando chegou à Universidade de São Paulo para fazer o doutorado em Letras Clássicas, Jacyntho não deixou de despertar a curiosidade de muitos, por causa do autor que tinha escolhido pesquisar, ou seja, Luciano de Samósata. Na época, os professores que decidiam fazer uma pós-graduação, escolhiam autores considerados “clássicos”, digamos, aqueles que faziam parte do currículo tradicional dos cursos de grego, que tinham vivido entre os séculos VIII e IV a. C. E Luciano não só estava longe desses séculos como também nem era grego. A tese sobre Luciano despertou em todos a amplitude do problema da diferença na Antiguidade.

Defendida a tese e iniciando, de fato, a vida de um professor universitário titulado, Jacyntho cumpriu suas obrigações. De um lado, foi um professor competente de grego na graduação e um orientador conhecido por dar liberdade e estimular a criatividade dos seus orientandos na elaboração dos trabalhos. De outro lado, é dono de uma ampla lista de publicações que faz inveja a qualquer um a seu lado. E, como tem prazer em enfrentar a diversidade, mais recentemente seus projetos foram para além de Luciano, foram para os domínios do acádio, com a tradução do Gilgamesh.

No entanto, a vida universitária empurrou-o para outro caminho, o das atividades administrativas. Isso não desagradou Jacyntho, como desagrada a muitos que se queixam da burocracia; ao contrário, confirmou seu gosto pela política. Enquanto foi diretor da Faculdade de Letras, aproveitou esse momento para realizar sonhos acalentados antes, introduzindo modificações no currículo do curso de Letras, atribuindo novos pesos e medidas. Deu particular atenção à interdisciplinaridade e estabeleceu, por exemplo, um vínculo importante entre os cursos de Filosofia e Letras.

Imagino que os anos que se seguiram à fundação da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos foram uma espécie de estágio para o aprendizado da arte política. Jacyntho teve papel relevante na Sociedade como sócio fundador porque, com seu caráter moderador e poder de persuasão, soube contornar e resolver as divergências entre os sócios, entre os setores da SBEC, em diferentes estados do Brasil, tendo em vista sempre que para os estudos clássicos ela é o ponto de conexão.

Pelo pouco que escrevi em lugar do muito que poderia ter escrito, considero mais do que merecida a homenagem, em forma de dedicatória, que se faz hoje a ele.

Filomena Hirata
Professora de Língua e Literatura Grega da Universidade de São Paulo.
São Paulo, 31 de janeiro de 2022.
Nota: por motivo de força maior, a professora não pôde participar da Abertura e o texto foi lido pela coordenadora do Simpósio.