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Preta, preta, pretinha

por Cristiano Rodrigues

Aos 12 anos eu passei por uma das situações mais aterrorizantes da minha vida. Nunca consegui falar sobre o ocorrido, nem mesmo para amigos próximos. Até hoje.

O meu objetivo ao falar sobre esse evento, justamente no Twitter, neste final de semana em específico, é CELEBRAR o monumental ato de resistência, e sorte, muita sorte, que é continuar vivo três décadas depois daquele dia. Não há traços de superação nem tampouco perdão nesse relato. Tudo foi tão cru , tão cruel que é impossível superar.

Aos 11 anos fui morar com minha mãe e meu padrasto na Av Cantagalo. (na Contagem dos anos 80, avenida era uma rua larga com um córrego não canalizado e fétido no meio) e estudava numa escola estadual da região. Antes de mudar para lá eu vivia… (i know, a much-loved kid) com minha outra família na região nordeste de Belo Horizonte. Cheguei na escola e logo fiz amizade com M., um jovem negro (bem, praticamente todos os moradores daquela região eram negros, a depender da plasticidade do critério que você utilizar para a definição da cor de pele)

M. tinha uns 15 anos e ainda estava no sexto ano. Estabelecemos o que eu considerava, à época, uma parceria justa: M. me mantinha enturmado, popular e, principalmente, protegido da violência de gangues e colegas da própria escola. Em troca, ele alcançava ótimas notas e a diretora precisava encontrar outra justificativa para tentar expulsa-lo da escola. Já que o argumento do “ouvi dizer que M. vende drogas” perdeu tração depois que ele se tornou um aluno com bom rendimento. Havia uma mini ladeira – ideal para descer com meus carrinhos de rolimã e de skate – ao final da rua, onde ficava o Conjunto Habitacional Columbia, com +50 prédios e +800 apartamentos. Vários deles ocupados por famílias em busca de realizar o sonho da casa própria. A falta de infraestrutura e atenção por parte do estado contribuía para que os índices de violência fossem bastante elevados por lá.

No final daquele ano as investidas policiais na região passaram a ser mais intensas e ficar na rua, brincado ou conversando, se tornou perigoso. Um dia, depois da aula, fomos, eu e outro amigo, para a casa de M. De repente ouvimos um barulho estranho. Dois policiais arrombaram a porta e já entraram apontando armas para as nossas cabeças, perguntando: “quem é o M? “Se ninguém responder morre os três.” O M. logo disse: “sou eu”. Foi imediatamente alvejado, ao meu lado, com tantos tiros e tanto desprezo por sua humanidade que nunca, nem em meus mais terríveis sonhos/pesadelos, fui capaz de reproduzir um centésimo da cena que presenciei. Não contentes em assassinar o meu amigo a queima-roupa e na minha frente, desceram por três andares, escada à baixo, puxando o corpo dele e gritando que aquilo era apenas um aviso para todos nós. Diziam algo como: “não se metam com a bandidagem ou terão o mesmo destino de M.”.

Entre aquele primeiro dia que marcou o resto da minha vida e o último que passei na periferia, já no segundo ano de universidade, eu perdi as contas dos amigos, conhecidos, vizinhos, familiares, conhecidos de conhecidos que caíram. Às vezes “bandidos”, outras vezes “confundidos com bandidos”, nas demais ocasiões por “erro de estratégia”, porque estavam “no lugar errado na hora errada”. Só uma coisa, como já disseram no twitter, eles nunca confundiram. Nisso eles jamais erram: a cor da pele daquele que é o alvo preferencial do braço armado do estado – Sempre preta, preto, negra, negro e também pardo, moreno, moreninho, escurinho, cafuzo, mulato. Preta, preto, negra, negro, pardo, moreno, moreninho, escurinho, mulato. Não há, NÃO HÁ, diante do genocídio praticado pelo estado, NÃO HÁ “vantagem” parda, de classe ou de gênero que nos proteja.

Foto de Agatha Felix, menina negra, sorrindo, segurando balões amarelos.

Morremos todos. inclusive os que parecem não ter sido atingidos pelo projétil. Essa semana foi a Agatha Felix, uma criança de OITO anos. Mas também já perdemos a Marisa de Carvalho Nóbrega, a Claudia Silva Ferreira, o Amarildo Dias de Souza, o Eduardo de Jesus Ferreira, o Herinaldo Vinicius de Santana, o Douglas Rodrigues, a Marielle Franco, o Anderson Pedro Gomes, teve o carro de jovem trabalhador, saindo com os amigos para gastar o seu primeiro salário – atingido por mais de 100 tiros, e muitas outras pessoas cujos nomes sequer ficamos sabendo. Sem contar os muitos que ainda virão. Infelizmente.

Eu perdi o meu amigo e me perdi ao vê-lo cair, ser puxado, destruído, destituído de sua humanidade em vida e também na hora da morte, que em outros momentos costuma reservar alguma redenção a quase todos. Eu vivi o horror quando eu era só uma criança, que deveria estar sendo protegida e não exposta à toda aquela violência. Só a sorte, muita sorte, explica eu continuar vivo. Mas não é justo que tantos de nós sigam morrendo. Não é justo, não é justo! Agatha, nessa semana um pouco de mim morreu junto com você. O que sobrou me fez retornar ao meu passado e dar vida nova a ele. Tenho certeza que agora, no Orun, você encontrará as oportunidades de crescer sonhando, planejando e realizando todo o potencial que o Estado, encarregado de “servir e proteger” a pessoas iguais a você, a mim e todos os outros brasileiros, te impediu de realizar aqui, no Ayé.