Massimi, M. (2001) Identidade, Tempo, Profecia na visão de Padre Antônio Vieira. Memorandum, 1, 13-31. Retirado em   /  /  , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/ ~memorandum/artigos01/massimi01.htm.

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Nota Bene: o presente artigo foi concebido em um âmbito de debate, estabelecendo analogias e diferenças entre horizontes culturais diversos. Sugere-se a leitura confrontada de três artigos publicados neste número 1 da revista Memorandum: "Empenhado na mudança do milênio: identidade, história e profecia em uma comunidade rural tradicional", "Identidade, Tempo, Profecia na Visão de Padre Antônio Vieira", "Rei, Sacerdote, Profeta: historicidade, religiosidade e subjetividade".
 
 
Identidade, Tempo, Profecia
na Visão de Padre Antônio Vieira
 
Identity, Time and Prophecy in the View of Fr. Antônio Vieira
 
Marina Massimi
Departamento de Psicologia e Educação
FFCLRP-USP
Brasil
 
 
Resumo
O objetivo deste trabalho é o estudo das relações entre identidade pessoal e social, tempo e profecia assim como se delineiam em algumas obras de Padre Antônio Vieira. Escolhemos analisar a produção deste autor no período compreendido entre 1640 e 1661 e neste âmbito nos detemos sobre textos especialmente significativos no que diz respeito à afirmação das concepções acerca do homem, do tempo e da história. A análise enfoca as relações implicadas entre sentido do tempo e da história, horizonte escatológico, sentido da identidade pessoal e histórica do sujeito.
 
Palavras-Chaves: História das Idéias Psicológicas; Identidade, História e Cultura; Idéias psicológicas no Brasil.
 
Abstract
The aim of this paper is the study of the relations between personal and social identity, time and prophecy in selected texts by Fr. Antonio Vieira. We chose to analyze the production of this author in the period between 1640 and 1661, especially those texts about the conception of man, time and history. The analysis focuses on the relations between the sense of time and history, eschatological horizon, sense of personal and historical identity of the subject. 
 
Keywords: History of the Psychological Ideas; Identity, History and Culture; Psychological Ideas in Brazil.
 
 

Introdução: identidade, tempo e profecia.

O presente artigo é parte de um diálogo entre três diversas perspectivas de abordar o tema “identidade, tempo e profecia”, no âmbito de diferentes momentos e espaços culturais, realizado pela autora juntamente com o Prof. Dr. Miguel Mahfoud e o Prof. Dr Gilberto Safra - cujas contribuições são publicadas na presente revista. Por isto, ao longo deste artigo comparecem referências ao trabalho de Mahfoud (2001) no âmbito da comunidade tradicional mineira de Morro Vermelho, bem como aos estudos de Safra no âmbito da filosofia russa.

O interesse pelo tema “identidade, tempo e profecia” e pelo estabelecimento de analogias e diferenças entre horizontes culturais diversos quanto à sua abordagem, é suscitado pelo momento histórico em que nos encontramos no presente. O início do terceiro milênio coloca o homem diante da pergunta sobre o sentido do tempo e sobre o sentido de sua presença como ator da história - pergunta esta que consideramos essencial para a definição da identidade pessoal e social. O tema do novo milênio, por acarretar uma busca do significado do tempo e a articulação de um projeto histórico, tem sido relacionado também à intuição de uma resposta e de uma perspectiva além do tempo e por isto colocado inclusive dentro de um horizonte teológico (1).

Por outro lado, o tema do novo milênio evidencia a importância da historicidade enquanto dimensão essencial da identidade humana, pois conforme afirma o filósofo russo N. Berdiaev, "o homem é em grande medida um ser histórico; o homem vive no histórico e o histórico habita no homem” (1979 p. 26). Berdiaev, discípulo do grande pensador Vladimir Solovyov é um filósofo que muito contribuiu à formulação das relações entre identidade humana, tempo e história e por isto sua perspectiva teórica parece-nos especialmente reveladora para a reflexão acerca do tema aqui proposto. Na visão dele, a reciprocidade profunda entre a história e o homem proporciona na consciência da pessoa o reconhecimento de uma identificação entre o destino histórico pessoal e o da humanidade, de modo que dentro da história da humanidade ela descobre seu próprio destino individual. Esta dinâmica é evidente na memória coletiva a qual estabelece um nexo interior com o histórico, nexo este fundado na tradição e que por sua vez possibilita modalidades peculiares de compreensão dos acontecimentos históricos. É assim que o tempo e os fatos históricos pertencem à própria definição da identidade humana, não se constituem em algo estranho à interioridade do sujeito, mas pelo contrário pertencem à consciência de si mesmo. As concepções iluminista e positivista da história, porém determinaram a dissociação entre consciência e história que marca toda a modernidade.

Por outro lado, vivências e concepções do tempo e da história formuladas em horizontes culturais e de mentalidades não iluministas propiciam-nos a possibilidade de reconhecer a presença desta relação entre tempo, história e identidade pessoal e social. Tais vivências e concepções, ao mesmo tempo, apresentam entre si profundas semelhanças e analogias apesar de terem sido concebidas em contextos geográficos e temporais entre si muito diferentes. 

É nesta perspectiva que podemos estabelecer um horizonte comparativo entre a concepção de si mesmo, do tempo e da história que emerge numa entrevista realizada recentemente com um morador da comunidade tradicional de Morro Vermelho – e as idéias a respeito deste mesmo tema, presentes em sermões e obras de um autor muito representativo da tradição cultural luso-brasileira tal qual padre Antônio Vieira (2).

É importante para o psicólogo refletir acerca das possíveis articulações destas concepções assim como podem ser apreendidas na experiência e nas elaborações culturais que as sustentam. Com efeito, a identidade pessoal tem suas raízes na história: ela brota do  reconhecimento do sentido do tempo e de si mesmo como ator da dinâmica histórica, sendo que esta dinâmica é originada pela afirmação de um sentido presente no tempo da existência humana.

O ponto de partida do presente trabalho é o reconhecimento de claras analogias presentes entre a concepção de identidade associada à participação na história universal  que permeia a experiência da comunidade tradicional de Morro Vermelho (estudada pelo prof. Mahfoud) e a concepção das relações entre identidade pessoal e social, tempo e profecia assim como se delineiam em alguns sermões de Padre Antônio Vieira.

De fato, se para os moradores de Morro Vermelho - a visão do valor sagrado de seu passado comunitário baseia-se na inserção na história bíblica ao mesmo tempo fundamentando o valor político da participação na história atual brasileira, posição semelhante encontra-se expressa nos sermões do grande pregador jesuíta do século XVII. Ambas as posições parecem expressivas de uma mesma concepção político - religiosa, onde a identidade pessoal e comunitária é tecida assumindo caráter profético diante da história universal e o futuro próximo vem a confirmar os ideais religiosos e políticos propostos.

 

Retórica e hermenêutica de Antônio Vieira

Os sermões de Antônio Vieira escolhidos para a nossa análise, foram pronunciados no período compreendido entre 1640 e 1662, sendo este momento histórico especialmente significativo da posição pessoal e social deste autor. A análise se deteve sobre algumas pregações especialmente significativas no que diz respeito à afirmação de concepções milenaristas e escatológicas - acerca do homem, do tempo e da história. Como sabemos, estes - assim como os demais sermões - foram sucessivamente transcritos pelo próprio autor; são eles: o Sermão de Nossa Senhora do Ó, pregado na Bahia em 1640; o Sermão dos Bons Anos, pronunciado em Lisboa em 1641; os Sermões do Advento (pregados a partir do ano de 1650), o Sermão da Epifania de 1662 pregado na Capela Real de Lisboa, o Sermão de Dia de Reis, pregado na Bahia em 1641; os dois Sermões sobre o Espírito Santo pronunciados em São Luís do Maranhão naqueles anos, o Sermão da publicação do Jubileu pregado em São Luís do Maranhão em 1654; o Sermão das Exéquias de El-Rey D. João IV; o Sermão de São Roque pregado na Capela Real de Lisboa em 1644. A leitura destes sermões foi acompanhada também do estudo de outro texto muito significativo de padre Vieira, o Livro Anteprimeiro da História do Futuro (1665). O livro foi concebido em 1661, quando da volta do jesuíta a Portugal após nove anos vividos no Maranhão, sendo dedicado a exposição do grande ideal político do “Quinto Império”, o Reino de Cristo que dentro em breve se havia de instalar na terra. (3)

Na concepção antropológica de Vieira, a articulação das referidas relações parece ser um fator que estrutura profundamente a personalidade humana: tal concepção parece-nos expressiva da posição cultural própria do assim chamado Barroco luso-brasileiro (4) da qual Vieira é herdeiro, porta-voz, transmissor e que ainda hoje pode ser reencontrada na tradição cultural brasileira.

 

Desengano de nossa vaidade

Em primeiro lugar, o fim de um milênio, assim como o fim de um ano, remete o ser humano à consideração do significado da história, especialmente revelado por seu objetivo último, seu fim e destino. Desse modo, nos sermões do primeiro domingo de Advento dedicados ao comentário de um trecho do Evangelho que descreve o fim do mundo (Evangelho de Lucas, cap. XXII), Vieira dedica-se a ilustrar o sentido da história, do tempo e o valor de cada instante da humana peregrinação, tendo como ponto de partida a perspectiva de seu destino final. Nesta ótica, a descrição do juízo final baseada na literatura sagrada (os livros dos profetas do Antigo Testamento, os Evangelhos e o livro da Apocalipse), adquire um significado decisivo para o tempo presente. O receio do fim do mundo não diz respeito tanto à necessidade de uma preparação para um suposto ponto final da história a ocorrer num futuro próximo, quanto ao fato de que já no presente o juízo de Deus e a presença de Cristo nas vicissitudes humanas são fatos reais que implicam numa mudança da consciência com a qual homens e povos vivem sua função na sociedade. Desse modo, e leitura destes sermões não revela um Vieira propriamente milenarista (se por milenarismo entende-se a crença num futuro reinado de Cristo sobre a terra durante mil anos, cf. Delumeau, 1997, 5); ao invés, suas idéias parecem-nos muito mais próximas da concepção agostiniana da história (explicitada especialmente no livro A Cidade de Deus). Para Agostinho, os mil anos do reinado terrestre iniciam com a encarnação de Cristo, sendo que terminarão com o juízo final e o advento da cidade celeste que não terá fim. Tal reinado encontra-se em estado de guerra, numa continua confrontação com inimigos. Todavia, a Igreja na terra é desde já o reino de Cristo e na vida de cada cristão, desde já, realiza-se o juízo final. (Delumeau, 1997). È propriamente esta ênfase no valor decisivo do presente que caracteriza os referidos sermões de Vieira.

No Sermão da Primeira Dominga do Advento, pregado na capela real no ano de 1550 (ed. 1993, vol. um, pp. 107-225), Vieira descreve em tons foscos o aproximar-se do juízo final:

Abrasado, pois o mundo e consumido pela violência do fogo tudo o que a soberba dos homens, e o esquecimento deste dia levantou e edificou na Terra: quando já não se verão neste formoso e dilatado mapa senão umas poucas cinzas, relíquias de sua grandeza, e desengano de nossa vaidade, soará no ar uma trombeta espantosa, não metafórica, mas verdadeira (...): e obedecendo aos impérios daquela voz o Céu, o Inferno, o Purgatório, o Limbo, o Mar, a terra, abrir-se-ão em um momento as sepulturas, e aparecerão no mundo os mortos vivos (1993, vol. um, p. 108).

Finalmente, Vieira retrata a cena do Juízo:

Presente enfim no vale todo o gênero humano, correr-se-ão as cortinas do Céu, e aparecerá o Supremo Juiz sobre um trono de resplandecentes nuvens, acompanhado de todas as jerarquias dos anjos, e muito mais de sua própria majestade (1993, vol. um, p. 117).

Os homens serão separados inicialmente conforme o estado que ocuparam neste mundo e depois "se começará a segunda separação, segundo o estado que hão de ter na outra, e que há de durar para sempre".(1993, vol um, p. 117)

Ninguém escapará disto, nem os pontífices, pois mesmo dentre eles Deus separará os bons dos maus e se verá no dia final que “a santidade não consiste no nome, senão nas obras” (1993, vol um, p. 118). Mas, se o dia do juízo pode surpreender no despreparo inclusive religiosos, padres e pregadores, o que será do rei e de sua corte - destinatários deste sermão -? Os próprios reis serão julgados sem todos “os aparatos de majestade, mas todos sós, e acompanhados somente de suas obras, estarão em pé como réus”.(1993, vol um, p. 118). Comprovando seu juízo com a história do povo de Israel, Vieira afirma que é algo muito difícil os soberanos se salvarem e conclui: “Muito arriscada cousa deve ser o reinar, pois em tantos tempos e em tantos reis, se salvam ou tão poucos ou nenhum”. (1993, vol um, p. 121)

Desde logo, o pregador faz questão de declarar que, na realidade, o drama do juízo de Deus sobre a história se decide no momento presente e não num longínquo e imprevisível futuro:

O que me espanta, e o que deve assombrar a todos, é que haja de bastar esta trombeta para ressuscitar os mortos, e que não baste para espertar os mortais! (1993, vol um, p. 109).

Portanto, a consideração do último dia é para Vieira ocasião de dirigir uma crítica dura e direta aos homens poderosos de seu tempo, sendo que os principais alvos de sua reprovação são o rei e os homens da corte - para os quais ele está proferindo este sermão!  Assim, os tons da pregação apresentam-se realmente graves e acusadores, quando, por exemplo, ele diz que um das “considerações mais dignas de sentimento” é esta: “quanta gente bem nascida se verá naquele dia mal-ressuscitada!” (1993, vol um, p. 109), pois “na ressurreição sobrenatural, cada um ressuscita como vive”.

A ênfase no momento histórico atual é assim o ponto de partida para a afirmação do ideal de justiça social – ideal este a ser realizado apesar de constantemente traído pelos homens. Com efeito, - e isto há de ser de “grande consolação para aqueles a quem não alcançou a fortuna dos altos nascimentos!”, - no Dia do Juízo Deus dará “uma grande satisfação à desigualdade com que nascem os homens, sendo todos da mesma natureza”.(1993, vol um, p. 110). Ocorrerá então o restabelecimento da ordem definitiva e própria do Reino de Deus na terra. De modo que:

Homens humildes e desprezados do povo, boa nova. Se a natureza ou a fortuna foi escassa convosco no nascimento, sabei que ainda haveis de nascer outra vez, e tão honradamente como quiserdes: então emendareis a natureza, então vos vingareis da fortuna (1993, vol um, p. 110).

Todavia, a realização desta ordem final, não depende unicamente da ação de Deus na história, mas também da ação humana, que por sua vez estrutura-se a partir do posicionamento da liberdade (ou livre arbítrio): desse modo, num certo sentido, o homem vem a decidir o lugar que ocupa na história, tendo o poder de modificá-lo. Aquelas que Vieira define como “mudanças notáveis” serão manifestas no último dia e serão definitivas:

O pequeno achará seus ossos em um adro sem pedra nem letreiro, e ressuscitará tão ilustre como as estrelas. O grande, pelo contrário, achará seu corpo embalsamado em caixa de pórfiro, aos ombros de leões, ou elefantes de mármore, com soberbos e magníficos epitáfios, e ressuscitará mais vil que a mesma vileza. Oh, que metamorfose tão triste, mas que verdadeira! (1993, vol um, p. 110).

Haverá, em suma, um “segundo nascimento” cujo êxito dependerá da liberdade do homem: “não se faz agravo na desigualdade do nascer, a quem se deu a eleição de ressuscitar. A ressurreição é um segundo nascimento com alvedrio”.

O ser bem-nascido, que é uma vaidade que se acaba com a vida, é verdade que o não pôs Deus na nossa mão; mas o ser bem ressuscitado, que é aquela nobreza que há de durar por toda a eternidade, essa deixou Deus no alvedrio de cada um. No nascimento somos filhos de nossos pais, na ressurreição seremos filhos de nossas obras (1993, vol um, p. 111).

Em suma, nossa própria condição final “na nossa mão está, se o quisermos ser”. (1993, vol um, p. 112)

A importância da ação humana é assinalada por Vieira inclusive em seu aspecto negativo: dentre os pecados que levam à perdição os homens, Vieira coloca a omissão: “A omissão é um pecado que se faz não fazendo” (1993, vol. um, p. 125). Este pecado acomete especialmente príncipes e reis, sendo esta a causa da perdição de tantos:

Está o príncipe, está o rei divertido, sem fazer má obra, sem dizer má palavra, sem ter mau nem bom pensamento: e talvez naquela mesma hora, por culpa de uma omissão, está cometendo maiores danos, maiores estragos, maiores destruições, que todos os malfeitores do mundo em muitos anos (1993, vol. um, p. 125).

 

Hoje, amanhã, e cada dia, é o fim do mundo.

Dois anos mais tarde (1652), Vieira prega um segundo sermão, na mesma ocasião litúrgica e na mesma capela: o Sermão da Primeira Dominga de Advento e novamente o exórdio da pregação é a descrição da cena apocalíptica do fim do mundo – sendo que desta vez os tons são ainda mais sombrios e atemorizadores:

Sabemos que antes do dia do juízo, o Sol que soía fazer o dia, se há de obscurecer e esconder totalmente com o mais horrendo e assombroso eclipse que nunca viram os mortais. Sabemos que a Lua, não por interposição da Terra, mas contra toda a ordem da natureza, se há-de mostrar entre as trevas medonhamente desfigurada, e toda coberta de sangue. Sabemos que as estrelas do firmamento, desencaixadas dos orbes celestes, hão-de cair: e como no mundo inferior não têm onde caber, lá hão-de estalar a pedaços, como horrível estrondo, e exalar-se em vapores ardentes. Sabemos que o mar há-de sair furiosamente de si, e atroar os ouvidos atônitos com pavorosos roncos, e levantando as ondas imensas até as nuvens, já não há-de bater como dantes as praias; mas sorver inteiras as ilhas, e afogar os montes (1993, vol. um, p. 135).

Vieira declara que - se acerca destes acontecimentos temerosos, os homens foram instruídos pelo próprio Cristo nos Evangelhos - há, porém duas coisas que permanecem desconhecidas: os anos e o dia em que isto ocorrerá. Acerca do ano, ele apresenta várias teorias sobre o fim do mundo, especificamente quatro e neste primeiro momento, parece colocar uma perspectiva milenarista. Com efeito, afirma sua adesão à doutrina - abraçada por autores clássicos e também por vários modernos (Cardeal Belarmino, Pico Mirandulano) - que coloca o fim do mundo no sétimo milênio – em analogia ao sétimo dia do livro do Gênesis, quando Deus descansou do trabalho da criação:

Na suposição dela, (...) desde o ano presente, em que estamos, até o último, não lhe restam de duração mais que trezentos e cinqüenta: e daqui podem inferir os que hoje edificam tão magnificamente em todas as cortes, Roma, Paris, e na nossa Lisboa, que tudo isto que fazem, e em que tanto se cansam, é em ir ajuntando lenha para o fogo do Dia do Juízo (1993, vol. um, p. 140-1).

Ainda mais próximo o fim do mundo aparece na teoria do cardeal e filósofo alemão Nicolau de Cues (ou Cusano), proposta na obra Conjectura de ultimis diebus (1452), segundo a qual depois do ano jubilar de 1700 a Igreja seria transferida da Terra para o Céu (6), sendo que assim ocorreria o fim do mundo. Exatamente,

“Daqui a quarenta e nove anos” afirma Vieira e alerta: Segundo esta conta, muitos dos que hoje são vivos, se podem achar presentes a toda a tragédia do Dia do Juízo, e ver os horrendos sinais que o hão-de preceder. Oh se houvesse alguns que se persuadissem a isto! Que pouco cuidado lhes dariam outros futuros, que tão pouco importam: e que pouco se cansariam a si e aos príncipes, em requerer comendas e rendas para muitas vidas! (1993, vol. um, p. 140-1).

Todavia, avançando no percurso discursivo do sermão, fica claro que aqui o milenarismo é utilizado por Vieira como recurso retórico tendo o objetivo de chamar a atenção dos ouvintes para o empenho decisivo no momento presente. Com efeito, se o ano do juízo permanece misterioso, não é assim quanto ao dia, pois o dia do juízo acontece todos os dias:

É hoje, foi ontem, há de ser amanhã, e não amanhece nem anoitece dia, que não seja certamente o dia do Juízo. Que coisa é o dia do juízo? É um dia em que se há-de acabar o mundo: é um dia em que Cristo nos há-de vir julgar: é um dia em que havemos de dar conta de toda nossa vida; e em que os bons hão-de ir para o Céu, e os maus para o Inferno. Não é esta a essência e substância do Dia do Juízo? Sim, pois isto é o que se faz hoje, o que se fez ontem, o que se há-de fazer amanhã, e todos os dias. Acaba-se o mundo todos os dias; porque para quem morre acabou-se o mundo. Vem Cristo a julgar todos os dias (1993, vol. um, p. 141-2).

Portanto, Vieira conclui que “o conceito que ordinariamente fazemos do Dia do Juízo, é muito enganoso e muito errado”. O engano está no fato de que

Consideramos o Dia do Juízo como uma coisa medonha e espantosa; mas que está não muito longe, como as serpes na areia da Líbia, ou os crocodilos no Nilo, e por isso nos não faz medo. Não é assim: o Dia do Juízo não está longe: está tão perto como o dia de amanhã, e como o dia de hoje, e como esta hora em que estamos: Veni hora, et nunc est. O vale de Josafat não está só em Jerusalém, nem entre o monte Sião e o Olivete; está em Lisboa, está neste mesmo lugar, e em todos os do Mundo (1993, vol. um, p. 148).

Desse modo, se o dia do Juízo é a própria morte que pode surpreende o homem em qualquer lugar ele se encontre “no mar, na campanha, ou na própria cama” (1993, vol. um, p. 148), o acento decisivo refere-se ao hic et nunc, ao aqui e agora, onde é julgado todo o valor do empenho humano. A consideração do princípio e do fim da história deve remeter-nos à apreciação adequada do tempo histórico, pois é no tempo dado a cada um que se inscreve o seu destino. Por isto, o fim do mundo para cada um ocorre realmente na hora da morte, pois com ela o mundo acaba para mim e eu para o mundo: “Daqui se segue com evidência, que também hoje, amanhã, e cada dia, é o fim do mundo”(1993, vol. um, p. 150). Neste sentido, para o homem deve ser mais temido o dia da morte do que o dia do juízo final, pois se este será preanunciado por vários e claros sinais de modo a permitir que cada um se prepare, pelo contrário aquele virá de repente, sem pré – aviso nenhum.

 

“Tudo passa e nada passa”

Qual é o sentido da temporalidade humana? o que é o tempo histórico?

Vieira esclarece mormente este tópico num terceiro sermão - o Sermão da Primeira Dominga de Advento pregado em Lisboa. Naquele “teatro universal” do derradeiro dia, - afirma Vieira - quando o princípio do mundo aparecerá junto com o fim, se virá, por um lado, que tudo passou, mas, por outro lado, que nada passou, pois tudo participará da ressurreição final: “Tudo passa para a vida, e nada passa para a conta” (1993, vol. um, p. 178). Por um lado, é verdade que

Nenhuma cousa deste mundo para, ou permanece; todas passam. (...) Considerai-me o mundo desde seus princípios, e vê-lo-eis sempre como nova figura no teatro, aparecendo e desaparecendo juntamente, porque sempre está passando (1993, vol. 1, p. 149-150).

Conforme já alertara o apostolo Paulo, numa famosa carta (I Cor, 7, 29), “passa a figura deste mundo”, sendo que todas as coisas no tempo correm para o nada. A imagem da mutabilidade das coisas e de sua instabilidade, o paralelo entre a fugacidade da vida e o sonho, característicos da mentalidade barroca (Maravall, 1997), aparecem nas palavras de Vieira com toda a força:

Todas as cousas do mundo, por grandes e estáveis que pareçam, tirou-as Deus com o mesmo mundo do não ser ao ser; e como Deus as criou do nada, todas correm precipitadamente e sem que ninguém as possa ter na mão, ao mesmo nada de que foram criadas. Vistes o torrente formado da tempestade súbita, como se despenha impetuoso e com ruído; e tanto que cessou a chuva, também ele se secou, e sumiu subitamente e tornou a ser o nada que dantes era? (...) Sonhastes no último quarto da noite, quando as representações da fantasia são menos confusas, que possuíeis grandes riquezas, que gozáveis grandes delícias, e que estáveis levantando a grandes dignidades; e quando depois acordardes, vistes com os olhos abertos, que tudo era nada? Pois assim passam a ser nada em um abrir de olhos todas as aparências deste mundo (1993, vol. um, p. 190).

Assim como os grandes reinos, as cidades, as casas, as pedras, são passageiros, da mesma forma o homem – apesar dele não se aperceber disso:

E vendo o homem com os olhos abertos e ainda os cegos, como tudo passa, só nós vivemos como se não passáramos. Somos como os que navegando com vento e maré, e correndo velocissimamente pelo Tejo acima, se olham fixamente para a terra, parece-lhes que os montes, as torres, e a cidade é a que passa; e os que passam, são eles (1993, vol. um, p. 194).

A metáfora do navio e da navegação exemplifica poeticamente esta visão da existência: os homens todos, embarcados na mesma nau, que é a vida, navegam com o mesmo vento, que é o tempo. Assim como na nau “uns governam o leme, outros mareiam as velas; uns vigiam, outros dormem; uns passeiam, outros estão sentados; uns cantam, outros jogam” (1993, vol. um, p. 195), mas todos igualmente sem distinção de condição e de função caminham ao mesmo porto; assim toda a humanidade, ainda que o não pareça, transcorre sempre, avizinhando-se ao seu destino final.

Terminada a vida temporal, vem a “conta que não passa” da vida eterna. Nesta, os homens haverão de dar conta de si e de tudo o que governaram, de seus talentos, seus bens e também suas penas, ou seja, de todos os meios recebidos na vida para chegar à salvação:

Dá conta dos cuidados, pensamentos e máquinas do teu entendimento; das lembranças e esquecimentos da tua memória; dos desejos e afeições da tua vontade. Dá conta de todos os passos de teus pés, de todas as obras de tuas mãos, de todas as vistas dos teus olhos, de todas as atenções dos teus ouvidos, de todas as palavras de tua língua, e de tudo o mais que tu sabes e não cabe em palavras (1993, vol. um, p. 219).

Por isto, a conclusão de Vieira é a seguinte: se de tudo nos será pedida a conta “e se tudo passa para a vida e nada passa para a conta; que cegueira, e que insânia é a dos que todos seus cuidados empregam no que passa, sem memória nem cuidado do que não-há de passar?” (1993, vol. um, p. 222)

Portanto, o sentido do tempo é cuidar da eternidade, os bens temporais devem ser utilizados em função dos bens eternos. Este juízo (o chamado “desengano”) não corresponde apenas a um sentimento psicológico da vida, mas sugere uma modalidade de uso das coisas e dos relacionamentos na consciência de sua paradoxal dimensão passageira e definitiva. Em suma o significado temporal de cada coisa e pessoa só pode ser adequadamente afirmado na consideração de seu sentido último.

 

O círculo formado pelo desejo

A relação entre tempo e eternidade fica ainda mais clara em outro sermão, o que fora pronunciado por Vieira na ocasião da festa de Nossa Senhora do Ó e pregado na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda na Bahia, no ano de 1640 (1993, vol. quatro, pp. 207-236). O tema do sermão é a concepção de Maria, Mãe de Cristo: por volta deste núcleo, o pregador tece importantes considerações acerca da relação entre o finito e temporal e o infinito e eterno. Baseando-se na figura de Maria, cujo útero continha o próprio Deus e cuja invocação (Ó!) expressava o desejo da manifestação deste sagrado conteúdo, Vieira afirma que o desejo temporal e carnal do homem é capaz de conter em si mesmo o eterno (7). Assim, o desejo humano que move a história, carrega em si a dimensão da eternidade:

Nove meses teve dentro em este círculo (ndr: o útero de Maria) a Deus; e quem pudera imaginar, que estando cheio de todo Deus, ainda ali achasse o desejo capacidade e lugar para formar outro círculo? Assim foi; e este novo círculo formado pelo desejo, debaixo da figura e nome do O, é o que hoje particularmente celebramos na expectação do parto já concebido. (...) Assim como o círculo do ventre virginal na Conceição do Verbo foi um O que compreendeu o imenso, assim o O dos desejos da Senhora na expectação do parto foi outro círculo que compreendeu o Eterno (1993, vol quatro, p. 208).

Vieira adentra na explicação da metáfora do círculo: por que os desejos de Maria constituíram “um círculo que compreendeu o eterno”?

Em primeiro lugar, Vieira coloca a semelhança entre desejo e eternidade – semelhança que ele comprova inclusive pela história das culturas humanas. Com efeito, o desejo contém em si o eterno como o objeto último de sua satisfação plena; por sua natureza o desejo tende à eternidade:

A eternidade e o desejo são duas coisas tão parecidas, que ambas se retratam com a mesma figura. Os Egípcios nos seus jeroglíficos e antes deles os caldeus para representar a eternidade pintaram um O: porque a figura circular não tem princípio, nem fim; e isto é ser eterno. O desejo ainda teve melhor pintor que é a natureza. Todos os que desejam, se o afecto rompeu o silêncio e do coração passou á boca, o que pronunciam naturalmente é O (.) e como a natureza em um O deu ao desejo a figura da eternidade, e a arte em outro O deu à eternidade a figura do desejo; não há desejo, se é grande, que na tardança e na duração não tenha muito de eterno (1993, vol quatro, p. 217).

Em segundo lugar, ao descrever o conteúdo dos desejos de Maria, Viera aprofunda a compreensão do gesto da Encarnação de Deus na história humana e do anseio humano pela manifestação definitiva da Presença divina como sentido último da história. Desse modo, a presença revelada e escondida dentro da realidade não aplaca o desejo, pelo contrário torna-o cada vez mais ardente. Desse modo, se é verdade que os desejos de Maria resumem-se num “O quando?” (8) e aparentemente começaram na conceição e acabaram no parto, por outro lado, “nesta oficina miraculosa” (1993, vol quatro, p.219) do corpo virginal, é possível que assim como “o eterno se pode fazer temporal”, o tempo também se faça eterno. Retomando a metáfora da roda utilizada pelo profeta Ezequiel (um, 16) no Antigo Testamento, Vieira afirma que

A roda do tempo é pequena e breve, a roda da eternidade é grandíssima e amplíssima; e, contudo a roda do tempo encerra e revolve dentro em si a roda da eternidade; porque qual for a vida temporal de cada um, tal será a eterna (1993, vol quatro, p.219).

Se a roda do tempo encerra em si mesma a roda da eternidade, o desejo que a move faz parecer eternos os instantes e os dias. Pois o desejo pode fazer eternos os dias porque se unindo à roda do tempo, multiplica-o infinitamente.

Assim é que Maria andava “suspirando e anelando sempre por aquela hora que tanto mais tardava e se alongava, quanto mais era desejada” (1993, vol quatro, p.221). Para exemplificar o conceito de multiplicação do desejo pela dilação, Vieira utiliza-se de uma metáfora do mundo natural:

Se acaso, ou de indústria, lançastes uma pedra ao mar sereno e quieto, ao primeiro toque da água vistes alguma perturbação nela; mas tanto que esta perturbação se sossegou e a pedra ficou dentro do mar, no mesmo ponto se formou nele um círculo perfeito, e logo outro círculo maior, e após este outro, e outros, todos com a mesma proporção sucessiva, e todos mais estendidos sempre, e de mais dilatada esfera (1993, vol quatro, p. 222).

Vieira aplica esta metáfora, que os antigos filósofos utilizaram para explicar a propagação da luz e do som, à definição do movimento que o desejo humano produz na história da salvação, declarando que a comparação ilustra

o modo com que os OO dos desejos da Senhora, ao passo com que se multiplicavam, juntamente se estendiam. A Virgem Maria era o mar, que isso quer dizer Maria, a pedra era o Verbo encarnado, Cristo (...) e a pedra desceu a seu centro, logo os círculos que eram os OO dos desejos da senhora, se começaram a formar e crescer no seu coração de tal sorte que sempre os que se iam sucedendo e multiplicando, à medida do amor, que também crescia, eram mais crescidos também, e de maior e mais estendida esfera (1993, vol quatro, p. 222).

De modo que “cresceu o desejo à proporção do amor, e o tempo à proporção do desejo” pois “um só dia de ardente e ansioso desejo, é igual a todo o tempo a que se pode estender a vida humana” (1993, vol quatro, p. 223). No caso específico da Mãe de Deus, seus desejos mediam-se pelo objeto desejado e sendo que “o desejado era imenso, infinito, eterno” - “seriam também eternos os seus desejos” (1993, vol quatro, p. 224). Por outro lado, conforme assinala Pécora, para Vieira, “o desejo, para ser fecundo, teria de fundar-se sobre o conhecimento efetivo de seu objeto” (1995 p. 402).

Qual é o motivo pelo qual Maria, no período de sua gravidez, contendo já em si mesma o Objeto eterno e infinito do desejo, continuaria a desejar? Já que o tempo determina na vontade diferentes tipos de afetos, não seria o próprio desejo apaziguado pela presença do objeto?

A resposta de Vieira tem como ponto de partida a “verdadeira filosofia” (1993, vol quatro, p. 231): esta fornece a explicação do “porque o bem presente pode causar desejos, e porque a presença para se lograr há-de ter alguma coisa de ausência”.(1993, vol quatro, p. 231). Vejamos:

A presença para ser presença, há-de ter alguma cousa de ausência. O objecto da vista, para se poder ver, há-de ser presente; mas se está pegado e unido à mesma potência, é como se estivera ausente: há-de ser apartado dos olhos, para se poder ver. Assim a presença, para ser presença, não há-de passar a ser íntima, nem há-de estar totalmente unida, senão de algum modo distante (1993, vol quatro, p. 228).

Tal seria a experiência de Maria: “desejar que o que amo se ausente, e se parte de mim”.(1993, vol quatro p. 228).

 

O descobrir-se do encoberto

A presença ausente é o que move o desejo e a invocação de Maria, mas é também a mola da história humana: é o que permite a Padre Vieira no famoso Sermão dos Bons Anos (1641), estabelecer um paralelismo entre a história sagrada e a história atual de Portugal, especificamente entre a presença - ausência de Cristo após sua ressurreição e a misteriosa figura do Rei Encoberto, prestes a se manifestar:

Assim como a Madalena no mesmo tempo tinha a Cristo presente e vivo, e O via com seus olhos e Lhe falava, e não O conhecia, porque estava encoberto e disfarçado, (...) nem mais nem menos Portugal, depois da morte de seu último rei. Buscava-o por esse mundo, perguntava por ele, não sabia onde estava. Chorava, gemia e o rei vivo e verdadeiro, deixava-se estar encoberto, e não se manifestava, porque não era ainda chegada a ocasião; então se descobriu o encoberto senhor, porque então era chegado o tempo (1993, vol. um, p. 394-5).

A mesma concepção do desejo diante da presença encoberta como elemento motor da história humana – fundamenta o Sermão da Epifania, pregado na Capela Real no ano de 1662, dedicado à história dos três reis magos, símbolos das três nações do Velho Mundo (Europa, Ásia e África): neste, Vieira afirma que a nova terra e o novo céu que Deus irá criar – objeto das profecias do Antigo Testamento - é o Novo Mundo – cuja aparente novidade é na realidade a revelação de algo já presente desde as origens, mas por muito tempo encoberto aos olhos dos homens europeus:

Pois essa é a terra nova e esses são os céus novos que Deus tinha prometido, que havia de criar, não porque não estivessem já criados desde o princípio do mundo, mas porque era este o Mundo Novo tão oculto e ignorado dentro no mesmo mundo, que quando de repente se descobriu e apareceu, foi como se então começara a ser, e Deus o criara de novo (1993, vol. 1, p. 417).

 presença do Significado do tempo humano – Cristo Senhor da história, presença oculta, mas real no Sacramento eucarístico - é o que possibilita a unidade da história: por causa disto “a história que foi” pode ser “prognóstico do que há-de ser” (Sermão dos Bons Anos, 1641, em: 1993, vol um, p. 405), sendo que “Em profecias e benefícios começados, o mesmo é referir o passado, que prognosticar e segurar o futuro” (1993, vol. um, p.405).

Profecias e Benefícios” já começaram: algo que já acontece constitui-se no fundamento da certeza que sustenta a esperança no futuro e a memória fecunda do passado. E a presença do Sentido da história só pode desvelar-se à experiência do homem na aventura bela e misteriosa do presente - fundamentando assim sua ação e protagonismo.

Padre Viera, no último período de sua existência, diante das múltiplas derrotas vividas por ele mesmo, pela Companhia e pela nação portuguesa, tendo sido expulso em 1661 de Maranhão junto a toda a Companhia, após nove anos de presença naquela região devido à suas lutas contra a escravatura dos índios, coloca a realização histórica de seu desejo não mais num projeto histórico voltado par ao presente e sim no plano da esperança para o futuro, Concebe desse modo o plano do livro História do futuro, esperanças de Portugal e Quinto Império do mundo, dedicado ao ideal do Quinto Império, a saber, o Reino de Cristo que dentro em breve se havia de instalar na terra. Um príncipe português – o Encoberto – preconizado pelas profecias ibéricas (Delumeau, 1997), liquidaria definitivamente os inimigos da fé e conquistaria com grande espanto do mundo inteiro, a Terra Santa. Uma vez realizadas estas façanhas, o Quinto Império não tardaria em vir. Seria este um reino de mil anos, que havia de abranger todas as raças e todas as culturas, fraternalmente unidas na fé católica e incorporadas num só Império mundial; um reino de paz e de concórdia, um reino de justiça e harmonia, na qual as diferentes nações e culturas haviam de obedecer - de livre vontade - aos dois vigários de Cristo: ao papa de Roma, no plano espiritual, e ao rei de Portugal, no plano temporal. Terminado este período milenário, viria o Anticristo, a luta final e a consumação dos tempos. Quando Vieira escreve este livro em 1661, aproximava-se o ano de 1666, data que ele, como muitos outros pensadores dentro e fora de Portugal, tinham por decisiva na história da humanidade, porque nele se manifestariam os primeiros sinais da gloriosa transfiguração do mundo. Vieira, já no final de sua existência (pois morreu em 1697), tornará a expor esta tese no livro Clavis Prophetarum escrito em língua latina.

Na História do Futuro, Vieira reafirma a concepção providencialista (9) da história humana: Deus é o verdadeiro Senhor da história e a dirige conforme seus planos - misteriosos aos olhos humanos, mas anunciados pelos profetas. Retomando uma metáfora cara ao Barroco, a do teatro da vida, aplica-a para a consideração da história:

Este mundo é um teatro, os homens as figuras que nele representam, e a história verdadeira de seus sucessos uma comédia de Deus, traçada e disposta maravilhosamente pelas idades de sua Providência. E assim como o primor e subtileza da arte cômica consistem principalmente naquela suspensão do entendimento e doce enleio dos sentidos com que o enredo os vai levando após si, pendentes sempre de um sucesso para outro sucesso, encobrindo-se de indústria o fim da história, sem que se possa entender onde irá parar, Senão quando já vai chegando e se descobre subitamente entre a expectação e o aplauso; assim Deus, soberano autor e governador do mundo, e perfeitíssimo exemplar de toda a natureza e arte, para maior manifestação de sua glória e admiração de sua sabedoria, de tal maneira nos encobre as cousas futuras, ainda quando as manda escrever pelos profetas, que não nos deixa compreender nem alcançar os segredos de seus intentos, para nos ter sempre suspensos na expectação e pendentes de sua Providência (1983, p. 110).

De modo semelhante ao povo hebreu no Antigo Testamento, no tempo presente outro povo foi chamado a ter a função da profecia tendo sido escolhido e preferido entre as demais nações da terra: o povo português. Alcir Pécora comenta a respeito que “o progresso da cristandade universal, balizado nos sermões de Antônio Vieira, sobretudo pela confluência do divino e do humano na história, estaria, na verdade, para ele, dependente do avanço dessa nação com especial inclinação para o serviço de Deus no mundo”.(1994, p. 216).

Para além dos artifícios utilizados pelo divino Cenógrafo na Divina Comédia da história para manter “suspensos” os espectadores, é, porém verdade que em muitos casos as profecias não se entendem porque simplesmente encobertas por vontade dos homens. Assim é que o homem, para ser profeta, deve ter os olhos abertos e atentos a reconhecer as verdadeiras realidades além das aparências. Ser profeta é então ser capaz de reconhecer o verdadeiro sentido do tempo:

Como se hão-de entender as revelações com os entendimentos e os olhos velados? (...) Se os olhos estão cobertos e escurecidos com o véu do afecto ou com a nuvem da paixão; se os cega o amor ou o ódio, a inveja ou a lisonja, a vingança ou o interesse, a esperança ou o temor, como se pode entender a verdade da profecia, por muito clara que nela esteja, quando o primeiro intento é negá-la ou, quando menos, escurecê-la? As nuvens que Deus põe sobre a profecia, o tempo as gasta e as desfaz, mas os véus que os homens lançam sobre os próprios olhos, só eles os podem tirar, porque eles são os que querem ser cegos (1983, p. 111).

Por outro lado, a história é um continuo revelar-se do Mistério e é por isto que o transcorrer do tempo é um fator que colabora ao desvelar-se das profecias. Com efeito, conforme assinala Pécora (1994), na concepção de Vieira a presença divina se inscreve, dirigida aos homens, dentro dos próprios fatos históricos, sendo esses concebidos como lugares da manifestação de Deus. Por isto,

descobrimos hoje mais, porque olhamos de mais alto, e distinguimos melhor, porque vemos de mais perto; e trabalhamos menos, porque achamos os impedimentos tirados. Olhamos de mais alto, porque vimos sobre os passados; vemos de mais perto, porque estamos mais chegados aos futuros; e achamos os impedimentos tirados, porque todos os que cavaram neste tesouro e varreram esta casa, foram tirando impedimentos à vista; e tudo isto por benefício do tempo, ou – para o dizer melhor – por providência do Senhor dos tempos (1983, p. 112).

Em síntese, o homem que vive no tempo histórico, realiza plenamente sua identidade ao tornar-se profeta, mas para isto deve adquirir o verdadeiro conhecimento da realidade, buscando apreender seu sentido presente, mas velado pelo mundo das aparências. Trata-se de viver o desengano - categoria gnosiológica muito importante do pensamento barroco, que consiste na capacidade de desenvolver um olhar para a realidade além do engano das aparências.

 

Identidade, tempo e história numa perspectiva pre-iluminista: tecendo comparações

Evidencia-se assim pelo percurso realizado que a posição de Vieira expressa uma concepção histórica e gnosiológica pre-iluminista. Encontra-se aqui a raiz da semelhança entre a visão de Vieira e o relato de Zé Leal de Morro Vermelho acerca da passagem do milênio.

O filósofo russo N. Berdiaev (1979) define a forma de conceber os acontecimentos temporais anterior ao Iluminismo, como marcada por uma consciência antropológica onde o homem concebe-se em profunda comunhão com o fator histórico. Pelo contrário, a razão iluminista, própria dos séculos XVIII e XIX, dissocia-se a si mesma da história do mundo a acaba por colocar-se de modo externo aos acontecimentos, pretendendo medi-los e julga-los a partir de critérios por ela mesma definidos. Desse modo, surge a divisão entre o objeto (história) e o sujeito do conhecimento histórico, divisão esta que caracteriza o homem da modernidade e a ciência histórica enquanto área do saber. Berdiaev afirma que quando há uma ruptura da comunhão misteriosa do homem com a tradição, permanece apenas o “cadáver da história”, pois somente na medida em que o sujeito do conhecimento histórico mantém vivo o vínculo com a vida interior, pode estar em comunhão com sua intima essência (1979).

Na perspectiva pre-Iluminista, o homem é um ser histórico: ele vive na história e a história habita nele, sendo que a história é conhecida através da memória histórica, por sua vez indissociável da tradição: “Entre o homem e o histórico existe uma solidariedade tão profunda e misteriosa em seu fundamento primordial, uma reciprocidade tão concreta, que é impossível separa-los”.(1979 p.26, tradução nossa). Com efeito,

o histórico está arraigado em um certo fundamento primordial profundíssimo do ser e dá-nos a possibilidade de compreende-lo e entrar em comunhão com ele. O histórico é una certa revelação da mais profunda essência da realidade mundana, do destino do mundo e do que constitui seu número fundamental: o destino do homem (ibidem).

A consciência pré-iluminista da história, estrutura-se dois momentos: o momento conservador e o momento criador. O processo histórico é possível pela união dos dois momentos. O momento conservador é o vinculo com o passado espiritual, a tradição interior, o que há de mais sagrado no passado. O momento dinâmico – criador indica uma tensão criadora voltada para o futuro e para a resolução da história: “o vinculo interior com os antepassados, com a pátria, com todo o que é sagrado, é sempre um nexo com o processo dinâmico criador voltado ao futuro, à resolução da história, à criação de um mundo novo”.(1979, p. 45).

Berdiaev ressalta a atitude profética necessária a este tipo de consciência histórica: trata-se do reconhecimento do nexo dinâmico interior, do significado que liga passado, presente e futuro. Trata-se, em suma, de possuir uma metafísica da história:

Somente uma atitude profética com relação ao passado põe em movimento à história e somente uma atitude profética para com o futuro poderá ligar este com o presente e o passado, através de um certo movimento interior, espiritual. Somente uma atitude profética para com a historia poderá vivificar a historia, insuflando em seu caráter estático o fogo interior do movimento espiritual (1979, p. 46).

A dimensão essencial da consciência histórica assim definida é o princípio da liberdade humana – herança do cristianismo - como verdadeiro sujeito da ação histórica, sem a qual seria inclusive impossível falar propriamente em história.

O historiador francês Ph. Ariès (1989) afirma uma concepção semelhante à de Berdiaev: segundo ele, seria uma contribuição própria do cristianismo medieval a idéia de uma estreita dependência entre o homem e a história. Com efeito, o cristianismo descobriu o conceito de história universal, marcada pela existência de um sentido universal e sagrado, sendo que na Encarnação, Deus comunica-se no tempo. Desse modo, “o passado deixava de ser objeto de simples curiosidade. Os acontecimentos tornavam-se meios para Deus manifestar-se aos homens” (1989, p. 103).

A perspectiva histórica - teológica define assim a identidade do povo cristão no período medieval, sendo posteriormente esquecida pela cristandade moderna, em proveito do dogmatismo e do moralismo. Toda a vida da sociedade medieval baseava-se na recordação do passado: tratava-se de “um sentido existencial do passado” (1989, p. 100). Esta experiência própria da cultura da Idade Média permanece, segundo o historiador francês, na vida quotidiana das comunidades tradicionais ainda vivas na atualidade.

quando são apreendidas antes de sua inserção numa estrutura mais complexa e mais abstrata. Essas comunidades situam-se por si mesmas no tempo (...) Podemos experimentar esse sentimento em nossas famílias, na consciência que têm de sua própria história. (...) È um conjunto de anedotas, de retratos, de narrativas, vagamente datadas por geração ou com relação a um grande acontecimento histórico (...). Esse conjunto, porém, não é incoerente: jamais reunido num todo, tem uma unidade profunda, constituída pelo presente vivido. Pois esta história familiar não se distingue da existência familiar (...) ela faz parte do tecido de vida familiar. Não há vida familiar sem esta tendência de cada instante para a recordação. Ora esta devoção com o passado, não é nunca uma reconstituição objetiva. (...) Com efeito, a maneira com que cada família constrói espontaneamente sua história, como podemos experimentá-la hoje, é um tipo de memória coletiva muito próximo da noção medieval do tempo (1989 p. 100-101).

Morro Vermelho é um exemplo vivo deste tipo de comunidade tradicional, presente no tecido da cultura brasileira. A elaboração que o senhor Zé Leal e os demais membros desta comunidade fazem de suas próprias experiências é marcada por elementos advindos de uma concepção do homem, do tempo e da história que - tendo suas raízes no longínquo passado medieval - encontrou continuidade e expressão ao longo da história da cultura luso-brasileira, nas palavras dos sermões que Antônio Vieira, assim como muitos outros pregadores a ele contemporâneos pregaram ao povo, em catedrais, igrejas e capelas do Brasil colonial. Conforme afirma G. Araujo, “percebe-se hoje que a tradição oral brasileira é um pedaço da tradição da Idade Média que ficou no Brasil. Talvez venha daí as semelhanças que existem entre as duas”.(em: Gramani, 1997, p. 3). Para além das grandes descontinuidades que marcam a história política e cultural do Brasil, existem, portanto, laços de um tecido de permanências:

“Além, além, além, o entrelaçar significa”
(Gramani, J.E., 1997)

 

Referências Bibliográficas

Ariès, P. (1989). O tempo da história. Rio de Janeiro: Alves.

Berdiaev, N. (1979). El sentido de la historia. Madrid: Encuentros.

Delumeau, J. (1997). Mil anos de felicidade. Lisboa: Ed. Terra-mar.

Gramani, J. G. e ANIMA (1997). Espiral do tempo, CD. Campinas: Anima - Música popular brasileira e música antiga.

Maravall, J. A. (1997). A cultura do Barroco. São Paulo: Edusp.

Mahfoud, M. (2001). Empenhado na mudança do milênio: identidade, história e profecia em uma comunidade rural tradicional. Memorandum, 1, 2-12.

Pécora, A. (1994). Teatro do Sacramento. São Paulo: EDUSP; Campinas: Editora Unicamp.

Pécora, A. (1995). O desejado. Em A. Novaes (org.). O desejado (pp. 399-414). São Paulo: Companhia das Letras.

Vieira, A. (1993). Sermões. Cinco volumes. Porto: Lello e Irmão.

Vieira, A. (1983). Livro Anteprimeiro da História do futuro. (Van Beesselaar, org.). Lisboa: Biblioteca Nacional.

 

Notas

(1) Conforme afirma o historiador Ph. Ariés, discutindo a opção diante da qual encontra-se o homem do fim do século XX: "ou efetivamente a história é um movimento elementar, inflexível e sem amizade, ou então existe uma comunhão misteriosa do homem na história: a apreensão do sagrado imerso no tempo, um tempo que seu progresso não destrói, onde todas as épocas são solidárias" (1989, p.43). Estabelece-se assim uma relação entre historicidade, religiosidade e subjetividade. voltar

(2) É nesta perspectiva também que a mesma entrevista poderá ser discutida pelo Prof. Gilberto Safra, à luz do pensamento de Vladimir Soloyov, sobretudo no que diz respeito às concepções de historicidade e de sagrado como vértices organizadores do self. voltar

(3) Nossa análise, porém, ocupou-se não tanto nos conteúdos milenaristas dos referidos textos quanto nas relações implicadas entre sentido do tempo e da história, horizonte escatológico, sentido da identidade pessoal e histórica do sujeito - na concepção vieiriana. voltar

(4) Maravall (1997) define como Barroco um conceito histórico que compreende os três primeiros quartos do século XVII e que evidencia elementos de relativa homogeneidade nas mentes e nos comportamentos do homem. Tais elementos, em sua articulação conjunta dentro do contexto político, econômico e social, formam uma realidade única. voltar

(5) "No cristianismo deve chamar-se de milenarismo a crença num reinado terrestre de Cristo e dos seus eleitos – devendo esse reinado futuro durar mil anos, tomados quer à letra, quer em termos simbólicos. O advento do milênio foi concebido como devendo situar-se entre  uma primeira ressurreição – a dos eleitos já falecidos – e uma segunda – a de todos os outros homens para serem julgados. O milênio deve, pois, intercalar-se  entre o tempo da história e a descida da Jerusalém celeste. Dois períodos de provações enquadrá-los-ão. O primeiro verá o reinado do Anticristo e as tribulações dos fiéis de Jesus, que, com este triunfarão sobre as forças do mal e estabelecerão o reino da paz e da felicidade. O segundo, mais breve, verá uma nova libertação das potências demoníacas, que serão vencidas num último combate" (Delumeau, 1997, p. 15). voltar

(6) “Tudo isto se realizará depois do ano mil e setecentos do nascimento do Filho de Deus no mundo e antes do ano mil setecentos e trinta e quatro” (citado em Delumeau, 1997, p. 187). voltar

(7) Com efeito, afirma Vieira: (p. 208) “uma das maiores excelências das Escrituras Divinas, é não haver nelas nem palavra, nem sílaba, nem ainda uma só letra, que seja supérflua, ou careça de mistério. Tal é o misterioso O que hoje começa a celebrar e todos estes dias repete a Igreja, breve na voz, grande na significação, e nos mistérios profundíssimo.”. Neste sentido, conforme assinala Pécora (1994), o sermão do pregador tem a função de descobrir e afirmar através da palavra, os sinais divinos ocultos nas Sagradas escrituras, mas também na história do mundo: “retórica análoga à retórica divina que a hermenêutica descobre no avanço dos tempos” (idem, p. 171). voltar

(8) “Os desejos da Virgem Santíssima, todos eram: O quando chegará aquele dia? O quando chegará aquela ditosa hora, em que veja com meus olhos e em meus braços ao Filho de Deus e meu? O quando? O quando? O quando?” (p. 218). voltar

(9) “Para Vieira, a questão relevante da história não é a de sinalizar simplesmente o Ser absoluto de deus, mas sinalizá-lo enquanto Providência divina dirigida ao próprio homem” (Pécora, 1994, p. 171). voltar

Nota sobre a autora

Marina Massimi é Livre Docente e trabalha junto ao Departamento de Psicologia e Educação na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Campus de Ribeirão Preto, Brasil. Especialista na área de História das Idéias Psicológicas na Cultura Luso-Brasileira. Contatos: Avenida Bandeirantes, 3900 - 14040-901 - Ribeirão Preto (SP) / Brasil. - e-mail: mmarina@ffclrp.usp.br. - Fone: (55) (16) 6023802 - Fone: (55) (16) 6308738.

 

Data de recebimento: 09/08/2001
Data de aceite: 10/10/2001
 
Memorandum, Out/2001
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. 
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos01/ massimi01.htm

 

 

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