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- Nota
Bene: o
presente artigo foi concebido em um âmbito de debate, estabelecendo
analogias e diferenças entre horizontes culturais diversos. Sugere-se
a leitura confrontada de três artigos publicados neste número 1 da
revista Memorandum: "Empenhado
na mudança do milênio: identidade, história e profecia em uma
comunidade rural tradicional",
"Identidade, Tempo, Profecia na Visão de Padre Antônio Vieira",
"Rei, Sacerdote, Profeta: historicidade, religiosidade e
subjetividade".
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- Empenhado
na mudança do milênio:
- identidade,
história e profecia em uma comunidade rural tradicional
-
- Engaged
in the turn of the millennium: identity, history and prophecy in a
traditional rural community
-
- Miguel
Mahfoud
- Universidade
Federal de Minas Gerais
- Brasil
-
-
- Resumo
- Estudo
de caso sobre um líder de uma comunidade rural
tradicional que se diz empenhado na mudança do milênio.
A apreensão do significado desse empenho para sua
própria pessoa, sua comunidade e todo o mundo – assim
como vivido e representado pelo sujeito – permite
contemporaneamente apreender os horizontes temporais,
espaciais e sociais em que se dá a elaboração da
experiência. Os resultados da análise fenomenológica
indicam que esse momento cultural suscita no sujeito uma
concepção de identidade associada à participação na
história universal através do empenho nesse momento
histórico de “purificação radical”. A concepção
do valor sagrado da história comunitária baseia-se na
inserção na história bíblica, ao mesmo tempo que a
concepção do valor político do empenho se baseia na
participação da história política brasileira. Nessa
visão político-religiosa a identidade pessoal e
comunitária é tecida com caráter profético diante da
história universal.
-
- Palavras-chave:
Religiosidade Popular; Psicologia e Cultura; Fenomenologia
Social.
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- Abstract
- Case
study about a leader of a traditional rural community who
affirms he is engaged in the turn of the millennium. The
understanding of the meaning of this engagement for himself,
his community and the whole world – as it is lived and
represented by the subject – allows us to understand the
temporal, spatial and social horizons in which the
elaboration of the experience takes place. The results of
the phenomenological analysis indicate that this cultural
moment rouses, in the subject, a conception of identity
associated with his participation in the universal history
through his engagement in this historical moment of
“radical purification”. The conception of the value of
“sacred” in the communitarian history is based on its
insertion in the biblical history. Concurrently, the
conception of the political value of the engagement is based
on the participation in the political history of Brazil.
Within this political and religious vision, the personal and
communitarian identity is built with prophetic zeal within
the horizon of the universal history.
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- Keywords: Popular Religiosity; Psychology
and Culture; Social Phenomenology.
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Na pequena comunidade rural de Morro Vermelho (Caeté – MG), em sintonia
com o mundo todo, o tema da passagem do milênio tornou-se recorrente.
Como comunidade tradicional, seus fortes laços de parentesco, sua referência
viva e precisa às tradições locais, suas celebrações religiosas com
forte poder ordenador da organização comunitária e das relações
interpessoais (cf. Mahfoud, 2001), Morro Vermelho tornou-se palco de um
acirrado debate travado pelos moradores em busca de compreensão do que é
o homem e a história, em busca de um posicionamento acertado neste
preciso momento histórico.
O presente artigo quer acompanhar a elaboração própria daquela
comunidade sobre o tema, identificando os horizontes do mundo-da-vida
constituídos naquele contexto cultural popular e tradicional, de maneira
a evidenciar suas articulações entre identidade pessoal e comunitária;
entre passado, presente e futuro; entre mito e historicidade; entre religião
e política; entre local e universal. Oxalá torne-se uma contribuição
ao conhecimento da elaboração popular sobre o tema da história e suas
vicissitudes, tema este tão caro e dramaticamente atual para toda a
comunidade humana.
De fato, as repercussões psicológicas ligadas ao tema da passagem do milênio
associada ao final dos tempos têm sido objeto de debates em todos os âmbitos
da sociedade, em todo o mundo, como bem o documenta a já célebre obra de
Georges Duby (1999) “Ano 1000, ano 2000” acomunando nossos desafios
atuais aos já vividos por homens de sociedades bem distintas e distantes
no tempo. Nesta perspectiva ampla, não faltaram contribuições para uma
revisão do sentido da história e dos desafios econômicos e políticos
do presente (Cf. Cardini, 1991; Finzi, 1991). Mesmo no Brasil, o
milenarismo não é “privilégio” dos últimos anos do final de século,
e algumas vezes tem sido abordado de maneira sensível e cuidadosa, como
em “Os errantes do novo século” de Monteiro (1974).
Conheçamos, aqui, as elaborações de um líder da comunidade de Morro
Vermelho, que se diz “empenhado com a mudança do milênio”. Zé Leal,
65 anos, casado e pai de três filhos, com escolaridade primária (4a.
série do primeiro grau), é mestre da banda local, diretor e membro
fundador da Associação da Cavalhada que tem forte atuação nas festas
locais, é líder reconhecido na comunidade enquanto Igreja e enquanto
sociedade civil, é benzedor e sindicalista rural.
Examinamos o conteúdo de duas entrevistas concedidas por ele sobre o
tema, em dezembro de 1999 e maio de 2000, evidentemente momentos em que a
passagem do milênio e as iniciativas em relação a ela estavam
acontecendo.
Numa perspectiva fenomenológica, as entrevistas, como coleta de dados,
foram conduzidas tendo em vista obter a descrição do vivido, para
depois, com uma análise no mesmo enfoque (van der Leeuw, 1970), chegarmos
a apreender o significado afirmado no posicionamento do sujeito em seu
mundo. Procedemos, então, à descrição fenomenológica segundo a
exigência de estabelecer de modo essencial as características
fundamentais do fenômeno tomado em exame. Segundo a característica de
tal descrição seguiremos dupla direção: (a) para o interior do sujeito
analisando as experiências vivenciais e a vida da consciência com as
suas modalidades de se manifestar, e (b) análise das concepções do
mundo através da investigação da intersubjetividade. A descrição
fenomenológica nos aponta, então, pontos de referência essenciais,
permitindo identificar estruturas universais no mundo-da-vida tomado em
sua essencialidade. Enquanto psicologia fenomenológica, de caráter
descritivo, nos interessa o ser humano e sua atividade cognitiva enquanto
ele estabelece relações espaço-temporais e causais em um horizonte
inter-subjetivo. (Bello, 1998; 2000).
Nesta perspectiva, os objetos culturais são tomados como descrição do
vivido (Amatuzzi, 1996). E cultura “é reconduzida ao seu
significado profundo, constituído pelas mentalidades, pela forma de
orientação, pelas expressões e pelos produtos próprios de um grupo
humano mais ou menos extenso (...) Uma ontologia do mundo da vida, por
conseguinte, coincide com a ontologia da cultura” (Bello, 1998, p.42).
“Essa mudança, eu to empenhado nela. (...) Eu mesmo tô trabalhando pra
acontecer coisas boas”: Com voz firme e ares convictos, Zé Leal, ao
longo das entrevistas, vai explicitando o significado de tal frase e
mostrando-nos sua concretude dentro dos amplos horizontes do mundo-da-vida
de Morro Vermelho.
Procuremos,
inicialmente, apreender sua visão de si mesmo neste preciso momento histórico:
Vez
em quando eu falo assim que eu sou um homem de visão. Visão é o
seguinte: ou seja, visão é ocê enxerga longe, enxerga um pouco o amanhã,
né? Que vez em quando, eu uso falar assim: o ontem a gente viu, o hoje a
gente vê e o amanhã a gente prevê. Então, por exemplo, o povo num sabe
muito distinguir. Tipo assim, no Velho Testamento, principalmente, Deus
escolhia um homem pra ser o profeta no meio daquele povo lá. Então o
profeta ficava falando coisas que ainda ia acontecer de bom para o povo,
outra hora é de castigo, né?, se o povo num mudasse de vida; mas o povo
não levava isso muito em conta, o que os profetas falavam, né?, mas no
final... Tipo eu baseei muito no profeta Isaías, principalmente, que ele
profetizava que a Virgem iria dar à luz a um filho, né? Quer dizer, o
profeta Isaías é do Velho Testamento. O que ele falou foi acontecer no
Novo, que é Nossa Senhora, né? que deu à luz a Jesus Cristo. Então, o
que ele andou falando, foi acontecer no Novo Testamento. Quer dizer, o
amanhã, o imprevisto. Então, vez em quando eu falo isso. É, eu tenho
essas características de preparar um pouco o amanhã. O amanhã é assim,
a gente vai falando mesmo, mas o povo não vai muito dando crédito àquilo
que a gente fala.
Ser “homem de visão”, com “características de preparar o amanhã”,
tem seu fundamento não só bíblico como indicado no relato acima, mas
também um fundamento catequético e sacramental:
Esse
ato profético, por exemplo, nós já recebemo ele é no batismo; é o
contrário do Velho Testamento. E no Novo Testamento, ao sermos batizados,
Jesus já nos dá o dom, que os padres mesmo falam: após ser batizado, nós
recebemos o perdão. Sacerdote, profeta e rei. Quer dizer, então, é um
dom que Deus tem; é pra gente preparar o amanhã. Esse amanhã, eu sou um
dos que anda falando muito nele aí e o povo mesmo, pouco.
Num tecer cuidadoso, caracteristicamente mineiro, Zé Leal chega a
explicitar, então sua identidade de profeta e a origem sagrada de seu dom
recebido para “preparar o amanhã”. E, ao mesmo tempo, numa atitude típica
de Morro Vermelho, procura evidenciar fundamentos de sua compreensão de
si também tomando por base os acontecimentos quotidianos e sua própria
reação a eles:
E
eu tô nessa perspectiva. Eu falo que é coisas que vêm pra mim assim,
que chega e serve pra alimentar minha idéia: eu acredito que vai ter uma
mudança.
A correspondência entre suas idéias e o que vai acontecendo ao redor, ao
alimentar suas idéias, confirma sua identidade de “homem de visão” e
de “profeta”. A apreensão do sentido das coisas, a conexão entre os
eventos, sua afirmação em gestos concretos, o diferenciam e o definem
como “ligado”:
Eles
num dá muito sentido a nada. Eles até caminha com a gente, mas é porque
a gente puxa a caminhada, eles acompanha; mas se depender deles até nem
faz: ‘já fizemos adoração do Santíssimo’; a caminhada fica tipo
supérfluo, né? Mas, igual eu tô te falando, que eu sou ligado às duas
coisas: eu acho importante a vigília que vamos fazer e concretizar com
essa caminhada, porque a própria letra convida essa caminhada, né? Ela
faz um convite. Se eu convido: ‘Vamo lá em casa?’. ‘Ah, não, Zé
Leal, num vou lá não’; releva. Mas era bom cê ter ido lá, né? Assim
é essa caminhada aí.
A
conexão entre os elementos da realidade alimenta suas idéias e ao
mesmo tempo indica o valor objetivo: afirmá-lo em um trabalho.
De fato, Zé Leal logo havia nos indicado que está “trabalhando”. Em
que consiste, então, seu trabalho?
Na perspectiva de um “homem de visão”, guardava há dez anos a cópia
da partitura de músicas para uma missa com letra adequada para o solene
momento da passagem do milênio. O primeiro trabalho foi guardá-la, mesmo
sem saber muito precisamente como a música seria musicada. Agora é
hora de novos passos:
Eu
tinha uma missa qu’eu tinha guardado a cópia dela desde ’89; quer
dizer, tá com dez anos! A música eu sabia, mas eu nunca tive a
curiosidade de querer saber o ritmo da música. Agora não. Agora já tô
com a música gravada pra ensinar o grupo pra cantar ela na passagem do
2000. É tanto que eu tô fazendo um aviso pra sair na missa; tá até
aqui, quer ver? Por isso que eu falo que eu estou trabalhando pra coisa
fazer séria, aqui ó: “Aviso: José Leal comunica ao grupo de cantores,
catequeses, adolescente, crismando, carismáticos e as crianças do grupo
escolar, que já está gravada a letra da música a ser cantada na
primeira missa do ano 2000, à meia-noite, do dia 31 de dezembro próxima,
se Deus quiser. Os interessados, marcar comigo, o dia e a hora de ensaiar
as músicas”. É isso que eu estou trabalhando pra acontecer.
Guardar por anos, executá-la agora, propô-la a todos como adequada ao
importante momento: seu “trabalho” é dar corpo a um valor intuído,
sempre na dinâmica de “usar as coisas que vem pra mim” e sempre na
busca de conexões:
eu
sou um que tô pensando, pensando e vigiando, vigiando os acontecimentos,
que poderá melhorar pr’os que souber obedecer a Deus.
Manter-se firme, sem parar, nessa vigilância é visto como parte de sua
identidade de profeta e ao mesmo tempo como uma graça:
Num
paro com a idéia não, porque às vezes Deus, Ele quer que a gente dá
uma mensagem, né? Se a gente fica calado, a gente tá ocultando a
mensagem. Aí, eu continuo falando. Eu tenho perspectiva. (A música) Tava
falando: castigos e graças. Então, agora a graça a gente tem que tá
obedecendo como um vigilante. O próprio Jesus Cristo fala na volta
d’Ele, né? ‘Ficais vigilante’.
Seu trabalho é vigiar firmemente os acontecimentos, reconhecendo-os e
afirmando-os, e então seu trabalho é, a um só tempo, acolher a graça
nos acontecimentos e viver a graça de percebê-los e desenvolve-los,
viver essa graça destinada a todos.
De fato, outro “trabalho para acontecer coisas boas” que Zé Leal vem
realizando é a reza do rosário tendo em vista a misericórdia para com
todo o mundo:
há
uns dois ou três anos, toda primeira quinta-feira - num sei se eu já te
falei isso - eu rezo sete rosários, que corresponde 1050 ave-marias...
Sete rosários. E eu tô fazendo essa oração em favor de evitar castigos
no mundo. Quer dizer, então eu tô fazendo alguma coisa. Cê fala assim:
“Ah, mas não...”. Não, eu sou um dos que, aqui no Morro, eu tô
fazendo, rezando para evitar castigo no mundo. Porque Deus é assim: Deus,
Deus ameaça castigar, mas se tem ao menos um que fica pedindo a Deus que
não, Deus atende, né? Então, tem essas profecias, mas também tem a
misericórdia de Deus que Ele vai atendendo a vida das pessoas.
Começamos, então, a apreender o que significa para ele “coisas boas”
pelas quais ele trabalha vigilantemente.
Outro sentido fortemente afirmado das “as coisas boas” é o
concretizar-se de algumas idéias cheias de significado, especialmente
quando há coincidência com o posicionamento de outras pessoas,
confirmando o seu valor e sua origem sagrada:
É.
Pra acontecer coisas boas. Outra coisa que tá dentro desse caminhar nosso
aí, é tá se desenvolvendo uma idéia também, d’uma procissão de
Nossa Senhora com o Santíssimo Sacramento na rua toda, após a missa da
meia-noite. A procissão de 8 de setembro agora tá inspirando na nossa
cabeça... A nossa cabeça, eu falo assim, minha que já tô trabalhando há
mais tempo na idéia, né? e Márcio que nós todos conhecemo ele por Biló,
ele que introduziu na idéia que: ‘Ah, vamo fazer uma procissão de
Nossa Senhora, com a rua toda, com o Santíssimo Sacramento; esse ano vai
ser diferente’. Vai ser: Ela na frente e o Santíssimo Sacramento atrás,
como o comandante da coisa [Ri]. Tamo trabalhando pra acontecer coisas
boas.
É interessante notar que a “as coisas boas” que estão por acontecer
baseiam-se nas principais celebrações da comunidade: a procissão de
Nossa Senhora de Nazareth no dia de sua natividade, a 8 de setembro,
quando a imagem muito venerada sai pela rua principal – quase a única
– do vilarejo; e a procissão pelo mesmo trajeto com o Santíssimo
Sacramento encerrando vitoriosamente a celebração do mistério da Cruz e
Ressurreição de Cristo. Sendo que toda a vida da comunidade se organiza
em torno dos dois grandes ciclos - o da festa de Nossa Senhora e o da
Quaresma e Semana-Santa - (cf. Mahfoud, 2001), a boa novidade proposta se
configura como uma síntese dos grandes momentos que caracterizam a vida
local.
Mas Zé Leal havia nos indicado também, desde o início, que seu empenho
se volta para uma mudança neste tempo de passagem de milênio.
Vejamos, então, de que se trata.
Eu
tenho uma convicção que, nessa mudança, Deus vai fazer uma seleção de
povos. Vai fazer seleção de povos. Quer dizer, aqueles que souber ouvir
Deus, né? ele será protegido, mas eu tenho uma impressão que tem uma
mudança radical nesse novo milênio.
Fundamentando-se em palavras proféticas de Nossa Senhora de Fátima,
conhecidas através de uma música, que se refere a “prêmios e
castigos”, Zé Leal interpreta:
Quer
dizer, prêmios para quem souber observar as coisas de Deus, né? Castigo
pr’aqueles que ficar descuidando e achar que ‘Ah, não! O amanhã é
sempre amanhã’. Então, este poderá apanhar muita gente de surpresa, né?
E eu tô nessa perspectiva.
Firmado também no dito mariano profético de que “por fim, o meu coração
imaculado triunfará”, Zé Leal identifica, convicto, que a mudança
iminente é uma radical seleção de povos, tendo por crivo a pureza
sexual, e “prêmio ou castigo” está fortemente condicionado ao
posicionamento de cada pessoa diante de sua condição de vida:
É
muito fácil chegar bem no ano 2000. Basta observar duas coisas: primeiro,
aos casados, ter fidelidade conjugal; e aos solteiros, preservar a
castidade, é simples. E eu tenho impressão comigo que quem tiver dentro
desses requisitos vão receber graça; quem não tiver, vai receber
castigo. Tá nessa palavra lá, ‘prêmios e castigos’: prêmios
pr’aqueles que tiver ou que souber obedecer; os que num souber obedecer,
castigo. Eu tenho essa convicção também. Eu num falo ‘acho’.
Um outro fundamento para essa concepção radical de seleção de
povos é tomado do Evangelho sempre em confronto com a observação dos
tempos atuais:
Eu
falo assim: purificação, seleção de povos, né? Quer dizer, tipo
assim, que o próprio Evangelho dá a gente umas dicas disso, né? Notando
os tempos... Fala o trigo e o joio, né? Então, o próprio Jesus Cristo
deixou uma pista assim: que que é trigo, que que é joio; então, ele
mesmo falou pra nós, com os discípulos dele: ‘Ó, o trigo são gente
boas, os outros são gente ruins. Os ceifadores serão os anjos e a terra
é o mundo’. Então, dá uma pista de seleção também. É fundamental
aí.
A observação leva Zé Leal a confirmar uma profecia proferida há séculos
e que realiza na atualidade. Isto também se coloca como fundamento de sua
convicção no cumprimento de outra profecia que estaria por se cumprir
nesta mudança de milênio, encerrando um período de impurezas. O final
do século e do milênio é indicativo de um grande término: é o tempo
da realização da profecia de purificação realizando a mudança
radical, iniciando um novo povo.
O
século XX num está acabando? Ele tá acabando! Fim de tempo. É, tem uma
das coisas - que eu tenho observado – que... e que Nossa Senhora; ela
falou no final de 1600 pra início de 1700, Nossa Senhora do Bom Sucesso.
Ela apareceu a uma irmã e falou pra irmã o que iria acontecer no século
XX. Que ia ter: a virgindade seria descartada, ia haver, leis para
facilitar o divórcio... Quer dizer, Nossa Senhora falou em 1700 o que ia
acontecer no ano ‘900. Quer dizer, quem são os sobreviventes do ano
‘900? É nós. Nós é que tamos aí. O que Nossa Senhora falou em 1700,
mais ou menos, aquele povo não viu acontecer, que nós tamos vendo
acontecer. Outra coisa que ela falou com a irmã, é que as impurezas
seriam praticadas em ruas, em praças e logreidores públicos, no século
XX, que graças a Deus está terminando. E quem tá vendo isso? É nós!
Quer dizer, daquela conversa que Nossa Senhora teve com a irmã, aquele
povo num viu o que nós tamo presenciando hoje - a gente mesmo, aqui no
Morro mesmo, um lugar muito pequenininho; Caeté nem se fala! Aqui também,
a gente acha impureza aí pra rua afora. É uma das coisa que eu falo: a
virgindade, por exemplo, nos anos 60, o que desvirginasse uma moça era
punido, hoje não. Hoje é muito raro, um desvirgina e num tem sentido
nenhum. Quer dizer, mas já tava falado, né? Tá acabando, graças a
Deus, esse tempo, também [Ri], tá acabando.
O fim da impunidade - esta sinal de injustiça, típica de um tempo
impuro – é esperado também no campo social e político, como aspecto
da radical mudança que está por vir:
Num
pode continuar desse jeito que está, porque eu já entendi que nesse
final de milênio, quem faz coisas erradas que tão sendo protegidos, até
o momento, né?... Então eu acho que, se Deus quiser, do 2000 em diante
vai ter uma mudança até nisso aí.
De fato, um campo histórico,
social e político é muito marcante no mundo da vida de Zé Leal e de
Morro Vermelho, ainda que seja fortemente caracterizado por uma concepção
mítica. Na verdade, é neste campo que se evidencia a abrangência
totalizante de seu posicionamento. Tal abrangência é dada justamente por
sua posição religiosa, indicada como sendo própria da comunidade local.
A partir desse crivo religioso, há crítica em relação à sociedade
moderna, bem como em relação à própria comunidade. A expectativa
religiosa instaura imediatamente um âmbito de pertença, que se torna
fonte de identidade, em seu aspecto de identificação e de diferenciação:
A
gente vê aí, por exemplo, tem uns falando no reveillon, né? No reveillon,
por exemplo, já é requisitando hotel até caro, né? Eu já vi pela
televisão, mas aí - como é que se diz? - é perspectiva que é igual
uma coisa, é uma passagem; agora nós, é tipo assim: nós tão com uma
expectativa religiosa, né? Uma expectativa religiosa, tem... tem na parte
da Igreja, por exemplo, tudo; a Igreja vai fazer tudo, toda a nossa Igreja
vai, desde Roma, né? desde a nossa sede central. Roma, vai fazer o
jubileu, né? É considerado também um ano santo, né? Vai fazer, Roma,
quer dizer, as Igrejas Católicas tudo comandada por ela vai fazer; mas
vez em quando, eu ainda falo com as pessoas assim, igual outro dia eu
falei - um programa, uma festa, tipo eles tão fazendo pra ordem carismática,
por exemplo: não, “um reveillon de Jesus Cristo, lá no rebanhão”,
num sei o que que é. Falei com ele: ‘ó, eu acho que a gente deve de ir
nessas coisas com os outro, que os outro prepara de Deus, de igreja, é
quando nós num temo nada promovido na nossa comunidade. Se nós estamos
promovendo uma festa aqui também, num tem sentido ocê largar a festa na
sua casa pra ir na casa dos outros’. [Ri] Agora, essa é uma festa que
digo: é cada um fazendo festa na sua casa. Quer dizer, a casa, eu tô
comparando a nossa comunidade, né? Morro Vermelho. Se nós vamos fazer
uma festa aí dia 31, num tem sentido, ir nem em Caeté participar da
festa de passagem de ano em Caeté. E eu acho que essa aí vai ser tipo
palavra rural, que sempre o povo gosta de pôr as palavra rural, mesmo,
porque eu sou rural e tenho muito orgulho de ser, né? Tem gente que tem
vergonha de ser trabalhador rural; não, eu tenho orgulho de ser
trabalhador rural; portanto, eu sou até presidente, né?, da categoria
rural de Caeté.
O horizonte político da pequena comunidade de Morro Vermelho é
reafirmado pela participação de eventos históricos marcantes da vida
nacional, em particular Zé Leal se refere ao Levante do Quinto do Ouro
(em 1715) (cf. Anastásia, 1994; 1998; Mahfoud, 2001) e a uma inédita
manifestação pública pelas eleições diretas para a presidência da
república, em sintonia com o grande movimento nacional das ‘Diretas Já”
meses depois.
Que
eu tenho falado pra pessoas que num dá muito sentido ao Morro Vermelho, e
eu falo assim – engraçado -, eu falo assim: ‘O Morro já fez muita
coisa pelo Brasil e o Brasil num faz nada pro Morro’. Então, quando é...:
‘Mas que que é que Morro fez por Brasil?; aí eu fico: ‘Levante do
Quinto do Ouro’. Quer dizer, nós, os nossos antepassados, que revoltou
para o bem estar do Brasil, né? Depois eu vou: ‘Diretas Já’; quer
dizer, as ‘Diretas Já’ também é da volta da democracia, né? Quer
dizer, quem que leu a ‘Carta Manifesto’, que os comícios funcionou de
janeiro de ‘84, mas a leitura da carta foi em 07 de setembro de 1982, a
“Carta Manifesto”. Quer dizer, essa que foi a pedra principal de início
da democracia, o resto foi desenvolver. Quer dizer, hoje o nosso Estado
mesmo num fala. Quando eles fala nas a volta da democracia, eles fala de
Belo Horizonte pra lá, mas aonde foi lida a “Carta Manifesto” mesmo,
eles nem cita. É, mas mas uma coisa que o Brasil envolve, Brasil regozija
a democracia, mas o Morro mesmo, num percebemos nada disso até hoje. [silêncio].
A tensão do depoimento evidencia a consciência de uma pertença ‘a
comunidade nacional nascida de uma identidade comunitária calcada em
lutas sociais e políticas em um relativamente extenso período histórico.
A expressão acima “nós, os nossos antepassados revoltou” é
indicativa dessa comunidade viva agindo com firmeza política em favor da
liberdade e da democracia há quase três séculos, vivida como dimensão
pessoal por Zé Leal.
A contradição dramática de contribuir consistentemente e não ter
reconhecimento é tomada por ele na imagem do fundamento: “a pedra
principal de início” não se vê. Esta é a posição de Morro Vermelho
diante do Brasil. Esta é a mesma posição de Zé Leal diante da história:
Se
olhar lá na ‘Carta Manifesto’, ce num vê meu nome. Nesse tempo eu
num era político, mas quem autorizou a leitura da carta aqui no Morro foi
eu [Ri].
Esta é a mesma posição de Zé Leal, homem de visão, ligado, profeta,
quase imperceptível mas atuante diante dos homens.
Mas esta leitura contemporaneamente mítica e histórica, esta capacidade
de abrangência da totalidade ali naquele pequeno contexto, não se
estabelece somente como um olhar geral e genérico para a vida da
comunidade. Esta dinâmica cheia de crivos críticos e de capacidade de
valorização foi por nós identificada durante as entrevistas mesmas, no
relacionamento ali estabelecido, especialmente quando Zé Leal comenta o
significado da pesquisa que temos realizado em Morro Vermelho há alguns
anos:
Os
três arcanjos é Gabriel, Miguel e Rafael. O nome de Gabriel significa
‘Deus anuncia’, o nome de Miguel significa ‘Deus combate’ e o de
Rafael significa ‘Deus cura’. Então o nome seu, por exemplo, é o
nome que quando eu converso com’ocê eu sei que eu converso... Miguel
significa “Deus combate”. Aí é combate o que? Ajuda a combater as
coisas que de ruim que tão feias, pra melhorar, né? É tudo que precisa
de meta, que tá em combate, né? O povo num chega a entender muito não,
mas a gente lembrando um pouco da Guerra dos Emboabas, por exemplo, o
desfecho dos emboabas foi com os paulistas, né? aonde que teve aquela
guerra.... Então, na guerra depois tem que ter os apaziguador, o fazedor
de paz, né? Então, de vez em quando, eu converso com cê: ‘Ah, agora
um emboaba, conversando com um paulista!’ [Ri]. Um descendente de
emboaba conversando com um descendente de paulista. Quer dizer, naquela
rancha dos emboaba, no meu entender, nós dois fechamos assim - com’é
que fala? - a conciliação, né? Porque, eu falo muito, eu tenho pouca
leitura; minha leitura é terceira série primária, né? mas meus
pensamentos, eu falo assim: ‘Caeté e Morro Vermelho tinha uma dívida
muita grande com Deus, com relação a essa Guerra dos Emboabas’. E também
com os maltrato com os escravo, né? Que a história de Caeté e a do
Morro é baseada na escravidão, né? Quer dizer: que que os escravos
faziam? Trabalhavam dado, num recebiam nada, quando ainda era chicoteado
ainda, uai! Então, eu falo: tá chegando a hora de Deus perdoar nós,
desses erros de nossos antepassados.
Fundamento invisível mas sustentáculo, profeta às vezes incompreendido
mas trabalhador empenhado nas mudanças radicais em curso, história longa
marcada por tantos erros e impurezas mas também por possibilidades vivas
de reconciliação, vida bem circunscrita social e espacialmente mas
participante da história universal. As mudanças do novo milênio começam
com reconciliação, restaurando – começamos a perceber, com algum
sentido – uma pureza. E na precisa relação afetiva, social, histórica,
um horizonte de totalidade se afirma, insistente:
Tamos
em final de tempos. E eu tenho essa conversa de nós dois: eu como um dos
emboabas, ocê como um dos paulista, fechando um reconciliamento até com
Deus.
Referências
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Payot. (Original publicado em 1933).
Nota
sobre o autor:
Miguel
Mahfoud é doutor em Psicologia Social, professor adjunto do Departamento
de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, Brasil. Contatos:
mmahfoud@fafich.ufmg.br.
- Data de
recebimento: 15/10/2001
- Data de aceite:
29/10/2001
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- Memorandum, Out/2001
- Belo
Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
- http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos01/mahfoud01.htm
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