Mahfoud, M. e Massimi, M. (2006). Editorial: Conhecer a pessoa em sociedade. Memorandum, 11, 1-7. Retirado em  /   /   , da World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a11/ed11po.htm

Editorial

Memorandum: memória e história em psicologia
Número 11

Conhecer a pessoa em sociedade

Este número da revista eletrônica Memorandum propõe um tema central para a psicologia e das demais ciências humanas: a pessoa em sua relação com a sociedade e alguns específicos percursos metodológicos para assim abordá-la. A importância desta temática torna-se ainda mais evidente diante da consideração do atual contexto sócio-cultural brasileiro e internacional, cujos desafios apontam para a necessidade de reafirmar a centralidade da pessoa. Faz-se mister cunhar alicerces conceituais que possam fundamentar práticas de saúde, educacionais e sociais, bem como decisões políticas orientadas nesta perspectiva. O mundo acadêmico não pode se omitir desta urgência. É sua contribuição dentre as funções e responsabilidades prioritárias.

Os aportes reunidos neste número 11 de Memorandum fornecem promissoras chaves de leitura conceituais acerca da relação pessoa / sociedade, num horizonte interdisciplinar, único adequado para abordar o tema sem incorrer em fáceis reducionismos.

Quanto às possíveis abordagens conceituais ao tema da pessoa na sociedade, temos a contribuição da fenomenologia: A relação pessoa-comunidade na obra de Edith Stein de Achilles Gonçalves Coelho Júnior e Miguel Mahfoud discute as contribuições de Edith Stein para a compreensão da relação pessoa-comunidade como relação de interdependência constitutiva, sendo a pessoa humana apreendida em suas dimensões corpórea, psíquica e espiritual.

Num horizonte interdisciplinar, a antropologia filosófica de matriz fenomenológica oferece instrumentos para considerar a questão da pessoa não apenas como objeto mas também como sujeito do conhecimento: Fenomenologia e ciências humanas: implicações éticas de Angela Ales Bello, após apresentar a estrutura da pessoa humana em suas diversas dimensões (corpo, psique e espírito) e em sua intersubjetividade constitutiva, evidencia ser esta também a estrutura do próprio pesquisador, travando uma reflexão epistemológica acerca das ciência humanas, com particular atenção à ciência psicológica e às questões éticas sobre a pesquisa do sujeito humano.

Ainda num horizonte interdisciplinar, Understanding the human person from the standpoint of the relational sociology de Pierpaolo Donati discute do ponto de vista da sociologia, a conceituação da pessoa como sujeito livre segundo a abordagem do realismo social proposta por Margaret Archer, apontando uma nova modalidade de entender as relações sociais nesta perspectiva.

A questão da pessoa num âmbito tão decisivo para a vida social como o trabalho, é abordada no artigo Subjetivação e sofrimento no trabalho: o "si" que "se" produz na atividade Gilbert Cardoso Bouyer, Laerte Idal Sznelwar, Maria José Birro Costa, onde se discutem meios para lidar com o sofrimento no trabalho envolvendo a adoção consciente, por parte do trabalhador, de certas técnicas voltadas para sua própria interioridade, a construção consciente de sentido para experiências angustiantes e ansiógenas; a valorização do sofrimento e vivências dolorosas e a busca de nova relação consigo mesmo no trabalho.

A história da psicologia e dos saberes psicológicos pode contribuir também ao conhecimento da pessoa em suas relações com a sociedade em diversos tempos e contextos culturais. A inteligência à deriva e a enfermidade social: idéias sobre ser humano e sociedade difundidas em Minas Gerais pelo jornal religioso Selecta Catholica (1846 – 1847) de Raquel Martins de Assis, discute concepções de ser humano como pessoa e de sociedade difundidas pelo jornal católico editado por D. Antônio Ferreira Viçoso, publicado no estado de Minas Gerais, Brasil, em 1846 e 1847. Referente à grave problemática psicossocial do abandono na infância e na adolescência – período decisivo para a formação da pessoa – o artigo A infância e a adolescência abandonadas: laudos em processos do judiciário mineiro (1968-1984), de Roselane Martins Cardoso, apresenta uma análise de relatórios, laudos e pareceres profissionais em processos judiciais de 1968 a 1984 envolvendo crianças e adolescentes em situação de abandono em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Traçando um panorama da situação de abandono, identifica idéias psicológicas relacionadas ao tratamento de crianças e adolescentes no âmbito da justiça. De fato, abordar a questão da pessoa não pode ser desvinculado do efetivo cuidado com ela mesma e com as condições de sua formação.

Já referente ao conhecimento da pessoa num contexto cultural bem diverso mas insidente na nossa sociedade ocidental, o artigo O caminho espiritual do corpo: a dinâmica psíquica no karate-do shotokan de Cristiano Roque Antunes Barreira e Marina Massimi explora percursos históricos, técnicos e conceituais dos mais importantes conceitos antropológicos inerentes à arte marcial do karate (kime, sun-dome, zanshin), analisados do ponto de vista fenomenológico através da experiência relatada por mestres.

A memória é uma dimensão específica e decisiva da experiência da pessoa humana e a psicologia tem se dedicado a ela tanto no passado como na atualidade. A experiência de recordar em estudos da memória autobiográfica: aspectos fenomenais e cognitivos,de Gustavo Gauer e William B. Gomes, propõe uma incursão sobre o conceito e a função da memória em diferentes etapas da história das idéias psicológicas, enfocando-o como desempenho de aprendizagem e como experiência de recordar em estudos cognitivistas contemporâneos de memória autobiográfica. Dedicado à consideração das relações entre memória e gênero e ainda numa perspectiva histórica Memórias sobre o feminismo na psicologia: para a construção de memórias futuras de Luísa Saavedra e Conceição Nogueira analisa os estudos de gênero e das posturas feministas na psicologia, ao longo da história até a atualidade.

Por fim, sinalizamos a resenha do livro de Angela Ales Bello, por Mobeen Shahid: Edmund Husserl: to think God, believing in God, destacando a novas contribuições da autora a respeito da pouco conhecida abordagem de Husserl à dimensão religiosa como constitutiva da pessoa.

O conhecimento da pessoa humana implica sua relação com a sociedade e seus desafios decorrentes. Como Maria Zambrano (1958/2003) nos lembra, “não é possível eleger-se a si mesmo como pessoa sem eleger, ao mesmo tempo, os restantes; e eis que os restantes são todos os homens” (p. 174). As possibilidades de conhecimento e cuidados da pessoa merecem preeminente consideração neste momento da história, pois, ainda segundo Zambrano, “a pessoa é o lugar onde o futuro abre passagem” (p. 136).

Referência bibliográfica

Zambrano, M. (2003). Pessoa e democracia. (I. Andrade, Trad.). Lisboa: Fim do século Edições. (Original publicado em 1958).

Miguel Mahfoud
Marina Massimi
Editores
Outubro de 2006.