No dia 27 de outubro foi inaugurado, na Fafich, o Centro de Convivência Negra (CCN). O evento reuniu diversos estudantes da graduação e da pós-graduação, docentes e técnicos, além de diversos coletivos de temática racial. Participaram também os professores Orestes Diniz Neto e Bruno Pinheiro Wanderley Reis, diretor e vice-diretor da Fafich; Tarcísio Mauro Vago, Pró-reitor de Assuntos Estudantis da UFMG; Cláudia Mayorga, Pró-reitora Adjunta de Extensão da UFMG e Vanicleia Silva Santos, Coordenadora do Centro de Estudos Africanos e Orientadora do CCN.
Nas diversas falas, depoimentos e debates, o sentimento compartilhado foi o de que, mesmo com muitas dificuldades, um importante passo havia sido dado no combate à desigualdade racial dentro da UFMG.
Com a adoção da lei de cotas, o perfil dos alunos, ainda predominantemente branco de classe média e alta, está se alterando, tornando-se cada vez mais próximo da realidade brasileira. De acordo com dados do Andifes, em 2014 o percentual de discentes negros e pardos chegou a 47,57% na universidades públicas do país. De acordo com Tarcísio Vago, estima-se que, na UFMG, esse número esteja entre 50% e 60%.
Nesse contexto, o que vem sendo percebido por esses novos discentes é que a Instituição ainda não se encontra preparada para atender às suas demandas específicas. "Eu passei os meus dois primeiros períodos me sentindo completamente deslocada da faculdade a qual eu pertencia. Implementar a questão das cotas, não significa que você está preparado para receber os estudantes negros. Estar aqui, mas não sentir que você pertence à esse espaço é uma sensação desconfortável" pontua Viviane Cavalcante, estudante do 3º período de Engenharia Civil.
Com o objetivo de preencher essa lacuna e tentar minimizar as dificuldades encontradas pela população negra da UFMG é que se viabilizou a criação do CCN. Além de acolher e ser um local de convivência, ele deverá ser um espaço de reflexão sobre as formas de ocupação de todas as esferas dentro do ambiente universitário, através de atividades de formação e integração. Segundo afirma Bárbara Franciele Gualberto, estudante do 7° período de psicologia e integrante do Maloka, o coletivo que capitaneou a criação do Centro: "A intenção é ser primeiro um espaço de convivência das pessoas pretas tanto dentro quanto fora da Universidade. É um lugar para a gente pensar estratégias de enfrentamento do racismo que passamos aqui cotidianamente. Também para pensar atividades, porque após as cotas, a população negra na UFMG vem aumentando cada vez mais e a universidade, um espaço historicamente branco, sofre um impacto com o aumento da população negra. O Centro vem com o objetivo de pensar sobre esse impacto e pensar estratégias de enfrentar os desafios que aparecem."
Um histórico de luta e resistência
O processo que culminou na criação do CCN tem raízes históricas. Foram várias as gerações de estudantes negros que, em suas estratégias de enfrentamento ao racismo institucional, promoveram iniciativas diversas ao longo de suas trajetórias acadêmicas, algumas das quais persistindo até hoje com um relevante trabalho desenvolvido para a comunidade negra dentro e fora da UFMG.
Esse é o caso da professora e ex-Ministra das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos Nilma Lino que na década de 90 foi uma das fundadoras do Grupo Interdisciplinar de Estudos Afro-brasileiros da UFMG e posteriormente coordenou o Programa Ações Afirmativas, que atua desde 2002 implementando políticas e práticas de permanência bem sucedidas de jovens negros e de baixa renda na Universidade. "A existência do Centro comprova o que a política de Ações Afirmativas tem no seu cerne: você precisa que os sujeitos estejam em seus lugares e garantir a entrada desses sujeitos nos diferentes lugares sociais e espaços como direito. Se os sujeitos chegam, eles mudam as estruturas. Se os sujeitos negros não estivessem aqui pelas ações afirmativas e pelas cotas, em maior quantidade e em diferentes cursos, o Centro não passaria a ser uma reivindicação dentro do processo de "Ocupação" ocorrido em 2016, a ponto de hoje a diretoria da Fafich conceder esse espaço para os estudantes se articularem. Ver a concretização dessa reivindicação é uma honra e um momento muito emocionante da minha trajetória acadêmica e política", afirma Nilma.
Outro grupo importante e que teve forte atuação na UFMG foi o Coletivo de Estudantes Negros (CEN). Criado em 2008, período anterior ao da adoção de cotas na Universidade e em um ambiente acadêmico que oferecia pouco espaço ao acolhimento, identificação e discussão sobre políticas e ações afirmativas, o CEN era voltado para ações diretas como participações em protestos, ocupações, enfrentamento à reitoria.
Além do CEN, outros grupos mostraram-se, em alguma medida, aliados na luta contra o racismo, dentro e fora da UFMG, como, por exemplo, o Conexões de Saberes e o Neia, pavimentando o caminho para a criação do CCN.
Resultado da "ocupação da ocupação"
As ocupações realizadas por estudantes secundaristas e universitários ocorridos ao longo de 2016, motivados pela reforma do ensino médio e contra a PEC 241, que objetivava congelar gastos públicos por até 20 anos, coincidiu com a consolidação do Coletivo Maloka. Na verdade, o grupo começou a se formar em meados de 2015, no Pré ECUN, evento organizado para articular a participação do pessoal de Belo Horizonte no Encontro de Estudantes e Coletivos Universitários Negros, realizado em maio de 2016 na UFRJ. A experiência nesses encontros colocou os participantes em contato com diversos coletivos e pessoas com diferentes posicionamentos político-ideológicos sobre questões como Estado, governo e negritude.
Durante o ano de 2016, o grupo organizou eventos, criou grupos de estudos, promoveu cursos de idiomas e articulou formações de base em diversos assuntos ligados à temática negra. Tudo sempre com muita dificuldade, por não disporem de espaços físicos adequados para os encontros e dispositivos de divulgação e articulação. Dificuldade que já era sentida por outros coletivos e estudantes negros, conforme relata Álvaro Zulu, antigo membro do CEN: "Não havia espaço para os encontros, várias vezes fomos escorraçados dos lugares." Zulu formou em Gestão Pública, em 2015, e seu trabalho de conclusão de curso trata do Centros de Convivências como estratégia de enfrentamento de evasão de estudantes das Instituições Federais de Ensino.
O Maloka que àquela altura mantinha contato com outros coletivos e inclusive com Zulu, teve acesso ao seu trabalho e se apropriou da ideia, que ganhava cada vez mais força, à medida que o coletivo crescia e necessitava desse espaço.
No contexto das ocupações estudantis do final de 2016, o Maloka decidiu se juntar ao movimento, porém com pauta própria de reivindicações, sendo a de mais destaque, justamente a criação de um Centro de Convivência Negra na Universidade. Para isso, o grupo ocupou a antiga sede do Diretório Acadêmico da Fafich, que à época estava fechado há quase um ano. Essa "ocupação da ocupação" aos olhares de quem estava fora do movimento, foi batizada de "Ocupação Preta" pelos membros do coletivo.
Com a aprovação da PEC 241, perdeu fôlego o embate em nível nacional, mas as demandas internas das ocupações ganharam força. As reivindicações do coletivo foram levadas à Congregação da Fafich e após longos e exaustivos debates ficou acordado com a diretoria da Fafich, a cessão de uso da sala F-1058, localizada no 1º andar, para funcionamento do primeiro Centro de Convivência Negra da UFMG. Também passaram a participar do projeto, as Pró-reitorias de Assuntos Estudantis de Extensão da UFMG que passaram a prestar apoio institucional.
O momento da inauguração do espaço foi de muita comemoração, mas conforme pontua Zulu, ainda há muita luta pela frente: "Por mais que seja vitória, é uma vitória muito pequena perto das batalhas que tivemos". "É só o começo, não dá para esquecer que o CCN da Universidade de Brasília é um prédio, não uma sala", complementa Bárbara Gualberto.
Inclusão, mas também permanência
Um estudo publicado pela Prograd em 2015 demostrou que os alunos cotistas têm desempenho igual ou superior aos demais discentes, mesmo que, de uma maneira geral, enfrentem dificuldades como falta de recursos, concomitância com trabalho, dificuldade de deslocamento, entre outros, durante o seu percurso acadêmico.
A política de inclusão está sendo implantada e tem mostrado seus resultados, mas as formas de permanência ainda precisam ser melhor discutidas. Os programas de assistência estudantil necessitam ser expandidos, promovendo melhores condições para que os alunos com esse perfil consigam concluir a graduação com qualidade.
Nesse sentido a atuação do Centro se torna ainda mais relevante devido às atividades a serem desenvolvidas no local. "Nesses primeiros 3 meses, estruturamos o espaço e a expectativa é de que em março de 2018 já esteja tudo pronto para a recepção dos calouros e intercambistas negros", diz Ulisses de Oliveira, estudante do 8° período do curso de Ciências Sociais e integrante do Maloka. Mas o pessoal do CCN, não dorme no ponto. Neste mês, organizou junto com os coletivos Unegro, TUDO NOSSO e Maloka o Novembro Negro, voltado à celebração do Mês da Consciência Negra. Outra frente de trabalho é a participação na comissão de avaliação de fraudes em cotas da Pró-reitoria de Assuntos Estudantis da UFMG.
Sob a orientação da professora Vanicléia Silva Santos, coordenadora do Programa de Estudos Africanos da Diretoria de Relações Internacionais (DRI), o Centro ainda planeja atividades como cursos de línguas afrocentrados, formações diversas em temática racial, a calourada preta, entre outros.
Esse projeto piloto visa se tornar um modelo a ser replicado em toda a UFMG. A expectativa é que em pouco tempo todas as unidades tenham o seu próprio espaço de acolhimento, discussão e desenvolvimento da comunidade negra.
Centro de Convivência Negra
Sala 1058 - 1º andar da Fafich
Contato: centrodeconvivencianegra@gmail.com
Mais informações na página do Facebook.
Por Amadeus Rocha Morais
Foto: Iris Moraes